Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1290/11.9TXLSB-L.L1-9
Relator: JOÃO ABRUNHOSA
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
RELATÓRIO SOCIAL
NOTIFICAÇÃO DO ARGUIDO
ADMISSÃO DO RECURSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – O relatório integrado elaborado pelos Serviços Prisionais e Reinserção Social, para a decisão sobre a liberdade condicional, não tem que ser notificado nem ao Recluso nem so seu Defensor, mas pode por estes ser consultado nos autos;
II – A decisão sobre liberdade condicional deve obedecer aos requisitos previstos no art.º 374º/2 do CPP;
III - Não há recurso da matéria de facto da decisão sobre liberdade condicional, mas é-lhe aplicável o disposto no art.º 410º/2/3 do CPP.
(sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:           Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

           No Tribunal de Execução de Penas de Lisboa, por decisão de 16/11/2015, constante de fls. 68/73, foi ao Arg.[1] AAA, com os restantes sinais dos autos (cf. ficha biográfica de fls. 51), negada a liberdade condicional nos seguintes termos:

“…I. RELATÓRIO

Identificação do recluso: AAA

Objeto do processo: apreciação da liberdade condicional (arts. 155.º n.º 1 e 173.º e ss., todos do CEPMPL) em renovação da instância com referência ao marco dos dois terços da pena.

Foi elaborado relatório pelos serviços de tratamento prisional e reinserção social versando os aspetos previstos no art. 173.º n.º 1 als. a) e b) do CEPMPL.

O conselho técnico emitiu, por unanimidade, parecer desfavorável à concessão da liberdade condicional (art. 175.º do CEPMPL).

Ouvido o recluso este, entre outros esclarecimentos, deu o seu consentimento à aplicação da liberdade condicional (art. 176.º do CEPMPL).

O Ministério Público emitiu parecer desfavorável (art. 177.º n.º 1 do CEPMPL).

II. FUNDAMENTAÇÃO

A) De facto

i) Factos mais relevantes:

1. Circunstâncias do caso: o recluso cumpre a pena de 12 anos e 4 meses de prisão, aplicada no processo n.º 269/06.7GABBR do tribunal judicial do Bombarral, pela prática de um crime de homicídio e de um crime de detenção de arma proibida, consubstanciados resumidamente em, na sequência de uma discussão, ter efetuado dois disparos de pistola na direção da vítima, que se encontrava a cerca de 1,5 metros de distância, tendo um dos disparos atingido a vítima no hemitórax esquerdo.

2. Cumprimento da pena: início em 17/09/2006, meio em 17/11/2012, dois terços em 07/12/2014, cinco sextos em 27/12/2016 e termo em 17/01/2019.

3. Vida anterior do recluso (antecedentes e condições pessoais): natural da atual Crimeia, refere ter sido casado e ter tido uma filha, tendo a sua mulher e a sua filha falecido; refere ter exercido no seu país de origem a profissão de professor de geografia e biologia, durante cerca de vinte anos; emigrou para Portugal em 2000, tendo trabalhado no setor agrícola; não lhe são conhecidos antecedentes criminais.

4. Personalidade do recluso e evolução durante o cumprimento da pena: atitude face ao crime – revela alguma ambivalência quanto aos factos que originaram a reclusão; tem consciência dos danos causados, mas desculpabiliza-se invocando ter atuado por legítima defesa; saúde – vem mantendo acompanhamento ao nível da psiquiatria, por manifestar períodos de instabilidade emocional; neste momento encontra-se emocionalmente equilibrado; personalidade – evidencia alguma dificuldade ao nível do controle da impulsividade; comportamento – do seu registo constam quatro sanções disciplinares, a duas últimas por factos praticados em janeiro e fevereiro de 2014, consubstanciadas em 12 dias de internamento em cela disciplinar e uma repreensão escrita; atividade ocupacional/ensino/formação profissional – trabalha desde 2009, sendo atualmente na oficina das tampas; nos anos letivos 2013/2014 e 2014/2015 frequentou o curso “Português para Todos”; programas específicos e/ou outras atividades socioculturais – não frequenta; medidas de flexibilização da pena – não beneficiou, até à data, de medidas de flexibilização da pena.

