Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
904/12.8TYLSB-K.L1-1
Relator: AMÉLIA SOFIA REBELO
Descritores: CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
POSSE PRECÁRIA
DIREITO DE RETENÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/08/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. A decisão de facto sobre a qual a sentença opera o enquadramento jurídico da questão decidenda e decide pela procedência ou improcedência do pedido não é autonomizada da sentença transitada em julgado para efeitos de aquisição do valor de caso julgado, seja na vertente negativa, seja na vertente positiva.
2. O ónus de concentração da alegação que onera a atividade processual das partes não se verifica quanto às várias possíveis causas de pedir que podem fundamentar o pedido, apenas quanto a todos os factos que se referem à causa de pedir invocada na ação.
3. A partir da verificação do incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda de imóvel com entrega de sinal, cessa a posse precária própria da faculdade de fruição emergente da traditio e da expectativa de aquisição do imóvel, que é substituída pela posse precária própria do direito de retenção.
4. Quem se arroga a titular de um direito de retenção sobre um bem, necessariamente reconhece que ele pertence a terceiro, pelo que ainda que o retentor exerça sobre a coisa um poder de facto que se exterioriza com a aparência de direito real de gozo, exerce-o reconhecidamente em nome de outrem, cabendo-lhe por isso a qualidade de simples detentor ou de possuidor.
(Pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as juízas da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa,

I – Relatório:
1 – N.., S.A. instaurou ação de separação e restituição de bens nos termos do art. 146º do CIRE por apenso ao processo de insolvência de GT…, S.A.
Formulou os seguintes pedidos:
a) Ordenar-se a separação das frações identificadas nos artigos 9º e 15º desta petição e restituir as mesmas à autora, declarando-se e reconhecendo-se que:
b) A autora é a única dona, possuidora e legítima proprietária de todas as frações identificadas em 9º e 15º da PI, quer pela posse derivada desde 1998 e pela compra formalizada pelo contrato promessa de compra e venda outorgado a 28-12-2001, quer pela via originária da usucapião.
c) Condenarem-se os RR a reconhecerem o direito da autora.
Alegou que:
- por direito de sucessão é titular dos direitos e obrigações da sociedade Construtora…, Ldª constituída em 1999 que, em 2000, alterou para sociedade anónima, em 2003 para S…– Construções, SA, em 2007 para NW…, SA, e em 2017 para a atual denominação;
- em 30.06.1998 o seu sócio fundador, J…, adquiriu dois prédios rústicos e três urbanos a massa insolvente de uma sociedade (Cifa) e realizou obras em alguns espaços que passou a ocupar e a destinar ao exercício da sua atividade profissional em nome individual, destinando os demais a venda, nos quais iniciou igualmente obras, tendo vendido alguns e prometido vender outros;
- em 1999 J… constituiu a Construtora… Ldª para executar as obras naqueles prédios, que as passou a executar quer nos espaços que aquele sócio reservara para si e para a atividade das sociedades de que era sócio, quer nos que destinou à venda;
- desde a sua constituição a autora funcionou e manteve-se com sede naqueles instalações adquiridas pelo sócio da autora onde, muito antes da constituição desta, aquele sócio exercia a mesma atividade em nome individual há mais de 20 anos, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem oposição de outrem que não a massa insolvente de GT…, a partir de 2013;
- após a morte do sócio J…, em 06.06.2001 os seus herdeiros constituíram a sociedade MP…, SA, atual insolvente, para a promoção e venda dos imóveis recuperados, sociedade que em 29.06.2001 e com recurso a financiamento que lhe foi concedido pela Caixa Geral de Depósitos (CGD) adquiriu aos herdeiros de J… dois daqueles prédios urbanos (correspondentes aos descritos na CRP sob os nºs 1149 e 213 da freguesia do S…, e inscritos nas matrizes sob os artigos 795 e 796, e 819, respetivamente) pelo preço de € 3.242.186,33 que, apesar de na escritura constar como recebido, por imposição da CGD ficou depositado numa conta caucionado dos vendedores a favor da CGD para garantia do mútuo concedido à sociedade compradora;
-  nessa data a C… (autora) sucedia ao sócio J… na posse de todas as referidas 41 frações no exercício da sua atividade comercial, sem interrupção na posse, gozo, uso e fruição dos imóveis;
- em 28.12.2001 as sociedades, detidas pelos mesmos sócios, MP…, com legitimidade para o efeito na qualidade de proprietária dos imóveis, e Construtora…, na qualidade de promitente compradora e detentora da posse dos imóveis, formalizaram contrato pelo qual aquela prometeu vender e esta prometeu comprar pelo preço de €1.745.792,64 as frações que identificaram em planta anexa ao contrato por ainda não existir a propriedade horizontal, que foi posteriormente constituída, dando então lugar a 41 frações; que a primeira tranche do preço - € 847.956,43 - foi paga através de cheques sacados sobre conta pessoal do sócio da autora em benefício da Direção Geral do Tesouro e com os quais a promitente compradora, Construtora…, pagou dívida fiscal em execução de pelo menos € 836.317,81, e a segunda tranche foi paga pelos sócios da Construtora… por transferência de 13.10.2003;
- até à morte de J… foi este quem ordenou, realizou e pagou as obras realizadas nos imóveis por aquele adquiridos à massa insolvente da Cifa, e foi também aquele que celebrou muitos contratos promessa de compra e venda como promitente vendedor.
Conclui que, por si e pelo seu ante-possuidor J…, desde 30.06.1998 que esteve sempre na posse, gozo, uso e fruição dos imóveis, posse pacifica e de boa fé, só perturbada pela sua apreensão para a massa insolvente de GT… em setembro de 2013, mas à qual a autora se opôs, mantendo-se na posse dos bens, que lhe pertencem por direito próprio.
Arrolou testemunhas e juntou documentos.
2. A autora foi notificada para proceder à junção da respetiva certidão atualizada e, junta, foi proferido despacho a ordenar a notificação da autora para oferecer o que tiver por conveniente por referência ao pedidos que deduz na presente ação e respetivos fundamentos e aos factos que foram jugados não provados por sentença proferida nos autos de verificação ulterior de crédito instaurada pela autora nos autos em apenso G, atinentes com o alegado pagamento do preço dos imóveis objeto do contrato promessa que invocou em fundamento dos pedidos que deduziu nesta e naquela ação.
Em resposta a autora alegou que não está impedida de nesta ação fazer prova do pagamento que na ação anterior foi julgado não provado por corresponderem a questões negativas que não incidem sobre a sentença de fundo e, por isso, não constitui nem tem a autoridade de caso julgado e não impede a autora de obter nova decisão, sob pena de ofensa do direito de acesso à justiça garantido pelo art. 20º da Constituição por via da errada interpretação dos arts. 581º e 619º, nº 1 do CPC.
3 - Seguidamente foi proferida decisão que, considerando verificada uma situação de caso julgado e, em síntese, que “No caso, é a própria autora que assume não ter o domínio de facto sobre os imóveis, quando vem a juízo reclamar o seu crédito com fundamento no contrato-promessa. O pedido da autora na anterior acção de verificação ulterior de créditos radica na sua qualidade detentora dos imóveis, no âmbito de um contrato-promessa celebrado com o titular do direito de propriedade inscrito no registo predial, o que não é compatível com o direito de propriedade, que agora vem invocar.”, indeferiu liminarmente a petição inicial
4 - Inconformada, a autora deduziu o presente recurso requerendo a alteração da sentença recorrida em conformidade com os pedidos que deduziu.
Formulou as seguintes conclusões:
1 – A sentença de 22-06-2021, proferida na ação de verificação ulterior de créditos, que constitui o apenso G à insolvência, julgou aquela improcedente absolvendo os réus do pedido, que consistia em que fosse reconhecido um crédito de €1.745.792,64, proveniente do contrato promessa de compra e venda de 5.250m² ao nível do piso zero, 12.650m² ao nível do piso 1 e 4.550m² ao nível do piso 2, constituindo posteriormente em propriedade horizontal através de frações que identificou no artigo 9º daquela PI, e no direito de retenção.
2 – esta sentença constitui, sem quaisquer dúvidas, uma decisão transitada em julgado, assente em factos peticionados levados aos factos não provados de que tenha a autora levado a efeito obras em todas as frações, bem como realizado trabalhos de desaterro e acabamento de edifícios, projeto de arquitetura, custos de mão de obra, aluguer de máquinas, reparações, manutenção e combustíveis, peças, ferramentas, compra de materiais no valor de €3.824.174,73.
3 – Levou igualmente aos factos não provados a entrega dos cheques sobre o Finibanco de €286.897,47, do BPN de €286.897,47, e do BIC nos montantes de €262.255,87 e de €11.638,62.
4 – Em tal ação fundou a recorrente o seu pedido na existência do crédito e no direito de retenção. Justificando que o preço se encontrava pago através dos dois aceites bancários de €847.956,43 com vencimento em 31-05-2002 e de €897.836,21, com vencimento em 31-10-2003.
5 – Na presente ação onde foi proferida a decisão recorrida, a recorrente formula pedido diverso assente na posse continuada desde 1998 e na aquisição do direito real pela via da usucapião e na exibição de documentos de pagamento que ainda lhe não fora possível obter.
6 – A insolvente é a sucessora da M… – Empreendimentos Imobiliários, S.A., que se obrigou a transmitir à recorrente um conjunto de frações existentes nos prédios identificados por “Polo Industrial M…”, ex-CIFA, frações que se encontram identificadas e assinaladas na planta que anexaram ao contrato com cerca de 2.894m² ao nível do piso zero, 12.650m² ao nível do piso 1, e 4.550m² ao nível do piso 2 pelo preço de €1.745.792,64.
7 – Por sua vez, a recorrente é a sucessora da sociedade A Construtora…, Lda..
8 – O contrato de 28-12-2001 que formalizou a transmissão das frações, transmitiu igualmente a posse, posse esta já existente desde 30-06-1998, e verificada após a compra dos prédios inscritos nas matrizes sob os artigos 795, 796 e 819, onde se situam os espaços que J… havia adquirido e reservado para as atividades comerciais e industriais por ele desenvolvida e pelo seu filho.
9 – Após a morte do J… ocorrida a 11-12-2000, o cônjuge mulher e o único filho, constituem em 26-06-2001 a sociedade M… e, em 29-06-2001 e vendem a esta sociedade os artigos 795, 796 e 819.
