Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
835/06.0TCSNT.L1-7
Relator: LUÍS ESPÍRITO SANTO
Descritores: TESTAMENTO
ESTRANGEIRO
FÉ PÚBLICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário elaborado nos termos do artº 663º, nº 7, do Cod. Proc. Civil.

I– O artigo 2223º do Código Civil destina-se a salvaguardar a validade do testamento celebrado por português no estrangeiro, em conformidade com as prescrições exigidas pela lei aí vigente, respeitando o princípio de que é à lei do lugar onde o acto se realiza que compete regular a sua forma externa (locus regit actuam), impondo, porém, que o negócio revista o carácter solene, o que basicamente se traduz na intervenção de entidade dotada de fé pública, seja na elaboração da disposição de última vontade, seja na aprovação por mera delibação das disposições lavradas pelo declarante.

II– O disjuntivo “ou” inserto na citada disposição legal significa precisamente que a exigência de solenidade terá que estar presente ou na feitura, ou na aprovação do testamento pela entidade dotada de fé pública.

III– Nos termos do artigo 2223º do Código Civil, o testamento feito por português no estrangeiro, onde reside, e de acordo com a lei desse lugar, é formalmente válido e, nessa medida, produz os seus efeitos em Portugal, desde que reduzido a escrito – excluindo-se portanto a validade dos testamentos nuncupativos – e se for acompanhado na sua feitura, directa e presencialmente, por funcionário dotado de poderes de fé pública – normalmente um notário -, seja na fase da sua elaboração pelo testador (texto, data e assinatura), seja, em alternativa, na fase posterior da sua aprovação pelo dito agente público.

IV– Esta leitura da disposição legal, não exarcerbando em demasia, exageradamente, as exigências de forma, é aquela que concorre no sentido da conservação do negócio jurídico celebrado de acordo com a vontade expressa do testador e em conformidade com a lei da celebração do acto, permitindo que a mesma se concretize em toda a sua plenitude, com natural prevalência sobre as regras da sucessão legítima, por natureza meramente subsidiária, e desde que exista uma garantia segura de autenticidade e fidedignidade do acto, o que é transmitido pela intervenção de um funcionário com poderes de fé pública durante toda a sua realização ou através da posterior aprovação do testamento.

V– A solenidade exigida pelo artigo 2223º do Código Civil satisfaz-se com a celebração do testamento por português em cartório notarial sito em França, onde o testador reside habitualmente, quando o acto é inteiramente presenciado e orientado por notário que recebe o testamento das mãos daquele, devidamente redigido, datado e assinado, guardando-o no seu cofre forte, em plena conformidade com a lei civil francesa.

VI– A observância destas concretas formalidades, que revestem carácter solene, não deixa a menor dúvida quanto às reais e efectivas intenções do autor da sucessão ao produzir aquela disposição de última vontade que, nessa mesma medida, com respeito pelo apuramento e satisfação da mesma e na defesa do princípio da conservação dos negócios jurídicos, deverá ser acatada e tornada eficaz em Portugal, não obstante a tentativa de alguns familiares - que com ele não mantinham relação próxima alguma (designadamente uma irmã consanguínea com quem não se dava regularmente) - em procurar, fundada em argumentário estritamente formal, construído sobre a dúvida e a nebulosa especulação, e na aplicação das regras subsidiárias da sucessão legítima, frustrá-la e paralisá-la, tudo em benefício próprio e obviamente contrário à vontade do decujus.
Decisão Texto Parcial:Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa(7ªSecção ).


I–RELATÓRIO:

(…)
Foi proferida sentença que julgou a acção intentada por G., já falecida e seu marido GG., já falecido, ora representada pelos seus herdeiros já habilitados A. e B. contra os Réus C. e D. improcedente, absolvendo estes dos pedidos contra si formulados; julgou parcialmente procedente a reconvenção e em consequência, declarou que os RRs C. e D. são herdeiros universais do falecido JT, por sucessão testamentária, e, consequentemente são titulares do direito de propriedade, ainda indiviso, conjuntamente com a A e demais intervenientes, sobre o prédio urbano sito (…); declarou a falsidade da escritura pública de habilitação de herdeiros lavrada a 4 de Outubro de 2005 perante a Notária AP...,, notária de A... no cartório na Praceta B... G... número ...-A em se declarou que JT não deixou testamento e deixou como única herdeira legitima a sua irmã consaguínea G., absolveu os AA. e intervenientes do demais peticionado contra si em sede de reconvenção (cfr. fls. 954 a 968).
Apresentaram os AA. habilitados recurso contra esta decisão, o qual foi admitido como de apelação (cfr. fls. 954 a 968).
Juntas as competentes alegações, a fls. 971 a 992, formularam os apelantes as seguintes conclusões:
(…)
Contra-alegaram os RR. pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da decisão recorrida.
 
