Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1670/09.0YRLSB-9
Relator: GUILHERMINA FREITAS
Descritores: CONVERSAS INFORMAIS
GARANTIAS DE DEFESA DO ARGUIDO
GARANTIAS DO PROCESSO CRIMINAL
ARGUIDO
SUSPEITO
CONFISSÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/29/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - As denominadas “conversas informais” dos órgãos de polícia criminal com o arguido, antes ou depois de assumir essa qualidade, sobre factos em investigação, são desprovidas de valor probatório.
III - Tendo-se o arguido remetido ao silêncio na audiência de julgamento, não pode ser valorada a sua (eventual) confissão do crime, feita perante um órgão de polícia criminal, com base na qual foi levantado o auto de notícia que o deu como agente daquele crime.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório

1. No âmbito do Proc. 31/08.2ECLSB do 2º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Loures, foi submetido a julgamento, em processo sumário, o arguido A…, acusado da prática, em autoria material, de um crime de exploração ilícita de jogo p.p. nos termos dos art.º 108º nº 1 do Decreto-lei nº 422/89 de 2 de Dezembro, com referência ao artºs 1º e 4º nº 1 al. g) do mesmo diploma, na redacção dada pelo Decreto-lei nº 10/95 de 19 de Janeiro.
2. Realizado o julgamento veio o mesmo a ser condenado pela prática do referenciado crime na pena de 180 dias de prisão, substituídos por igual número de dias de multa, à taxa diária de € 15,00, e em 50 dias de multa à mesma taxa, o que perfaz a multa global de € 3450 (três mil, quatrocentos e cinquenta euros) a que correspondem 213 dias de prisão.
3. O arguido apresentou recurso desta decisão.
4. O MºPº na 1ª instância respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
5. O recurso foi admitido por despacho de fls. 111 dos autos.
6. Nesta Relação, a Digna Procuradora Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de que o recurso não devia proceder.
7. Cumprido o disposto no nº 2 do artº 417º, o arguido nada disse.
8. No exame preliminar o, então, relator proferiu despacho, ao abrigo do disposto no nº 3 do artº 417º do C.P.Penal, a convidar o recorrente a aperfeiçoar as conclusões do recurso, convite esse que foi aceite, conforme resulta de fls. 130 dos autos.
9. Assim, da motivação do recurso, extraiu o arguido as (novas) conclusões que, de seguida, se transcrevem:
a) O presente recurso versa sobre matéria de facto e de direito, não obstante a verificação dos vícios das als. a) e b) do nº 2 e do art.° 410.° do CPP, vícios estes resultante do texto da sentença recorrida;
b) A sentença recorrida dá como provado que o recorrente tinha em cima do balcão no momento da fiscalização um jogo de fortuna ou azar e fundamenta que as testemunhas referiram à data da fiscalização que o argido se identificou como explorador do estabelecimento, sendo que tais declarações não tem valor de prova, por carecerem de conhecimento pessoal e directo de tais factos (n.°s 3, 10 e 11 dos factos provados);
c) A sentença recorrida não dá como provado, claramente e sem margem para dúvidas, que o recorrente fosse o explorador do estabelecimento e em consequência da máquina em causa ou que desenvolvesse qualquer função relacionada com o mesmo (estabelecimento) ou com a mesma (máquina);
d) Do texto da sentença recorrida resultam os vícios constantes als. a) e b) do n.° 2 do art.° 410.° do CPP;
e) A sentença recorrida violou o art.º 108.°, n.°s 1 e 2 do DL 422/89; 127.° do CPP e art.° 374° do CPP.
f) Foram igualmente violados os princípios da presunção de inocência do recorrente a o in dúbio pro reo, pois sem prova cabal e que a tal decisão conduza, decide-se condenar o recorrente pela prática do crime de que vem acusado, fundamentando-se inclusivamente a decisão de facto em contradição com essa mesma decisão de facto, num ponto de facto essencial para toda a decisão recorrida, pois não se dá como provado que à data da fiscalização o arguido fosse o explorador do estabelecimento e da máquina em causa, porque o que o recorrente alega e defende quanto à revogação da sentença recorrida pela verificação dos vícios do n.° 2 do art.° 410.° do CPP, decorre tão somente do texto da decisão recorrida.
g) E nem sequer o reenvio para novo julgamento resolverá o problema da falta de prova patente no texto da decisão recorrida, pois o que as testemunhas irão novamente dizer será certamente o que já disseram na l.ª audiência de julgamento, impondo-se a absolvição do recorrente.