5. Rede exterior: enquadramento/apoio familiar/projetos futuros – não dispõe de apoio familiar em Portugal, sendo visitado no estabelecimento prisional por membros da associação “RUTE”; verbaliza não ter atualmente qualquer referência familiar no seu país de origem; tenciona permanecer em Portugal, pretendendo ser acolhido e ajudado pela associação “RUTE”; a vítima era de nacionalidade ucraniana e na zona onde ocorreu o crime encontram-se radicados vários cidadãos ucranianos, sendo o recluso ali considerado persona non grata; o paradeiro dos familiares da vítima é desconhecido.

6. Foi alvo de decisão de expulsão administrativa por parte do serviço de estrangeiros e fronteiras.

7. Formulou pedido de asilo que foi admitido, pelo que a decisão referida em 6. está suspensa.

ii) Motivação da matéria de facto:

A convicção do tribunal no que respeita à matéria de facto resultou da decisão condenatória junta aos autos, da ficha biográfica do recluso, do seu certificado de registo criminal, do relatório junto aos autos elaborado pela equipa técnica única, dos documentos juntos pelo serviço de estrangeiros e fronteiras e pelo recluso, que fazem fls. 300 e s. e fls. 326 e ss., do parecer do conselho técnico e das declarações do recluso.

B) De direito

“A liberdade condicional tem como escopo criar um período de transição entre a reclusão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, de forma equilibrada, não brusca, recobrar o sentido de orientação social necessariamente enfraquecido por efeito do afastamento da vida em meio livre e, nesta medida, a sua finalidade primária é a reinserção social do cidadão recluso, sendo certo que, até serem atingidos os dois terços da pena, esta finalidade está limitada pela exigência geral preventiva de defesa da sociedade” (Anabela Rodrigues, in “A Fase de Execução das Penas e Medidas de Segurança no Direito Português”, BMJ, 380, pág. 26).

Vale isto por dizer que, alcançados os dois terços da pena, com um mínimo absoluto de seis meses (cfr. art. 61.º n.º 3 do código penal, de ora em diante designado CP), e obtido o consentimento do recluso, como é o caso, o legislador abranda as exigências de defesa da ordem e paz social e prescinde do requisito de prevenção geral, considerando que o condenado já cumpriu uma parte significativa de prisão e que, por conseguinte, tais exigências já estarão minimamente garantidas.

Donde, aos dois terços da pena, é único requisito material a expetativa de que o condenado, em liberdade, conduzirá a sua vida responsavelmente e sem cometer crimes, ou seja, importa que se atente na prevenção especial na perspetiva de ressocialização (positiva) e prevenção da reincidência (negativa). Pelo que, no que respeita aos fins das penas, subsiste apenas a finalidade de ajuda ao recluso na mudança e regeneração e na prevenção de cometimento de novos crimes.

Na avaliação da prevenção especial o julgador tem de elaborar um juízo de prognose sobre o que irá ser a conduta do recluso no que respeita a reiteração criminosa e ao seu comportamento futuro, a aferir pelas circunstâncias do caso, antecedentes, personalidade e evolução durante o cumprimento da pena.

No caso presente, afigura-se ao tribunal continuarem patentes fragilidades do ponto de vista da prevenção especial. Na verdade, muito embora o recluso assuma os factos e tenha consciência dos danos causados, revela alguma ambivalência quanto a tais factos e desculpabiliza-se com a invocação de uma legítima defesa que não encontra correspondência na decisão condenatória. Esta circunstância, aliada ao facto de o recluso evidenciar alguma dificuldade ao nível do controle da impulsividade e de ter de manter acompanhamento psiquiátrico na sequência de períodos de instabilidade emocional, não permite que se formule um juízo de prognose favorável ao nível da prevenção especial negativa. Efetivamente, estes são fatores criminógenos relevantes que, pelos motivos enunciados, permanecem patentes.