II–FACTOS PROVADOS.

Foi dado como provado em 1ª instância:

A)– A propriedade do prédio urbano sito (…), em nome da A. e dos intervenientes dos autos, JG, MS, JS, IS, AS, ME e VS, tendo sido da A. por sucessão hereditária de JT, e quanto aos demais intervenientes, por sucessão hereditária, transmitida pelo direito de IT, em termos de fls. 3, 4,5 e seguintes cujo teor ora se dá por reproduzido;
B)– JT nasceu em Portugal, era cidadão nacional e faleceu em 12 de Setembro de 1994, em Paris, foi irmão da A., casou com a 1ºR. em Fevereiro de 1984, de quem se divorciou em 24 de Agosto de 1993, sendo o 2ºR., filho da 1ºR, de uma outra relação que não com JT;
C)– A casa referida em A) foi durante muitos anos a residência em Portugal de JT;
D)– Os RR residem em Paris, e admitem que “de vez em quando, e com frequência, vêm a Portugal, onde permanecem por dias ou semanas” na casa em apreço nos autos. (cfr. art. 1º e 2º do pedido dos RR de nulidade de citação a fls. 57);
E)– Por documento manuscrito, datado de 7 de Julho de 1994, em Paris, alguém que se disse chamar JT, e que assinou em termos de fls. 255, nomeou herdeiros universais os aqui RR, documento considerado testamento pelo notário francês Claude Jaquet, tendo este declarado, em 26 de Setembro de 1994, dia da abertura do mesmo, ter-lhe sido entregue aberto em 7 de Julho de 1994 pelo defunto, tendo-lhe sido colocada a apostilha de Haia de 5 de Outubro de 1961, em 28 de Setembro de 1994, em termos que constam de fls. 246 a 256 cujo teor se dá por reproduzido (tendo ficado apenas por despacho judicial uma cópia do mesmo nos autos, após exibido o original);
F)– JT não fez qualquer testamento público em Portugal.
G)– No dia 25 de Março de 1993, no 20º Cartório Notarial de Lisboa, foi declarado que a A. G., JR (na qualidade de filhos) e IT (na qualidade de cônjuge) são os únicos herdeiros de FT, em termos de fls. 16 a 18;
H)– No dia 4 de Outubro de 2005, no Notário de A... sito na Praceta B... G... número ...-A, foi declarado que a Autora G. é a única herdeira de JR (na qualidade de irmã) por não haver mais descendentes, nem ascendentes, em termos de fls. 21 a 23;
I)–  A A. e demais intervenientes, nunca autorizaram a ocupação do imóvel em causa pelos R.R. (resposta ao ponto 1º da base instrutória).
J)– Nem a A., nem os intervenientes, tinham a chave do imóvel em causa (resposta ao ponto 3º da base instrutória).
L)– Entre 1976 a 1980, os RR usavam a casa, em referência diariamente e na mesma comiam, dormiam, faziam as suas refeições e recebiam os seus amigos (resposta ao ponto 4º da base instrutória).
M)– Desde a morte de FT e da IT os RRs que pagam a água, luz e esgotos da referida casa (resposta ao ponto 5º da base instrutória)..
 N)– Depois de 1980, sempre que vêm a Portugal os RR e nos períodos mais ou menos longos que ai ficam, dormem, tomam as suas refeições, recebem amigos e correspondência na casa em apreço (resposta ao ponto 6º da base instrutória).
O)– Pelo menos, desde 1976, que têm as chaves da casa (resposta ao ponto 7º da base instrutória).
P)– Apenas que a interveniente MS, depois do ano 2000, foi à casa em apreço para tentar dialogar com os RR para regularizar a herança (resposta aos pontos 10º e 11º da base instrutória).
Q)– A advogada da interveniente MS, remeteu ao 2ºR. a carta de fls. 68, em 24 de Setembro de 2003, a pedido desta (resposta ao ponto 12º da base instrutória).
R)– O documento referido em E) foi assinado por JT, na presença do notário (resposta ao ponto 13º da base instrutória).
S)– JT tinha os seus interesses pessoais e familiares em Paris, local onde vivia a maior parte do tempo (resposta ao ponto 14º da base instrutória).
T)– Pelo menos, desde 1997, até aos dias de hoje os RR compraram vários móveis para a casa em apreço (resposta ao ponto 15º da base instrutória).
U)... e tratam do jardim (resposta ao ponto 16º da base instrutória).
V)– Em 1996 o R. viveu em Sintra, tendo nascido a sua filha em Novembro de 2006 na Amadora (resposta ao ponto 17º da base instrutória).
X)– Em 2003, viveu durante um ano e meio, sozinho, na casa em apreço.