10 – Sendo o sócio R…, simultaneamente administrador da M… e d'A Construtora…, Lda., com poderes para o ato em ambas as sociedades, outorgou em representação das mesmas, em 28-12-2001, o contrato promessa de compra e venda, pelo qual formalizou a transmissão e posse dos espaços da M… para a Construtora… com as áreas de 2.894m², 12.650m² e 4.550m² que vieram posteriormente a constituírem em propriedade horizontal designadas pelas frações identificadas nos artigos 9º e 15º da PI.
11 – Estando em causa prédios adquiridos pelo marido e pai dos sócios de ambas as sociedades, do perfeito conhecimento de todos os interessados, não se vê que outros atos de transmissão da posse devesse ter alguma outra expressão material, pelo que só pode ser entendido como efeito jurídico automático da posse, a transmissão pela via contratual, os espaços que posteriormente se vieram a identificar como frações autonomizadas em propriedade horizontal.
12 – A Construtora… entrou na posse daquelas frações por decisão do seu sócio fundador J…, muito antes da sua constituição em 10-09-1999, ou seja após a compra que aquele fez em 30-06-1998 e nesse ato os destina à atividade da futura sociedade, entrando na posse das mesmas, que se manteve até hoje.
13 – Não tendo sido colocado em causa a existência da expectativa de aquisição e a sua inerente posse em nome próprio, impedia que, por constituto possessório, a posse daqueles espaços se transferisse imediatamente para a massa insolvente da GT… A perda da posse só é viável com a resolução do contrato de compra e venda, nunca efetuado, por ausência de declaração resolutiva do mesmo como potencial de integração dos bens na massa insolvente.
14 – A recorrente mantendo-se na posse ininterrupta dos bens, de forma pacífica, e com o animus possidendi e não de simples usuário dos mesmos, apesar de o direito real não lhe ter sido transmitido, não deixa de considerar-se transferida a posse (artigo 1264º do CC).
15 – Com a transferência da posse a recorrente entregou à insolvente dois títulos cambiários: Um de €847.956,43, e outro de €897.836,21 com vencimento em 31-05-2007 e 31-10-2003, e o que foi levado aos factos não provados na ação de verificação ulterior de créditos, foi se os mesmos aceites foram pagos.
16 – É para tanto indiferente que tenha pago aqueles aceites bancários: Aceite a forma de pagamento daqueles títulos cambiários, o seu eventual não pagamento não implica a anulação imediata do contrato promessa. Invocado o não pagamento, tem o lesado a faculdade de exigir o cumprimento ou a resolução do contrato por incumprimento e alegar a perda do interesse no cumprimento da prestação (artigo 437º, 808º nº 2 e 830º do CC).
17 – A autora reconhece que a ação que desde logo deveria ter proposto era a de separação e restituição de bens como decorre do próprio contrato que lhe transmite a posse e, estando ela investida na posse desde 1998, o meio próprio e único de reagir contra a apreensão, é o exercício do direito de fazer separar da massa os bens indevidamente apreendidos. Porém, a errada interposição da ação não pode prejudicar a autora, sendo-lhe lícito propor nova ação fundada em novo pedido e em nova causa de pedir.
18 – Nesta nova ação a autora não repete a causa pois é diverso o pedido e a causa de pedir, não havendo por isso a formação de caso julgado. Na esteira dos ensinamentos do Professor Alberto dos Reis, que distinguindo a formação do caso julgado formal do caso julgado material, refere que, o que importa é este último pois o primeiro fica confinado ao processo, nada obstando a que a questão por ela resolvida seja novamente suscitada e se profira uma outra decisão de sinal contrário.
19 – O acórdão do STJ, de 21-03-2013, invocado pela decisão recorrida não contraria a doutrina perfilhada por Alberto dos Reis, nem o disposto no nº 1 do artigo 581º do CPC. Tal acórdão não diz coisa diferente quanto à autoridade do caso julgado e a exceção do caso julgado, funcionando a primeira como meio de prova e a segunda como meio técnico destinado e evitar a repetição de uma causa.
20 – A recorrente exibiu na nova ação os meios de pagamento que lhe não foi possível exibir na primeira ação, e não é por esse facto que incorre na exceção de caso julgado.
21 – Havendo deficiência de prova, tal não significa que os mesmos documentos de pagamento não existam mas apenas que não foram provados. A ação findou por não terem sido exibidos os meios de pagamento, mas tal facto não impede de os exibir em nova ação sem que com isso incorra na autoridade do caso julgado ou da exceção do caso julgado como resulta da disposição levada ao artigo 581º do CPC.
22 – Independentemente do erro na propositura da ação, nada permite concluir que a autora assumiu, na outra ação, não ter o domínio de facto sobre os imóveis. O que a autora invocou foi a relação contratual e a investidura na posse e o gozo desse direito de forma ininterrupta, pacífica, sem oposição de terceiros e com animus possidendi.
23 – O presente recurso implicará o não prosseguimento imediato das vendas das frações apreendidas no processo de insolvência, sem prejuízo do que a seguir se requer.
Juntou dois documentos, atinentes com sucessivas alterações da designação social da autora.
5 – Em resposta o credor Caixa Geral de Depósitos concluiu pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida, e apresentou alegações que sintetizou nas seguintes conclusões:
1. Na primeira ação não logrou a Apelante comprovar a existência de qualquer crédito (um dos requisitos necessários para que exista direito de retenção), designadamente, benfeitorias do montante de € 3.824.174,73, bem como não logrou comprovar qualquer pagamento do preço e que estivesse na posse das frações prometidas vender desde a celebração do contrato promessa celebrado em 2001;
2. Tais factos alegados e não provados (e que eram constitutivos e essenciais do alegado crédito garantido por direito de retenção) foram um antecedente lógico indispensável à emissão da sentença de improcedência da primeira ação, ou seja, foram o encadeamento lógico da decisão final;
3. Acontece que na presente petição vem novamente a Apelante alegar o pagamento do preço da mesma promessa e a acessão da sua posse (que alega que se iniciou com a celebração daquela promessa) com a posse do anterior proprietário;
4. Há, assim, uma identidade do composto fáctico, uma conexão e uma relação de prejudicialidade entre a primeira e a segunda acção, pelo que aquela primeira decisão faz autoridade de caso julgado evitando-se desta forma uma nova decisão que é juridicamente e factualmente incompatível com a primeira;
5. A alegada posse que lhe adveio com a celebração do contrato promessa, equivalente à de mero detentor ou possuidor precário, não permite à Apelante adquirir as frações como coisa sua fosse, uma vez que não houve qualquer inversão do título da posse;
6. Sempre e em qualquer caso, dando o dito por não dito, vem agora a Apelante formular um outro pedido que é incompatível com primeiro, uma vez que o direito de retenção pressupõe ser a coisa de terceiro;
7. Tal conduta viola o princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente a Apelada e próprio Tribunal não contavam, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou, designadamente uma legítima expectativa no não exercício de qualquer outro direito incompatível o com primeiro.
8. Estariamos, pois, perante uma situação de abuso direito (artigo 334, do C.Civil) na modalidade de venire contra factum proprium.
9. Não se justifica a atribuição de efeito suspensivo ao recurso face ao estipulado artigo 160, do Cire.
II – Objeto do recurso – Questões a apreciar:
É consensual que, sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha nos temos do art. 662º nº 2 e 608º, nº 2, este, ex vi art. 663º, nº 2, ambos do CPC, o objeto do recurso incide sobre o mérito da decisão recorrida e é definido pelas conclusões das alegações, que delimitam o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC), destinando-se à reapreciação do decidido e não a prolação de decisão sobre matéria não submetida à apreciação do Tribunal a quo, pelo que mister também é que a matéria das conclusões corresponda ou se contenha no âmbito das questões cuja apreciação integram o objeto da decisão objeto do recurso.
Acresce que o tribunal não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos nas alegações das partes, mas apenas das questões de facto ou de direito suscitadas nas conclusões e que, contidas nos elementos da causa nas conclusões e não estando cobertas pela força do caso julgado, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, sendo livre na aplicação do direito (cfr. at. 5º, nº 3 do CPC).
Com estas premissas, considerando o teor da sentença recorrida e das conclusões enunciadas pela recorrente, sem prejuízo das questões que ex officio se imponha conhecer a partir dos factos conhecidos nos autos e/ou das que resultem prejudicadas pela solução dada a outras, cumpre apreciar se, conforme considerou o tribunal a quo, obstam ao prosseguimento da normal tramitação destes autos:
i) o resultado do julgamento de facto realizado por sentença transitada em julgado proferida nos autos em apenso G (questão do caso julgado), e
ii) os factos alegados e pedidos formulados pela autora naqueles autos e no âmbito da insolvência (questão da valoração e repercussão daqueles atos no mérito do pedido deduzido nestes autos).
III – Fundamentação
A) De Facto
A1) O tribunal a quo selecionou e assentou os seguintes factos:
1. A sociedade comercial, aqui autora, N…, S.A., pessoa colectiva n.º 504…, anteriormente denominada Construtora…, Lda., foi constituída em 1999 com a denominação de S…. – certidão de matrícula.
2. Aquando da constituição era Presidente do Conselho de Administração R… – ap. 1/19990915.
3. Por deliberação de 08.01.2007 foi designado Presidente do Conselho de Administração MJ… – ap. 1/20070316.
4. Por deliberação de 31.12.2009, daquela sociedade, foi designado Presidente do Conselho de Administração MD…– ap. 1/20100224.
5. JD… foi designado Presidente do Conselho de Administração, a 24.04.2012.
6. A autora alterou a denominação social para N…, S.A. – ap. 10/20170703.
7. E, designa para Presidente do Conselho de Administração JR…, que passa a administrador único com as alterações ao contrato de sociedade – ap. 2/20191205.
8. A sociedade comercial GT…, S.A., pessoa colectiva n.º 505…, com sede na Av…. foi declarada insolvente por sentença proferida a 23.07.2012, transitada em julgado.
9. Anteriormente teve a denominação de S…., com sede na Rua…, com o mesmo objecto social, sendo o seu Administrador único R…, que renunciou a 26.06.2006 – ap. 4 de 2006.09.06 – certidão de matrícula junta ao processo principal, req. de 22.05.2012 e a fls. 675.