Por outro lado, o recluso não dispõe de apoio familiar, verbalizando o ensejo de ser integrado numa instituição, cuja capacidade contentora é desconhecida.

Acresce estar por definir onde se irá reintegrar o recluso, já que manifesta a pretensão de passar a residir na referida instituição, mas foi alvo de decisão de afastamento coercivo do território, neste momento suspensa em virtude de estar em apreciação o pedido de asilo entretanto formulado pelo recluso.

Por último, não é despiciendo que o conselho técnico e, bem assim, o Ministério Público, se hajam manifestado unanimemente desfavoráveis à concessão da liberdade condicional, sendo certo que estamos na presença de pena cuja duração determina a obrigatória libertação do recluso aos cinco sextos, pelo que sempre este terá oportunidade de beneficiar de um período de transição entre a reclusão e a liberdade, durante o qual de forma equilibrada, não brusca, poderá recobrar o sentido de orientação social enfraquecido por efeito do afastamento da vida em meio livre.

Assim, em suma, muito embora devam considerar-se como positivos o investimento que o recluso vem fazendo nas suas competências linguísticas, a circunstância de se manter laboralmente ativo e o apoio institucional com que conta, razões de prevenção geral positiva e negativa ditam que o tribunal acompanhe o parecer unânime do conselho técnico e o entendimento professado pelo Ministério Público.

III. DECISÃO

Em face do exposto, não concedo a liberdade condicional a AAA.

O próximo marco de conhecimento da liberdade condicional situa-se aos cinco sextos da pena, isto é, em 27 de dezembro de 2016, posto que dista a cerca de um mês da renovação da instância.

Para o efeito, deverá a secção:

a) solicitar, com 90 (noventa) dias de antecedência, o envio, no prazo de 30 (trinta) dias, de relatório versando os aspetos previstos no art. 173.º do CEPMPL, bem como a ficha biográfica do recluso;

b) diligenciar pela junção do certificado de registo criminal do recluso;

c) diligenciar junto do estabelecimento prisional no sentido de averiguar se o recluso aceita a liberdade condicional, devendo, em caso afirmativo, juntar aos autos a respetiva declaração;

d) caso não haja nova informação a este respeito, solicitar ao serviço de estrangeiros e fronteiras informação sobre a vigência da decisão de expulsão administrativa de que o recluso foi alvo. …”.

*

Inconformado, veio o Recluso interpor recurso, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 75/79, concluindo da seguinte forma:

“…

1. Decidiu-se o tribunal recorrido por não conceder liberdade condicional ao ora recorrente com base na matéria de facto a que se fez referência em sede alegações, para onde remetemos.

2. Nomeadamente, com base no seu art.º 4.º (primeira parte): ““4. Personalidade do recluso e evolução durante o cumprimento da pena: atitude face ao crime – revela alguma ambivalência quanto aos factos que originaram a reclusão; tem consciência dos danos causados, mas desculpabiliza-se invocando ter atuado por legítima defesa;”

3. Em nosso entender, e com o devido respeito por opinião diversa, não deveria ter dado como provado o tribunal recorrido que o arguido mantem uma postura desculpabilizante relativamente ao crime cometido (art.º 4.º matéria de facto provada), incorrendo o tribunal recorrido em erro notório na apreciação da prova.

4. Isto porque alavanca-se num relatório junto aos autos elaborado pela equipa técnica única cuja realização remonta há já cerca de 3 anos.

5. O arguido não foi ouvido pela equipa técnica única durante os anos de 2013, 2014 e 2015 e, no entanto, quer em 2014 quer em 2015 o relatório junto por aquela equipa reproduz “ipsis verbis” as mesmas palavras quanto à evolução da atitude do arguido relativamente ao crime cometido, ou seja, que o arguido “revela alguma ambivalência quanto a tais factos e desculpabiliza-se com a invocação de uma legítima defesa que não encontra correspondência na decisão condenatória.”