III–QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS.

São as seguintes as questões jurídicas que importa dilucidar:

1– Impugnação da decisão de facto. Ponto 13º dos factos dados como provados. Ampliação do objecto do recurso, nos termos do artigo 636º, nº 2, do Código de Processo Civil.
2– Validade formal do testamento outorgado, em Paris, por JT, em 7 de Julho de 1994, perante notário e em conformidade com as exigências da lei civil francesa. Da sua validade e produção de efeitos em Portugal. Interpretação do artigo 2223º do Código Civil. Observância de forma solene.

Passemos à sua análise:
1– Impugnação da decisão de facto. Ponto 13º dos factos dados como provados. Ampliação do objecto do recurso, nos termos do artigo 636º, nº 2, do Código de Processo Civil.

Consta do ponto 13º dos factos dados como provados:
O documento referido em E) foi assinado por JT, na presença do notário”.

Alega a este respeita a apelante:             
Face à prova produzida, nomeadamente atendendo-se às regras da experiência comum conjugadas com o teor do documento de fls. 246 a 256, a alínea E) dos Factos Provados, as declarações de parte da R. C. e o depoimento da testemunha CJ – para tanto reapreciando-se a prova gravada -, deverá considerar-se como não provada a matéria vertida no ponto n.º 13 dos Factos Provados, eliminando-se a referência à assinatura de tal testamento na presença de notário.
Por sua vez, os apelados vieram ampliar o objecto do recurso, nos termos do artigo 636º, nº 2, do Código de Processo Civil, pretendendo que se modifique a resposta ao ponto 13º nos seguintes termos: “O documento referido em E) foi escrito e datado por JT, na presença do notário”.
(…)
Pelo exposto, improcederá a impugnação de facto apresentada pela apelante.
Ao invés, o que se deixou consignado supra conduzirá à procedência da impugnação subsidiária do apelado, em sede de ampliação do objecto do recurso, competindo desenvolver tal factualidade em estreita e fiel correspondência com o descrito pela testemunha CJ, que se nos afigurou perfeitamente segura e fiável, passando o ponto 13º da base instrutória a ter a seguinte redacção ampliada:
“O documento referido em E) foi redigido, datado e assinado por JT, no dia 7 de Julho de 1994, em Paris, e na presença do notário Claude Jaquet, o qual acompanhou pessoalmente o acto, esclareceu o testador e recebeu das suas mãos o testamento que guardou no seu cofre forte”.
Tal alteração da factualidade assente por provada será portanto considerada no enquadramento jurídico que cumpre elaborar.
2– Validade formal do testamento outorgado, em Paris, por JT., em 7 de Julho de 1994, perante notário e em conformidade com as exigências da lei civil francesa. Da sua validade e produção de efeitos em Portugal. Interpretação do artigo 2223º do Código Civil. Observância de forma solene.
Cumpre, antes de mais, deixar consignados e assentes alguns pressupostos jurídicos referenciados na sentença de 1ª instância e que não merecem, nem suscitam, a menor objecção ou controvérsia.
Assim:
1º- Não são aplicáveis na situação sub judice:
– o Regulamento nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia de 7 de Julho de 2014, publicado no Jornal Oficial da União Europeia de 27 de Julho de 2012, que se reporta à competência, à lei aplicável ao reconhecimento e execução das decisões e à aceitação e execução dos actos autênticos em matéria de sucessões e à criação do certificado sucessório europeu, na medida que tal diploma abrange unicamente as sucessões abertas a partir de 17 de Agosto de 2015, em conformidade com o respectivo artigo 83º, salvaguardando-se transitoriamente a escolha de lei feita pelo decujus ou a validade formal ou material de disposições por morte feitas antes dessa data;
– a Convenção de Haia de 5 de Outubro de 1961 sobre os conflitos de leis em matéria de forma das disposições testamentárias, pela singela razão de Portugal não ter ratificado a Convenção, não obstante a ter assinado;
o testamento internacional introduzido na ordem interna através do Decreto-lei nº 252/75, de 23 de Maio, previsto na Convenção Relativa à Lei Uniforme sobre a Forma do acto de Testamento Universal, concluída em Washington, em 26 de Outubro de 1973,  devido à falta de intervenção de duas testemunhas, o que é exigido pelo artigo 4º do mencionado diploma.
2º– Encontramo-nos perante uma situação de facto que revela conexão com ordens jurídicas plurilocalizadas, concretamente o ordenamento jurídico português e o ordenamento jurídico francês.
Trata-se de um cidadão de nacionalidade portuguesa, residente habitualmente em França, que procedeu à feitura do seu testamento num cartório notarial sito em Paris, de acordo com as disposições procedimentais exigidas pelo Código Civil francês.
3º– Não há dúvidas de que sendo o testador de nacionalidade portuguesa é esta a sua lei pessoal (artigo 31º, nº 1, do Código Civil) sendo, em geral, reconhecidos em Portugal os negócios jurídicos celebrados no país da residência habitual do declarante, em conformidade com a lei desse país, desde que esta se considere competente (artigo 31º, nº 2, do Código Civil).
4º– A sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do seu falecimento, sendo certo que as disposições por morte serão válidas, quanto à forma, se corresponderem às prescrições da lei do lugar onde o acto for celebrado, ou às leis da pessoal do autor da herança, quer no momento da declaração, quer no momento da morte, ou ainda às prescrições da lei para que remeta a lei de conflitos local (artigo 65º, nº 1), ressalvando-se que, se a lei pessoal do autor da herança, no momento da declaração, exigir sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, ainda que o acto seja praticado no estrangeiro, terá que ser respeitada essa especial exigência (artigo 65º, nº 2, do Código Civil).
5º– Nesta matéria o artigo 2223º do Código Civil constitui uma norma especial referente à exigência de forma do testamento, estipulando precisamente que: “O testamento feito por cidadão estrangeiro em país estrangeiro com observância da lei estrangeira competente só produz efeitos em Portugal se tiver sido observada uma forma solene na sua feitura ou aprovação”.
6º– A lei civil francesa permite a validade do testamento alógrafo, ou seja, aquele que é, todo ele, escrito pela mão do testador, nos termos dos artigos 969º e 970º do Código Civil francês.

