Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4758/21.5T8SNT.L1-6
Relator: ANA DE AZEREDO COELHO
Descritores: CONDUÇÃO SOB A INFLUÊNCIA DO ÁLCOOL
DIREITO DE REGRESSO
NEXO DE CAUSALIDADE
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I) Se a primeira instância omite decisão quanto a factos submetidos a julgamento e essenciais à decisão do recurso, a decisão da matéria de facto é deficiente.
II) Contendo o processo todos os elementos que permitem decidir quanto a tais factos, deve a Relação corrigir essa deficiência, não se verificando os pressupostos de anulação da decisão.
III) No regime do DL 292/2007, a seguradora que exerce direito de regresso contra o condutor que conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida apenas tem de provar que o condutor deu culposamente causa ao acidente e conduzia com essa taxa de alcoolemia.
(pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM na 6ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I) RELATÓRIO[1]
LUSITÂNIA - COMPANHIA DE SEGUROS S.A., veio intentar a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra J….pedindo que a presente acção seja considerada procedente, por provada e, assim, o Réu condenado a pagar à A. a quantia de € 7.808,53 (sete mil, oitocentos e oito euros e cinquenta e três cêntimos) acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, desde a citação até integral e efetivo pagamento e ainda nas custas do processo.
Alegou para tal, em resumida síntese, ter contratado contrato de seguro do ramo automóvel com TAXIS ... UNIPESSOAL LDA., relativo ao veículo ligeiro de passageiros de matrícula YY-YY-YY, destinado a utilização profissional de transporte de passageiros (táxi), o qual, conduzido pelo Réu, nas circunstâncias de tempo e lugar que descreve, embateu em dois outros veículos que se encontravam parados em virtude de o Réu não ter conseguido controlar a marcha do veículo ZZ-ZZ-ZZ, encontrando-se no momento com uma taxa de álcool no sangue de 1,17 g/l.
 Do acidente resultaram danos cuja indemnização a Autora suportou em montante que agora pede que o Réu lhe pague com fundamento em direito de regresso.
O Réu contestou imputando o acidente ao proprietário de um dos outros dois veículos por ter iniciado inopinadamente a marcha para sair do local de estacionamento em que se encontrava, quando já era impossível ao Réu evitar o embate.
Não foram enunciados os temas da prova, limitando-se o tribunal à prolação de despacho saneador, à pronúncia sobre os meios de prova e à marcação da audiência final.
Cumprido o demais legal, houve audiência de julgamento após a qual foi proferida sentença que julgou integralmente procedente a acção.
O Réu interpôs o presente recurso dessa sentença e, alegando, concluiu como segue as suas alegações:
1- O presente recurso tem como objecto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos.
2- A douta sentença deu, erradamente, entre outros, como provado os seguintes pontos 8 e 9 da matéria de facto, que devem ser considerados como não provados.
3- Da análise da prova, o tribunal deu prevalência à prova testemunhal em detrimento da prova documental, junta pela A., designadamente às fotos constantes do Relatório de Averiguação.
4- O tribunal a quo desconsiderou as declarações do recorrente e valorizou o depoimento da testemunha (……)
10- Com efeito, das referidas fotografias resulta que o recorrente não perdeu o controle do veículo seguro, nem teve uma falsa percepção da distância sobre os veículos terceiros intervenientes no acidente de viação aqui em causa.
11- Do ponto de embate entre as duas viaturas, tal como decorre da análise das aludidas fotos, extrai-se que a viatura conduzida pelo recorrente não embateu no VT 1 – viatura de matrícula XX-XX-XX, sendo certo que ocorreu precisamente o contrário.
12- O condutor da viatura da marca Peugeot com matrícula XX-XX-XX tinha iniciado a marcha para “ sair” do seu lugar de estacionamento quando embateu na viatura com a matrícula ZZ-ZZ-ZZ conduzida pelo recorrente, conforme melhor se vê da fotografia constante da página F5 ( observação do ponto de embate entre o veículo seguro - conduzido pelo recorrente- e o veículo terceiro 1 do relatório de Averiguações e peritagens da MCBAP junto como doc. 2 pela A.
13- Dessa fotografia resulta que a viatura com a matrícula ZZ-ZZ-ZZ conduzida pelo recorrente estava dentro da sua faixa de rodagem em que circulava no sentido Norte/Sul da Rua do ... perto do número da polícia 23.
14- É, pois, manifesto que o recorrente não invadiu a zona de estacionamento viatura da marca Peugeot com matrícula XX-XX-XX.
15- Os vestígios do acidente não são aqui determinantes, porque a viatura da marca Peugeot com matrícula XX-XX-XX embateu na viatura do lado, tendo por isso sido projectada para dentro dos limites do seu lugar de estacionamento, após embater na viatura do recorrente.
16- O recorrente movimentou a viatura para berma da estrada para facilitar a circulação rodoviária para a posição, tal como se vê da foto da página F5 (observação do ponto de embate entre o veículo seguro - conduzido pelo recorrente- e o veículo terceiro 1 do relatório de Averiguações e peritagens da MCBAP junto como doc. 2 pela A.
17- No Auto de ocorrência nº 633/BRS/2020 junto pela A., consta a descrição do acidente efectuada por escrito do recorrente, na qual, desde a primeira hora, explicou, com verdade, a dinâmica do mesmo que é consentânea com a fotografia acima referida.
18- A viatura da marca Peugeot com matrícula XX-XX-XX, ao embater na viatura com a matrícula ZZ-ZZ-ZZ conduzida pelo recorrente, foi projectada contra a viatura de matrícula KK-KK-KK que estava estacionada ao seu lado, como se vê das fotografias constantes da página F6 do relatório de Averiguações e peritagens da MCBAP junto como doc. 2 pela A..
19- O croquis foi elaborado pelas informações dadas pelos condutores do VT1 e VT2, porque no aludido Auto de ocorrência, a participante / agente da PSP afirmou também que “ Como não presenciei não me posso pronunciar sobre o mesmo”, pelo que não é uma base segura para servir de prova.
20- Os danos das viaturas e a projecção contra a viatura neste caso não são essenciais determinar a força do embate e velocidade em que conduzia o recorrente.
21- O recorrente circulava a uma velocidade inferior a 50 Km/h, sendo certo que a testemunha  nunca referiu que ele conduzia com excesso de velocidade.
22- O ponto de embate verificou-se no lado lateral direito da viatura do recorrente, atingindo inclusivamente a porta desse lado, como melhor se vê da foto da pág. F11 do Relatório de Averiguações.