6. Está em causa a evolução da postura do arguido para com os valores que se pretenderam defender aquando do proferimento do acórdão que veio a decidir-se por lhe aplicar uma pena de prisão de 12 anos e 4 meses pelo crime por si praticado.

7. Razão pela qual se torna imprescindível que a equipa técnica que tem como responsabilidade elaborar relatório proceda à audição do arguido sempre que tem de elaborar relatório quanto às matérias constantes do art.º 173 n.º 1 al. a) e b).

8. Uma vez que não o fez, e que o citado relatório não foi notificado nem ao arguido nem ao seu defensor em momento anterior ao proferimento da decisão recorrida, vai o mesmo impugnado, devendo dar-se como não provada a matéria constante do art.º 4.º da matéria de facto dada como provada, e devendo ser renovada a prova em causa, nos termos do art.º 412.º n.º 3 al. c) do C.P.P.
9. Assim, incorreu o tribunal recorrido em erro notório na apreciação na prova dada como provada no seu ponto 4.º, em violação dos art.ºs 410º n.º 2 c), 412.º n.ºs 3 e 4, todos do C.P.P., devendo dar-se o ponto referido como não provado e optando-se, em suma, pela renovação da prova em causa, nomeadamente através da realização de relatório onde o arguido seja efectivamente ouvido quanto à sua postura actual relativamente ao crime cometido.

Nestes termos e nos mais de direito, deve ser julgado procedente o presente recurso, assim se fazendo Justiça! …”.
*
A Exm.ª Magistrada do MP[2] respondeu ao recurso, nos termos de fls. 84/93, concluindo da seguinte forma:

“…

1. Por decisão judicial datada de 16-11-2015, em renovação da instância, não foi concedida a liberdade condicional ao ora recorrente, por referência aos dois terços da pena atingidos em 7-12-2014, estando em causa o cumprimento de pena 12 anos e 4 meses de prisão, pela prática de um crime de homicídio e de um crime de detenção de arma proibida.

2. Tal decisão foi proferida após prévia instrução dos autos, com junção autos do relatório integrado elaborado pela equipa técnica única de tratamento prisional e reinserção social, certificado de registo criminal do recluso, parecer por unanimidade desfavorável do Conselho Técnico, audição do recluso e parecer desfavorável do Ministério Público.

3. Com base nos factos provados quanto ao percurso prisional e tendo ainda em conta as circunstâncias dos crimes cometidos, o tribunal fez um juízo de prognose desfavorável à liberdade condicional.

4. A decisão proferida contém fundamentação suficiente de modo a permitir compreender a decisão e o processo lógico-mental que lhe serviu de suporte.

5. O tribunal fez correcta interpretação e aplicação do direito, mormente, do art. 61º n.ºs 2 als. a) e 3 do C. Penal e não padece de qualquer vicio.

6. O recorrente não tem razão ao alegar que a decisão recorrida se baseou num relatório com mais de 3 anos e para cuja elaboração não foi ouvido nem notificado, porquanto o relatório integrado em causa é atual, data de 29-09-2015 e teve como fonte as entrevistas com o recluso, como se lê a fls. 48 e vº. 

7. Nenhuma norma impõe que tal relatório seja notificado ao recluso, embora possa ser consultado nos autos, nomeadamente através do defensor.

8. Acresce que se trata apenas de um dos elementos instrutórios que serve de apoio para a decisão a proferir sobre a concessão, ou não, da liberdade condicional, não sendo o único, razão pela qual o juízo de prognose efetuado pelo tribunal não se baseou apenas naquele relatório.

9. Aquando da sua audição, após a instrução do processo e a realização do conselho técnico, o recluso não evidenciou necessidade de se expressar sobre os crimes cometidos, designadamente para evidenciar evolução ao nível do sentido crítico.