10. O administrador MD… foi designado a 26.06.2006 – ap. 5 de 2006.09.06.
11. Por escritura pública de compra e venda, outorgada a 30.06.1998, J…, no estado de casado com Maria…, adquiriu da massa falida da sociedade Cifa – Companhia Industrial de Fibras Artificias, S.A., o prédio rústico denominado …, sito…, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 1051, omisso na matriz; Prédio urbano, sito no lugar de …, composto por casa, um pavimento e quintal, inscrito na matriz sob o artigo 109; Prédio rústico, denominado por …, composto por terra lavradia, omisso na matriz; Prédio urbano, composto por duas casas de cave e rés-do-chão, com logradouro, sito no lugar de …, inscrito na matriz sob o artigo 795 e 796 e descrito na CRP sob o nº 114 e o Prédio urbano, sito em …, composto por edifício de rés-do-chão e três andares, sete secções anexas e quintal, inscrito na matriz sob o artigo 819 e descrito na CRP sob o nº 213, de …– cfr. doc. 4, fls. 6 a 12 junto com a petição inicial.
12. Por escritura pública de compra e venda outorgada a 29.06.2001, Maria…, no estado de viúva, e R… [na qualidade de únicos herdeiros de J…] vendem à sociedade comercial M…, S.A. [representada por P…, como administrador único], pelo preço de seiscentos e cinquenta milhões de escudos, o Prédio urbano, constituído por duas casas de cave e rés-do-chão e logradouro, sito no lugar de…, freguesia de …, descrito na CRP sob o nº 1149 e inscrito na matriz sob os artigos 795 e 796 e o Prédio urbano, constituído por edifício de rés-do-chão e três andares, sete secções anexas, com quintal, sito no lugar de…, freguesia de …, descrito na CRP sob o nº 213, freguesia de … e inscrito na matriz sob o artigo 819 – cfr. doc. 9, fls. 1/5 junto com a petição inicial.
13. Por acordo escrito denominado «Contrato de Promessa de Compra e Venda», datado de 28.12.2001, doc. 10, fls. 6/8 junto a petição inicial, cujo teor integral se dá por reproduzido, subscrito por R… [na qualidade de administrador da sociedade] M…, S.A. [anterior denominação da Insolvente] e da autora que figura com a denominação de “A Construtora…, Lda.”, com o teor seguinte:
«1.º “O primeiro outorgante, como promitente vendedor, é dono e legitimo proprietário de um prédio destinado a industria, designado por “Polo Industrial M…”, ex Cifa, situado na Rua… e por este contrato-promessa, promete vender ao segundo outorgante ou a quem ele designar, as frações daquele prédio, que se encontram identificadas e devidamente assinaladas na planta anexa, a cor verde, co cerca de 5 250 m2 ao nível do piso zero, cerca de 12 650 m2 ao nível do piso 1 e 4 550 m2 ao nível do piso 2, o que perfaz o total de 22 450m2, pelo preço de Esc: 350 000 000$00 (trezentos e cinquenta milhões de escudos), prometendo o segundo como promitente comprador, comprar.
2.º O preço da ora prometida venda será integralmente liquidado da seguinte forma: a) Na data da assinatura do presente contrato promessa de compra e venda, a segunda outorgante entrega à primeira a quantia de Esc: 350 000 000$00 (trezentos e cinquenta milhões de escudos) através da emissão dos seguintes títulos de crédito, vulgo letras: Um aceite no valor de Esc: 170 000 000$00(cento e setenta milhões de escudos), com vencimento a 154 dias. Um aceite no valor de Esc: 180 000 000$00 (cento e oitenta milhões de escudos), com vencimento a 672 dias.      
3.º Todas as obras das frações aqui prometidas vender será da responsabilidade e a expensas do segundo outorgante. a) a água e electricidade, enquanto não houver redes definitivas serão cedidas a título precário pelo primeiro outorgante.   
4.º O primeiro outorgante autoriza desde já a ocupação das referidas frações.
5.º Os outorgantes prescindem mutuamente do reconhecimento notarial das assinaturas e, pela ausência deste formalismo não poderá ser invocada a anulação deste contrato.»
14. Naquele contrato ambas as outorgantes [promitente-compradora e promitente-vendedora] são representadas por R…, que assina em representação das duas sociedades comerciais outorgantes.
15. Com data de 12.05.2002, a autora subscreveu a comunicação junta a como doc. 13, com o teor seguinte:
De acordo com o contrato-promessa de compra e venda, realizado entre as nossas empresas, em 28 de Dezembro de 2001, enviamos em anexo os cheques a seguir discriminados para liquidação da primeira tranche, no montante de 847 956,43€ . cheque sobre Finibanco n.º 662522 no montante de 286 897,47€ . cheque sobre BPN n.º 981865 no montante de 286 897,47€ . cheque sobre BIC n.º 626875 no montante de 262 255,87€ . cheques sobre BPN nº 7526012 no montante de 11 638,62€.”
16. M…, S.A. [anterior denominação da insolvente GT…] depositou na Tesouraria da Fazenda Pública de Valongo a 13.05.2002 o valor de 262 522,87€, 286 897,47€ e 286 897,47€ - cfr. doc. 14, 15 e 16, juntos com a petição inicial, para pagamento de 2/3 do preço de aquisição de bens imóveis adjudicados em venda judicial, por proposta em carta fechada.
17. A Caixa Geral de Depósitos, S.A. comunicou à sociedade S… [anterior denominação da insolvente GT…] o extracto n.º 38/2003, do período de 2003-10-13 a 2003-10-13, do qual consta um movimento por transferência a crédito e a débito, na mesma data, no valor de 3 454 000,00€ - cfr. doc. 19.
18. Na sentença de 22.06.2021, proferida na acção a que corresponde o Apenso G, foram considerados provados os seguintes factos:
19. Com data de 23.03.2005, a insolvente comunicou à autora a aprovação definitiva da constituição da propriedade horizontal do empreendimento designado “Polígono Industrial do M…” com indicação das frações objecto do contrato-promessa – cfr. doc. 5, a fls. 19/21.
20. A autora endereçou ao Administrador de Insolvência da GT…, S.A., através de correio registado com o carimbo de 09.08.2013, a comunicação junta a fls. 381, com o seguinte teor: «Na qualidade de mandatário de N…, S.A. […], venho solicitar a V. Ex.ª se digne fazer-me chegar, dentro de 10 dias, a declaração a que se refere o artigo 102.º, n.º 1 e 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, no que toca ao contrato-promessa celebrado em 28.12.2001, de que junto cópia
21. A carta foi devolvida com a menção de «não reclamado» - cfr. fls. 388.
22. Com carimbo de registo do dia 04.09.2013, o autor reenviou a comunicação ao Administrador de Insolvência, que foi rececionada a 06.09.2013 – cfr. fls. 384v/ a 388v/.
23. O Serviço de Finanças de Valongo informou a 18.10.2019 não haver registo de qualquer participação de contrato de arrendamento em relação ao prédio inscrito na matriz sob o artigo 2706 (actual 9702), em que conste como outorgante N…, S.A. – fls. 661.
24. «O prédio urbano sito na Rua… encontra-se descrito sob o n.º 2495/20030407 e inscrito na matriz sob o artigo 9702 e inscrito a favor de S…, S.A., por aquisição a Maria… e a R… – ap. 32 de 2011/10/03.
25. O imóvel encontra-se onerado com hipotecas a favor da Caixa Geral de Depósitos, S.A. – ap. 13 de 2001/11/15, ap. 14 de 2002/12/26, ap. 15 de 2002/12/26 e ap. 1 de 2003/04/01.
26. A 07.04.2003 foi inscrita a constituição da propriedade horizontal – as frações AA, AB, AE, AL, Y, Q, Z, CB, CY, AZ, AY, AZ, BA a BZ e DC a DG, correspondem a frações com destino a comércio, indústria e/ou armazém.
27. Frações que foram apreendidas para a massa insolvente da devedora GT…, S.A. – cfr. auto de apreensão.
28. A sociedade comercial GT…, S.A., pessoa colectiva n.º 505…, com sede na Av. … foi declarada insolvente por sentença proferida a 23.07.2012, transitada em julgado.
29. Anteriormente teve a denominação de S…, S.A., com sede na Rua …, com o mesmo objecto social, sendo o seu Administrador único R…, que renunciou a 26.06.2006 – ap. 4 de 2006.09.06 – certidão de matrícula junta ao processo principal, req. de 22.05.2012 e a fls. 675.
30. O administrador MD… foi designado a 26.06.2006 – ap. 5 de 2006.09.06.
31. A sociedade comercial, aqui autora, N…, S.A., pessoa colectiva n.º 504…, anteriormente denominada Construtora…, Lda., foi constituída em 1999 com a denominação de S…, S.A. – certidão de matrícula junta a fls. 284 e 669.
32. Aquando da constituição era Presidente do Conselho de Administração R… – ap. 1/19990915.
33. Por deliberação de 08.01.2007 foi designado Presidente do Conselho de Administração MT… – ap. 1/20070316.
34. Por deliberação de 31.12.2009, daquela sociedade, foi designado Presidente do Conselho de Administração MD… – ap. 1/20100224.
35. JD… foi designado Presidente do Conselho de Administração, a 24.04.2012.
36. A autora alterou a denominação social para N… Center, S.A. – ap. 10/20170703.
37. E, designa para Presidente do Conselho de Administração JR…, que passa a administrador único com as alterações ao contrato de sociedade – ap. 2/20191205.»
38. E, considerados não provados os factos seguintes:
a. A autora levou a efeito obras em todas as fracções – intra-estruturas, canalizações, revestimentos, fachadas.
b. Realizou trabalhos de desaterro e acabamentos de edifícios, projectos de arquitetura e de segurança em obras.
c. Suportou o custo de mão-de-obra, aluguer de máquinas, reparação, manutenção e combustíveis, peças, ferramentas.
d. Comprou materiais – tijolos, areia, cimento, fibras e isolamentos, gesso, estuques, tectos falsos, madeiras, mármores, granitos, caixilharias, vidros, tintas, estruturas metálicas, alumínio.
e. No valor de 3 824 174,73.
f. A autora entregou à devedora para liquidação da primeira tranche, no montante de 847 956,43€ os cheques seguintes: cheque sobre Finibanco n.º 662522 no montante de 286 897,47€//cheque sobre BPN n.º 981865 no montante de 286 897,47€//cheque sobre BIC n.º 626875 no montante de 262 255,87€//cheques sobre BPN nº 7526012 no montante de 11 638,62€.
g. E transferiu em outubro de 2003 para a devedora o valor de 897 836,21€.»