23- Portanto, a viatura da marca Peugeot com matrícula XX-XX-XX embateu no lado da porta direita da viatura do recorrente, quando esta já atravessava pela sua frente, sendo certo que não era expectável a saída inusitada da viatura da marca Peugeot com matrícula XX-XX-XX do lugar de estacionamento e nenhum condutor médio poderia evitar o acidente.
24- O recorrente não violou as regras estradais e de prudência, tendo respeitado a distância de segurança relativamente aos veículos VT1 e VT2.
25- O recorrente teve toda a precaução na sua marcha e não invadiu a zona de estacionamento viatura da marca Peugeot com matrícula XX-XX-XX.
26- Existe, nestes autos, uma percepção errada de que o recorrente é culpado do acidente.
27- Nem todos os condutores com álcool no sangue semelhantes àquele são sempre culpados dos acidentes!
28- No dia do acidente, o recorrente estava de “ folga” do seu serviço de taxista.
29- Relativamente aos “estudos”, o recorrente não corroborou nenhum deles, apenas sustentou que tinha almoçado e bebido álcool e estava em condições de conduzir, sendo certo que desconhece se 1,17 g/l é considerada uma quantidade mais reduzida, tal como eventualmente é defendido por aqueles.
30- O recorrente já pagou todas as multas e penalizações, por conduzir sobre o efeito do álcool, na data do acidente.
31- O recorrente não teve culpa no acidente e álcool não influenciou a sua condução, não lhe diminuindo as capacidades de atenção, de reacção e de visão.
32- O recorrente é um condutor experiente e taxista, possuindo carta de condução desde 1985.
33- O recorrente não estava debilitado no momento do acidente e o consumo de álcool não foi a causa da produção do acidente.
34- Os proprietários das viaturas VT1 e VT2 vivem na mesma morada e, juntamente com a A., procuraram culpar o recorrente da produção do acidente, porque este conduzia sob o efeito do álcool.
35- A A. também aproveitou que o recorrente conduzia sob o efeito do álcool para propor a presente acção com fundamento do direito de regresso.
36- Não ficou provado que a taxa de alcoolémia do recorrente tenha sido a causa do acidente.
37- O recorrente não tem de pagar as quantias mencionadas em que foi condenado na douta sentença recorrida.
38- O recorrente não teve culpa no acidente, pelo que a A. não tem direito de regresso, ao contrário do que foi decidido pela douta sentença recorrida.
39- O recorrente nunca assumiu a culpa do acidente, razão pela qual não quis fazer a participação amigável e aceitou que as autoridades policiais fossem chamadas ao local da ocorrência.
40- O recorrente rescindiu o contrato de seguro automóvel identificado nos artigos 1º a 3º da p.i. no dia 06/06/2020 e celebrou um novo contrato com outra seguradora.
41- O recorrente considera que esta rescisão de contrato foi um dos motivos que levou a A. a propor esta acção.
42- A douta sentença violou o artigo 27º nº 1, alínea c) do DL nº291/2007, de 21/08 e artigo 483º do Código Civil.
Nestes termos e nos de direito, o presente recurso deve ser julgado procedente e provado, e, consequentemente, a douta sentença revogada por outra que absolva o recorrente dos pedidos.
Assim se fará Justiça!!!
Foram apresentadas contra-alegações defendendo o bem fundado do julgado.
O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II) OBJECTO DO RECURSO
Tendo em atenção as conclusões do Recorrente - artigo 635.º, n.º 3, 639.º, nº 1 e 3, com as excepções do artigo 608.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC -, cumpre apreciar as seguintes questões:
1) Da impugnação da decisão de facto.
2) Dos requisitos do direito de regresso.
III) FUNDAMENTAÇÃO
1. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
1.1. Impugnação
Defende o Recorrente que os pontos de facto 8 e 9, julgados provados, devem ser julgados não provados, com fundamento nas declarações do Réu, no relatório de averiguação junto aos autos e nas fotografias do local após o acidente, não merecendo credibilidade o que em contrário foi referido pela testemunha .., ou o constante do croquis elaborado pela autoridade policial, uma vez que os agentes policiais não presenciaram o acidente.
Por outro lado, entende que o álcool não influenciou a sua condução, não lhe diminuindo as capacidades de atenção, de reacção e de visão e que não estava debilitado no momento do acidente e o consumo de álcool não foi a causa da produção do acidente. Todavia, quanto a estes factos, que pretende terem resultado provados, não indica quais os meios de prova que considera determinarem esse juízo.
1.2. Apreciação
1.2.1. É o seguinte o teor dos pontos 8 e 9:
8. No dia, hora e local referido no artigo 3., o R. circulava no sentido Norte/Sul da Rua do ... quando ao se aproximar do número de polícia 23, perdeu o controle do veículo seguro e embateu no veículo automóvel de matrícula XX-XX-XX, que se encontrava devidamente estacionado.
9. Devido ao embate provocado pelo veículo automóvel de matrícula YY-YY-YY, conduzido pelo R., o veiculo automóvel de matrícula XX-XX-XX foi projetado contra a viatura de matrícula KK-KK-KK, que se encontrava estacionado à sua direita, ocorrendo um segundo embate.
O tribunal recorrido fundamentou como segue a decisão de julgar provados os indicados factos:
(……)
Antecipe-se que concordamos inteiramente com a análise que o tribunal recorrido fez da prova, aliás exaustiva, abordando as diversas questões relacionadas com a apreensão da dinâmica do acidente, assim se justificando a extensa transcrição feita acima, ouvidos os depoimentos do Réu e de … e analisados os documentos juntos.
As fotos constantes dos autos, os croquis e as narrativas escritas pelos intervenientes foram analisados em si mesmos e no confronto feito em audiência (e gravado) durante os depoimentos do Réu e da testemunha que os foram explicando.
O Réu apresentou a versão que também trouxe à contestação, a saber, que o carro da testemunha não se encontrava parado do estacionamento, mas a sair dele, e que o embateu por o ter feito sem cuidado na altura em que o Réu circulava no local. Referiu não tive tempo de fazer trabalho nenhum, para explicar que não reagiu à entrada súbita na estrada do veículo da testemunha vindo do estacionamento (tese que defende), que ia a circular e só senti um embate do lado direito, que como ele saiu, não sei, sei que senti o barulho do lado direito.
Ora, só em si mesma já esta versão suscita dúvidas face às fotos, cuja veracidade enquanto representação da realidade não foi posta em causa por ninguém, que documentam que o embate se deu do lado esquerdo frente, perto da quina formada entre a superfície dianteira e a lateral direita do ZZ-ZZ-ZZ, tornando pouco credível que o Réu nada tivesse visto da manobra do carro da testemunha ocorrida à sua frente.