10. É inegável que o recluso precisa ainda de adquirir competências pessoais e sociais, de modo a adequar o seu comportamento à normatividade da vida em sociedade, debelando os seus fatores criminógenos.

11. O recluso mantém uma postura de desresponsabilização e desvalorização da sua actuação ilícita que, como se lê no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 18-02-2014 (processo nº 2077/11.4TXLSB-H.L1 – 5ª Secção), é reveladora da sua dificuldade de autocritica e de interiorização do desvalor das suas condutas, assim como de uma personalidade com traços negativos, que não consegue assumir de forma clara a culpa.

12. Um dos primeiros passos para que se possa fazer um juízo de prognose favorável no sentido de futuro comportamento socialmente responsável e sem cometer crimes, é, indubitavelmente, o reconhecimento sincero das consequências do crime e a manifestação de profundo arrependimento, pois só isso garantirá, com um mínimo de segurança, uma aptidão séria para a mudança, o que o recluso ainda necessita desenvolver, conforme se percepcionou na sua audição.

13. A falta de interiorização quer dos crimes quer da pena constitui um forte factor de risco de reincidência.

14. O adequado comportamento institucional e o tempo de pena cumprido, por si só, não devem nem podem fundar a concessão da liberdade condicional, ainda mais numa situação em que o recluso evidencia falta de interiorização do desvalor da sua actuação

15.  Por conseguinte, assiste razão ao tribunal que concluiu no sentido de que o recluso deve consolidar o seu percurso, de forma a reunir condições intrínsecas, nomeadamente ao nível da interiorização do sentido da pena, para poder beneficiar de liberdade condicional e cumprir com as obrigações subjacentes.

A decisão recorrida não violou qualquer disposição legal, devendo ser mantida nos seus precisos termos.…”.

*

A Exm.ª Juíza sustentou a sua decisão a fls. 94.

*

           Neste Tribunal a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu o parecer de fls. 100/101, em suma, subscrevendo a resposta do MP na 1ª instância e pugnando pela improcedência do recurso.

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É pacífica a jurisprudência do STJ[3] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação[4], sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.
Por outro lado, o objecto dos recursos das decisões relativas à liberdade condicional está legalmente limitado nos termos do disposto no art.º 179º/1 do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade[5] (CEP), com o seguinte teor: “O recurso é limitado à questão da concessão ou recusa da liberdade condicional.”.

Assim, são as seguintes as questões a apreciar neste recurso:

I – Falta de notificação do relatório integrado de fls. 48/50;

II - Vícios da decisão recorrida, nos termos do art.º 410º do CPP[6];

III - Verificação dos requisitos para a concessão, nesta fase, da liberdade condicional ao Recorrente.

*

            Cumpre decidir.

I – Entende o Recorrente que, porque não foi notificado do relatório integrado de fls. 48/50, elaborado pelos Serviços Prisionais e Reinserção Social, tal prova deve ser renovada.

Como refere o MP, o relatório não tem que ser notificado ao Recluso, porque não há norma que o imponha, mas pode ser consultado em qualquer momento (art.º 146º/2 do CEP), nomeadamente antes da sua audição, uma vez que o despacho que convoca o conselho técnico e designa a hora para audição do Recluso, é notificado a este e ao seu Defensor (art.º 174º/2 do CEP), podendo até oferecer provas (art.º 176º/2 do CEP).

Ora, no presente caso, o Recluso foi ouvido na presença do seu Defensor e não suscitou então qualquer questão sobre o relatório, que já se encontrava junto aos autos, nem ofereceu qualquer prova.

Não encontramos, pois, qualquer irregularidade ou nulidade no procedimento seguido[7].

*

II – Entende o Recorrente que a decisão recorrida padece do vício de erro notório na apreciação da prova, porque não foi ouvido antes da elaboração do relatório integrado de fls. 48/50.

Como já dissemos o Recluso não suscitou qualquer questão sobre o relatório, nomeadamente a falsidade do mesmo, quando foi ouvido.