Apreciando:

Está essencialmente em causa nestes autos, no plano do enquadramento jurídico dos factos dados como provados, a análise interpretativa do artigo 2223º do Código Civil, quanto ao seu âmbito e alcance.
Concretamente, cumpre saber se a forma observada no testamento realizado por testador de nacionalidade portuguesa, residente em França, perante notário que presenciou o acto de redacção, datamento e assinatura do testamento e o recolheu em cofre forte, de acordo com os procedimentos exigidos pela lei civil francesa, satisfaz ou não a exigência de solenidade de forma prevista na disposição legal do Código Civil português, supra transcrita, “na sua feitura ou aprovação”.

Vejamos:

A jurisprudência portuguesa já foi chamada por diversas ocasiões a pronunciar-se sobre a interpretação do normativo em causa, abordando situações relativamente similares à presente, ou que, pelo menos, com a mesma mantêm alguns pontos de contacto do ponto de vista factual e jurídico.
Passa-se a elencar, resumidamente, os seguintes casos paradigmáticos:
acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26 de Fevereiro de 1991 (relator Nunes da Cruz), publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XVI, Tomo 1º, páginas 86 a 88.
Aborda a situação de um cidadão português que realizou em França o seu testamento.
No caso havia sido junto aos autos um documento manuscrito pelo decujus, em língua francesa, datado de 23 de Janeiro de 1978, acompanhado de um outro que constitui uma carta dactilografada e oriunda de um notário francês, contendo a respectiva certificação.
Considerou o Tribunal da Relação que o facto do testamento se encontrar reduzido a escrito satisfazia efectivamente a exigência de forma solene prevista no artigo 2223º do Código Civil.
Porém, entendeu-se que tal não basta para que o testamento possa ser considerado válido e eficaz em Portugal.
Seria ainda necessária a aprovação, isto é, o acto lavrado por notário em complemento da disposição testamentária, o que não se verificou, sendo certo que, segundo o acórdão, o simples depósito do testamento em repartição notarial não equivale, de forma alguma, à sua aprovação.
Pelo que concluiu pela invalidade do testamento perante a ordem jurídica portuguesa.
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Maio de 1992 (relator António Beça Pereira), publicitado in www.jusnet.pt.
Este acórdão do Supremo Tribunal de Justiça incidiu, em sede de recurso de revista, sobre o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26 de Fevereiro de 1991, citado anteriormente.
No aresto observou-se a mencionada situação de um cidadão português, residente no Fundão, que realizou em França o seu testamento, concretamente no notário de Versailles, de acordo com os procedimentos exigidos naquele país.
O testamento foi elaborado em 23 de Janeiro de 1978 e o testador veio a falecer em 8 de Novembro de 1987.
Tratava-se de um testamento alógrafo, ou seja, todo escrito pela mão do testador, feito perante notário no seu cartório notarial, o qual truncou os respectivos espaços em branco e o depositou no seu cartório.
Salientou-se, a este propósito, que a lei francesa, nos artigos 969º e 970º do respectivo Código Civil, permite esta modalidade de testamento, não o sujeitando a qualquer outro formalidade.
Tal disposição legal apenas exige a forma escrita no testamento, proibindo somente os denominado testamentos nuncupativos, ou seja, orais.
Por outro lado, afirmou-se neste acórdão, em sentido oposto ao perfilhado pelo Tribunal da Relação, que a exigência de solenidade de forma só se aplica numa das fases: ou na feitura, ou na aprovação do testamento.
De todo o modo, e apenas pelo facto decisivo de o testador não ter residência habitual em França, tendo-se deslocado a esse país apenas com o objectivo de realizar em solo francês e segundo a lei francesa esse acto, tal testamento não foi considerado válido perante o ordenamento jurídico português, confirmando-se assim as decisões das instâncias inferiores.
(este mesmo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça foi objecto de comentário e análise crítica por parte de Guilherme de Oliveira, em anotação na “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 125º, páginas 309 a 314, onde deixou registado que:
“A aplicação da lei francesa devia fundar-se na pura e simples regra de conflitos portuguesa que trata da validade formal dos testamentos feitos no estrangeiro – o artigo 65º, nº 1. Nos termos desta norma, o testamento é válido e eficaz se tiver sido feito segundo a lei do lugar da celebração (no caso, a lei francesa) sendo irrelevante que esse lugar não passe de uma residência ocasional do testador.
Um tribunal que está perante um testamento ológrafo e que não vê qualquer obsctáculo resultante dos artigos 65º, nº 2, e 2223º - como foi o caso do Supremo Tribunal – só pode aplicar tranquilamente o direito do lugar da celebração do acto e aceitar a eficácia do testamento em Portugal”)
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Janeiro de 1996 (relator Armando Torres Paulo), publicitado in www.jusnet.pt.
Estava neste caso em análise a situação de um cidadão espanhol, residente em Portugal, que realizou no nosso país o seu testamento, concretamente no notário português, de acordo com os procedimentos exigidos pela lei portuguesa.
O testamento foi elaborado em 10 de Abril de 1987 e o testador veio a falecer em 8 de Agosto de 1987.
