Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
662/09.3TYLSB-AD.L1-1
Relator: RENATA LINHARES DE CASTRO
Descritores: INSOLVÊNCIA
MAIS-VALIAS
AUTORIDADE TRIBUTÁRIA
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL
COBRANÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/25/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I– O artigo 268, n.º 1 do CIRE, na redacção anterior à que foi conferida pela Lei n.º 114/2017, de 29/12, não previa qualquer isenção de tributação em IRC das mais valias realizadas na alienação onerosa dos bens imóveis integrados na massa insolvente.

II– A actual redacção desse artigo, prevendo já a isenção em tais situações, apenas tem aplicação às vendas ocorridas após o dia 01/01/2018.

III– Um Juízo de Comércio, enquanto tribunal judicial, integrado na jurisdição comum, não tem competência para conhecer da legalidade de liquidações efectuadas pela autoridade tributária, nem para conhecer e decidir da existência de isenções e benefícios fiscais que não tenham previsão legal.

IV– Tal competência é exclusiva da jurisdição administrativa, pelo que, sendo controvertida a dívida tributária, terá tal questão de ser dirimida no competente tribunal administrativo e fiscal.

V– Não tendo sido intentada qualquer acção contra a massa insolvente para cobrança de tais dívidas tributárias – correspondentes a imposto por IRC -, e não sendo as mesmas reconhecidas pela Administradora da Insolvência, não deverá ser ordenado o seu pagamento pela massa insolvente, tanto mais que foram instauradas execuções fiscais e se encontra a correr termos uma impugnação judicial no Tribunal Tributário de Lisboa.


(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa.



IRELATÓRIO:


Por sentença proferida em 28/07/2009, transitada em julgado em 15/05/2013, foi declarada a insolvência da sociedade TL.

Com o requerimento da Sr.ª Administradora da Insolvência (AI) apresentado em 29/11/2018 (ref.ª/Citius 21076787), foi anexada documentação emitida pela Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) – na qual se refere a existência de lucro tributável que, deduzido dos prejuízos, corresponde a uma matéria colectável no montante de 331.260,56€ -, tendo também sido junta uma notificação da AI para “no prazo de 15 dias (…) proceder à entrega da declaração de rendimentos modelo 22 IRC, relativa ao(s) exercício(s) de 2012”, uma vez que tinha sido efectuada “a alienação de direitos reais sobre bens imóveis, no ano de 2012, e constatou-se existirem diferenças positivas entre o valor patrimonial tributário definitivo dos imóveis e o valor constante dos respetivos contratos.

Por requerimento de 09/04/2019 (ref.ª/Citius 22515741) veio a mesma AI informar aos autos: Conforme requerimentos juntos aos autos face às mais valias solicitadas para pagamento pela Autoridade Tributária referente à venda do último imóvel 47.766,36€ e ao IRC do ano de 2012, tributável em lucro no valor de 410.066,89€ resultando uma matéria colectável no montante de 331.260,58€, e tributação no valor de 105.115,56€, valores estes que foram impugnados (…)”.

Por email de 01/02/2021, dirigido ao processo, a AT informa que se encontra em curso uma impugnação judicial referente às dívidas fiscais da responsabilidade da massa insolvente (ref.ª/Citius 28383499).

Em 03/02/2021 (ref.ª/Citius 402574552), o tribunal a quo proferiu despacho com o seguinte teor: “Consigna-se que se encontra encerrada a atividade do estabelecimento da insolvente pelo menos desde 15 de Outubro de 2009 (data da realização da assembleia de apreciação do relatório). Comunique à administração fiscal que a insolvente cessou atividade, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 65.º, n.º 3, do CIRE.”

Por requerimento apresentado em 08/02/2021 (ref.ª/Citius 28440779), veio o Ministério Público (MP) requerer a notificação da AI para que se pronunciasse quanto às dívidas fiscais imputadas pela AT à massa Insolvente - no montante global de 188.554,30€ - e, sendo o caso, procedesse ao pagamento das mesmas.

Tais dívidas encontram-se melhor descriminadas no documento que anexou – dívidas referentes a IVA de Julho e Agosto de 2009 e de 2014 e a IRC de 2009, 2010, 2011, 2012 e 2017 (quantias descriminadas no email enviado em 03/02/2021 pela AT ao MP).

Posteriormente, em requerimento datado do dia 15 do mesmo mês, o MP solicitou que a AI discriminasse o montante alusivo a cativações, aludindo ao facto de correr termos pelo tribunal tributário impugnação referente ao pagamento de IRC liquidado (ref.ª/Citius 28499364).

Em 03/04/2021, a AI apresentou requerimento através do qual defendeu não ser devido o pagamento pela massa insolvente das dívidas fiscais (ref.ª/Citius 28841558).

Em 13/04/2021 (ref.ª/Citius 28930332), o MP apresentou requerimento com o seguinte teor:
(…) A Autoridade Tributária considera que os efeitos do averbamento da cessação da atividade, nos termos do artg. 65º, nº 3 do CIRE, só poderão afetar as liquidações oficiosas posteriores a 15.10.2009 e com fundamento, precisamente, no incumprimento das obrigações declarativas fiscais – cfr. documento que se junta.
Entende que as restantes liquidações não são afetadas, designadamente as liquidações referentes a períodos de tributação entre a data da declaração da insolvência e a data de 15.10.2009, nem as resultantes de factos tributários apurados em ações de inspeção ou que decorrem das declarações apresentadas pela Srª Administradora – cfr. documenta que se junta.
Solicita, atentas as razões ali descritas, que a Srª Administradora da Insolvência proceda ao pagamento das dívidas fiscais da responsabilidade da massa, após cativação do valor necessário, uma vez que o processo se encontra em fase de rateio.
Sem prejuízo do conhecimento da referida comunicação à srª Administradora, conforme deflui da mesma, requer-se a sua notificação para que se pronuncie em conformidade, procedendo ao pagamento de tais impostos, cativando-se a quantia necessária, se considerar ser devido, ou lançar mão do conjunto de meios de defesa disponíveis, máxime recorrendo à reclamação graciosa e à impugnação judicial, se outro for o seu entendimento”.

Anexou email da AT de 09/04/2021 atestando tal entendimento.