Por outro lado, a localização dos veículos no estacionamento após o embate, que também ninguém coloca em causa que seja a documentada pelas fotos (maxime foto 2 da pág. F5 e ambas as fotos da pág. F6, do doc 2 da petição). Ora, essa posição é incompatível com a afirmação de que a testemunha tirava o veículo do estacionamento invadindo a via de circulação do Réu.
Defende o Réu que o próprio embate determinou que o carro da testemunha fosse projectado para dentro do estacionamento. Mas a afirmação não resiste à análise da posição do veículo nas fotos citadas (com projecção lateral) e ao depósito do material decorrente do embate ainda dentro do lugar de estacionamento (ver foto 2 de pág. F5).
Quanto aos despojos do veículo, por o embate dentro da via não ser susceptível de os atirar para o lugar de estacionamento, enquanto a força da gravidade explica que tenham caído no local do embate. Quanto à posição porque a projecção do veículo é claramente lateral, já o dissemos, para o lugar do outro veículo, em oblíquo à linha formada pela via e pelo limite do estacionamento (em termos congruentes com o depoimento da testemunha) e não na perpendicular como a versão do Réu determinaria.
Nem se torna necessário sublinhar, mais do que o fez a sentença recorrida e merece a nossa concordância, as incongruências relacionadas com a total ausência de reacção do Réu ao embate ou com a retirada do veículo do local que o Réu admitiu.
Defende o Réu, para descredibilizar o depoimento da testemunha M.., que esta não podia ter visto que o Réu se vinha a pentear enquanto conduzia e que o ZZ-ZZ-ZZ vinha em marcha em zigzag. Não colhe a argumentação. Lembremos que decorre dos pontos de facto 3 e 5, não impugnados, que o acidente teve lugar às 15 horas, num local caracterizado por ser uma faixa de rodagem reta com 6 metros de largura, com uma duas vias de circulação sendo uma em cada sentido, com boa visibilidade e o tempo estava bom. Mais, o Réu apresentava-se pelo lado esquerdo da viatura da testemunha e esta descreveu que tinha acabado de estacionar e ainda estava sentado dentro da viatura. Ora, o volante da viatura é do lado esquerdo e as fotos documentam que a parte da frente do veículo estava virada para a via por onde o Réu seguia. Ou seja, nada infirma que a testemunha pudesse ver exactamente o comportamento do Réu antes do embate.
Quanto aos estragos se situarem na lateral do seu veículo e não à frente, analisadas as fotografias verifica-se que os mesmos se situam desde a quina da frente até à parte lateral. Ora, o natural, na versão da testemunha M…, é que o embate se desse entre essa zona do veículo do Réu e não com a superfície da frente do mesmo.
Do croquis policial ou das declarações assinadas pelo Réu e pela testemunha nada resulta que determine outra decisão, antes corroboram a que foi proferida.
Concluímos assim pela improcedência da impugnação da decisão de facto na parte em apreciação.
1.2.2. Quanto aos factos relativos à relação entre o álcool e o acidente
a) Factos alegados
No que se refere a esta situação, analisados os articulados, resulta que as partes alegaram factos relevantes para a apreciação da questão.
Assim é que consta da petição inicial o seguinte (artigos 19 e 21 a 25, transcritos na íntegra embora neles se incluam tanto factos, como matéria conclusiva):
19.º - O álcool influenciou o comportamento do R., diminuindo-lhe as capacidades de atenção, reação e de visão.
20.º - O R. violou o disposto nos artigos 13, nº 1, artigo 24, nº 1, 25, nº 1 al. m), 81, nº 1 do Código da Estrada.
21.º - Desta forma, a culpa na produção do acidente dos presentes autos ficou a dever-se exclusivamente ao R., por conduzir o veículo seguro, num estado fisiologicamente debilitado.
22.º - Aquela percentagem de álcool no sangue do R. perturbou-lhe de todo o seu estado, criou-lhe uma imoderada confiança em si mesmo e diminuição de reflexos pelo que o seu estado contribuiu em exclusivo para a produção deste acidente.
23.º - O consumo de álcool diminuiu, necessariamente, a coordenação motora e os reflexos do R, afetando as aptidões preceptivas e cognitivas, e, inevitavelmente, as suas capacidades de antecipação, previsão e decisão.
24.º - O consumo de álcool faz perder a capacidade sensorial face ao meio envolvente, afetando a capacidade de atenção e concentração: a perceção visual fica mais reduzida por distorção da imagem o que provoca uma incapacidade correta de avaliação de distâncias e velocidades.
25.º - Como efeitos diretos da ingestão do álcool temos: aumento do tempo de reação; diminuição da capacidade reflexiva; diminuição da resistência à fadiga. Estas menores capacidades psico-motoras têm efeito direto na distância de segurança, na distância de reação e, consequentemente, na distância de travagem.
Também na contestação foram alegados factos a este respeito (artigos 19 e 21, transcritos na íntegra embora neles se incluam tanto factos, como matéria conclusiva):
19.º - Como se vem demonstrando, o R. não teve culpa no acidente e álcool não influenciou a sua condução, não lhe diminuindo as capacidades de atenção, de reacção e de visão.
21.º - O R. não estava debilitado no momento do acidente.
b) Factos decididos em primeira instância
Vista a decisão quanto à matéria de facto, é patente que os factos contidos nos artigos transcritos não se encontram nem entre os que foram julgados provados, nem entre os que foram julgados não provados.
Certo é que a sentença contém a indicação de motivação quanto a tais factos, analisando meios de prova, nos termos que se transcrevem:
Por fim, há ainda que ter em consideração que o R. conduzia o aludido veículo automóvel sob o efeito do álcool, acusando uma taxa de alcoolemia de 1,17 g/l. Conforme explicado pela testemunha …s, um individuo que conduza veículos motorizados sob o efeito de álcool, sofre de alterações emocionais, pensando que está em condições para exercer o acto de condução. Porém, o certo é que há um menor grau de vigilância, tem menos perceção daquilo que o rodeia, o cérebro demora mais a processar a informação, acontecendo ainda alterações da acuidade visual. Ora, verifica-se, desde logo, que o próprio R. credibilizou tal depoimento, pois aquele admitiu que, apesar da taxa de alcoolémia que apresentava, considerava que estava apto para conduzir, sendo certo que o mesmo exerce a profissão de taxista, podendo pôr em causa a integridade física de eventuais clientes que solicitassem os seus serviços.