O recorrente conclui como nas motivações apresentadas.
10. Notificada a Digna Procuradora Geral Adjunta das novas conclusões apresentadas pelo recorrente, renovou o parecer outrora emitido no sentido da improcedência do recurso.
11. Em 8/9/2009, através do requerimento de fls.134 a 137, dirigido a este Tribunal da Relação, veio o recorrente arguir a nulidade insanável prevista na al. f) do artº 119º do C.P.Penal, suscitando a inconstitucionalidade orgânica da al. aa) do artº 3º e artº 15º, ambos do Dec. Lei 274/2007 de 30/7, por violação da al. u) do artº 164º da CRP, pedindo que fosse declarado nulo todo o processado, extraindo-se da nulidade a declarar as legais consequências.
12. Por decisão desta Relação de 17/12/2009 foi julgada procedente a questão prévia suscitada pelo recorrente, foram julgados organicamente inconstitucionais os artºs 3º al. aa) e 15º, ambos do Dec. Lei 274/2007 de 30/7, por violação da al. u) do artº 164º da CRP e, em consequência, declarado nulo o julgamento realizado em processo sumário.
13. Desta decisão foi interposto recurso pelo MºPº para o Tribunal Constitucional, o qual, por decisão sumária proferida em 3/3/2010, considerou que tais normas não padeciam de inconstitucionalidade orgânica e determinou a reforma da decisão proferida por este Tribunal da Relação, em conformidade com o decidido quanto à questão da constitucionalidade.
14. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
É pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, do conhecimento das questões oficiosas (artº 410º nº 2 e 3 do C.P.Penal).
Assim sendo, as questões a apreciar por este Tribunal ad quem, de acordo com as conclusões do recorrente, sem prejuízo de o conhecimento de alguma ou algumas delas ficar prejudicado pela solução que for dada àquela ou àquelas que a antecedem, são:
- impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e violação do disposto nos artºs 355º, 356º nº 7 e 357º nº 2 do C.P.Penal;
- vícios do artº 410º nº 2 al. a) e b) do C.P.Penal;
- violação do disposto nos artºs 108º nºs 1 e 2 do Dec. Lei 422/89 de 2/12 e 127º e 374º, estes do C.P.Penal.
2. A decisão recorrida
Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
“1. Pelas 15.00 horas do dia 29 de Janeiro de 2008, no Café “A …”, sito na Rua…, nº … na Bobadela, área desta comarca de Loures, o arguido A…, possuía sobre o balcão daquele estabelecimento comercial de sua pertença, uma máquina electrónica tipo roleta, ligada à corrente eléctrica e pronta a jogar.
2. Tal máquina aceita moedas de 50 cêntimos, de 1 ou 2 euros e após a respectiva inserção em ranhura a esse efeito destinada desenvolve um jogo que consiste em disparar um ponto luminoso que percorre vários orifícios existentes no respectivo mostrador, que ilumina à sua passagem, até que se fixa aleatoriamente num deles.
3. Aqui, se o orifício onde a luz se fixou corresponde a um dos números do mostrador designadamente 1, 2, 10, 50, 100, 200, o jogador terá direito a igual número de euros por cada ponto corresponder a um euro.
4. Se o orifício onde a luz se fixou é algum dos demais – sem referência a pontos – o jogador nada ganha;
5. Por esta forma a máquina desenvolve um jogo de fortuna ou azar uma vez que desenvolve o tema próprio do jogo da roleta, pagando prémios em dinheiro, por resultado totalmente dependente da sorte, não carecendo de qualquer perícia ou destreza do jogador.
6. O arguido conhecia o funcionamento do jogo desenvolvido pela máquina que detinha, a qual tinha, em adequado moedeiro o montante de € 6, e que do funcionamento desta o próprio arguido pagava prémios em dinheiro, por conversão dos pontos obtidos pelo jogador e que não tinha autorização para a sua exploração.
7. Agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que tal conduta lhe era vedada por lei.
8. Para além da exploração do café “A …”, com os inerentes proventos financeiros, e da ausência de antecedentes criminais, desconhecem-se outras condições de vida do arguido, o qual habita um bairro onde são modestas as condições de vida dos habitantes e frequentadores do café.”