Em 14/04/2021 (ref.ª/Citius 28939319), veio a AT informar aos autos (em complemento à comunicação do dia 09 do mesmo mês), manterem-se válidas as seguintes liquidações:
1.–Dívidas posteriores à data da declaração da insolvência e anteriores à data do encerramento do estabelecimento:
- PEF n.º 3069200901172085, relativo a IVA do período de Agosto de 2009, no valor total actual de 366,42€;
2.–Dívidas posteriores à data do encerramento do estabelecimento resultantes de factos tributários efectivamente verificados, apurados em ação inspectiva:
- PEF n.º 3069201501336355, relativo a liquidação de IRC do exercício de 2011, no valor total actual de 1.081,27€;
- PEF n.º 3069201301019163, relativo a liquidação de IRC do exercício de 2011, integrado na liquidação anterior por compensação, no valor total actual de 1.376,33€;
- PEF n.º 3069201701010255, relativo a liquidação de IRC do exercício de 2012, no valor total actual de 124.704,72 €;
- PEF n.º 3069201401271334, relativo a liquidação de IRC do exercício de 2012, integrado na liquidação anterior por compensação, no valor total actual de 2.467,12€;
3.–Dívidas posteriores à data do encerramento do estabelecimento resultantes de factos tributários verificados, constantes da declaração mod.22 de IRC apresentada pela AI:
- PEF n.º 3069202001021974, relativo a liquidação de IRC do exercício de 2017, no valor total actual de 53.267,29€.
Reitera, ainda, que apenas a liquidação em IRC do ano de 2012 (que está a ser cobrada coercivamente no processo executivo 3069201701010255), foi objecto de impugnação judicial, estando os autos a aguardar decisão - Processo nº 792/17.8BELRS que corre termos junto do Tribunal Tributário de Lisboa. Mais acrescenta que, em relação aos demais processos, não consta qualquer contencioso administrativo ou judicial.

Por requerimento de 09/05/2021 (ref.ª/Citius 29189862), a AI informou os autos que iria solicitar guias para proceder ao pagamento da dívida de IVA referente ao período de 2009 (no montante de 366,42€), não reconhecendo quaisquer outras dívidas, que defende não serem devidas,pelo que requer a sua “anulação.
Mais acrescenta que tais dívidas apenas beneficiariam o credor Estado, com prejuízo para os demais credores/trabalhadores.
Tal posição foi reiterada em 31/05/2021 (ref.ª/Citius 29409842), tendo então a AI indicado, face ao valor das invocadas dívidas, qual o montante que entende ser de cativar.

Notificada para concretizar todas as dívidas fiscais que imputa à massa insolvente e que justificam a cativação (despacho de 30/06/2021 – ref.ª/Citius 406603025), veio a AT responder por email de 07/07/2021 (ref.ª/Citius 29747264), nos seguintes moldes:
(…) 2.- Como melhor explicitado e concretizado na n/ comunicação 14.04.2021 as dívidas que se imputam à massa insolvente, que encontram a ser cobradas coercivamente nos processos executivos então identificados, mantém-se válidas na ordem jurídica e, como tal, são devidas, pelas razões que se passam a expor:
2.1.- Referem-se a período posterior à data da declaração de insolvência (28.07.2009) e anterior à data da do encerramento do estabelecimento nos termos do art.65.º, nº 3 do CIRE (15.10.2009);
2.2.- Sendo posteriores à data do encerramento do estabelecimento nos termos do art. 65.º, nº 3 do CIRE (15.10.2009), resultam de factos tributários efetivamente apurados em ação inspetiva, sendo que o encerramento da atividade do estabelecimento nos termos do art. 65.º, nº 3 do CIRE não pode ser interpretado no sentido de qualquer tipo de exclusão do âmbito de incidência de impostos, caso se apurem atos/factos com relevância em termos de incidência tributária;
2.3.- Sendo posteriores à data do encerramento da atividade do estabelecimento, nos termos do art. 65.º n.º 3do CIRE (15.10.2009), resultam de factos tributários efetivamente verificados, constantes da declaração mod. 22 de IRC apresentada pela Sra. Administradora da Insolvência.
3.- Nesta data anexa-se relação contendo a descrição dos processos de execução fiscal instaurados por dívidas fiscais que se configuram como dívidas da massa insolvente, bem como dos respetivos tributos e períodos de tributação.
4.- Nesta data o valor global em dívida é de185.096,01€.
5.- Contudo, é de referir que mensalmente acrescem juros de mora, que serão devidos até à data do pagamento integral. (…)”.

Anexou declaração fiscal com descrição das dívidas em cobrança coerciva.

Posteriormente, por email de 16/09/2021 (ref.ª/Citius 30207315), após ter sido interpelada para o efeito pelo tribunal a quo, veio a AT concretizar a sua pretensão, nos seguintes termos:
(…) as dívidas que reputamos como imputáveis à massa insolvente são as constantes dos processos de execução fiscal (PEF) a seguir descritos:
3069200901172085IVA Agosto/2009 (€ 369,98): facto tributário posterior à data da declaração da insolvência (2009/07/28), mas anterior à cessação de atividade (2009/10/15), pelo que competia à Sr.ª Administradora de Insolvência proceder ao cumprimento da respetiva obrigação declarativa ou, se reunidos os pressupostos, ter procedido à cessação de atividade em sede de IVA, nos termos previstos no art. 34.º do CIVA;
3069201501336355 IRC 2011 (€ 1.097,25): Resultado tributável apurado em sede de procedimento inspetivo n.º OI201503413, resultante do ato de alienação do prédio urbano, inscrito na matriz predial urbana da freguesia e concelho …, sob o artigo …, pelo preço de €124.000,00. Saliente-se que o montante apurado nesta liquidação encontra-se deduzido da liquidação anteriormente emitida e que se encontra em cobrança no âmbito do PEF 3069201301019163;
3069201301019163 IRC 2011 (€ 1.395,09): Liquidação inicial do IRC/2011 que veio a ser alvo de correção em sede do procedimento inspetivo n.º OI201503413, e dessa forma a nova liquidação encontra-se deduzida deste montante que já se encontrava em cobrança coerciva;
3069201701010255 IRC 2012 (€ 126.769,77): Resultado tributável apurado em sede de procedimento inspetivo n.º OI201602552, resultante do ato de alienação dos prédios urbanos:

Data escrituraFreguesiaArtigoValor de alienação
10-07-2012131710115034.000,00
27-07-20121317101147107.000,00
27-07-2012131710114834.050,00
27-07-2012131710114933.000,00
27-07-20121317103677400.400,00

Saliente-se que o montante aqui apurado se encontra deduzido da liquidação anteriormente emitida e que se encontra em cobrança no âmbito do PEF 3069201401271334;
3069201401271334 IRC 2012 (€ 2.503,31): Liquidação inicial do IRC/2012 que veio a ser alvo de correção em sede do procedimento inspetivo n.º OI201602552, e dessa forma a nova liquidação encontra-se deduzida deste montante que já se encontrava em cobrança coerciva;
3069202001021974 IRC 2017 (€ 54.209,37): Declaração de rendimentos apresentada pela Sr.ª Administradora de Insolvência, em 2018/06/27. 
Desde já importa salientar que, o valor indicado corresponde ao valor em dívida na presente data, sendo que nos termos preceituados no n.º 2 do art. 44.º da LGT «Os juros de mora aplicáveis às dívidas tributárias são devidos até à data do pagamento da dívida.»
Por último, cumpre referir que contra a liquidação de IRC/2012, em cobrança no PEF 3069201701010255, encontra-se a correr a Impugnação Judicial n.º 792/17.8BELRS, pelo que caso seja opção não proceder ao seu pagamento de imediato, deverá ficar cativa a correspondente verba para o seu pagamento. (…)”.

Por requerimento de 09/10/2021 (ref.ª/Citius 30478125), veio a AI requerer, uma vez mais, a anulação dos processos descritos no email da AT, alegando para tanto:
“(…) A situação diz respeito à venda do imóvel – art ….. Recebeu-se notificação da AT onde se menciona que se gerou uma diferença positiva (considerada mais valia) no montante de EUR 230 905.80. de que resultaria imposto a pagar.
O valor apurado para o exercício de 2017 teve como base o critério utilizado para anos anteriores em sede de procedimento inspetivo resultante do ato de alienação de imóveis.
Como exemplo, segue em anexo relatório resultante da Acção de Inspeção respeitante ao ano
de 2012 (Nº Ordem de Serviço OI201602552), processo este que foi impugnado.
Foi remetida a declaração modelo 22 face á exigência da Autoridade Tributária a apresentar as declarações (segue em anexo). Ano 2017.
Pelo email da autoridade tributária esta refere que processo 3069200910172085 que a administradora da insolvência deverá liquidar imposto tributário posterior á data da declaração da insolvência 27.07.2009 mas anterior à cessação de atividade 15.10.2009. Não foi recebida pela Autoridade Tributária a citação legal para a impugnação da mesma coima aplicada neste processo.
Ora da declaração apresentada pela Autoridade Tributária no processo acima indicado, se infere que após a declaração da cessação de atividade (2009/10/15) não são devidos, pelo que IRC após aquela data, deverá ser incluído. Pretendendo a Autoridade Tributária liquidar uma mais valia resultante de alienação de prédios urbanos, como dívida da massa insolvente, implicará retirar do acervo de bens da massa insolvente uma parcela do ativo cuja finalidade única é a satisfação dos credores reclamantes, beneficiando um único credor o Estado.”.

Em 13/10/2021 (ref.ª/Citius 409302362), a Mma. Juíza a quo proferiu o seguinte DESPACHO:
“Vi a informação de 16 de Setembro de 2021 da Autoridade Tributária e Aduaneira (fls. 1356).
Da informação a que se alude supra, como das demais juntas aos autos, resulta o manifesto desrespeito pela Autoridade Tributária e Aduaneira de norma legal expressa (artigo 65.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas) e de jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal Administrativo.
Na verdade, a Autoridade Tributária e Aduaneira considerou que a venda dos imóveis apreendidos no âmbito do processo de insolvência constitui facto tributável e, por esta via, apurou em procedimentos inspetivos lucro tributável em sede de IRC, não obstante ciente de que a insolvente encerrou a atividade em 15 de Outubro de 2009, como lhe foi comunicado nos termos e para os efeitos previstos no artigo 65.º, n.º 3, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Com efeito, estabelece o artigo 65.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que: (…).
Deste preceito resulta que até à deliberação do encerramento da atividade do estabelecimento mantêm-se as obrigações fiscais e a obrigação de elaborar e depositar contas anuais (desde que o devedor estivesse sujeito às mesmas antes da declaração de insolvência). Após a referida deliberação extinguem-se necessariamente todas as obrigações declarativas e fiscais.
Desde logo, o devedor deixa de estar obrigado a elaborar e depositar as contas anuais.
Quanto às obrigações fiscais, tem-se entendido que subsistem algumas obrigações fiscais. Todavia, atento o teor da lei, que refere que todas as obrigações fiscais e declarativas se extinguem, apenas em casos excecionais, devidamente fundamentadas, se deve admitir a subsistência dessas obrigações.
É o caso dos impostos sobre o património (IMI e IUC), uma vez que o imposto é devido pelo proprietário dos bens, não estando prevista qualquer isenção da massa insolvente.
Não havendo uma prossecução normal da atividade e sendo a transmissão de bens considerada venda judicial, deixa de ser exigível o cumprimento das obrigações fiscais especificamente emergentes da prossecução daquela atividade.
Com a declaração da cessação da atividade cessa por isso a obrigação da entrega da IES, bem como da entrega do Modelo 22 do IRC.
Apenas nos casos em que haja atos com relevância tributária se mantêm as obrigações fiscais.
Ora, conforme jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, a venda de bens em processo de insolvência que tenha prosseguido para a liquidação não constituiu facto tributário para efeitos de IRC.
Nesse sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 8.11.2017: (…)
Por outras palavras, “se na sociedade falida ocorrer atividade económica geradora de rendimentos sujeitos a IRC, tais rendimentos encontram-se sujeitos às regras de tributação previstas nos arts. 73º e segs. do CIRC; todavia, se não ocorrer atividade económica não pode haver lugar a tributação, por inexistência de facto tributário, não sendo aplicável à liquidação de bens da massa insolvente as regras do art.º 73º e segs. do Código do IRC(proferido no processo n.º 0876/15, disponível em www.dgsi.pt) – sublinhado nosso.
Aliás, a nova redação do artigo 268.º, n.º1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas introduzida pela Lei n.º 114/2017 de 29 de Dezembro (que expressamente considera isentos de IRC os rendimentos e ganhos apurados e as variações patrimoniais positivas não refletidas no resultado líquido, verificadas por efeito, além do mais, da venda de bens e direitos em processo de insolvência que prossiga para liquidação) mais não veio do que esclarecer aquele que já era o entendimento do Supremo Tribunal Administrativo.
Entendimento contrário pressupõe considerar como lucrativa uma atividade imposta por lei (a liquidação da massa insolvente decorre da lei e é aplicável desde que os credores não acordem na recuperação da empresa) e que se destina a permitir aos credores (muitas vezes trabalhadores que não receberam os seus vencimentos e outros créditos emergentes do seu trabalho) serem ressarcidas, ainda que parcialmente, dos seus créditos.
Mais, este entendimento implicará uma redução significativa do montante a ratear, o que conjugado com o facto da Autoridade Tributária e Aduaneira ser um credor privilegiado, implicará que, na maioria das vezes, serão os credores comuns que acabarão por nada receber.
Pelo exposto, notifique a Autoridade Tributária e Aduaneira, solicitando que, em face do supra exposto, esclareça com que fundamento legal pretende cobrar IRC pela venda dos bens apreendidos para a massa insolvente, no valor total de €185.974,79.
Dê conhecimento ao Diretor Geral da Autoridade Tributária e Aduaneira (por ofício confidencial assinado por mim).