Segundo que a lei espanhola então vigente, exigia-se, em termos de procedimento a seguir obrigatoriamente, que o notário consignasse que o testador tinha capacidade para realizar o testamento, o que o notário português não observou, pelo facto de a lei portuguesa não prever tal formalidade.
O STJ considerou que o testamento era válido, por razões diversas das perfilhadas pelas instâncias inferiores, entendendo que haveria que distinguir entre a forma do testamento e as formalidades exigidas, concluindo que, sendo no caso aplicável a lei portuguesa nos termos do artigo 65º, nº 2, do Código Civil, não havia qualquer vício de forma na medida em que a lei espanhola prevê precisamente as modalidades de forma conhecidas na lei portuguesa: o testamento público e o testamento cerrado.
acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23 de Outubro de 1997 (relator Saleiro de Abreu), publicado in Colectânea de Jurisprudência, Ano XXII, Tomo 4º, páginas 224 a 225.
Aborda a situação de um cidadão português, residente na Venezuela, que realizou nesse país o seu testamento, em conformidade com a respectiva lei civil.
Considerou o Tribunal da Relação que o facto do testamento obedecer à forma escrita e ter sido aprovado por oficial público satisfazia a forma solene prevista no artigo 2223º do Código Civil.
Pelo que concluiu pela validade do testamento perante a ordem jurídica portuguesa, contrariando a posição assumida pela instância judicial inferior que não havia reconhecido qualquer eficácia ao testamento pelo facto de existir, na lei venezuelana, uma forma mais solene do que aquela que foi seguida e pela qual o inventariado poderia ter optado, não o tendo feito.  
acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20 de Abril de 2006 (relatora Ana Luísa Geraldes), publicitado in www.jusnet.pt.
O acórdão ocupa-se do caso de um cidadão espanhol, residente em Portugal, que realizou no nosso país o seu testamento, sem obedecer a qual tipo de formalidade, limitando-se à escrita constante de uma folha de papel, com os dizeres pretensamente imputáveis ao decujus, que foi encontrado inesperadamente naquela que foi a sua casa de habitação.
O testamento foi datado em 14 de Janeiro de 1991 e o testador veio a falecer em 16 de Novembro de 1994.
Embora a lei espanhola aceitasse em geral a validade do testamento alógrafo, o presente escrito não se encontrava rodeada das garantias mínimas para poder ser considerado como fidedigno e autêntico.
Decidiu-se, assim, com esse fundamento específico, pela invalidade do testamento.
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Outubro de 2006 (relator Salvador da Costa), publicado in www.dgsi.pt.
Este acórdão do Supremo Tribunal de Justiça apreciou em recurso de revista o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20 de Abril de 2006, supra referido.
Confirmou a decisão de 2ª instância com base no seguinte argumentário:
A lei portuguesa não reconhece a validade do testamento ológrafo provada que seja a sua feitura, sendo certo que a lei pessoal do testador é a espanhola, uma vez que se trata de um cidadão espanhol.
Na situação sub judice, o conhecimento da questão de fundo acabou por ficar relativamente prejudicado pela falta de prova da autenticidade da feitura do testamento, não se tendo demonstrado que a elaboração do documento fosse imputável ao decujus.
acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6 de Dezembro de 2011 (relator Fonte Ramos), publicado in www.dgsi.pt.
Trata da situação de um cidadão português, residente nos Estados Unidos da América, que realizou neste país o seu testamento, concretamente perante um notário em New Jersey, tendo-o feito na língua inglesa, e de acordo com os procedimentos exigidos na circunscrição respectiva.
O testamento foi elaborado em 2 de Setembro de 1986 e o testador veio a falecer em 3 de Novembro de 2007.
Tal questão foi suscitada no âmbito de um processo de inventário, no qual a juiz a quo havia determinado a remessa das partes para os meios comuns com vista à dilucidação da matéria atinente à validade substancial e formal do testamento, tendo sido interposto recurso contra tal decisão.
Afirmou-se no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra em causa:
“(...)o testamento só produz efeitos em Portugal se tiver sido observada a solenidade devida na sua feitura ou aprovação. Esse carácter solene que a lei exige do acto testamenteiro traduz-se na intervenção de entidade dotada de fé pública, seja na elaboração da disposições de última vontade, seja na aprovação por mera deliberação das disposições lavradas pelo declarante. É a intervenção do oficial público com funções notariais que marca o sinal mínimo de autenticidade/solenidade, nos termos dos artigos 65º e 2223º do Código Civil. Porém, não se exige solenidade nas duas fases (feitura ou aprovação)”.
No caso concreto, entendeu este Tribunal Superior que as formalidades exigidas pelos ditos normativos foram observadas e que foi respeitada a Convenção Relativa à Lei Uniforme sobre a Forma do acto de Testamento Universal, concluída em Washington, em 26 de Outubro de 1973, aprovada pelo Decreto-lei nº 252/77, de 23 de Maio.
Portanto, foi confirmada a decisão recorrida que determinara a remessa das partes para os meios comuns, no pressuposto prévio e basilar da validade formal do testamento realizado por português em país estrangeiro.
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Junho de 2013 (relator Gregório de Jesus), publicitado in www.jusnet.pt.