Quanto aos factos não provados consignou-se:
“Não há factos não provados.”
Relativamente à fundamentação da decisão de facto, ficou expresso:
“O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade apurada com base no auto de notícia, no CRC e nos depoimentos de B… e de C…, inspectores da ASAE que após denúncia anónima sobre a existência de uma máquina de jogo no café da arguida aí se deslocaram, confirmaram a denúncia encontrando a máquina apreendida, a qual, como tantas outras que já apreenderam e postas em exploração à disposição do público, apenas aceita moedas de uso corrente iguais ou superiores a 50 cêntimos, resultando da sua utilização o pagamento de um prémio exclusivamente em dinheiro, não existindo qualquer outra contrapartida, factos que apesar de já os conhecerem também lhes foram relatados pelo arguido alegando-lhes este desconhecer ser crime, embora soubesse ser ilegal a exploração da máquina.
A clareza, certeza e serenidade dos depoimentos prestados não permitem ajuizar de forma que não seja a de se confirmar a matéria da acusação, designadamente estar-se perante pessoa dotada de inteligência e sabedora das regras da vida em sociedade e das consequências para quem não as cumpre.”
No que concerne à fundamentação de direito escreveu-se:
“O arguido vem acusado da prática, em autoria material de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto e punido nos termos do art.º 108º nº 1, do Decreto-lei nº 422/89 de 2 de Dezembro, com referência aos artigos 1º e 4º nº 1 al. g) do mesmo diploma, na redacção dada pelo Decreto-lei nº 10/95 de 19 de Janeiro.
Dispõe o artº 108º nº 1 que “Quem, por qualquer forma, fizer a exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados será punido com prisão até dois anos e multa até 200 dias.
Dispõe por sua vez o nº 2 que “será punido com a pena prevista no número anterior quem for encarregado da direcção do jogo, mesmo que não a exerça habitualmente, bem como os administradores, directores, gerentes, empregados e agentes da entidade explorador.
De acordo com o artigo 1º “Jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte.
A exploração e a prática dos jogos de fortuna ou azar só são permitidas nos casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário criadas por decreto-lei ou, fora daqueles, nos casos excepcionados nos artigos 6º a 8º, é o que dispõe o artº 3º , dedicando-se o Artigo 4.º a elencar, exemplificadamente, os “Tipos de jogos de fortuna ou azar”
1 - Nos casinos é autorizada a exploração, nomeadamente, dos seguintes tipos de jogos de fortuna ou azar:
a) Jogos bancados em bancas simples ou duplas: bacará ponto e banca, banca francesa, boule, cussec, écarté bancado, roleta francesa e roleta americana com um zero;
b) Jogos bancados em bancas simples: black-jack/21, chukluck e trinta e quarenta;
c) Jogos bancados em bancas duplas: bacará de banca limitada e craps;
d) Jogo bancado: keno;
e) Jogos não bancados: bacará chemin de fer, bacará de banca aberta, écarté e bingo;
f) Jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas;
g) Jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
2 - É permitido às concessionárias adoptar indiferentemente bancas simples ou duplas para a prática de qualquer dos jogos bancados referidos na alínea a) do n.º 1 deste artigo.
3 - Compete ao membro do Governo da tutela autorizar a exploração de novos tipos de jogos de fortuna ou azar, a requerimento das concessionárias e após parecer da Inspecção-Geral de Jogos.

Dos “tipos de jogos de fortuna ou azar” previstos no artigo 4º, cuja exploração é autorizada nos casinos constam na alínea g) o tipo de “Jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna ou azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.

A esta luz impõe-se concluir que os factos provados consubstanciam o cometimento pelo arguido dos pressupostos objectivos – exploração sem autorização de jogos dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte - e subjectivos (conhecimento, liberdade e vontade) do imputado crime de jogo ilegal, por a conduta estar abrangida na norma incriminatória - artº 108 nº 1 -.

***
Constatado o cometimento dos factos crime e a susceptibilidade da punição impõe-se proceder à escolha e determinação da medida pena Da escolha da pena.