A AT respondeu a tal despacho por email de 20/10/2021 (ref.ª/Citius 30587319), reiterando o já defendido anteriormente, e informando que as liquidações que se encontram a ser cobradas no âmbito dos processos de execução fiscal nºs 3069201501336355 – IRC 2011 (€ 1.097,25), 3069201301019163 – IRC 2011 (€1.395,09), 3069201701010255 – IRC 2012 (€126.769,77), 3069201401271334 – IRC 2012 (€2.503,31) e 3069202001021974 – IRC 2017 (€54.209,37) resultam de alienações de bens imóveis, ocorridas no âmbito do processo de insolvência, atos que consubstanciam factos tributários, constituindo-se assim a relação jurídica-tributária, nos termos do art. 36.º de LGT.
Estes factos tributários, por não possuírem qualquer previsão legal que permita a sua exclusão de tributação, nem colherem deferimento em qualquer isenção fiscal (saliente-se que a isenção atualmente prevista no art. 268.º do CIRE resulta da redação dada pela Lei n.º 114/2017, de 29/12, à qual o legislador optou por não atribuir qualquer efeito retroativo ou interpretativo), deram origem às competentes liquidações de IRC, nos termos consignados no art. 90.ºdo Código de IRC. Em face do não pagamento das referidas liquidações de IRC, foram extraídas as competentes certidões de dívida, as quais vieram a dar origem aos Processos de Execução Fiscal supra melhor identificados”.

Por fim, a Mma. Juíza a quo, no dia 26/10/2021 (ref.ª/Citius 409734631), proferiu o seguinte DESPACHO:
(…) Reitera-se a posição já assumida no despacho de 13 de Outubro de 2021, no sentido de que a quantia (€185.974,79) que a Autoridade Tributária pretende cobrar a título de IRC em virtude de vendas realizadas no âmbito dos presentes autos não é devida.
Notifique.  

Na sequência do despacho proferido em 14/12/2021 (ref.ª/Citius 411294097), e para acautelar os montantes em litígio, foi elaborado mapa de rateio com cativação de 250.000€.

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Inconformado com o despacho exarado em 26/10/2021 (proferido na sequência do anterior despacho de 13/10/2021, que com ele deve ser integrado), o Ministério Público, em representação do Estado – Autoridade Tributária, dele interpôs RECURSO de apelação, tendo formulado as respectivas conclusões, que aqui se transcrevem:
1.- No despacho judicial recorrido, a Mmª Juiz a quo considerou que a quantia (€185.974,79) que a Autoridade Tributária pretende cobrar a título de IRC, em virtude de vendas realizadas no âmbito dos presentes autos, não é devida.
2.- Estes factos tributários, referentes aos exercícios de 2011, 2012 e 2017, constituem dívidas da massa insolvente, nos termos do disposto no art.51º, n1, al. c) do CIRE.
3.- Assim sendo, as dívidas da massa insolvente devem ser pagas na data de vencimento e antes de o A.I. proceder ao pagamento dos créditos sobre a insolvência, tal como estipulado no art.172º, nºs 1 e 3 do CIRE.
4.- Acresce que, o encerramento do estabelecimento foi determinado por despacho judicial de 04.02.2021, nos termos do art.65º, nº3 do CIRE, comunicado à AT/Serviço de Finanças Lisboa 9 na mesma data, mas com efeitos retroativos a 15.10.2009, data em que tal normativo tão pouco existia na ordem jurídica.
5.- Saliente-se que a isenção actualmente prevista no art. 268.º do CIRE resulta da redação dada pela Lei n.º 114/2017, de 29/12, à qual o legislador optou por não atribuir qualquer efeito retroativo ou interpretativo.
6.- O despacho judicial ao decidir do modo acima descrito, violou, em nosso entender, o disposto nos artigos 51º, nº1, al. c); 172º, nos 1 e 3; 65º, nº3 e 268º, todos do CIRE.
7.- Ao decidir como decidiu a Mmª Juiz violou, em nosso entender, as normas de repartição da competência entre os tribunais judiciais e os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal plasmadas na CRP, na Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) - Lei 62/2013 de 26.8 e no ETAF - artigo 211º e 212º da CRP, 29º nº1 a e b, 40º nº 1 da LOSJ e 1º e 4º do ETAF.
8.- O único meio de obter a anulação dos tributos aqui em crise teria consistido na interposição por parte da senhora AI da competente impugnação judicial do ato de liquidação do imposto, dirigida ao tribunal administrativo e fiscal competente nos termos dos artigos 99º e seguintes do CPPT (Código de Procedimento e Processo Tributário), obtendo aí, caso lhe viesse a ser reconhecida razão, a anulação das liquidações dos tributos.
9.- Não o tendo feito dentro do prazo de que disponha, tais atos de liquidação tornaram-se definitivos e o juiz do comércio não tem competência material para os anular, não podendo, subsequentemente, negar-lhes pagamento neste processo.
10.- Violou, assim, igualmente, a Mmª Juiz, com o seu despacho, salvo melhor opinião e com o devido respeito, as supra referidas normas de competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.”