Observou-se no acórdão a situação de uma cidadã brasileira, residente em Portugal, que realizou no Consulado Geral da República Federativa do Brasil, em Lisboa, o seu terceiro testamento, no qual revogou os dois anteriores, dispondo dos seus bens sitos em Portugal e no Brasil, e desse modo ofendendo a legítima dos seus herdeiros legitimários, conforme se veio a comprovar após a sua morte.
Este último testamento foi elaborado em 23 de Junho de 2005.
O Supremo Tribunal de Justiça considerou que a forma do testamento deveria ser apreciada à luz da lei brasileira, afirmando expressamente que o testamento não padecia de qualquer vício formal face ao disposto no artigo 2223º do Código Civil, na medida em que a solenidade exigida pela disposição legal se limitava praticamente à observância de forma escrita, proibindo-se apenas os testamentos orais.
Decidiu, contudo, o Supremo Tribunal de Justiça pela ineficácia parcial do testamento com recurso à figura da fraude à lei, por avocação do estatuído artigo 21º do Código Civil.
acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11 de Fevereiro de 2016 (relatora Cristina Cerdeira), publicado in www.dgsi.pt.
Este acórdão versou uma situação que contém alguns contornos factuais aproximados daquela que está agora em apreciação.
Trata-se de um cidadão português, residente em França, que realizou nesse país testamento, seguindo as prescrições exigidas pelo Código Civil francês.
O testamento encontra-se datado de 18 de Dezembro de 2011, foi depositado pelo notário em 9 de Novembro de 2012 e o testador veio a falecer em França em 19 de Maio de 2012.
Escreveu-se nesta decisão colegial:
“...o testamento limitou-se a observar a forma escrita. Trata-se de um documento particular, alegadamente redigido pelo seu autor, e não por notário ou oficial público, nem sequer sujeito pelo testador a aprovação por qualquer entidade pública através de instrumento público que lhe confira solenidade. (...) o único contacto que o dito “testamento” teve com a entidade pública/notário foi quando foi efectuado o depósito do mesmo, já após o óbito, sem que em vida o testador tivesse atestado perante o notário que o referido documento era o seu testamento e que consubstanciava a sua última vontade, de forma livre e esclarecida”.
Decidiu este Tribunal da Relação pela invalidade do testamento, não produzindo o mesmo efeitos em Portugal, por desconformidade com o exigido pelo artigo 2223º do Código Civil, uma vez que não se teve por demonstrada qualquer intervenção do oficial público francês que garantisse a autenticidade/solenidade do acto testamentario.
acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9 de Maio de 2017 (relator Manuel Marques), publicado in www.dgsi.pt.
Este acórdão abordou a situação de uma cidadã portuguesa, residente em Londres, que aí realizou o seu testamento
O testamento foi datado em 24 de Julho de 2005 e o testador veio a falecer em 11 de Fevereiro de 2008.
Entendeu o Tribunal da Relação que o testamento não foi aprovado por oficial público, não tendo sequer sido apresentado pelo testador para a dita aprovação.
Apenas foi dada como provada nos autos uma declaração do Tribunal de Justiça – Cartório Notarial de Winchester  -, datada de 26 de Agosto de 2008, em que se consigna:
“Faz saber que a E..., faleceu em 11 de Fevereiro de 2008, domiciliada em Inglaterra e País de Gales. É ainda dado a conhecer que a última vontade e testamento da falecida (uma cópia é anexada) foi provada e registada no Tribunal de Justiça e que a administração de todos os bens que por lei delega ao representante da falecida foi concedida pelo Tribunal de Justiça nesta data ao executor Andrew...”
Porém, salientou o Tribunal Colectivo que a mesma não se traduz no denominado “Grant of Probate”.
De resto, o Tribunal Colectivo também considerou existirem dúvidas acerca de qual o testamento a que efectivamente se reportava a mencionada declaração, sendo certo que o decujus realizou, sucessivamente, mais do que um testamento.