A2) Prevê o art. 412º, nº 2 do CPC que não carecem de alegação os factos de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções, e mais dita o princípio da aquisição processual previsto pelo art. 413º do CPC que todos os elementos de prova trazidos ao processo com relevo para a decisão devem ser tomados em linha de conta pelo julgador, independentemente de terem ou não emanado da parte que devia produzi-las. Regras que se repercutem na elaboração da sentença, na qual, em sede de fundamentação de facto, se impõe ao juiz tomar em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos, ou por confissão reduzida a escrito (art. 607º, nº 4 do CPC). Mais dispõe o art. 662º, nº 1 do CPC que A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Do exposto decorre que, quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa – que, como urge ser o caso, pode traduzir-se tão só num complemento/aditamento à proferida pelo tribunal a quo -, a consequente modificação da matéria de facto por aqueles determinada constitui um dever do tribunal de recurso.
Neste desiderato, nos termos do disposto nos artigos 662º nº1, 663º nº 2 e 607º nº 3, do CPC, cumpre proceder à ampliação da decisão de facto[1] proferida pelo tribunal a quo para relato de atos processuais praticados nos autos em apenso G com relevância na apreciação do recurso, aditando à decisão de facto os seguintes pontos:
39. Os autos em apenso G acima referidos correspondem a ação comum para verificação ulterior de crédito instaurada em 12.08.203 pela aqui recorrente contra a massa insolvente de GT… SA, a insolvente GT…, e os credores da insolvência, e na qual formulou os seguintes pedidos:
Deve a presente ação ser julgada provada e procedente; sendo julgados verificados e reconhecidos os invocados créditos da Autora sobre a Ré/Insolvente; créditos estes de natureza garantida por direito de retenção, a graduar no lugar que lhes competir, com vista ao pagamento, e que ascendem a:
A) Em caso de incumprimento do contrato promessa €10.220.703,57;
B) Em caso de cumprimento do contrato promessa, de €3.603.260,62.”
40. Em fundamento dos referidos pedidos invocou o contrato promessa de compra e venda de 36 frações do prédio destinado a indústria e o pagamento do preço no valor e nos termos que reiterou nos presentes autos, e mais alegou que
- “Pelo referido contrato, foi autorizada a ocupação das fracções pela promitente compradora” (art. 10º da petição),
- “A promitente compradora efectivamente gozou desse direito, tendo passado, desde então, a ocupar plena, efectiva e ininterruptamente as referidas fracções.” (art. 11º).
- “Mais, a promitente-compradora, aqui Autora, desde pelo menos o ano de 2000 (portanto, antes mesmo da formalização do contrato-promessa), levou a efeito obras muito profundas e relevantes em todas as fracções, nomeadamente, com infra-estruturas, canalizações, revestimentos, fachadas, etc.” (art. 15º)
- “Encontram-se ostensivamente incorporadas no Polígono Industrial (…)” (art. 22º).
- “Não obstante as diversas interpelações, a promitente-vendedora, ora insolvente, não cumpriu o contrato-promessa, através da outorga da necessária e correspondente escritura publica (ou documento equivalente).” (art. 23º),
- “A autora pretende obter a declaração a que se refere o art. 102º, n.s 1 e 2 do CIRE, a notificar ao mandatário ora constituído.” (art. 24º),
- “Em caso de recusa de cumprimento, a Autora será pois credora da massa insolvente pelo montante correspondente ao dobro do sinal, €1.745.792,64x2=€3.491.585,28” (art. 25º).
- “Terá ainda direito a ser ressarcida, pela massa insolvente, dos montantes despendidos em obras de construção, adaptação, beneficiação e manutenção das fracções objeto do referido contrato, que ascendem a €3.824.174,73” (art. 26º),
- “Considerando que a A., ao despender todos esses montantes de obras (genericamente) ficou privada do respectivo capital (€…), deve ainda ser indemnizada por valor correspondente ao potencial de rentabilização desse capital (…) em €1.965.788,69” (art. 27º),
- “A A. seria ainda credora da insolvência por uma indemnização nos termos do art. 102º, nº 3, al. d) do CIRE, em montante (…) =929.154,87” (art. 28º).
- “Por outro lado//Em caso de cumprimento do contrato promessa a A. Já não será credora da insolvente pelo dobro do sinal (€…), pelos valores genericamente correspondentes a benfeitorias (€…), mas será sempre credora pela perda correspondente à privação do respectivo capital durante mais de uma década, em (…) €1.975.788,69.” (art. 30º),
- “Mesmo neste cenário de cumprimento do referido contrato-promessa, a A. será ainda credora da insolvente por uma indemnização emergente do não cumprimento atempado do contratado (…), nomeadamente lucros cessantes que se perspectivavam com a revenda ou rentabilização – por arrendamento ou outras operações físicas financeiras – das fracções em causa (…), que deverá ser computada em (…) €929.154,87 (…).” (art. 31º).
- “A A. está na posse e uso pleno, exclusivo e irrestrito das fracções.” (art. 34º).
- “As mesmas estão mobiliadas (…).” (art. 35º).
- “A Autora tem usado o imóvel de forma pública e pacífica, sem qualquer oposição, reparo, reclamação ou invocação de quaisquer direitos por terceiros, pela insolvente, pelo Administrador da Insolvência, pelos representantes dos demais credores (…).” (art. 36º).
- “Nestes termos, goza de direito de retenção como garantia de pagamento dos seus créditos retro invocados.” (art. 40º).
41. A ação em referência foi julgada improcedente por sentença proferida em 22.06.2021, que não foi objeto de recurso.
B) De Direito
1. Enquadramento geral
Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 141º, nº 2, 144º, nº 2 e 146º, nº 1 e 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), é nos termos da ação de verificação ulterior que, findo o prazo das reclamações de créditos, é possível reconhecer o direito à separação ou restituição, [a] seus donos, dos bens apreendidos para a massa insolvente, mas de que o insolvente fosse mero possuidor em nome alheio, e de quaisquer outros bens estranhos à insolvência ou insusceptíveis de apreensão para a massa. Conforme refere a sentença recorrida, constitui um meio processual de reação a um ato de apreensão lesivo da posse ou da propriedade de um terceiro.
Em termos de fundamentos de facto e de direito, a ação para verificação do direito à separação e restituição de bem apreendido para a massa insolvente[2] consubstancia ação de apreciação para reconhecimento/declaração de direito pois que, ainda que o objeto e o fim prático da ação corresponda à separação dos bens da massa insolvente através do levantamento da apreensão, compreende e pressupõe necessariamente o reconhecimento da propriedade do autor sobre a coisa reivindicada e tem subjacente um conflito e a discussão do próprio título de aquisição. Questão fundamento e pressuposto do pedido de separação de bens que exige, ou a alegação e prova da aquisição originária do direito de propriedade, ou a alegação e documentação de uma ou várias aquisições derivadas que formem uma cadeia ininterrupta de aquisições até ao autor da pretensão. Nesta senda, considerando que o princípio da tipicidade dos direitos reais restringe as causas jurídicas de aquisição do direito de propriedade às previstas pelo art. 1316º do Código Civil, o pedido do seu reconhecimento pressupõe que o autor alegue que adquiriu a coisa dele objeto, ou por usucapião, ou por sucessão, ou por compra, ou por doação.
A autora-recorrente invoca a usucapião como causa aquisitiva, em seu benefício, das frações que por estes autos requer sejam separadas da massa insolvente. Em fundamento reproduziu parcialmente o que em 12.08.2013 alegou na ação em apenso G, invocando o contrato promessa que celebrou com a insolvente e alegando o pagamento do preço por ele acordado, sendo que na sentença ali proferida os factos atinentes com o pagamento foram julgados não provados. Mais alegou que sucedeu na posse do anterior proprietário dos imóveis, que os adquiriu em 1998 e que, por si e pelo seu antepossuidor, desde junho de 1998 que tem a posse pacífica e de boa fé sobre os imóveis, com oposição apenas da massa insolvente em setembro 2013.
2. Da questão do caso julgado - valor da decisão de facto proferida em ação anterior
2.1. A sentença recorrida considerou que “não tendo a autora logrado provar os factos relativos ao pagamento do preço do contrato-promessa, nem das obras que alegava ter realizado nos imóveis não pode interpor nova ação para discutir esses mesmos factos, pois quanto aos mesmos o tribunal já se pronunciou e decidiu”, que, “Quanto ao pagamento do preço do «Contrato de Promessa de Compra e Venda», datado de 28.12.2001, (…) a autora já obteve uma decisão transitada em julgado, que impede que outro tribunal aprecie os mesmos factos atinentes aquele contrato.”, e concluiu “pela verificação de uma situação caso julgado, que impede a reapreciação daquela questão. A anterior decisão impõe-se nestes autos, impedindo nova discussão sobre os mesmos factos.
2.2. Como é sabido, as decisões judiciais transitam em julgado logo que não sejam suscetíveis de recurso ordinário ou de reclamação, produzindo um efeito de preclusão definitiva de novo e ulterior conhecimento judicial sobre a mesma questão (cfr. arts. 627º, nº 1 e 628º do CPC). Quando assim sucede, prevê o art. 619º, nº 1 do CPC que Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º. O art. 620º, nº 1 do CPC distingue o caso julgado formal, que incide sobre As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual, e que passam a ter força obrigatória dentro do processo.
O caso julgado traduz a força obrigatória da estabilidade das sentenças ou dos despachos que recaiam sobre a relação controvertida objeto da ação ou sobre a relação processual, e tem como finalidade imediata evitar que em novo processo – por referência ao caso julgado material - ou no mesmo processo – por referência ao caso julgado formal -, o juiz possa validamente apreciar e decidir, de modo diverso, o direito, situação ou posição jurídicas já concretamente definidas por anterior decisão, vinculando o juiz à decisão já proferida e transitada. Visa obstar, não à mera colisão teórica de decisões, mas a decisões concretamente incompatíveis[3], vinculando o tribunal e as partes do processo onde foi proferida (efeito positivo), e produzindo um efeito de preclusão definitiva de novo e ulterior conhecimento judicial sobre a mesma questão (efeito negativo). Mais concretamente, o caso julgado formal respeita a decisões sobre a relação jurídica processual proferidas no mesmo processo, conferindo-lhe estabilidade instrumental em relação à finalidade a que está adstrito, restrita ao processo onde foi proferida, ao qual se circunscreve a força obrigatória e aquele fenómeno da preclusão de nova decisão sobre a mesma questão (cfr. art. 613º, nº1 e 3 do CPC).