Conclui peticionando que o despacho recorrido seja revogado e substituído por outro que admita o pagamento da dívida referida como dívida da massa insolvente.

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Pela Massa Insolvente foram apresentadas contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.

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O recurso foi admitido pelo tribunal a quo e subiu como de apelação, imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.

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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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II–DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões no mesmo formuladas, salvo no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e quando estejam em causa questões que forem de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido apreciadas com trânsito em julgado - artigos 5.º, n.º 3, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC.
Contudo, não está este tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, desde que prejudicados pela solução dada ao litígio.

Assim, as questões que importa decidir são:
1.-Se o tribunal recorrido violou as normas de repartição da competência entre os tribunais judiciais e os tribunais com jurisdição administrativa e fiscal; e
2.-Se as vendas de imóveis integrantes da massa insolvente (levada a cabo pela AI no âmbito do processo de insolvência) deverão ou não ser tributadas em sede de IRC.

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III–FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos e ocorrências processuais relevantes para a decisão do presente recurso são os que resultam do relatório supra enunciado, o qual, por brevidade, se dá aqui por reproduzido.

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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A sociedade TL foi declarada insolvente por sentença proferida em 28/07/2009, tendo, nessa sequência, sido decretada a apreensão de todos os seus bens para imediata entrega à AI, bens esses que passaram a integrar a chamada massa insolvente (ficando a insolvente imediatamente privada, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente)  – cfr. artigos 1.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, al. g), e 81.º, n.º 1, todos do CIRE.

A massa insolvente, nos termos previstos pelo artigo 46.º do CIRE, destina-se “à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas”.
Entre as dívidas da massa insolvente encontram-se as “emergentes dos actos de administração, liquidação e partilha da massa insolvente”, sendo que sempre tais dívidas (incluindo as que previsivelmente se constituirão até ao encerramento do processo) terão de ser pagas com preferência sobre as demais (só depois de liquidadas as dívidas da massa insolvente, se dará pagamento às dívidas sobre a insolvência) – artigos 51.º, n.º 1, al. c), e 172.º, ambos do CIRE. O pagamento deverá ter lugar nas datas dos respectivos vencimentos, qualquer que seja o estado do processo.
Nos autos discute-se se é ou não devido imposto por mais-valias (IRC) gerado pela alienação de bens integrantes da massa insolvente (alienação essa efectuada pelo AI no âmbito do processo de insolvência).
O MP defende resposta afirmativa, invocando estarmos perante factos tributários que constituem dívidas da massa insolvente.
Mais acrescenta que, tendo o encerramento do estabelecimento sido determinado, nos termos previstos pelo artigo 65.º, n.º 3 do CIRE, por despacho judicial proferido em 04/02/2021, mas com efeitos retroactivos a 15/10/2009, não será aplicável a isenção actualmente prevista no artigo 268.º do mesmo código.
Já a AI entende que, com o encerramento da actividade, não poderá a massa insolvente ser sujeito passivo de IRC, uma vez que a mesma nenhuma actividade comercial exerce. A venda do activo apreendido para a massa insolvente visa apenas o pagamento dos credores (e não a obtenção de qualquer lucro).
Como já referido, foi este o entendimento do tribunal a quo, o qual decidiu que “a quantia (…) que a Autoridade Tributária pretende cobrar a título de IRC em virtude de vendas realizadas no âmbito dos presentes autos não é devida”.

Desde já se dirá que a declaração de insolvência não determina a imediata extinção da sociedade (essa extinção só tem lugar com o registo do encerramento do processo após o rateio final – artigo 234.º, n.º 3 do CIRE) pelo que, até ao encerramento da liquidação do seu activo, a mesma mantém-se como sujeito passivo de obrigações tributárias.
Nessa medida, poderão, ocorrer operações às quais a lei atribua relevância tributária.[i]

Prescreve o artigo 65.º do CIRE, transcrito no despacho recorrido, que:
1- O disposto nos artigos anteriores não prejudica o dever de elaborar e depositar contas anuais, nos termos que forem legalmente obrigatórios para o devedor.
2- As obrigações declarativas a que se refere o número anterior subsistem na esfera do insolvente e dos seus legais representantes, os quais se mantêm obrigados ao cumprimento das obrigações fiscais, respondendo pelo seu incumprimento.
3-Com a deliberação de encerramento da atividade do estabelecimento, nos termos do n.º 2 do artigo 156.º, extinguem-se necessariamente todas as obrigações declarativas e fiscais, o que deve ser comunicado oficiosamente pelo tribunal à administração fiscal para efeitos de cessação da atividade.
4-Na falta da deliberação referida no número anterior, as obrigações fiscais passam a ser da responsabilidade daquele a quem a administração do insolvente tenha sido cometida e enquanto esta durar.
5-As eventuais responsabilidades fiscais que possam constituir-se entre a declaração de insolvência e a deliberação referida no n.º 3 são da responsabilidade daquele a quem tiver sido conferida a administração da insolvência, nos termos dos números anteriores”.

Ou seja, só após a deliberação do encerramento da atividade do estabelecimento se extinguem todas as obrigações declarativas e fiscais.[ii]

Já o CIRC prevê que a cessação da actividade ocorre na data do encerramento da liquidação ou na data em que deixarem de se verificar as condições de sujeição a imposto – cfr. art. 8.º, n.º 5, al. a), deste código. Assim, até esse momento, a sociedade comercial insolvente manter-se-á como sujeito passivo de direitos e obrigações tributárias, vinculada ao cumprimento das suas obrigações fiscais sempre que se verifique a ocorrência de qualquer facto com relevância jurídica tributária.

Refira-se, contudo, que a actual redacção do artigo 65.º apenas foi introduzida através da Lei n.º 16/2012, de 20/04. Anteriormente, o preceito correspondia ao texto do seu actual n.º 1, pelo que não estava expressamente prevista a necessidade de ser o encerramento da actividade do estabelecimento comunicado à administração fiscal.

Consultados os autos na plataforma Citius, constata-se que, na acta da assembleia de credores de apreciação do relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE, realizada em 15/10/2009 (cfr. artigo 156.º do CIRE), nada se consignou quanto ao encerramento da actividade do estabelecimento (ref.ª/Citius 1437512).