Como é sabido, e confirmado pela aludida testemunha, o álcool vai interferir com o sistema nervoso central, o que pode trazer efeitos negativos, como a sobrevalorização das próprias capacidades, perda de vigilância, perturbação das capacidades sensoriais, redução da acuidade visual, aumento do tempo de recuperação após encandeamento, aumento do tempo de reação e diminuição da capacidade de resposta. Todos estes efeitos são negativos, tanto para o condutor que consumiu álcool em pequenas quantidades, como para o que estará notoriamente embriagado. No entanto, estudos mostram que se torna mais perigoso aquele que consome em quantidades mais reduzidas, uma vez que este, insistirá em conduzir afirmando que está em perfeitas condições, ao invés do que está completamente embriagado que, dificilmente tentará conduzir. Ora, o R., com o seu discurso, acabou por corroborar tais estudos!
Desta motivação pode extrair-se que o tribunal considerou que o depoimento de … (médica, descreveu os efeitos de conduzir sob a influência de álcool, nomeadamente atendendo à taxa que o R. apresentava aquando do embate dos autos), merecia crédito na parte em que referiu que o álcool, mesmo em pequenas quantidades, influencia a condução, nomeadamente criando uma sensação de auto-sobrevalorização, atitude que o tribunal entende decorrer das declarações do Réu, declarações que assim, para o tribunal recorrido, corroboram o depoimento daquela testemunha e estudos feitos sobre as consequências da influência do álcool.
Mas omitiu o tribunal, face a essa análise dos meios de prova, a pronúncia sobre os factos alegados pelas partes e que se transcreveram julgando-os provados ou não provados. Ora é essa pronúncia que está prescrita no artigo 607.º, n.º 3, do CPC.
Tais factos são essenciais à decisão da acção por a prova ou não prova dos mesmos determinar o sentido da decisão: relevância do nexo de causalidade entre a condução com taxa de alcoolemia superior à permitida e a produção do acidente.
Na verdade, mais do que considerar a relevância jurídica daqueles factos para a apreciação colocada pelos articulados à primeira instância, os mesmos são também relevantes para a questão que se coloca neste recurso, sendo, aliás, o fulcro da tese do Recorrente.
No sentido desta indispensabilidade em sede de recurso, ensina Abrantes Geraldes[2] que não basta que os factos tenham conexão com alguma das «soluções plausíveis da questão de direito». Considerando a fase em que agora nos encontramos [recurso perante a Relação], a Relação deve ponderar o enquadramento jurídico em face do objecto do recurso ou de outros elementos a que oficiosamente puder atender (…).
Em suma, no caso, os factos alegados pela Autora nos artigos 19 e 21 a 25 da petição e pelo Réu nos artigos 19 e 21 da contestação, são factos essenciais nos termos do artigo 5.º, n.º 1, do CPC, sobre os quais o juiz deve pronunciar-se no sentido de os julgar provados ou não provados, e são indispensáveis ao conhecimento do objecto do recurso que se aprecia.
Importar apreciar a consequência da omissão de pronúncia na sentença quanto a factos controvertidos essenciais.
c) Factos submetidos a julgamento (temas da prova)
A matéria não constava dos temas da prova porque os temas da prova não foram indicados autonomamente pelo tribunal que dispensou tal indicação face à alegação das partes contida nos articulados.
Decorre das actas de audiência de julgamento que, onde ocorreu indicação de factualidade a considerar na produção dos meios de prova, foram utilizados os artigos dos articulados, tanto petição como contestação (maxime a acta de 23 de Fevereiro de 2022). Tanto o Réu como a testemunha .. foram interrogados à matéria em causa, o primeiro quanto à que alegou e a segunda quanto à que a Autora alegou.
Temos assim como certo que, depois do despacho que decidiu não haver lugar a enunciação explícita dos temas da prova, invocando a bastante alegação das partes, tanto as partes como o tribunal consideraram que toda a matéria articulada integrava os temas da prova a ter em atenção. O mesmo é dizer que entendemos que se deve considerar que os factos integraram a matéria de facto discutida em audiência.
d) Das consequências da omissão de pronúncia
Face à situação caracterizada, importa saber da consequência da omissão de pronúncia quanto a factos essenciais que constavam da matéria de facto que integrou a temática a provar em julgamento, no sentido de os considerar provados ou não provados.
O que convoca as normas do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC, e a apreciação da inclusão do caso na previsão das mesmas.
No que respeita à norma em causa refere Miguel Teixeira de Sousa[3]:
O disposto no art. 662.º, n.º 2, al. c), CPC contém duas regras:
- A Relação pode anular a decisão da 1.ª instância quando, não constando do processo do processo todos os elementos que, nos termos do n.º 1 do art. 662.º CPC permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto;
- A Relação pode anular a decisão da 1.ª instância quando considere indispensável a ampliação da decisão sobre a matéria de facto.
A primeira regra prevê as situações em que a matéria de facto em causa no julgamento, os temas da prova, não carecem de ampliação, mas a decisão que sobre eles incidiu tem vícios que a tornam deficiente, obscura ou contraditória.
A segunda regra prevê as situações em que a matéria de facto submetida a julgamento carece de ser ampliada por não ter incluído factos essenciais. Na verdade, embora a alínea c) do n.º 2 possa ser interpretada como referindo-se à ampliação da decisão de facto, não à mera ampliação da matéria de facto, o confronto com a alínea c) do n.º 3, permite excluir as situações em que a ampliação é da decisão e não da matéria decidenda.
Dito de outro modo, no n.º 2, a primeira parte da alínea c) refere-se às situações em que a matéria de facto submetida a julgamento tem o âmbito adequado, mas a decisão é deficiente (até à omissão), obscura ou contraditória; a segunda parte da alínea c) refere-se às situações em que a matéria de facto submetida a julgamento é ela mesma deficiente carecendo de ampliação.
No caso dos autos, a matéria de facto que integrou a temática a provar abrangeu toda a matéria articulada pelas partes e, por isso, também a contida nos mencionados artigos da petição e da contestação. Forçoso é concluir que não carece de ampliação, estando excluída da previsão da segunda norma do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), e verificada nessa parte a previsão da primeira.
A situação também se não enquadra na previsão da alínea d) do n.º 2, do artigo em causa, por isso que esta norma prevê a situação em que é proferida decisão a julgar provado ou não provado o facto, mas sem fundamentação.
Em suma, a omissão de pronúncia quanto a factos essenciais controvertidos que estavam propostos para apreciação determina que deva considerar-se a decisão de facto deficiente.
- A deficiência decorre de uma omissão de pronúncia quanto a algum facto controvertido; note-se que todos os factos controvertidos devem ser apreciados pelo tribunal, sem que entre eles possa ser estabelecida qualquer relação de prejudicialidade que dispense a pronúncia sobre outros (…)[4].