Por outro lado, do referido relatório consta que o Recluso foi ouvido antes da sua eleboração.

Não tendo sido suscitada a falsidade do relatório, oportunamente, isto é, antes da prolação da decisão em crise e apreciada nesta (art.º 170º do CPP, aplicável ex vi art.º 154º do CEP), não pode esta instância apreciar essa questão.

Isto posto.

Estabelecendo o art.º 146º/1 do CEP que “Os actos decisórios do juiz de execução das penas são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.”, entendemos que, relativamente às decisões sobre a liberdade condicional, para que haja um verdadeiro direito de recurso, estas devem obedecer aos requisitos previstos no art.º 374º/2 do CPP, conforme já entendiamos antes da entrada em vigor do actual CEP[8],[9].

Quanto a estas decisões sobre a liberdade condicional, não há recurso da matéria de facto[10], conforme resulta do citado art.º 179º/1 do CEP, mas, naturalmente, podem suscitar-se e devem ser conhecidos os vícios referidos no art.º 410º/2 do CPP.

Erro notório na apreciação da prova é a “… falha grosseira e ostensiva da análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram como provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
            Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.[11].
Ora, do texto da decisão recorrida não resultam quaisquer incongruência, falha grosseira, contradição entre factos, ou juízos ilógicos ou arbitrários, pelo que não pode deixar de improceder nesta parte o recurso.
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Não vislumbramos na decisão recorrida qualquer outro dos vícios previstos no art.º 410º/2 do CPP, que são de conhecimento oficioso[12] e têm que resultar do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum[13].
Não se verificando qualquer dos vícios previstos no art.º 410º do CPP, não há lugar à renovação da prova (art.º 430º/1 do CPP).

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III - Nos termos do art. 40.º do CP, a execução da pena visa a “protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, tendo portanto uma função de paz jurídica, típica da prevenção geral, e uma função de reinserção que convoca a prevenção especial[14].

O artigo 61º do CP prevê, para a concessão da liberdade condicional, duas modalidades distintas: a obrigatória e a facultativa.

Com efeito, o regime legalmente definido para a concessão da liberdade condicional (art. 61.º/2/3/4 do CP) estabelece diferenciações ao nível dos pressupostos formais, em função do tempo de cumprimento da pena já verificado, prevendo-se a possibilidade de concessão da liberdade condicional (liberdade condicional facultativa) quando se atinge 1/2 e 2/3 da pena de prisão cumprida e a obrigatoriedade de concessão da liberdade condicional (liberdade condicional automática) aos 5/6 da pena de prisão superior a 6 anos.

Assim, na situação de reclusos que atingiram os 5/6 do cumprimento da pena, sendo obrigatório conceder a liberdade condicional (art.º 61º/4 do CP), a simples verificação dos referidos requisitos formais – cumprimento de cinco sextos da pena por recluso condenado em pena de prisão superior a seis anos, impõe a concessão da liberdade condicional, desde que, naturalmente, se tenha obtido o seu consentimento (art.º 61º/1 do CP).

Diferentemente, nas outras situações previstas na lei, contemplando-se apenas uma concessão facultativa da liberdade condicional, para além da verificação dos requisitos formais – cumprimento de metade ou dois terços da pena, no mínimo seis meses, impõe-se a verificação ainda de requisitos materiais.