Decidiu-se, assim, pela invalidade desse testamento e a não produção dos seus efeitos em Portugal, em conformidade com o disposto no artigo 2223º do Código Civil.
acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 4 de Outubro de 2018 (relator José Flores) publicado in www.dgsi.pt.
Este acórdão cuidou de uma questão suscitada na pendência de um processo de inventário em que está em causa um testamento elaborado na Austrália (Sidney) por uma cidadão português, residente naquele país.
O testamento tem a data de 25 de Março de 1987 e dele consta, para além do texto elaborado pelo punho do testador, a assinatura de um solicitador e de um secretário, bem como a menção à presença destes no acto enquanto testemunhas.
Foi ainda colocado no documento, pelo Departamento dos Negócios Estrangeiros da Austrália, em 7 de Março de 2010, a respectiva Apostilha, para efeitos da Convenção de Haia.
Entendeu o Tribunal que tal testamento era inválido face ao especialmente exigido no artigo 2223º do Código Civil, por não ter beneficiado da intervenção de algum funcionário público que lhe conferisse a solenidade exigida na disposição legal.
Seguiu de perto a doutrina do supra referenciado acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11 de Fevereiro de 2016, que citou longamente.
Julgou ainda improcedente a invocada inconstitucionalidade do artigo 2223º do Código Civil.
acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Junho de 2019 (relatora Ana Paula Boularot), publicita in www.dgsi.pt.
Este acórdão do Supremo Tribunal de Justiça apreciou em recurso de revista o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 4 de Outubro de 2018, supra referido.
Confirmou a decisão de 2ª instância com base no seguinte argumentário:
Embora no testamento houvesse a intervenção de um profissional forense, o mesmo interveio como testemunha no acto, e não no exercício da sua actividade profissional.
O testamento é válido à luz da lei australiana.
Porém, não houve na feitura ou aprovação do testamento a intervenção de qualquer entidade pública, não sendo a mesma exigida, à época, no Estado da Nova Gales do Sul, circunscrição australiana onde o acto jurídico teve lugar.
Desconhece-se ainda onde o testamento esteve guardado durante os vinte anos que sobrevieram ao óbito do testador.
A aposição da Apostilha no testamento, servindo apenas para certificar o documento e tornar desnecessária a sua autenticação em Portugal, em conformidade com o disposto no artigo 365º do Código Civil, não se destina a atestar a autencidade da feitura do testamento ou a sua aprovação por entidade pública, não significando a intervenção desta para esse decisivo efeito.
Reafirmou que o artigo 2223º do Código Civil não padece de qualquer inconstitucionalidade.
O Supremo Tribunal de Justiça, confirmando a decisão das instâncias inferiores, concluiu pela invalidade do testamento perante o ordenamento jurídico português.
Feito este bosquejo jurisprudencial, cumpre debruçarmo-nos sobre o caso concreto de que tratam os presentes autos, com avocação da pertinente doutrina sobre o tema:
Recorde-se, antes de mais, o que dispõe o artigo 2223º do Código Civil, com a epígrafe “Testamento feito por português em pais estrangeiro”:
“O testamento feito por cidadão português feito em país estrangeiro com observância da lei estrangeira competente só produz efeitos em Portugal se tiver sido observada uma forma solene na sua feitura ou aprovação”.
(sublinhado nosso).
Conforme refere Jorge Duarte Pinheiro in “O Direito das Sucessões Contemporâneo”, AAFDL, 2011, Reimpressão, a página 142:
“A estatuição do artigo 65º (do Código Civil) é limitada pelo artigo 2223º: o testamento feito por cidadão português em país estrangeiro com observância da lei estrangeira competente só produz efeitos em Portugal se tiver sido observada uma forma solene na sua feitura ou aprovação.