O caso julgado manifesta-se ou desdobra-se em duas vertentes ou efeitos essenciais: um de cariz negativo, a exceção de caso julgado, que proíbe/impede que o tribunal volte a apreciar e a pronunciar-se sobre a concreta questão já decidida nos autos[4]; outro, de cariz positivo, a autoridade de caso julgado, que, na decisão de mérito a proferir em novo processo, vincula o tribunal e as partes a decisão anteriormente proferida[5].
A exceção do caso julgado exige a repetição da causa e a repetição da causa pressupõe a coexistência da tríplice identidade dos elementos identificadores da relação ou situação jurídica, processual ou material, definida pela decisão: sujeitos; objeto ou pedido; e fonte, título constitutivo ou causa de pedir.  Nos termos do art. 581º, nº 2, 3 e 4 do CPC há identidade dos sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica e realizam o mesmo interesse jurídico no âmbito da relação material em discussão; há identidade de pedidos quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito prático-jurídico; e há identidade de causas de pedir quando as pretensões se fundamentam no mesmo facto jurídico, sendo que, [n]as ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real (art. 581º, nº 4 do CPC). Pressupõe assim a repetição de uma ação sobre uma mesma questão e visa obstar a decisões concretamente incompatíveis ou a repetição de decisões sobre o mesmo objeto, produzindo um efeito de preclusão definitiva de novo e ulterior conhecimento judicial sobre a mesma questão (cfr. art. 580º, nº 2 do CPC).
Já na sua dimensão positiva, a autoridade do caso julgado tem como efeito impor uma decisão transitada no âmbito da decisão a proferir em novo processo, condicionando o sentido desta; não pressupõe repetição de causas, antes pelo contrário, mas exige a identidade de partes, e basta-se com a existência de uma relação de prejudicialidade ou de concurso material entre os objetos das decisões em questão, seja quanto ao mesmo bem jurídico, seja quanto a bens jurídicos conexos, de tal ordem que a desconsideração do teor da primeira decisão redundaria na prolação de efeitos que seriam lógica ou juridicamente incompatíveis com esse teor.
2.3. No caso, a função negativa, excludente, do caso julgado, está claramente afastada pela ausência da referida identidade dos elementos identificadores da ação, atenta a ausência de coincidência entre os pedidos deduzidos em cada uma das ações - um de natureza e de efeito prático jurídico obrigacional, de reconhecimento de direito de crédito com vista ao seu pagamento pelo produto da liquidação e, em primeira linha, pelo produto de determinados imóveis com preferência sobre os demais credores no pressuposto, também peticionado, do reconhecimento de direito real de garantia sobre os mesmos; outro, de natureza e efeito prático jurídico real, de separação de imóvel da massa insolvente assente no reconhecimento do direito de propriedade da autora sobre os mesmos -, e a ausência de coincidência entre a causa de pedir/factos jurídicos que os suportam - na primeira, o contrato promessa de compra e venda celebrado entre a autora e a insolvente com pagamento do preço e ocupação dos imóveis dele objeto autorizada pelos sucessivos proprietários, o sócio fundador da insolvente e a insolvente, a convocar a regulação normativa prevista pelos arts. 410º, 440º a 442º, 754º e 759º do CC; na segunda, a posse daqueles imóveis alegadamente mantida pela autora durante 15 anos e que esta caracterizou como posse prescritiva, não titulada e não registada, mas pública, pacífica e de boa fé sobre os imóveis, iniciada após a aquisição dos mesmos pelo sócio fundador da insolvente o que, por referência às causas aquisitivas do direito de propriedade previstas pelo art. 1316º do CC, convocam um quadro normativo que, no caso e por referência aos factos alegados em qualquer uma das ações, se reconduz ao que regula a aquisição do direito de propriedade por usucapião prevista pelos arts. 1287º e ss. e 1296º do CC.
Ainda que haja parcial coincidência do substrato factual – contrato promessa de compra e venda celebrado entre a insolvente e a autora tendo por objeto os imóveis aqui em questão, e pagamento do preço por ele acordado -, conforme referido, numa e outra ação surge alegado para concretizar factos jurídicos distintos e por referência a elementos normativos distintos, em conformidade com o efeito jurídico que nesta ação a autora dele pretende extrair, que é diferente do efeito jurídico que pretendeu obter na ação julgada nos autos em apenso G.
2.4.  Resta averiguar do efeito positivo do caso julgado que, no caso, suscita a questão do objeto ou âmbito do caso julgado posto que o que a decisão recorrida questionou e vetou foi a admissibilidade de a autora instaurar uma nova ação parcialmente fundamentada em factos sobre os quais “o tribunal já se pronunciou e decidiu” assumindo que “A anterior decisão impõe-se nestes autos.
O objeto ou âmbito do caso julgado está em evidente conexão com o objeto do processo que, de acordo com a teoria da substanciação, é dualmente integrado e identificado pela pretensão manifestada pelo pedido (efeito jurídico) e pela concreta causa de pedir que factualmente o fundamenta e individualiza (facto jurídico), concorrendo um com o outro para delimitarem o objeto da sentença e, assim, o âmbito do caso julgado. Sem prejuízo de, nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa[6], o caso julgado incidir sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos, atingindo estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão, o caso julgado forma-se diretamente sobre o pedido ou efeito jurídico pretendido pelo autor, e não se estende aos fundamentos da decisão – “Apesar de o juiz dever resolver na sentença todas as questões que as partes tenham suscitado (…), só constituirá caso julgado a resposta final dada à pretensão concretizada no pedido e coada através da causa de pedir.[7]O caso julgado só se forma, em princípio, sobre a decisão proferida quanto aos bens ou direitos materiais em causa, e não sobre a motivação. (…).//(…) o caso julgado deverá formar-se pelo menos até onde se contenha a resposta do tribunal ao pedido do autor, excluídos os antecedentes lógicos essa resposta – isto é, os juízos preliminares sobre pontos de facto e de direito em que o tribunal a motivou. [8] O que vale por dizer que “Pode haver – e haverá no comum das sentenças – muitos julgamentos, quer sobre matéria de facto, quer sobre questões de direito que, por não estarem compreendidos na decisão final, embora integrem os seus fundamentos, não são abrangidos pela eficácia do caso julgado.[9]
Assim, e contrariamente ao pressuposto pela decisão recorrida, a decisão de facto sobre a qual a sentença opera o enquadramento jurídico da questão decidenda e decide pela procedência ou improcedência do pedido não é autonomizada da sentença transitada em julgado para efeitos de aquisição do valor de caso julgado, seja na vertente negativa, seja na vertente positiva. No dizer de Castro Mendes e Teixeira de Sousa, “O objeto do caso julgado é a decisão referente ao pedido, não cada uma das suas premissas de facto ou de direito. O caso julgado não se estende a cada uma dessas premissas, quando consideradas de forma isolada e separada da decisão, pois que não é possível desligar esses fundamentos da respetiva decisão e atribuir-lhes a indiscutibilidade própria do caso julgado.[10]
Acresce que não existe uma especial conexão, de prejudicialidade ou de subsidiariedade legal, entre o objeto de uma e outra ação – o reconhecimento do direito de propriedade a que a autora agora se arroga sobre os imóveis que declarou prometer comprar à insolvente e que esta declarou prometer vender-lhe não tem como pressuposto jurídico nem o direito de crédito que a autora reclamou nos autos em apenso G nem o pagamento do preço que aí alegou, nem aquele constitui alternativa legal subsidiária ao não reconhecimento desse direito de crédito[11] (antes pelo contrário: como infra se dirá, por si só a formulação do primeiro exclui a possibilidade de procedência do segundo).
2.5. Ainda por referência à questão do caso julgado, e sem curar sequer da qualificação processual dos factos ‘celebração do contrato promessa’ e ‘pagamento do preço’ nesta e na anterior ação – ou como factos essenciais, individualizadores da causa de pedir e da pretensão que fundamenta, ou como meros factos complementares ou concretizadores da causa de pedir[12] -, conforme já referido, dúvida não há na distinção entre as causas de pedir invocadas em cada uma delas, sendo que, referindo-se à questão da concentração da alegação que onera a atividade processual das partes, Miguel Teixeira de Sousa é taxativo em afirmar que “esse ónus [de concentração] não se verifica quanto às várias possíveis causas de pedir que podem fundamentar o pedido”, apenas quanto a todos os factos “que se referem à causa de pedir invocada na acção.”[13] O que vale por dizer que em nova ação o autor não está impedido de invocar os mesmos factos como factos constitutivos de nova causa de pedir e em fundamento de novo pedido por não estarem abrangidos pelo efeito impeditivo do caso julgado, “daqui derivando que um mesmo acontecimento histórico possa ser reapreciado com base noutra norma jurídica quando algum dos factos que permitem a aplicação dessa norma não tenha sido apreciado pelo juiz.[14] A autora não está por isso impedida de, com fundamento nos mesmos factos, formular nesta nova ação pedidos distintos dos formulados na ação anterior na medida em que não são englobados pela função negativa do caso julgado por aquela formado.
2.6. Numa outra perspetiva mais se acrescenta que a decisão da matéria de facto vale e tem eficácia jurídica apenas no concreto processo em que foi produzida pois, conforme nos alerta o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05.05.2005[15], “transpor os factos provados numa acção para a outra constituiria, pura e simplesmente, conferir à decisão acerca da matéria de facto um valor de caso julgado que não tem, ou conceder ao princípio da eficácia extraprocessual das provas uma amplitude que manifestamente não possui.” Com efeito, a decisão de facto proferida no âmbito de uma sentença não constitui meio de prova – positiva ou negativa - dos factos nela descritos[16]. A eficácia extra processual está legalmente prevista, mas apenas para os meios de prova produzidos no âmbito de um determinado processo contra quem nele foi parte, nos termos previstos pelo art. 421º, nº 1[17] do CPC, e já não para o julgamento ou resultado da sua valoração. Conforme é referido no aresto citado, “Não pode é confundir-se o valor extraprocessual das provas produzidas (que podem ser sempre objecto de apreciação noutro processo) com os factos que no primeiro foram tidos como assentes, já que estes fundamentos de facto não adquirem valor de caso julgado quando são autonomizados da respectiva decisão judicial.[18]
2.7. Com o que se infirma a verificação da situação de caso julgado pressuposta pela decisão recorrida.
3. Da valoração e repercussão da ação de VUC em apenso (G) sobre o mérito destes autos
3.1. Depois de concluir pela verificação do caso julgado, a decisão recorrida prosseguiu na apreciação liminar da ação invocando os requisitos materiais da aquisição do direito de propriedade por usucapião - a posse, integrada pelo corpus e pelo animus, e o decurso de certo lapso de tempo – e considerou, em síntese, que ao reclamar um direito de crédito sobre a insolvência garantido por direito de retenção com fundamento em contrato promessa de compra e venda dos imóveis[19] e ao interpelar o AI para o cumprimento ou recusa de cumprimento desse mesmo contrato, a autora agiu como titular de um direito obrigacional e na qualidade de detentora dos imóveis, o que não é compatível com o direito de propriedade que agora vem invocar.