Relativamente à escolha da pena aplicável, muito embora as normas acima citadas prevejam, cumulativamente a pena de prisão e a pena de multa, não se justifica no caso concreto a imposição da pena de prisão, aparentemente o arguido está socialmente inserido, não tem antecedentes criminais, e o delito em si não representa do ponto de vista do meio em que o arguido se insere um foco de alarme, instabilidade ou insegurança social, sendo a pena de multa suficiente para realizar de forma adequada as finalidades da punição, podendo à mesma associar-se com vantagem a sempre almejada prevenção geral.
A pena a impor será a de multa parte resultante da conversão e parte da previsão.
***
Da medida da pena
Resta-nos, pois, determinar a medida concreta da pena, dentro da respectiva moldura penal abstracta – prisão até 2 anos e multa até 200 dias.
Nos termos do artigo 71º do Código Penal, a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências da prevenção (geral e especial), devendo atender-se a todas as circunstâncias que deponham a favor ou contra o agente.
Quanto ao grau de ilicitude do facto, resultante da máquina que detinha tem-se por elevado dentro do respectivo tipo.
O dolo é o directo.
As necessidades de prevenção geral são elevadas, atendendo ao conjunto de interesses sociais, administrativos, penais e tributários salvaguardados pela lei do jogo.
O arguido não confessou os factos cuja censura merece.
Aparenta ser de boa condição económica e social.

Assim, atendendo-se à moldura da pena prevista para o crime em causa, e aos factores acima descritos, entende-se adequada a pena de 180 dias de prisão substituídos por igual número de dias de multa e a de 50 dias de multa.

Quanto à fixação da quantia correspondente a cada dia de multa, a mesma deverá ser fixada entre € 5 e € 500, atendendo à situação económica e financeira do arguido e dos seus encargos pessoais - artigo 47º, nº2 do Código Penal.
No caso concreto, face à aparência da situação económica concreta do arguido, à motivação do enriquecimento fácil e cómodo associado ao jogo, deve a multa afastar-se do limite mínimo por fora a ser fortemente dissuasora quer para o arguido quer para eventuais interessados em defraudarem as legítimas expectativas associadas ao jogo legal, entendendo-se adequado fixá-la no triplo do mínimo, sendo assim fixada em € 15,00 a taxa diária.”
3. Analisando
A impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e violação do disposto nos artºs 355º, 356º nº 7 e 357º nº 2 do C.P.Penal
Impugna o recorrente os factos dados como provados na sentença recorrida sob os nº s 1), 5), 6), 7) e 8), os quais em seu entender deveriam ter sido dados como não provados, na medida em que o tribunal a quo baseou-se para dar como provados tais factos no depoimento das testemunhas B… e C…, as quais referiram em audiência que só tiveram conhecimento que o estabelecimento era explorado pelo arguido e que a máquina em causa pagava prémios em dinheiro por lhe ter sido dito por este, o que consignaram no auto de notícia.
Alega o recorrente, que o tribunal a quo não poderia ter decidido como o fez, quanto a tais factos, porque violou o disposto nos artºs 355º, 356º nº 7 e 357º nº 2 do C.P.Penal.
Cremos que assiste razão ao recorrente.
Na verdade, conforme resulta da motivação da decisão de facto, o tribunal a quo fundamentou a sua convicção sobre a factualidade apurada no auto de notícia, no CRC e nos depoimentos das testemunhas B… e C…, ambos inspectores da ASAE.
Do auto de notícia consta que no dia 29 de Janeiro de 2008, pelas 15h00, no “Café A….” sobre uma mesa ao lado do balcão de atendimento ao público, acessível a qualquer pessoa, existia uma máquina electrónica ligada à corrente eléctrica, tipo roleta, em cujo visor se vê uma circunferência com os números 1, 2, 5, 10, 20, 50, 100 e 200 que aceita moedas de 0,50, 1,00 e 2,00 euros e que acende ao receber uma moeda uma luz vermelha que se ficar num desses números dá prémios em dinheiro, se a luz rodar sobre os números, mas não ficar em nenhum, não há prémio.
Consta, ainda, do referido auto, que não foi efectuado qualquer exame pericial à máquina, por se considerar o mesmo desnecessário.
Mais se refere no aludido auto de notícia que “o identificado confrontado com a situação confessou de imediato que a máquina dá prémios em dinheiro…”
De seguida, atento o flagrante delito, foi o identificado detido e constituído arguido.
Quanto ao depoimento prestado pelas testemunhas, foi dito pelas mesmas em audiência, que tiveram conhecimento que o estabelecimento era explorado pelo arguido por lhes ter sido dito por ele, o qual referiu, ainda, ser o proprietário e quem tinha aceite a colocação da máquina no estabelecimento.