Igualmente nenhuma comunicação foi então efectuada à administração fiscal (já que inexiste uma deliberação de encerramento do estabelecimento).

Contudo, nessa assembleia foi deliberado prosseguir os autos com a liquidação do activo (artigo 158.º do CIRE) e, do relatório da AI, constava já ter sido efectivamente encerrado o estabelecimento (vide requerimento de 07/10/2009 – ref.ª/Citius 462247), o que não foi impugnado.[iii]

Compreende-se, pois, que o tribunal a quo, pese embora apenas tenha dado cumprimento à comunicação a que alude o artigo 65.º, n.º 3, por despacho de 04/02/2021, tenha determinado que, pelo menos, desde 15/10/2009, se considerava encerrada a actividade do estabelecimento da insolvente.
Ao contrário do invocado pelo apelante nas suas conclusões, em tal despacho não se fixaram quaisquer efeitos retroactivos, antes se tendo atendido à data na qual o estabelecimento se encontrava encerrado de facto.
Contudo, aquando dessa comunicação, a AT já havia procedido às liquidações que se encontram subjacentes às dívidas cujo pagamento pretende obter através do produto da massa insolvente.
 
Mas serão as vendas efectuadas em sede de liquidação, no âmbito de um processo de insolvência, facto tributário para efeitos de IRC?[iv]
O tribunal a quo responde negativamente, sustentando-se em alguma jurisprudência do STA - invocando os acórdãos proferidos em 08/11/2017 (Proc. n.º 0876/15) e em 03/11/2016 (Proc. n.º 0448/14) -, a qual decidiu que, nestes casos, não ocorrendo actividade económica, não estamos perante uma venda de bens do activo imobilizado da empresa insolvente, mas antes perante uma venda de bens da massa insolvente com vista à satisfação dos credores, em concurso universal, pelo que não poderá haver tributação.[v]

Diga-se que, mais recentemente, em acórdão proferido em 06/06/2021 (Proc. n.º 1162/16.0BESNT), o STA sumariou: “I – As sociedades em liquidação estão sujeitas ao regime previsto no IRC. II – Estão sujeitas a IRC quando exerçam qualquer actividade económica. III – Se não ocorrer qualquer actividade económica não poderá haver lugar a tributação, por inexistência de facto tributário, não sendo aplicável à liquidação de bens da massa insolvente as regras do art.º 79º e segs. do Código do IRC.” – a este artigo 79.º, correspondia o anterior artigo 73.º do CIRE.[vi]

Em reforço da sua posição, a Mma. Juíza a quo invoca, ainda, a nova redacção do n.º 1 do artigo 268.º do CIRE (redacção conferida pela Lei n.º 114/2017, de 29/12), que refere expressamente estarem isentos de IRC os rendimentos e ganhos apurados e as variações patrimoniais positivas não reflectidas no resultado líquido, verificadas por efeito da dação em cumprimento de bens e direitos do devedor, da cessão de bens e direitos dos credores e da venda de bens e direitos, em processo de insolvência que prossiga para liquidação.

Por fim, invoca que, a não ser assim, estar-se-ia a considerar como lucrativa uma actividade imposta por lei (a liquidação da massa insolvente) e a contribuir para uma redução significativa do montante a ratear, podendo levar a que os credores comuns nada recebessem (já que a que a AT é um credor privilegiado).   

Sucede que, previamente ao conhecimento desta questão e dos argumentos que sustentaram a decisão recorrida, impõe-se aferir se esta última violou as normas de repartição da competência entre os tribunais judiciais e os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal, como defendido pelo recorrente nas suas alegações.

De acordo com o consagrado na lei fundamental, os tribunais judiciais exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas (podendo, na primeira instância, ter competência específica e competência especializada para o julgamento de determinadas matérias), enquanto os tribunais administrativos e fiscais têm competência para julgar as acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais – artigos 211.º, n.º 1 e 2, e 212.º, n.º 3 da CRP.

A questão suscitada pelo MP, aqui apelante em representação da AT, leva-nos a indagar se a decisão recorrida terá ou não conhecido de matéria da competência exclusiva de outra jurisdição.

Mais concretamente, importa apurar se o tribunal recorrido podia decidir que as vendas efectuadas pela AI, em sede de liquidação da massa insolvente, não podem ser tributadas em sede de IRC.

E, é nosso entendimento, que não o poderia ter feito.

Senão vejamos.

Com a actual redacção do n.º 1 do artigo 268.º do CIRE, dúvidas inexistem que o legislador quis expressamente isentar de imposto de IRC os rendimentos e ganhos apurados e as variações patrimoniais positivas não reflectidas no resultado líquido, verificadas por efeito da venda de bens em processo de insolvência que prossiga para liquidação.[vii]

Acontece que tal redacção apenas é aplicável às vendas que tenham ocorrido após o dia 01/01/2018 (data da entrada em vigor da Lei n.º 114/2017, como decorre do seu artigo 333.º), o que não é o caso dos autos (as vendas são anteriores a esta data).

Até à publicação da Lei n.º 114/2017, o artigo 268.º, n.º 1 não continha qualquer referência à venda de bens e direitos, em processo de insolvência que prossiga para liquidação, apenas se isentando do referido imposto a dação em cumprimento de bens do devedor e a cessão de bens aos credores.

Por seu turno, também ao nível da doutrina e da jurisprudência não havia entendimento unânime quanto à tributação dos rendimentos obtidos com a liquidação dos activos insolventes.[viii]

O próprio STA, em acórdão de 06/06/2018 (Proc. n.º 01136/17) veio dizer que “na redação anterior à que resulta da Lei do OE para 2018, o n.º 1 do artigo 268.º do CIRE apenas previa a isenção das mais-valias resultantes da dação em cumprimento ou cessão de bens do insolvente aos credores no âmbito do processo de insolvência, e não também no caso da venda, nada fazendo crer (designadamente para efeitos da aplicação extensiva da norma a esta última situação) que o legislador tenha dito menos que pretendia”.