Na motivação do recurso, a este fundamento da decisão recorrida a autora-recorrente opõe apenas que “Na ação de verificação ulterior de créditos, independentemente de se aceitar que não foi o meio próprio para reclamar contra a apreensão indevida, nada permite concluir, como foi concluído pelo tribunal a quo, que a autora assumiu não ter o domínio de facto sobre os imóveis. O que a autora invocou é coisa muito diversa: Invocou a relação contratual sim, mas alegou a investidura na posse autorizada, mesmo antes da formalização contratual, passando a gozar esse direito ininterruptamente, de forma pública e pacífica, sem qualquer oposição de terceiros, da insolvente, inclusive do administrador de insolvência.
Do aduzido no segmento que ora se aprecia resulta que a sentença recorrida concluiu pela ausência dos requisitos da posse prescritiva do direito de propriedade sobre os imóveis por infirmada pelos pedidos que sobre eles a autora deduziu na ação de VUC (arrogando-se a direito de crédito sobre a insolvência garantido por direito de retenção sobre os imóveis com fundamento em contrato promessa de compra e venda), que agora a impede de deles se arrogar sua proprietária. Tendo presente esse concreto fundamento – que não se confunde com a questão da adequação do meio processual utilizado pela autora que, contrariamente ao que resulta das alegações de recurso, a sentença recorrida não abordou - em bom rigor, a recorrente nada opõe ou fundamenta contra a apreciação e a conclusão nesta parte alcançada pela sentença, limitando-se a alegar que na outra ação invocou a investidura na posse autorizada e passou a gozar esse direito, nada referindo quanto à valoração e repercussão jurídica, no pedido que por estes autos deduziu e sob a égide dos factos constitutivos da usucapião, do pedido que formulou na anterior ação, de reconhecimento de direito de crédito garantido por direito de retenção sobre os imóveis dos quais aqui se arroga proprietária.
Cumpre assim densificar nesta parte a fundamentação da sentença recorrida para, avançamos já, concluirmos pelo respetivo acerto.
Previamente, uma nota para consignar que não se percebe a alusão da recorrente à falta da resolução de contrato de compra e venda para justificar a inexistência do direito de apreensão dos imóveis em questão para a massa insolvente posto que o por ela celebrado com a insolvente corresponde a contrato promessa de compra e venda que, como é consabido, não lhe sendo atribuída e conferida eficácia real, tem efeitos meramente obrigacionais - direito à celebração do contrato prometido -, e não o efeito real (quod effetum) que emerge da celebração do contrato de compra e venda – transmissão do direito de propriedade dos bens dele objeto. Efeitos que, de resto, tanto num como outro se produzem independentemente do pagamento do preço acordado.
3.2. A autora invoca a usucapião como forma de aquisição dos prédios a que se arroga proprietária. Como é sabido, a usucapião consiste numa forma originária de aquisição de direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo através da posse mantida por certo lapso de tempo, variável em função das características da posse (cfr. arts. 1287º e ss. do CC). Nos termos do art. 1251º do CC, o elemento posse “é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.”
Por dispensável ao caso não vamos ater-nos na ancestral e atual problemática da definição, extensão e natureza jurídica da posse[20]. Ao que ora releva, apenas ter presente que a posse exterioriza (e assim publicita) a titularidade de um direito – “É uma situação que surge por referência a um direito cujo exercício reproduz ou assimila.[21] A posse pressupõe sempre uma relação entre uma pessoa e uma coisa, sendo a relação possessória uma relação permanente e duradoura de controlo material sobre uma coisa, e autónoma da vontade do titular do direito. Define-se ou caracteriza-se como um poder de facto que se manifesta pelo exercício (ou possibilidade fáctica de exercício) ou prática de atos de forma a poder concluir-se que aquele que os pratica exerce um poder permanente compatível com um direito sobre a coisa, e ao qual a lei reconhece efeitos jurídicos independentemente do possuidor ser ou não titular desse direito[22], mas que cede perante a invocação do direito pelo respetivo titular, que prevalece sobre a situação jurídica da posse.
Nos termos do art. 1263º do CC, “A posse adquire-se: a) Pela prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito;//b) Pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor;//c) Por constituto possessório;//d) Por inversão do título da posse.” Daqui decorre que a investidura ou início da posse tem sempre origem numa atuação material e não exige seja acompanhada da celebração de um negócio. Numa delimitação negativa das situações de posse, a lei prevê a situação de ‘Simples detenção’, estabelecendo que “São havidos como detentores ou possuidores precários: a) Os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito;//b) Os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito;//c) Os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem.” O art. 1290º do CC prevê que “Os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, por usucapião, o direito possuído, excepto achando-se invertido o título da posse; mas, neste caso, o tempo necessário para a usucapião só começa a correr desde a inversão do título.”
Pela necessidade de estabelecer critérios distintivos entre a ‘situação de facto posse’ e a ‘situação de facto detenção’, tradicionalmente a doutrina concebe a posse como situação jurídica integrada por dois elementos: o corpus e o animus[23] [24]. O corpus, elemento de conexão material da pessoa com a coisa, é a atuação de facto correspondente ao exercício do direito, revelada por atos materiais correspondentes aos poderes e deveres próprios do conteúdo jurídico desse direito. O animus corresponderia à “intenção de agir como o titular do direito a que o exercício do poder de facto se refere.”[25] Quer se enverede pela teoria subjetiva ou pela teoria objetiva da posse, as dificuldades próprias e conhecidas da prova de um elemento do foro interior, da vontade do agente, na prática judiciária conduz à extração deste elemento da posse dos concretos termos do exercício do poder de facto. Assim o entendeu e consolidou o Supremo Tribunal de Justiça no AUJ de 14.05.1996[26], que informa a atual jurisprudência deste tribunal[27], consagrando uma presunção de posse nos seguintes termos: Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa. O que equivale a dizer que o exercício do poder de facto em termos de direito real e com a intenção de agir como seu titular deverá ser objetivamente exteriorizado pelos próprios atos e, assim, reconduzir o animus ao corpus[28]. Nas palavras de Oliveira Ascensão, “Seria incompreensível que se fundamentasse a posse, que deve representar uma exteriorização facilmente reconhecível, nos meandros da intenção do agente.” Ressalva porém, e com relevo ao caso, que “Já não será porém assim se a intenção que o preceito[29] refere tiver o sentido da declaração do agente sobre a própria posse. Então é também exteriorização e vale como elemento objectivo”.[30] E conclui que “Com isto o art. 1253.º/a é compatível com uma posição objectivista. Basta que subentendamos que a intenção que refere é a declarada, elemento objectivo que retira ao corpus a sua consequência normal.//A posição do detentor basta para inverter o título da posse (art. 1265.º (…); reciprocamente, a declaração basta para desvalorizar a indicação resultante do corpus.
3.3. No seguimento do regime legal sumariamente exposto estamos agora em melhor posição para enquadrar o fundamento do indeferimento liminar da ação que ora se aprecia e que, ainda que da decisão não conste expressa e legalmente fundamentado no art. 590º, nº 1 do CPC, se reconduz à causa de indeferimento aí prevista, de manifesta improcedência do pedido, pressupondo por isso a apreciação de mérito da ação.
No âmbito da ação de VUC que precedeu a instauração da presente, a autora, nessa mesma qualidade, invocou o contrato promessa de compra e venda identificado e descrito nos autos e, com fundamento no seu incumprimento pela insolvente e pela massa insolvente, reclamou crédito sobre a insolvência garantido por direito de retenção sobre os imóveis que posteriormente e através da presente ação veio requerer sejam separados da massa com fundamento no direito de propriedade a que, agora, sobre os mesmos se arroga.
A incompatibilidade entre os referidos pedidos é evidente e, de tal ordem, que o primeiro pedido exclui logicamente e de mérito os fundamentos do segundo – a posse exercida com corpus e animus possidendi, a única boa para usucapião.
Dúvida não há que o contrato promessa de compra e venda gera efeitos meramente obrigacionais e, para o promitente comprador, dele decorre apenas uma expectativa de aquisição, que nestes autos a autora alegou ter relativamente aos imóveis prometidos vender, sendo que, como é evidente, a expectativa não se confunde com o efeito esperado - no caso, a aquisição dos imóveis que a autora alega ter ocupado em 1999 por decisão e ação do seu sócio fundador e administrador e proprietário dos imóveis, e que em 2001 prometeu comprar à insolvente, posterior adquirente dos imóveis. Do contrato promessa também não decorre a transmissão da posse, que apenas tem lugar quando o proprietário entrega efetivamente ao promitente comprador a coisa por ele prometida vender, e se essa transmissão corresponder à vontade das partes, a valorar com acuidade em função da motivação, circunstâncias e alcance do acordo relativo à entrega[31]. Conforme acórdão do STJ de 04.12.2007[32], “A entrega antecipada do imóvel, traditio, na vigência do contrato-promessa, não é um efeito do contrato, resulta apenas de uma convenção de natureza obrigacional entre o promitente-vendedor [dono da coisa] e o promitente-comprador.” A designada traditio que, perante o incumprimento do contrato pelo promitente vendedor, e nas condições e termos previstos pelos arts. 410º, 440º a 442º e 754º do CC, confere legitimidade ao promitente comprador para recusar restituir ao promitente vendedor a coisa por este prometida vender, opondo-lhe o direito de retenção como garantia de pagamento do seu crédito, conforme finalidade que a este direito é reconhecida enquanto legalmente tipificado como direito real de garantia.