Decorre do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), I.ª parte, que ocorrendo vício de deficiência da decisão de facto, a Relação anula oficiosamente a decisão quando não constem do processo todos os elementos que nos termos do n.º 1 permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto.
No caso dos autos, os meios de prova produzida oralmente estão gravados o que permite considerar que o processo contém os elementos que permitem o suprimento da deficiência da decisão de primeira instância, sendo que no recurso vem invocada a necessidade dessa alteração quanto à matéria de facto em causa, dando como não provados os factos respeitantes ao nexo de causalidade da condução com a taxa de alcoolemia superior à permitida e o acidente.
Em suma, sendo a decisão sobre a matéria de facto deficiente e contendo o processo todos os elementos que permitem corrigir essa deficiência, deva a Relação fazê-lo, não se verificando os pressupostos da anulação.
e) Suprimento da deficiência da decisão de facto
Ponderados todos os meios de prova produzidos nos autos, temos com relevância para a questão do nexo de causalidade as declarações do Réu que negou qualquer culpa ou negligência sua como causa do acidente que imputou sempre ao facto de o condutor do veículo em que embateu ter saído inopinadamente do estacionamento.
Na versão do Réu nenhuma conduta sua deu causa ao acidente. A credibilidade das suas declarações foi acima analisada no sentido, que se mantém quanto a esta questão, de não permitir assentar nelas a prova ou contraprova de qualquer facto na ausência de outros meios de prova que corroborassem a sua versão.
A testemunha .. referiu-se à conduta do Réu em termos de lhe imputar a responsabilidade pelo acidente, como já referimos, mas nada trouxe de relevante quanto à relação entre a alcoolemia e o embate.
As testemunhas ..fizeram a gestão do sinistro na perspectiva da intervenção do seguro, nada sabendo sobre a matéria.
A testemunha , agente da PSP, não se encontrava no local quando o embate ocorreu e limitou-se a aí se deslocar em exercício de funções para tomar nota da ocorrência. Nada disse a respeito, para além de confirmar que foi feito o teste de alcoolemia ao Réu.
A testemunha .. médica, presta serviços como perita para a Lusitânia: tem uma pós-graduação em medicina legal e avaliação do dano. Foi ouvida quanto à influência da ingestão de álcool na actividade de condução.
Disse como varia a taxa de alcoolemia em relação com a altura, modo de ingestão e passar do tempo e quais os efeitos habituais e possíveis variações. Em tudo, referiu-se sempre a situações e casos gerais, como aliás é referido na decisão recorrida, nada dizendo em concreto quanto à situação do Réu na altura quanto às suas capacidades de percepção, reacção, cognitivas com influência na condução.
Não consideramos que facto de o Réu negar qualquer influência do álcool demonstre que essa influência se verificava ou, como considerou a decisão recorrida, que corrobore estudos ou afirmações genéricas sobre a condução com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida.
Assim, por ausência de prova num ou noutro sentido, julgamos não provados os factos que integram os artigos 19.º a 25.º da petição e os factos que integram os artigos 19.º e 21.º da contestação.
1.3. Da fixação da matéria de facto
Estão assentes os factos constantes da decisão de primeira instância, na improcedência da impugnação e ausência de reapreciação oficiosa, como segue:
1. A A. exerce autorizada a indústria de seguros em diversos ramos.
2. No exercício da sua actividade, a A. celebrou com Táxis ... Unipessoal, Lda., acordo de seguro do veículo de que esta última é proprietária, com a matrícula YY-YY-YY, ao abrigo da apólice n.º ..., constante de fls. 10 verso e 11.
3. No dia 13 de Maio de 2020, pelas 15h00, na Rua do ..., em frente do número de policia n.º 23, na União de Freguesias Queluz e Belas, na zona do ..., Concelho de Sintra, ocorreu um acidente de viação o qual deu origem à Participação de Acidente Automóvel 195024/2020.
4. Foram intervenientes neste acidente:
1. Veículo Seguro na A. - ligeiro de passageiros de matrícula YY-YY-YY de  propriedade da Tomadora do Seguro e conduzido pelo R.
2. Veículo Terceiro 1 - ligeiro de passageiros de matrícula XX-XX-XX de propriedade de M.. e conduzido pelo próprio.
3. Veículo Terceiro 2 - ligeiro de passageiros de matrícula KK-KK-KK de propriedade de E… que se encontrava estacionado.
5. O local do acidente caracteriza-se por ser uma faixa de rodagem reta com 6 metros de largura, com uma duas vias de circulação sendo uma em cada sentido, possui pavimento betuminoso, berma com 4,50 metros, com boa visibilidade e onde o limite de velocidade é de 50 km/h.
6. A referida artéria possui sinalização horizontal (linha descontínua), sinalização vertical (passagem de peões) ambas as extremidades da faixa de rodagem comportam lugares de estacionamento e é marginado por edificações.
7. No dia do acidente o estado do tempo era bom.
8. No dia, hora e local referido no artigo 3., o R. circulava no sentido Norte/Sul da Rua do ... quando ao se aproximar do número de polícia 23, perdeu o controle do veículo seguro e embateu no veículo automóvel de matrícula XX-XX-XX, que se encontrava devidamente estacionado.
9. Devido ao embate provocado pelo veiculo automóvel de matrícula YY-YY-YY, conduzido pelo R., o veiculo automóvel de matrícula XX-XX-XX foi projetado contra a viatura de matrícula KK-KK-KK, que se encontrava estacionado à sua direita, ocorrendo um segundo embate.
10. No local do acidente foram encontrados pedaços de plásticos que são os destroços dos veículos acidentados.
11. Do evento supra descrito resultaram danos materiais em todos os veículos envolvidos:
1. veículo automóvel de matrícula YY-YY-YY – danos sobre a parte frontal direita, com incidência sobre o para-choques frontal, farol dianteiro direito, guarda-lamas direito, rodado dianteiro direito e porta dianteira direita.
2. veiculo automóvel de matrícula XX-XX-XX – danos sobre a parte frontal esquerda e direita. Na parte frontal esquerda decorrente do embate do VS: danos com incidência sobre o para-choques frontal, capot, farol dianteiro esquerdo e guarda lamas esquerdo. Na parte frontal direita decorrente da projeção contra o VT2: danos com incidência sobre para-choques frontal, guarda lamas direito e o rodado dianteiro direito.
3. veiculo automóvel de matrícula KK-KK-KK - danos frontais da lateral esquerda, com incidência no para-choques frontal, guarda-lamas esquerdo, porta lateral dianteira esquerda e rodado dianteiro esquerdo.