Estamos, pois, perante uma situação que tem sido bastante debatida na doutrina e jurisprudência, que é a relativa ao valor probatório destes depoimentos que têm por base as designadas “conversas informais” dos órgãos de polícia criminal com o suspeito ou alguém em vias de vir a ser constituído arguido.
Alguma jurisprudência tem entendido que só a partir da constituição de arguido é que tais “conversas informais” não podem ser consideradas, mas na fase em que ainda não há inquérito, nem há ainda arguidos constituídos, a chamada fase informal de indícios, nada impede que as informações recolhidas, ainda que provenientes de suspeitos, venham a ser consideradas como prova válida.
Argumentando a favor desta posição, diz-se no Ac. do STJ de 15/2/2007, proferido no âmbito do Proc. 06P4593, disponível in www.dgsi.pt. “Muito discutido tem sido a questão do alcance da proibição do testemunho de “ouvir dizer” que o CPP consagra no art. 129º. A jurisprudência não tem sido uniforme. Mas podemos considerar adquirido, para o que agora importa, por um lado, que os agentes policiais não estão impedidos de depor sobre factos por eles detectados e constatados durante a investigação e, por outro lado, que são irrelevantes as provas extraídas de “conversas informais” mantidas entre esses mesmos agentes e os arguidos, ou seja, declarações obtidas à margem das formalidades e das garantias que a lei processual impõe.
Pretenderá, assim, a lei impedir, com a proibição destas “conversas”, que se frustre o direito do arguido ao silêncio, silêncio esse que seria “colmatado” ilegitimamente através da “confissão por ouvir dizer” relatada pelas testemunhas.
Pressuposto desse direito ao silêncio é, no entanto, a existência de um inquérito e a condição de arguido. A partir da constituição do arguido enquanto tal, ele assume um estatuto próprio, com deveres e direitos, entre os quais, o de não se auto-incriminar. A partir de então, as suas declarações só podem ser recolhidas e valoradas nos estritos termos indicados na lei, sendo irrelevantes todas as conversas ou quaisquer outras provas recolhidas informalmente.
Contudo, de forma diferente se passam as coisas quando se está no plano da recolha de indícios de uma infracção de que a autoridade policial acaba de ter notícia. Compete então às autoridades, nos termos do art. 249º do CPP, praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime”. Estas “providências cautelares” são fundamentais para investigar a infracção, para que essa investigação tenha sucesso. E daí que a autoridade policial devam praticá-las mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária para investigar (art. 249º, nº 1).
Nessa fase não há ainda inquérito instaurado, não há ainda arguidos constituídos. É uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto. As informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo (pode até não vir a haver, como por exemplo se o crime for semi-público e não for apresentada queixa).
Completamente diferente é o que se passa com as ditas “conversas informais” ocorridas já durante o inquérito, quando há arguido constituído, e se pretende “suprir” o seu silêncio, mantido em auto de declarações, por depoimentos de agentes policiais testemunhando a “confissão” informal ou qualquer outro tipo de declaração prestada pelo arguido à margem dos formalismos impostos pela lei processual para os actos a realizar no inquérito.
O que o art. 129º do CPP proíbe são estes testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o art. 249º do CPP.”
Em sentido contrário entendeu o S.T.J no Ac. de 11/7/01 in CJ/STJ, 2001, T- III, pág. 167, na mesma linha do já entendido nos Ac. de 7/2/01 e de 10/1/01, nele citados, considerando que as ditas conversas informais só podem ter valor probatório se transpostas para o processo em forma de auto e com respeito pelas regras legais de recolha de prova. O uso de conversas informais não documentadas e fora de qualquer controlo traduzir-se-ia em fraude à lei.
Neste mesmo sentido, também o Ac. da RE de 13/1/2004, proferido no âmbito do Proc. 2175/03-1, disponível in www.dgsi.pt, onde se refere “Com efeito, por imperativo constitucional, o processo penal assegurará todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (artº 32º, n.º 1 da CRP).
«Todas as garantias de defesa» engloba indubitavelmente - não apenas as explicitadas nos artigos seguintes (presunção de inocência do arguido, direito a ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa, direito à escolha e à assistência de defensor, judicialização da instrução, estrutura acusatória do processo, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório, nulidade das provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações e, finalmente, o princípio do juiz natural ou legal) - «todas as garantias de defesa» engloba indubitavelmente, dizíamos, “todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação” [7] .