Ora, inseridos na categoria dos direitos reais limitados, os direitos de garantia distinguem-se dos direitos reais de gozo e incidem necessariamente sobre bens que pertencem a outrem, coexistindo com outros direitos reais que sobre eles incidem numa relação de concorrente compatibilização, nestes se incluindo, necessariamente, o direito de propriedade do sujeito passivo do crédito garantido pela coisa retida. É verdade de la palisse que o património do próprio credor jamais desempenhará função de garantia de pagamento dos créditos que detém sobre terceiros. Os direitos reais de garantia, que existem em conexão (funcional ou acessória) com os direitos de crédito, conferem o poder de obter o pagamento de um crédito pelo valor da coisa objeto de garantia com preferência sobre outros credores (comuns ou não titulares de direito de garantia prevalecente). Desta afetação resulta que, ainda que por efeito da traditio use e desfrute da coisa, o direito real de garantia não confere ao seu titular prorrogativas ou poderes de gozo do bem oponíveis ao proprietário, mas apenas o poder de o executar para ser pago com preferência sobre os demais credores[33]. Da mesma forma, a oponibilidade do direito a terceiros e ao próprio devedor, inerente ao direito de sequela emergente do direito real, não obsta ao poder de alienação da coisa pelo seu proprietário, precisamente porque a posse causal e abstrata inerente ao conteúdo do seu direito não é posta em causa pela coexistência do direito real de garantia que, nas sucessivas transmissões do bem, o acompanha até que cumpra a sua função de garantia. O que sumariamente permite concluir, como concluiu a sentença recorrida, que quem quer que se arrogue titular de um direito de retenção sobre um bem, necessariamente reconhece que ele pertence a terceiro, mais concretamente, ao seu devedor. Nesta senda, ainda que o retentor exerça sobre a coisa um poder de facto que se exterioriza com a aparência de direito real de gozo, exerce-o reconhecidamente em nome de outrem, cabendo-lhe por isso a qualidade de simples detentor ou de possuidor precário, conforme descrição adotada pelo acórdão do STJ acima citado - “Em regra, o promitente-comprador que obteve a traditio, apenas frui um direito de gozo, autorizado pelo promitente-vendedor e por tolerância deste – é, nesta perspectiva, um detentor precário – art. 1253º do Código Civil – já que não age com animus possidendi, mas apenas com o corpus possessório (relação material).”
Cumpre referir que o promitente comprador só é titular de direito de retenção quando ingressa na titularidade de direito de crédito sobre o promitente vendedor, sendo que este direito apenas se constitui com a verificação do incumprimento definitivo do contrato promessa, a partir do qual cessam os efeitos positivos do contrato promessa celebrado e, sendo o caso, cessa o poder ou o referido direito precário de gozo da coisa prometida vender decorrente da traditio ao promitente comprador com vista à celebração do mesmo mas que, com o incumprimento definitivo do contrato, deixa de subsistir - a posse precária própria da faculdade de fruição emergente da expectativa de aquisição do imóvel por efeito da celebração e vigência do contrato promessa, é então substituído pela posse precária própria do direito de retenção[34], a qual não confere posse boa para usucapião porque legalmente restringida a direitos reais de gozo[35].
Nestes termos e pela própria autora limitada a posse sobre os imóveis à função de garantia do direito de crédito que reclamou nos autos em apenso G, óbvio se torna concluir, conforme concluiu a decisão recorrida, que pelos pedidos que naqueles autos deduziu a autora praticou e objetivou atos incompatíveis, por contrários, ao exercício da posse com intenção de agir como seu proprietário - o peticionado pagamento do crédito que ali reclamou pelo produto da venda desses mesmos imóveis equivale a reconhecê-los como bens propriedade da promitente-vendedora, devedora e insolvente que, como tal, integram o património da massa insolvente que com a declaração da insolvência lhe sucedeu. Valoração extensível em toda a linha à interpelação que a autora dirigiu ao AI nos termos e para os efeitos do art. 102º, nº 2 do CIRE com vista à obtenção do cumprimento ou da declaração de recusa de cumprimento do contrato promessa e que, pressupondo o direito de propriedade dos imóveis prometidos vender na esfera jurídica da promitente vendedora, igualmente excluiu o animus possidendi da alegada fruição da autora sobre os imóveis, com consequente desvalorização do que quer que viesse a demonstrar quanto ao elemento corpus por inapto para conferir posse boa para usucapião. Conforme sumariado no acórdão da Relação de Lisboa de 06.11.2008, “2.) Havendo corpus, em princípio há posse, salvo quando o possuidor revele uma vontade segundo a qual ele age sem animus possidendi, sendo este elemento negativo que desvaloriza ou descaracteriza o corpus.”[36]Conclusão que ao caso se impõe e para o que não releva a alegada ocupação dos imóveis pela autora na sequência ou anteriormente à celebração do contrato promessa.
Mas liminarmente contundente é o facto de através daquela ação a autora ter contabilizado crédito com fundamento no não cumprimento do contrato promessa, que se traduz na ausência do contrato apto a operar a transmissão do direito de propriedade prometido celebrar, bem como o facto de ter solicitado o seu cumprimento ao AI, que logicamente pressupõe que a autora estabeleceu com os imóveis relação material sem intenção de agir como sua proprietária, qualidade que reconheceu à insolvente, conforme é revelado pela atuação processual que adotou nestes autos de insolvência (lato senso).
3.4. Mas sempre se acrescenta que, ainda que assim não fosse, a autora não alegou factos aptos a concluir que a posse por si exercida sobre os imóveis é em nome próprio e, mais ainda, que o é em termos do direito de propriedade, máxime, desde o primeiro momento em que os passou a ocupar ‘pela mão’ do seu proprietário[37]. Ao invés, toda a alegação vai no sentido de tratar-se de posse exercida em nome alheio, ou seja, posse precária ou mera detenção tal como prevista pelo art. 1253º, al. c) do CC, confirmada pela instauração da ação de VUC em apenso G. Com efeito, a autora justificou a investidura e o início da sua posse sobre os imóveis com a figura da traditio, que concretiza com a instalação das suas sede e atividade nos imóveis pela mão do respetivo proprietário, enquanto sócio fundador e administrador da autora. Imóveis que aquele adquiriu em 1998 por compra no âmbito de uma falência, tendo constituído a autora em 1999 para através desta prosseguir a atividade que ali já exercia como empresário individual. Em momento algum a autora alegou que a intenção do seu sócio fundador era fazer seus (da autora) os espaços imobiliários onde a instalou. Ora, neste contexto, a alegada ocupação dos imóveis pela autora aquando da sua constituição compatibiliza-se com atos de mera autorização ou - mais consentâneo com a realidade que os dados da experiência económica e judiciária revelam -, tão só de mera conveniência do proprietário, pessoa singular que, ao instalar nos imóveis de que é proprietário pessoa coletiva da qual é sócio e administrador, não perdeu por esse facto a posição de efetivo possuidor[38]; antes revelou exercer o poder contido no direito de propriedade de que era titular através da afetação dos imóveis dele objeto a finalidade económica prosseguida através de sociedade por si constituída e administrada, afetação que, nessa situação, estava inteiramente dependente da vontade do proprietário dos imóveis que, assim, deles poderia continuar a dispor. Ajustam-se aqui as palavras de Oliveira Ascensão - “A falta de autonomia do exercício de poderes, que deixa o sujeito inteiramente dependente da vontade do concedente, impede que ele adquira posse[39], bem como a conclusão alcançada pelo acórdão da Relação de Guimarães de 19.03.2020 – “3. A posse não se presume naquele que a não tenha iniciado, de forma originária.//4. Se a utilização da coisa ocorre sob a alçada de uma mera tolerância de quem é o seu possuidor, só a inversão do título da posse poderá conduzir ao animus possidendi, o que precisa de ser bem invocado e caracterizado em factos”.[40]
Com efeito, a aquisição derivada da posse por traditio pressupõe a sua perda pelo anterior possuidor, por cedência (art. 1267º, al. c) do CC), sendo que, conforme prevê o at. 1257º, nº 2 do CC, “Presume-se que a posse continua em nome de quem a começou”. Ora, a autora não alega factos aptos a concretizar a traditio pressuposta pelo art. 1263º, al. b), isto é, factos dos quais se pudesse extrair que, ao instalar a autora nos imóveis, o seu proprietário se demitiu da sua situação de possuidor causal e abstrato na qualidade de proprietário dos imóveis; ou seja, do exercício ou mera possibilidade de exercício do poder de facto sobre os imóveis compatível com o direito de propriedade de que era titular. Ao invés, da demonstrada alegação de que os herdeiros do proprietário do imóvel decidiram constituir a sociedade insolvente e dias após para ela decidiram transferir a propriedade dos imóveis por aquele adquiridos, não estando posta em causa a correspondência entre a vontade real dos contratantes e a vontade por eles declarada na formalização dos contratos, dela decorre que na qualidade de sucessores do titular do direito real de propriedade sobre os imóveis não era sua intenção investir na posse correspondente ao direito de propriedade a sociedade que no exercício da sua atividade os vinha ocupando e fruindo por decisão do anterior proprietário que, por sua vez, passou a exercer através da sociedade ora insolvente a atividade que até aí exercia em nome individual. Decisão que apesar de nada revelar quanto à específica intenção do proprietário – se de mera tolerância ou conveniência, se por comodato, ou outro –, objetivamente revela que o animus da posse compatível com o exercício do direito de propriedade estava da banda de quem, cumulando a qualidade de administrador da autora, assim decidiu instalar a respetiva sede e atividade naqueles imóveis e, posteriormente, da banda de quem, na qualidade de herdeiros daquele, e exercendo o poder maior contido no direito de propriedade, decidiu transmiti-lo a outra sociedade, a aqui insolvente. Transmissão esta que deita por terra a vontade do proprietário J… de investir a autora na posse sobre os imóveis compatível com o exercício do direito de propriedade, e deixa ostensivamente preterido e prejudicado o alegado animus da autora compatível com a convicção de agir sobre os imóveis como sua proprietária na medida em que, conforme alega, uma e outra sociedades eram administradas e representadas pela mesma pessoa, R…, filho do anterior proprietário, J…. Tanto cada uma das partes no contrato de compra e venda pelo qual a insolvente adquiriu o direito de propriedade dos imóveis, como cada uma das partes no contrato promessa que esta celebrou com a autora, sabiam e tinham consciência que a aquisição do direito de propriedade pela autora, conforme esta alega, “só dependia do ato administrativo de uma pessoa que obrigava ambas as sociedades, alienante e adquirente, traduzido na outorga da escritura.” Escritura que os herdeiros do proprietário dos imóveis ostensivamente não quiseram celebrar quando, em 29.06.2001, apesar de neles manterem a sede e as instalações da autora, e pelas razões ou circunstâncias que entenderam considerar, decidiram vender os imóveis - como estava na sua disponibilidade decidir - a uma sociedade por eles constituída três dias antes da celebração do contrato de compra e venda e que, no exercício dos poderes contidos no direito de propriedade, veio a constituir hipoteca sobre os imóveis para garantir o cumprimento de contrato de empréstimo que celebrou com a aqui recorrida e declarou prometer vender os imóveis dela objeto a sociedade representada por administrador comum a ambas.