12. Tomou conta da ocorrência a PSP de Sintra que elaborou o Auto de Ocorrência nº ....
13. O R. acusou uma taxa TAS positiva de 1,17 g/l, tendo sido elaborado o ANCO 3.8841817.6.
14. Do acidente supra referenciado resultaram danos no veículo automóvel de matrícula XX-XX-XX, que foram orçamentados em € 6.778,23, tendo a A. liquidado o referido valor à oficina PSA RETAIL – PEUGEOUT SUCURSAL responsável pela reparação com a anuência do lesado e proprietário do veículo.
15. Relativamente aos danos no veiculo automóvel de matrícula KK-KK-KK, a A. liquidou o valor de € 597,08 referente a sua reparação efetuada pela Oficina ELECTRO BATERIAS DO ALTO DO ..., LDA.
16. Liquidou ainda a A. despesas referentes com averiguações e peritagens no valor total de €433,22.
17. O R. possui carta de condução desde 09.01.1985.
18. O R. rescindiu o contrato de seguro automóvel identificado no artigo 2. no dia 06/06/2020 e celebrou u m novo contrato com outra seguradora.
Não se provaram os seguintes factos:
19. O álcool diminuiu as capacidades de atenção, reação e visão do Réu.
20. O Réu conduzia o veículo seguro num estado fisiologicamente debilitado.
21. A percentagem de álcool no sangue do Réu criou-lhe uma imoderada confiança em si mesmo e diminuição de reflexos.
22. O consumo de álcool pelo Réu diminuiu a sua coordenação motora e afectou as suas aptidões preceptivas e cognitivas e as suas capacidades de atenção, reacção, antecipação, previsão e decisão.
23. O consumo de álcool pelo Réu fê-lo perder a capacidade sensorial face ao meio envolvente, afectando a capacidade de atenção e concentração, a percepção visual por distorção da imagem e provocou uma incapacidade correta de avaliação de distâncias e velocidades.
24. A ingestão de álcool pelo Réu não influenciou a sua condução, não lhe diminuindo as capacidades de atenção, de reacção e de visão.
25. O Réu não estava debilitado no momento do acidente.
3. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
3.1. O Réu funda a sua pretensão de revogação da decisão recorrida em dever ser considerados não provados os factos relativos ao nexo de causalidade e em violação do artigo 27º, nº 1, alínea c) do DL 291/2007, de 21 de Agosto, e do artigo 483º do Código Civil.
O Recorrente defende que não teve culpa no acidente, pelo que a A. não tem direito de regresso e que não ficou provado que a taxa de alcoolémia do recorrente tenha sido a causa do acidente.
3.2. No que se refere à culpa do Réu na produção do acidente releva a seguinte factualidade apurada:
5. O local do acidente caracteriza-se por ser uma faixa de rodagem reta com 6 metros de largura, com uma duas vias de circulação sendo uma em cada sentido, possui pavimento betuminoso, berma com 4,50 metros, com boa visibilidade e onde o limite de velocidade é de 50 km/h.
6. A referida artéria possui sinalização horizontal (linha descontínua), sinalização vertical (passagem de peões) ambas as extremidades da faixa de rodagem comportam lugares de estacionamento e é marginado por edificações.
7. No dia do acidente o estado do tempo era bom.
8. No dia, hora e local referido no artigo 3., o R. circulava no sentido Norte/Sul da Rua do ... quando ao se aproximar do número de polícia 23, perdeu o controle do veículo seguro e embateu no veículo automóvel de matrícula XX-XX-XX, que se encontrava devidamente estacionado.
9. Devido ao embate provocado pelo veículo automóvel de matrícula YY-YY-YY, conduzido pelo R., o veículo automóvel de matrícula XX-XX-XX foi projetado contra a viatura de matrícula KK-KK-KK, que se encontrava estacionado à sua direita, ocorrendo um segundo embate.
Ou seja, resultou provado que o Réu conduzia uma viatura automóvel por uma via pública e foi embater com ela num veículo que se encontrava parado no estacionamento lateral da via, embate que provocou a projecção do veículo sobre outro estacionado ao lado.
O Réu não exprime qualquer discordância quanto a estes factos o fazerem incorrer em violação de regras estradais como consta da sentença recorrida, a saber, o disposto no artigo 13.º, n.º 1, do Código da Estrada, que estatui que a posição de marcha dos veículos deve fazer-se pelo lado direito da faixa de rodagem, conservando das bermas ou passeios uma distância suficiente que permita evitar acidentes.
A sua discordância situa-se, ao contrário, na decisão de dar como provados tais factos de invasão do local do estacionamento.
Ora, dos factos assentes resulta que o Réu violou a regra estradal transcrita que o obrigava a seguir pela faixa de rodagem e invadiu a berma onde se situava o estacionamento embatendo no veículo que aí se encontrava parado.
Esta norma, como as demais disciplinadoras do trânsito automóvel, tem como razão de ser a tutela do interesse colectivo de ordenação da circulação na via pública e, também, a tutela indirecta do interesse, simultaneamente público e particular, de salvaguarda da vida, integridade física e bens de cada utente.
Verificam-se, assim, os requisitos da segunda forma de ilicitude do facto prevista no artigo 483º, nº 1, do Código Civil.
A imputação ao condutor do facto a título de ilicitude e culpa implica que a sua conduta integre violação de normas destinadas a proteger o interesse alheio (artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil), como o são as normas estradais, e que outra conduta lhe era exigível e possível (artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil).
Nos termos do artigo 487º, nº 1, do Código Civil, incumbe ao Autor o ónus de provar a culpa do lesante.
Encontrando-se provado ter circulado o Réu em contravenção às normas estradais, tendo conduzido o veículo para fora da faixa de rodagem pela qual circulava indo embater num veículo parado em local de estacionamento na berma da estrada, é manifesto que conduziu o veículo de forma oposta à conduta que, enquanto condutor lhe era exigível e possível, ou seja sem a diligência a que estava obrigado como condutor.
Nos termos do artigo 487º, do Código Civil, a culpa assume um carácter abstracto - aferindo-se pela diligência normal do homem médio na mesma situação – pelo que está cumprido o ónus da prova da culpa do Réu, condutor do QX.
Em consequência, concluímos como a sentença recorrida pela imputação do facto ao condutor do automóvel seguro na Ré a título de culpa. A conduta do Réu foi a única causa do embate no primeiro veículo e da projecção deste em termos de embater no segundo. Verifica-se, assim, culpa exclusiva do Réu na produção do acidente.