Considerou, pois, este acórdão, não estarem estão abrangidas pela isenção as mais-valias resultantes da venda de bens do insolvente, “ainda que o seu produto seja aplicado no pagamento aos credores”.
No mesmo sentido, veja-se o acórdão do STA de 10/05/2017 (Proc. nº 0669/15), no qual se pode ler: “Antes do mais, cumpre ter presente que, em matéria de isenções, há que observar o princípio constitucional da legalidade tributária, na sua vertente de tipicidade, que veda a integração analógica de normas de isenção de imposto, embora consinta na sua interpretação extensiva, como, aliás, reconhece o legislador ordinário (cfr. art. 10.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais). A interpretação extensiva pressupõe que, por via interpretativa, se conclua que o legislador minus dixit quam voluit, que o legislador disse menos do que aquilo que se pretendia dizer (…) ou seja, que quando isentou de IRS as mais-valias resultantes da dação em cumprimento de bens do devedor aos credores ou da cessão de bens aos credores pretendia igualmente abranger no âmbito da isenção as mais-valias realizadas com a venda a terceiros desse bens, pelo menos na parte em que o produto dessa venda fosse utilizado no pagamento aos credores.
Mas, salvo o devido respeito, qualquer que seja o juízo sobre a bondade da opção legislativa, não pode é sustentar-se que o legislador pretendia também abranger na isenção prevista no n.º 1 do art. 268.º do CIRE as mais-valias resultantes da venda de bens do devedor. Na verdade, a ser assim, por certo o teria dito expressamente (cfr. art. 9.º, n.º 3, do CC), tanto mais que as situações de venda serão mais vulgares que as de dação em pagamento ou cessão de bens aos credores. Por outro lado, nada permite concluir, designadamente a ratio legis, que o legislador quisesse aplicar às situações em que há venda de bens (transferência de bens do insolvente para terceiros) tratamento idêntico àquele em que há uma transferência directa de bens da esfera patrimonial do insolvente para a dos credores, sendo legítimo concluir que pretendeu estimular este modo de extinção das dívidas do insolvente.”

Ora, não existindo, à data dos factos, previsão legal que permitisse a exclusão de tributação ou a isenção fiscal com respeito às vendas em liquidação de bens da massa insolvente, não podia o tribunal recorrido, decidir pela existência da mesma.[ix]

Sendo a tributação aqui em causa questão controvertida, apenas em sede de impugnação judicial do acto de liquidação do imposto, dirigida ao competente tribunal administrativo e fiscal, e desde que verificados os exigidos fundamentos para tanto, será possível vir a concluir no sentido de não ser essa tributação devida – cfr. artigos 99.º e ss. do CPPT (Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Dec.-Lei n.º 433/99, de 26/10).

Aliás, o próprio CIRE, no n.º 2 do seu artigo 89.º prescreve que “As acções, incluindo as executivas, relativas às dívidas da massa insolvente correm por apenso ao processo de insolvência, com excepção das execuções por dívidas de natureza tributária”. Esta excepção prende-se, precisamente, com o facto de as execuções por dívidas de natureza tributária terem de ser instauradas no tribunal administrativo e fiscal.

Na presente situação, foram instauradas execuções fiscais contra a massa insolvente e, pelo menos, com relação aos montantes reclamados por conta do IRC de 2012, corre termos, pelo Tribunal Tributário de Lisboa, um processo de impugnação judicial, no qual não terá ainda sido proferida decisão (nada consta dos autos nesse sentido).

Refira-se, contudo, que não foram tais execuções avocadas para apensação ao processo de insolvência (avocação essa a que alude o artigo 180.º, n.º 2 do CPPT), sendo que igualmente não foi apresentada qualquer reclamação através de acção intentada contra a massa insolvente, nos termos consignados pelo n.º 2 do artigo 89.º do CIRE. Com efeito, a AT, por si ou através do MP, apenas foi transmitindo aos autos qual a sua posição (serem devidas as quantias em causa, as quais deverão ser pagas através da massa insolvente), sem que, no entanto, tenha sido formalizada qualquer reclamação dos valores em causa.[x]

Os tribunais tributários (a jurisdição administrativa e fiscal) são, na verdade, os únicos competentes em razão da matéria para conhecer e decidir as questões de direito tributário.
Nessa medida, será no âmbito da jurisdição administrativa e fiscal que se terá de discutir e decidir se, na presente situação, a venda dos bens da massa insolvente integra ou não fundamento para a tributação em imposto sobre rendimento, isto é, se os montantes invocados pela AT (a título de IRC por vendas realizadas na liquidação da massa insolvente em data anterior a 01/01/2018) são ou não devidos, não podendo um tribunal integrado na jurisdição comum arrogar-se de competência para decidir quanto à legalidade da tributação ou para atribuir eventuais benefícios/isenções tributárias (o tribunal judicial não tem competência em matéria de natureza fiscal).[xi]

Porém, se, nesta parte, procede o recurso, já não poderá ser viabilizada a pretensão do MP (em representação da AT) no sentido de o despacho recorrido dever ser substituído por outro que admita (entenda-se, ordene) o pagamento das quantias em causa como dívida da massa insolvente.

Os argumentos para que assim não se proceda, são exactamente os mesmos que acabamos de enunciar, ao que acresce o de não poder, desde já, ser ordenado qualquer pagamento em virtude de nenhuma reclamação ter sido deduzida pela AT (através da instauração da competente acção contra a massa insolvente) e a AI não reconhecer as dívidas invocadas pela mesma.[xii]

Ora, sendo controvertida a existência da dívida, nunca se poderá afirmar que se trata de uma dívida da massa insolvente.

Seja como for, sempre será relevante o desfecho do processo de impugnação judicial que se encontra em curso, para além de que se procedeu já à cativação do montante necessário para salvaguarda do pagamento em causa (caso o mesmo venha a ser devido).
           
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IV–DECISÃO
Perante o exposto, acordam os Juízes da Secção do Comércio deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando-se o despacho recorrido nos moldes supra expostos.

Custas pela recorrente e pela recorrida, na proporção de metade para cada uma.