Esta disposição dos imóveis através da sua venda à insolvente que, posteriormente ao início da sua ‘ocupação’ pela autora, foi realizada (em junho de 2001) pelos legais sucessores do respetivo proprietário, manifestam que este, por si e por quem lhe sucedeu, não se demitiu do exercício dos poderes contidos nesse direito; mais concretamente, não pretendeu transmitir a posse boa para usucapir o direito de propriedade sobre os imóveis. Mais do que isso, objetivamente aquela venda revela a ausência de vontade de a autora ingressar na posição de proprietária dos imóveis posto que, para além de os vendedores acumularem a qualidade de seus acionistas, a compradora dos imóveis e a autora eram representadas pelas mesmas pessoas, e estas decidiram pela transmissão daquele direito à insolvente e não à autora. A alegada vontade de todos os interessados na transmissão à autora da posse compatível com o exercício do direito de propriedade teria sim a sua cabal e contundente expressão material na emissão de declarações de venda dos imóveis em seu benefício, conforme estava na disposição dos proprietários e de todos os interessados, ao invés de igual declaração de venda dos imóveis à insolvente, contemporânea com a alegada pré-existente ocupação dos imóveis pela autora, que contrariam aquela vontade.
O exercício da posse prescritiva pela autora é igualmente afastado pela celebração do contrato promessa de compra e venda que na qualidade de promitente compradora celebra com a insolvente em dezembro de 2001, posto que a declaração de promessa de compra dos imóveis corresponde ao expresso reconhecimento de que esse direito pertence a terceiro com poderes para o exercer, a aqui sociedade insolvente, perante a qual a autora assim se colocou como simples detentora ou possuidora precária. A partir da celebração deste contrato a autora não alegou factos que, demonstrados, permitissem concluir pela inversão do título de posse nos termos do art. 1263º, al. d) do CC que, como descrita por Oliveira Ascensão[41], exige a manifestação de oposição categórica do possuidor contra aquele em cujo nome possui de modo a sobrepor-se à aparência que era representada pelo título. Por qualquer forma ficaria prejudicada a possibilidade de a autora usucapir os imóveis por falta do elemento ‘lapso de tempo’ posto que desde 2001, ano da celebração da venda à insolvente e do contrato promessa, até 2013, data em que o AI apreendeu os imóveis para a massa insolvente, ainda não tinham decorrido os 15 anos que a própria autora reconhece que a posse a que se arroga demandaria para prescrever em seu benefício o direito de propriedade sobre os imóveis.
Com o que nesta parte se confirma a decisão recorrida, com consequente improcedência do recurso.

IV - DECISÃO:
Por todo o exposto, as juízas desta secção acordam em julgar improcedente a apelação, com consequente manutenção da decisão recorrida, de indeferimento liminar da ação com fundamento em manifesta improcedência do pedido.
Vencida na apelação, condena-se a recorrente nas custas do recurso (cfr. arts. 529º, nº 1 e 2 do CPC).

Lisboa, 08.11.2022
Amélia Sofia Rebelo
Manuela Espadaneira Lopes
Paula Cardoso
_______________________________________________________
[1] Nesse sentido, Abranges Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6ª ed., p. 137.
[2] Ação que segue os termos do processo de verificação de créditos, com as adaptações previstas pelo art. 141º, nº 2 do CIRE, ou a forma de processo comum, cfr. art. 148º do CIRE.
[3] Vd. Antunes Varela, Miguel Bezerra, e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed. revista e atualizada, Coimbra Editora, p. 709.
[4] Sem prejuízo das alterações admitidas nos termos do art. 613º, nº 2 do CPC, restritas à retificação de erros materiais, ao suprimento de nulidades e à reforma da sentença, nos termos consagrados nos artigos 614º a 616º do CPC.
[5] Sobre a matéria, Rui Pinto, in Revista Julgar, on line, novembro 2018, e acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20.10.2015, processo nº 231514/11.3YIPRT.C1., e Miguel Teixeira de Sousa em anotação ao acórdão da Relação do Porto de 06.06.2016 (proc. nº 1226/15.8T8PNF.P1), disponível em https://blogippc.blogspot.com
[6] Em comentário ao acórdão da Relação de Évora de 11.05.2017 (proc. nº 442/16.0T8FAR.E1), disponível em https://blogippc.blogspot.com/
[7] Antunes Varela e outros, ob. cit., p. 714.
[8] Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina Coimbra, pags. 392 e 399.
[9] Antunes Varela e outros, ob. cit., p. 716.
[10] Manual de Processo Civil, vol. I, p. 655 e 656.
[11] Vd. Castro Mendes e Teixeira de Sousa, ob. cit. p. 661 e ss.
[12] Sobre a questão, vd. Rui Pinto, ‘Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias’, Julgar Online, novembro de 2018, p. 8., e Mariana França Gouveia, O Princípio Dispositivo e a Alegação de Factos em Processo Civil: A Incessante Procura da Flexibilidade Processual’, p. 615-616, disponível em http://www.oa.pt/upl/%7Bede93150-b3ab-4e3d-baa3-34dd7e85a6ef%7D.pdf
[13] Em “Preclusão e caso julgado”, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2016/05/paper-199.html, p. 20. Nesse mesmo sentido, Castro Mendes e Teixeira de Sousa Ob. cit., p. 650.
[14] A. Geraldes, P. Pimenta, e L. Sousa, ob. cit., p. 687.
[15] Proc. nº 05B691, disponível na página da dgsi.
[16] Sobre a questão, vd. Rui Pinto, “Valor extraprocessual da prova penal na demanda cível. Algumas linhas gerais de solução”, disponível em https://forumprocessual.weebly.com/uploads/2/8/8/7/2887461/valor_extraprocessual_rui_pinto.pdf.
[17] Nos termos do qual, Os depoimentos e perícias produzidos num processo com audiência contraditória da parte podem ser invocados noutro processo contra a mesma parte, sem prejuízo do disposto no n.º 3 do artigo 355.º do Código Civil; se, porém, o regime de produção da prova do primeiro processo oferecer às partes garantias inferiores às do segundo, os depoimentos e perícias produzidos no primeiro só valem no segundo como princípio de prova.
[18] No mesmo sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 08.11.2018, proc. nº 478/08.4TBASL.E1.S1, e de 11.05.2022, proc. nº 60/08.6TBADV.2.E1.S1, disponíveis em jurisprudência.pt.
[19] E não sobre a massa, como consta da decisão recorrida.
[20] Vd. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, XIII, p.592 e ss.
[21] Oliveira Ascensão, Direito Civil/Reais, Coimbra Editora, 1993, 5ª ed. revista e ampliada, p. 59.
[22] No que assenta a distinção entre posse causal e posse formal.
[23] Vd. Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil anotado, vol. III, pág. 5 e ss. e Manuel Rodrigues, A posse, 3ª Ed. , pág. 10
[24] Vd. acórdão do STJ de 16.10.2008, proc. 08A2357, disponível na página da dgsi.
[25] Oliveira Ascensão, ob. cit., p. 85.
[26] Publicado no DR 144/96, série II, de 24.06.1996.
[27] A título de exemplo, acórdão do STJ de 13.10.2020, proc. 439/18.5T8FAF.G1.S1 – “VI- Sendo fáceis de constatar os atos objetivos da posse, ou seja, o corpus, o animus (intenção de agir do titular) é mais difícil de apreender e por isso a lei faz presumir que quem exercer os atos materiais da posse também os exercerá (em princípio) com intenção.
[28] Sobre a problematização da questão, em posições divergentes, vd. Oliveira Ascensão, ob. cit., ps. 84 e ss., e Menezes Cordeiro, ob. cit. p. 613 e ss.
[29] Na abordagem do problema do “animus como elemento da posse distintivo da detenção, e em que termos, é convocado o teor literal do art. 1253º, al. a) do CC que, sob a epigrafe “Simples detenções”, prevê que “São havidos como detentores ou possuidores precários://a) Os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito;”.
[30] Ob. cit., p. 88.
[31] Vd. Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 650.
[32] Proc. 07A4070, dgsi
[33] Vd. acórdão do STJ de 29.04.2008, proc. 08A745, disponível na página da dgsi.
[34] Nesse sentido, Moitinho de Almeida, Restituição de posse e ocupações de imóveis, Coimbra Editora, 5ª edição, páginas 59 e ss.
[35] Cfr. acórdão da RL de 27.09.2018, proc. 11680/15.2T8LRS.L1, 1. O exercício de direito de retenção constitui contexto substancialmente distinto do de «posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo», para os efeitos do disposto no art. 1287.º do Código Civil que fornece a definição normativa de usucapião;//2. Nesse quadro circunstancial, é insofismável, in casu, a ausência de «animus» (intenção de actuar sobre a coisa com um específico estatuto jurídico, id est, fenómeno do foro psicológico, cognitivo e volitivo que materializa uma expressão de pensamento coerente e compatível com o corpus – laço físico e material assente no contacto e na expressão de uma relação entre o sujeito e o objecto no domínio da matéria, ou seja, possibilidade de exercer influência sobre a coisa não toldável pela acção de terceiros);.
[36] Proc. 5429/08, disponível na página dgsi.
[37] Conforme anota Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, XIII, p. 667, “Ao traditar a coisa, o proprietário fá-lo a qualquer título: venda ou doação (da propriedade), constituição de um direito real menor, formação de um direito pessoal de gozo (típico ou atípico) ou, no limite, situação de simples detenção. Uma entrega ad nutum, sem contrapartida, leva-nos ao comodato ou à mera tolerância, dependendo da interpretação.”
[38] Vd. Menezes Cordeiro, p. 622 e ss.
[39] Ob. cit., p.
[40] Proc. 281/19.6T8PRG.G1.
[41] Ob. cit., p 92 e s.