Para além daquela diferenciação, importa ainda considerar as diferentes especificidades, ao nível material dos respectivos pressupostos, do regime previsto para o meio da pena e o estabelecido para a concessão da liberdade antecipada aos dois terços do seu cumprimento. Do confronto do n.º 2 com o n.º 3 do art. 61.º do CP resulta que no momento mais avançado do cumprimento da pena deixa de constituir pressuposto para a sua concessão a compatibilidade da libertação com a defesa da ordem e da paz social, pressuposto de prevenção geral exigível na libertação ao meio da pena, subsistindo apenas o pressuposto de prevenção especial estabelecido na alínea a) do n.º 2 do art. 61.º do CP (aplicável ao n.º 3, por remissão expressa): «for fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes». Desse confronto, resulta ainda evidenciado serem essencialmente razões de prevenção especial as que devem ditar a decisão de concessão da liberdade condicional respeitante ao cumprimento de 2/3 da pena de prisão. E estas desdobram-se, como é sabido, numa componente negativa, expressa nas condições necessárias para o condenado não cometer novos crimes, e numa componente positiva, traduzida nas condições para a sua reinserção social.

Condição indispensável para a concessão da liberdade condicional será, pois, a realização de um prognóstico individualizado de reinserção social que traduza um conteúdo favorável, assente, essencialmente, na probabilidade séria de que o condenado em liberdade adopte um comportamento socialmente responsável, sob o ponto de vista criminal.

Por outras palavras, num juízo de prognose, deverá poder concluir-se que a restituição do arguido à liberdade o levará a adoptar uma conduta fiel ao direito, integrando-se na sociedade, de forma a não voltar a incorrer na prática de crimes.

Condição esta que se impõe verificar quer para a concessão da liberdade condicional quer ao meio da pena, quer aos 2/3, acrescendo, no primeiro momento ainda um juízo de prevenção geral, de compatibilidade da libertação com a defesa da ordem e da paz social.

Ora, para tanto, importa verificar a sua “capacidade objectiva de readaptação”, na sugestiva expressão de Figueiredo Dias, de modo que as expectativas de reinserção sejam manifestamente superiores aos riscos que a comunidade deverá suportar com a antecipação da sua restituição à liberdade.

Ou seja, é em concreto que os índices de ressocialização revelados pelo condenado devem aferir-se, considerando a sua conduta anterior e posterior à condenação, bem como a evolução da sua personalidade ao longo do cumprimento da pena.

E um tal juízo de prognose há-de assentar, inevitavelmente, nos relatórios juntos aos autos e nos elementos de facto que o recluso queira apresentar, não se ignorando, naturalmente, os crimes por que foi condenado.

No presente caso, o Recorrente foi condenado numa pena de 12 anos e 4 meses de prisão, em cúmulo jurídico, pela prática de um crime de homicídio e de um crime de detenção de arma proibida.

Todos os relatórios e pareceres juntos aos autos foram desfavoráveis à concessão imediata da liberdade.

Dos mesmos, bem como da decisão recorrida, resulta que “…revela alguma ambivalência quanto aos factos que originaram a reclusão; tem consciência dos danos causados, mas desculpabiliza-se invocando ter atuado por legítima defesa …”; “…evidencia alguma dificuldade ao nível do controle da impulsividade …”; tem “…quatro sanções disciplinares, a duas últimas por factos praticados em janeiro e fevereiro de 2014, consubstanciadas em 12 dias de internamento em cela disciplinar e uma repreensão escrita …”; “…vem mantendo acompanhamento ao nível da psiquiatria, por manifestar períodos de instabilidade emocional …”; sendo estrangeiro, “…não dispõe de apoio familiar em Portugal, sendo visitado no estabelecimento prisional por membros da associação “RUTE”; verbaliza não ter atualmente qualquer referência familiar no seu país de origem; tenciona permanecer em Portugal, pretendendo ser acolhido e ajudado pela associação “RUTE” …”,

Não tem antecedentes criminais.

Ainda não beneficiou de medidas de flexibilização da pena.

Daqui só se pode concluir que importa acentuar a interiorização do desvalor da sua conduta e consolidar a sua estabilidade emocional e capacidade de control da impulsividade, pelo que, o prognóstico sobre a sua conduta futura não é ainda suficientemente positivo.

Assim, por razões de prevenção especial, entendemos que o Recorrente não se encontra ainda em condições de beneficiar da liberdade condicional.

É, pois, improcedente o recurso.