Emanação daquele comando constitucional, o estatuto do arguido, definido no artº 61º, além de reafirmar alguns dos referidos direitos com dignidade constitucional, consagra, entre outros, o direito de não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados.
E das garantias de defesa associadas ao estatuto processual do arguido decorre a obrigatoriedade de constituição oficiosa de arguido sempre que durante qualquer inquirição feita a pessoa que não é arguido, surgir fundada suspeita de crime por ela cometida, suspendendo imediatamente o acto, para aquele efeito, a entidade que a ele procede (n.º 1 do artº 59º), bem como (decorre) o direito de a pessoa sobre quem recair suspeita de ter cometido um crime ser constituída, a seu pedido, como arguido sempre que estiverem a ser efectuadas diligências, destinadas a comprovar a imputação, que pessoalmente a afectem (n.º 2 do mesmo artº).
A inobservância do disposto no cit. artº 59º implica que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova contra ela (n.º 4 do artº 58º, aplicável ex vi do n.º 3 do artº 59º).
E as garantias estatutárias de defesa exigem a suspensão imediata do acto e consequente obrigatoriedade de constituição oficiosa de arguido sempre que durante qualquer inquirição feita a pessoa que ainda não assumiu aquela qualidade, surgir fundada suspeita de crime por ela cometido, quer se trate de inquirição no processo quer se trate de “inquirição informal” (leia-se conversa informal) susceptível de valoração processual.
Efectivamente, se a inquirição, no processo, de uma pessoa suspeita da prática de um crime, com violação ou omissão das formalidades previstas nos n.ºs 1 a 3 do artº 58º, implica, por exigência das garantias de defesa, que as declarações prestadas pela pessoa visada não possam ser utilizadas como prova contra ela, não se divisa qualquer razão plausível para que uma conversa informal com uma pessoa que ainda não tem o estatuto de arguido nem tem, por isso e nomeadamente, o direito de ser assistida por defensor, ou tendo tal estatuto não foi assistida por defensor (conversa essa, aliás, tida, sabe-se lá, em que circunstâncias, não sendo até de excluir uma errada interpretação das palavras da pessoa visada), não tenha o mesmo tratamento.”
Perfilhamos desta última posição.
É certo que, de acordo o nº 1 do artº 249º do C. P. Penal, compete aos órgãos de polícia criminal praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova, nomeadamente, colhendo informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime e a sua reconstituição.
Porém, no que respeita à recolha de informações úteis relativas ao crime, é ressalvado, em relação ao suspeito, o cumprimento do disposto no artº 59º do C. P. Penal – nº 8 do artº 250º do C. P. Penal.
Isto é, sempre que surja fundada suspeita de que a fonte de informação possa coincidir com o arguido de um crime, o órgão de polícia criminal suspende de imediato o pedido de informações, sob pena de tais informações não poderem ser usadas contra ela.
No caso dos autos, tendo o arguido usado em audiência o seu direito ao silêncio, não poderiam as suas declarações, prestadas perante os agentes da ASAE, antes ou depois de ter sido constituído arguido, serem usadas, como o foram, para comprovar a prática de qualquer ilícito criminal ou contra-ordenacional.
Sendo certo que, expurgado o processo dessa prova, outra não existiu – designadamente, prova documental – que confirmasse que era o arguido o proprietário do estabelecimento, ou quem procedia à sua exploração, nem que tenha sido ele a autorizar a colocação da máquina de jogo no estabelecimento em causa.
Impunha-se, assim, a absolvição do arguido, por falta de prova de um dos elementos objectivos da prática do crime que lhe era imputado, ou de qualquer outro ilícito, designadamente, de natureza contra-ordenacional.
Face ao acabado de decidir, prejudicado fica o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.

III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido, o qual se absolve da prática do crime de exploração ilícita de jogo pelo qual foi condenado em 1ª instância.
Sem tributação.

Lisboa, 29 de Abril de 2010

(Processado e revisto pela relatora, a primeira signatária, que assina a final e rubrica as restantes folhas (art. 94.º, n.º 2 do CPP).

Guilhermina Freitas
Calheiros da Gama