3.3. Entende o Réu que não foi demonstrada a causalidade entre a condução sob a influência de álcool e a produção do acidente, que o mesmo é dizer, não ficou demonstrado que o Réu conduziu o veículo QX para fora da faixa de rodagem e invadiu o estacionamento por se encontrar sob a influência do álcool. Assim é, mas tal é irrelevante pelo que se dirá.
O artigo 27.º, n.º 1, do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto (Regime do Sistema de Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil Automóvel) rege quanto ao direito de regresso da seguradora que satisfaça indemnização por danos causados no exercício da condução de veículos automóveis. Dispõe como segue, na parte pertinente:
1 - Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso: (…) c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.
São requisitos do direito de regresso (i) a satisfação de indemnização, (ii) por danos resultantes de acidente de viação imputável ao condutor e (iii) apresentar o condutor uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida.
Não está em causa a satisfação da indemnização pela seguradora Autora.
A imputação do acidente ao Réu a título de culpa resulta do que se apreciou em 3.2.
O Recorrente de igual modo aceita que conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida o que resulta do disposto no artigo 81.º, n.º 1 e 2, do Código da Estrada actualmente em vigor na redacção em vigor à data do acidente[5]:
1 - É proibido conduzir sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas.
2 - Considera-se sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico.
3.4. Entende o Recorrente, todavia, que competia à Recorrida seguradora provar que o acidente era devido ao facto de conduzir sob a influência de álcool, ou seja, defende que é insuficiente a prova da condução sob a influência de álcool, sendo necessária a demonstração de causalidade entre esse estado e o acidente.
A questão suscitou vivo debate na vigência do DL 522/85, de 31 de Dezembro, cujo artigo 19.º, alínea c), estabelecia:
Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso:
(…);
c) Contra o condutor, se este não estiver legalmente habilitado ou tiver agido sob a influência do álcool, estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, ou quando haja abandonado o sinistrado; (…).
Foi uniformizada a jurisprudência pelo acórdão 6/2002 no sentido de ser necessária a prova do nexo de causalidade entre a influência pelo álcool e a produção do acidente para que a seguradora lograsse a procedência do direito de regresso contra o condutor. É o seguinte o teor do segmento uniformizador:
A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.   
O DL 522/85 foi revogado pelo DL  291/2007, de 21/08, vigente na data do acidente, cujo artigo 27.º, n.º 1, alínea c), tem a redacção que antes se transcreveu. A questão ressurgiu com a nova redacção, voltando a ser defendidas as mesmas duas posições: (i) a prova da condução com taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida basta ao exercício do direito de regresso contra o condutor culpado do acidente ou (ii) o exercício do direito de regresso só logra procedência se a seguradora provar o nexo de causalidade entre a condução sob a influência do álcool e o acidente.
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça segue maioritariamente a primeira posição. Vejam-se os acórdãos de 28 de Novembro de 2013 proferido no processo 995/10.6TVPRT.P1.S1 (Silva Gonçalves), de 9 de Outubro de 2014 proferido no processo 582/11.1TBSTB.E1.S1 (Fernando Bento), de 7 de Fevereiro de 2017 proferido no processo 29/13.9TJVNF.G1.S1(José Rainho), de 6 de Abril de 2017 proferido no processo 1658/14.9TBVLG.P1.S1 (Lopes do Rego), de 7 de Março de 2019, proferido no processo 248/17.9T8BRG.G1.S2 (Abrantes Geraldes), de 9 de Abril de 2019 proferido no processo 1880/16.3T8BJA.E1.S2 (Acácio das Neves), de 3 de Novembro de 2020 proferido no processo 2490/18.6T8PNF.P2.S1 (Fernando Samões), de 10 de Dezembro de 2020, proferido no processo 3044/18.2T8PNF.P1.S1 (Manuel Capelo) ou de 25 de Março de 2021 proferido no processo 313/17.2T8AVR.P1.S1 (Tomé Gomes).
Em sentido contrário, exigindo a prova da causalidade, o acórdão de 6 de Julho de 2011, proferido no processo 129/08.7TBPTL.G1.S1 (João Bernardo).
Também nesta Relação se encontram exemplos das duas posições com prevalência para a primeira. Nesta Secção, por exemplo, os acórdãos de 13 de Setembro de 2012 proferido no processo 5902/09.6TBALM.L1-6 (Maria de Deus Correia), de 14 de Março de 2019 proferido no processo 925/17.4T8MTJ.L1-6 (Manuel Rodrigues, aqui segundo Adjunto) e de 2 de Maio de 2019 proferido no processo 71/18.3T8AGH.L1-6 (Cristina Neves).  
Em sentido contrário, os acórdãos de 17 de Maio de 2012 proferido no processo 897/10.6TBBNV-A.L1-6 (Aguiar Pereira), de 10 de Setembro de 2013, proferido no processo 1652/08.9TJLSB.L1-7 (Pimentel Marcos) ou de 12 de Julho de 2018, proferido no processo 1156/15.3T8LSB.L1-2 (Ondina Alves). 
3.5. Antecipa-se que entendemos que a diversa redacção da norma entre um e outro diploma legal determina a caducidade da anterior fixação de jurisprudência e a não exigência da prova do nexo de causalidade pela seguradora que exerce o direito de regresso.
Assim é que a norma do DL 522/85 previa o direito de regresso quando o condutor tivesse agido sob a influência do álcool enquanto o regime actual, vigente à data do acidente, exige que o condutor se encontre a conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida. Enquanto a primeira norma colocava o acento na acção influenciada pelo álcool, a actual coloca-o na circunstância de o condutor apresentar uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida. Parece-nos assim que se basta com a verificação da taxa de alcoolemia superior à permitida por lei, aliada à imputação do acidente ao condutor a título de culpa.
O Supremo Tribunal de Justiça no aresto 1658 supra enuncia as razões que sufragam esta interpretação legal com clareza que justifica transcrição:
Quanto a este ponto, não temos dúvida que a dita alteração legislativa (apagando a expressão agido sob influência do álcool e substituindo-a pelo – muito mais objectivado- segmento normativo conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida) teve como consequência dispensar efectivamente a seguradora do ónus de demonstração de um concreto nexo causal entre o erro ou falta cometido pelo condutor alcoolizado no exercício da condução - e que espoletou o acidente - e a dita situação de alcoolemia, envolvendo a normal e provável diminuição dos reflexos e capacidade reactiva do condutor alcoolizado.
3.6. Nem se diga que é desproporcional a consagração do direito de regresso com esta amplitude implicando uma oculta responsabilidade objectiva do condutor independentemente da taxa de alcoolemia apresentada e da concreta influência da mesma na condução praticada e concretamente na prática da infracção causal do acidente.