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Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, decidimos julgar não provido o recurso e, consequentemente, confirmamos a decisão recorrida.
Condenamos o Recorrente nas custas, com taxa de justiça que fixamos em 4 (quatro) UC, sem prejuízo de se verificar o pressuposto previsto no art.º 4º/1-j) do RCP.

*

Notifique.

D.N..

*****

Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP[15]).

*****

Lisboa, 14/04/2016

João Abrunhosa

Maria do Carmo Ferreira

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[1] Arguido/a/s.
[2] Ministério Público.
[3] Supremo Tribunal de Justiça.
[4]Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).” (com a devida vénia, reproduzimos a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt).
[5] Aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12/10, que entrou em vigor em 10/04/2010.
[6] Código de Processo Penal.
[7] Nesse sentido, cf. acórdão da RP de 14/01/2015, relatado por José Piedade, no proc. 1855/10.6TXPRT-T.P1, com o seguinte sumário: “I – No recurso do despacho que decidiu da denegação da concessão da liberdade condicional não é admissível a impugnação da decisão sobre a matéria de facto. II – A não notificação ao arguido do relatório dos Serviços de Reinserção Social para apreciação da liberdade condicional não constitui nulidade nem irregularidade.”.
[8] Acórdão da RL de 23/10/2008, tirado no proc. 8105/2008-9, in www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: “1. As decisões que denegam ou revogam a liberdade condicional, apesar de serem formalmente despachos, conforme art.ºs 485º/6 e 486º/4 do CPP, devem conter os requisitos das sentenças, por aplicação/integração analógica permitida em processo penal, nos termos do disposto no art.º 4º do CPP. 2. tal solução decorre, desde logo, da importância do que está em causa: a concessão ou não da liberdade, que implica uma ponderação aprofundada de cada caso, que não se compadece com uma qualquer fundamentação (exigida pelo disposto no art.º 97º/5 do CPP) que fique aquém do que exige o disposto no art.º 374º/2 do CPP, além do mais, porque só este tipo de fundamentação permite que a decisão seja verdadeiramente sindicável em sede de recurso. 3. Por outro lado, só um tal entendimento permite dar verdadeiros significado e sentido à possibilidade de recurso destes despachos, consagrada legalmente pela reforma operada pela Lei 48/2007, de 29/08, que, assim, veio corrigir a inconstitucionalidade apontada pelo acórdão do TC com o n.º 638/2006.”.
[9] No mesmo sentido decidiram os seguintes acórdãos:
- da RL de 19/05/2009, relatado por Margarida Blasco, no processo 6 928/07.0TXLSB-A.L1-5, in www.dgsi.pt;
- da RL de 24/02/2010, relatado por Maria José Costa Pinto, no processo 4301/08.1TXLSB-A.L1-2, in www.dgsi.pt;
- da RL de 15/12/2011, relatado por Neto de Moura, no processo 4 286/10.4TXLSB-F.L1-5, in www.dgsi.pt, este tirado já na vigência do actual CEP;
[10] Nesse sentido, cf. o já citado acórdão da RP de 14/01/2015, relatado por José Piedade, no proc. 1 855/10.6TXPRT-T.P1.
[11] De novo Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 7ª edição, 2008, p. 77.
[12] Cf. Ac. do STJ de 19/10/1995, in DR 1ª Série A, de 12/28/1995, que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no citado art.º 410.º/2 CPP.
[13] Assim, o Ac. do STJ de 19/12/1990, proc. 413271/3.ª Secção: " I - Como resulta expressis verbis do art. 410.° do C.P.Penal, os vícios nele referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução ou até mesmo no julgamento (...). IV É portanto inoperante alegar o que os declarantes afirmaram no inquérito, na instrução ou no julgamento em motivação de recursos interpostos".
[14] A fundamentação que segue, acompanha de muito perto a do acórdão proferido no processo 3.693/10.7TXLSB-F, relatado por Fátima Mata-Mouros e por nós subscrito.
[15] Código de Processo Penal.