Lisboa, 25 de Janeiro de 2022- (acórdão assinado digitalmente)



Renata Linhares de Castro(relatora)
Nuno Magalhães Teixeira(1º adjunto)
Rosário Gonçalves(2ª adjunta)



(por opção da relatora, o presente acórdão não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)


[i]Como defende SARA VEIGA DIAS, in O Crédito Tributário e as Obrigações Fiscais no Processo de Insolvência, Escola de Direito da Universidade do Minho, Dissertação de Mestrado, Abril de 2012, pág. 113, “A dissolução da sociedade determina o momento a partir do qual esta deixa de prosseguir o seu objecto, esgota a sua função, mas não implica a sua extinção, sendo necessário proceder à cobrança de eventuais créditos, pagar as dívidas existentes e eventualmente partilhar os bens que sobejaram. Assim, e enquanto não se extinguir definitivamente, deverá a sociedade manter-se sujeita ao cumprimento das obrigações fiscais. Aliás, tal parece resultar directamente do próprio CIRE já que, além de determinar, no artigo 65º, a manutenção da obrigação de «elaborar e depositar contas anuais, prevê nos seus artigos, 267º a 270º, a aplicação de benefícios fiscais em caso de liquidação da massa insolvente. Ora, nunca se estenderia a aplicação destes benefícios às situações em que se opta pela liquidação se não se entendesse que as sociedades insolventes em fase de liquidação sujeitas a tributação.
[ii]Contudo, nem todas as obrigações fiscais se extinguem, como sucede, com os impostos sobre o património – IMI e IUC -, enquanto não for concluída a liquidação do activo da massa insolvente.
[iii]Em tal relatório escreve a AI que “decidiu encerrar os estabelecimentos, em 2 de Setembro de 2009, fazendo cessar os contratos de trabalho (…)”.
[iv]Sendo que, nos termos previstos pelo artigo 3.º, n.º 1 do CIRC, o que se pretende tributar através deste imposto é o lucro das sociedades comerciais.
[v]Embora a mesma jurisprudência reconheça que nem sempre assim será, como sucede quando ocorre actividade económica geradora de rendimentos sujeitos a IRC (negócios jurídicos que, por serem de execução duradoura, tenham continuado a realizar-se para além da declaração de insolvência) ou quando, após o pagamento das dívidas da massa insolvente e dos créditos reconhecidos, tenha sobejado produto da venda dos bens da massa insolvente.
Veja-se, aliás, o recente acórdão do STA  de 13/05/2021 (Proc. n.º 107/15.0BESNT), no qual, defendendo-se que a venda do activo apreendido para a massa insolvente com vista ao pagamento dos credores “não constitui, por regra, atividade económica da sociedade geradora de lucro e sujeita a tributação em IRC”, esclareceu no seu texto que “a alienação dos imóveis não resulta da atividade da Impugnante, não visou a obtenção do lucro, não resultou de negócios jurídicos que se tenham continuado a realizar seja por serem de execução duradoura que se protelou para além da declaração de falência. Nem é resultado da confirmação de negócios do falido posteriores à declaração de falência, ou, até que sobrou do produto da venda que integravam a massa insolvente depois de pagas as dívidas da massa e os créditos reconhecidos.”. Ou seja, verificando-se alguma dessas hipóteses, haverá já sujeição a tributação.           
[vi]Este aresto, como todos os demais que se venham a invocar, encontram-se disponíveis in www.dgsi.pt.                   
[vii]A actual redacção do artigo 268.º, n.º 1 do CIRE dispõe: “Os rendimentos e ganhos apurados e as variações patrimoniais positivas não refletidas no resultado líquido, verificadas por efeito da dação em cumprimento de bens e direitos do devedor, da cessão de bens e direitos dos credores e da venda de bens e direitos, em processo de insolvência que prossiga para liquidação, estão isentos de impostos sobre o rendimento das pessoas singulares e coletivas, não concorrendo para a determinação da matéria coletável do devedor.”
[viii]Defendendo não haver motivo para dar à liquidação em sede de insolvência um tratamento distinto das demais liquidações de patrimónios, ficando igualmente sujeita a tributação de IRC, veja-se o acórdão do STA de 24/02/2011 (Proc. n.º 01145/09).
Defendendo que, nos casos em que não ocorre actividade económica, não poderá haver lugar a tributação, por inexistência de facto tributário, veja-se, para além dos já citados, o acórdão do STA de 08/11/2017 (Proc. n.º 0876/15).
Questionando igualmente se deverá ocorrer tal tributação, veja-se, do mesmo tribunal, o acórdão 15/03/2017 (Proc. n.º 0869/13).
[ix]Como escreve ALBERTO XAVIER, in Manual de Direito Fiscal, pág. 283, a isenção dá-se quando, não obstante, se ter verificado o facto tributário em todos os seus elementos, a eficácia constitutiva deste é paralisada originariamente pela ocorrência de um outro facto a que a Lei atribui essa eficácia impeditiva. Ora, antes de 01/01/2018, inexistia preceito legal que assim o impusesse.
[x]Como sumariado no acórdão da Relação do Porto de 18/06/2009 (Proc. n.º 269/07.0TYVNG-O.P1, relatora Maria Catarina), “Os créditos sobre a massa insolvente – se não forem pagos, na data do vencimento, em conformidade com o disposto no art. 172º, n.º 3, do CIRE – terão que ser reclamados em acção própria (declarativa ou executiva) que corre por apenso ao processo de insolvência, nos termos do art. 89º, n.º 2, do mesmo diploma”.
[xi]Segundo o artigo 2.º do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), aprovado pelo Dec.-Lei n.º 215/89 de 01/07, os benefícios fiscais são considerados medidas de carácter excepcional com o fim de tutelar interesses públicos extrafiscais que sejam superiores aos da própria tributação que impedem.
[xii]Como se defendeu no acórdão da Relação do Porto de 11/04/2018 (Proc. n.º 521/14.8T8OAZ.P1, relator Aristides Rodrigues de Almeida), embora para uma situação distinta da presente, o artigo 89.º, n.º 2 do CIRE “excepciona precisamente as execuções por dívidas de natureza tributária., as quais têm de ser instauradas no tribunal competente que é o Tribunal Administrativo e Fiscal. Daqui resulta, portanto, que não reconhecendo o administrador de insolvência o crédito e pretendendo discutir a obrigação de pagamento do mesmo pela massa, o administrador não deve atender a esse crédito nos rateios e nos pagamentos subsequentes e o credor terá de instaurar a competente acção para obter a condenação da massa no pagamento. Para o efeito, sendo o credor o Estado e a dívida de natureza tributária, a acção terá de correr termos no Tribunal Administrativo e Fiscal, sendo que a legitimidade para a instaurar pertence naturalmente ao credor Estado”.