A interpretação da norma no sentido de não impor à seguradora o ónus de provar a causalidade entre a influência do álcool e o acidente não veda a prova pelo Réu de que essa causalidade não existe no caso concreto. Assim, não se verifica uma situação de imputação objectiva de responsabilidade, mas a consagração de uma presunção legal de causalidade entre a situação de influência do álcool e a produção culposa do acidente, presunção que, nos termos gerais pode ser ilidida.
O aresto que vimos seguindo explicita a proporcionalidade da presunção legal e do regime que convoca de inversão do ónus da prova.
O sentido a atribuir ao regime normativo introduzido pelo DL 291/07 será o de ter vindo estabelecer, afinal, uma presunção legal, assente nas regras ou máximas de experiência, na normalidade das situações da vida, segundo a qual o concreto erro ou falta cometido pelo condutor alcoolizado – e que consubstancia a responsabilidade subjectiva por facto ilícito que lhe é imputada - se deveu causalmente à taxa de alcoolemia verificada objectivamente por meios técnicos adequados e inteiramente fiáveis – deixando naturalmente a parte beneficiada pelo estabelecimento desta presunção legal de estar onerada com a prova efectiva do facto a que conduz a presunção, nos termos do art. 350º, nº 1, do CC.
É certo que poderá discutir-se se, no regime actualmente vigente, passou a ser absoluta e totalmente irrelevante a existência de um concreto e efectivo nexo causal entre o estado de alcoolização do condutor, culpado na produção do acidente, e o erro ou falta censurável na condução que integra a respectiva culpa.
Na verdade, afigura-se que a dita presunção legal carece de ser interpretada e aplicada em consonância com os princípios fundamentais da culpa e da proporcionalidade, em termos de não criar uma responsabilização puramente objectivada, cega e absolutamente irremediável do condutor/segurado pelas indemnizações satisfeitas ao lesado, precludindo-se a garantia emergente do contrato de seguro sempre e apenas em função da verificação totalmente objectivada de uma situação de alcoolemia: representando esta preclusão da garantia do seguro a imposição ao condutor/segurado de um ónus gravoso, implicando uma responsabilidade patrimonial pessoal particularmente onerosa, é naturalmente indispensável que esta imposição de uma responsabilização definitiva pelas quantias satisfeitas pela seguradora aos lesados se possa conformar com os referidos princípios fundamentais , não traduzindo a imposição ao condutor de um ónus manifestamente excessivo e desproporcionado.
E, assim sendo, por força dos referidos princípios estruturantes da ordem jurídica, não excluímos, que o condutor/demandado possa alegar e demonstrar na acção de regresso, com vista a ilidir a referida presunção legal:
- como exigência do princípio da culpa - que a situação de alcoolemia, impeditiva do legítimo exercício da condução, lhe não é imputável, por não ter na sua base , por exemplo, um comportamento censurável de ingestão de bebidas alcoólicas na altura da condução do veículo ( demonstrando, por exemplo, que tal taxa de alcoolemia está ligada a factor acidental e incontrolável, como reacção imprevisível a determinado medicamento);
- como decorrência do princípio da proporcionalidade - que, apesar da taxa de alcoolemia objectivamente verificada, não ocorreu, no caso, qualquer nexo causal efectivo entre tal situação e o acidente – ilidindo, por esta via a presunção legal segundo a qual qualquer situação de alcoolemia objectivamente proibida funciona como causa efectiva do erro ou falta cometida no exercício da condução: não é, pois, a seguradora que tem de provar, como pressuposto do direito de regresso, a existência de um concreto nexo causal entre a taxa de alcoolemia verificada e o erro de condução que desencadeou o acidente e o evento danoso, como sucedia no regime anteriormente em vigor, mas o próprio condutor que, se quiser afastar a sua responsabilidade em via de regresso, terá de ilidir tal presunção legal, perspectivada como presunção juris tantum, nos termos do nº2 do art. 350º do CC.
Saliente-se, todavia, que – face à configuração da matéria litigiosa subjacente ao caso dos autos – não se revela necessário aprofundar ou desenvolver este tema, tomando posição definitiva sobre ele, já que, por um lado, nada foi alegado no sentido da existência de uma causa acidental ou fortuita na base da situação de alcoolemia objectivamente verificada quanto ao R.; e, por outro lado, embora este tenha curado de alegar factos que afastariam a concreta causalidade entre a alcoolemia e o facto culposo cometido na condução do veículo,tal matéria foi tida por não provada, ao decidirem as instâncias não se ter apurado que a taxa de alcoolemia referida em 15 e a presença da substância referida em 16 não foram causais da perda de controlo do IF e ocorrência dos demais factos.
Funciona, deste modo, inquestionavelmente, neste circunstancialismo, a presunção legal que temos por consagrada no art. 27º, nº1 al. c) – dispensando consequentemente a seguradora do ónus probatório do facto a que conduz a presunção (e sendo, nesta óptica, irrelevante que haja resultado identicamente não provada a perturbação dos reflexos e da coordenação motora do R e da sua capacidade de reacção e percepção, por via da dita taxa de alcoolemia) - não estando, no caso, tal presunção juris tantum ilidida, por insucesso probatório do R.
3.7. Em consequência, entendemos que não tem razão o Recorrente ao defender que a seguradora estava adstrita a provar a existência de um nexo de causalidade entre a condução sob a influência do álcool e o acidente. Não impendendo tal ónus sobre a Autora e não tendo o Réu provado que a situação em que se encontrava a conduzir, com taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, foi alheia ao facto de ter saído da faixa de rodagem, invadido o estacionamento na berma e embatendo o veículo que aí estava parado, verificam-se os indicados requisitos do direito de regresso cujo exercício é pretensão da Autora nestes autos.
Em conclusão, improcede o recurso.

IV) DECISÃO
Pelo exposto, ACORDAM em suprir a deficiência da decisão de facto nos termos supra constantes e em, no mais, julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente – artigo 527.º, n.º 2, do CPC.
*
Lisboa, 30-11-2022
Ana de Azeredo Coelho
Eduardo Petersen Silva
Manuel Rodrigues
_______________________________________________________
[1] Beneficia do relatório da sentença recorrida.
[2] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5.ª edição, p. 307.
[3] In Manual de Processo Civil, AAFDL, vol. II, p. 237.
[4] Miguel Teixeira de Sousa, op. cit., p. 237.
[5] É sem influência a alteração do Decreto-Lei 102-B/2020, de 9 de Dezembro de 2020.