Tendo em conta a referência a uma forma solene, a doutrina dominante entende que a eficácia do testamento depende da observância da lei estrangeira competente e da utilização da forma escrita com a intervenção de notário ou de outra entidade dotada de fé pública. Isto significa, por exemplo, que não produz efeitos em Portugal o testamento nuncupativo ou ológrafo feito por português no estrangeiro, ainda que tenham sido respeitadas as formalidades impostas pela lei do lugar em que foi realizado o negócio”.
Sobre esta matéria escreve Oliveira Ascensão in “Direito Civil. Sucessões”, Coimbra Editora, 1981, a páginas 75 a 76:
“O testamento deve obedecer a uma forma solene: a lei regula com precisão esta matéria, de molde a corresponder à importância do acto.
Estão assim banidas da ordem jurídica portuguesa formas históricas do testamento, que por vezes ainda surgem em ordens jurídicas estrangeiras. É o caso do testamento nuncupativo, ou seja, o testamento meramente oral, baseado no mero consentimento do autor da sucessão; e é ainda, e sobretudo, o caso do testamento ológrafo, ou seja, o testamento escrito, e proventura datado e assinado pelo testador, sem observância de qualquer outra formalidade. (...) O princípio da solenidade só poderá ceder quando a norma de conflitos remeta para uma ordem jurídica em que não se exija forma solene, nos termos do artigo 65º. Essa regra é então acolhida na ordem jurídica portuguesa. Trata-se porém de matéria de Direito Internacional Privado (....)
Mesmo o testamento feito por português em país estrangeiro não escapa ao princípio da solenidade. Ele podia tê-lo feito perante a repartição consular competente, ficando sujeito às regras do direito português e, mais particularmente, às regas que disciplinam a actividade consular. Permite-se-lhe porém que recorra à lei competente no lugar da celebração: mas o testamento “só produz efeitos em Portugal se tiver sido observada uma forma solene na sua feitura ou aprovação” (artigo 2223º)”.
Por seu turno, escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Volume VI, Coimbra Editora, 1998, a página 356:
“O artigo 2223º, que se refere à forma externa exigida para o testamento lavrado por cidadão português em país estrangeiro, tem o seu antecedente no artigo 1961º do Código de 1867.
Prescrevia-se neste artigo 1961º que os testamentos feitos por portugueses em país estrangeiro produziriam os seus efeitos legais no reino, desde que formulados automaticamente, em conformidade com a lei do país em que foram celebrados.
Foi precisamente esta a ideia fundamental que o novo Código pretendeu aproveitar.
Por um lado, com a solução eclética adoptada neste artigo, respeita o velho princípio de que é à lei do lugar onde o acto se realiza que compete regular a sua forma externa (locus regit actuam) (...)
Por outro lado, porém, como requisito mínimo de obediência às leis do país onde o acto (testamento) se destina a produzir os seus efeitos, não se prescindiu de que ele revista o carácter solene que a lei portuguesa dele exige.
E esse carácter solene, que a lei exige do acto testamentário, traduz-se na intervenção de entidade dotada de fé pública, seja na elaboração da disposição de última vontade, seja na aprovação por mera delibação das disposições lavradas pelo declarante.
É, por conseguinte, a intervenção de oficial público com funções notariais que marca o sinal mínimo de autenticidade (ou de solenidade) exigido neste artigo.
Em conformidade com este pensamento legal se encontra, aliás, traçado o disposto no artigo 65º, dentro da área do direito internacional privado”.
Cumpre outrossim salientar que refere assertivamente Batista Machado in “Lições de Direito Internacional Privado”, 3ª edição, página 451, relativamente à interpretação da exigência de solenidade expressa no artigo 2223º do Código Civil:
“(...) (a forma solene) parece significar o mesmo que forma escrita pelo só ficaria excluída, portanto, a eficácia do testamento puramente nuncupativo”.
Em sentido contrário manifesta-se Guilherme de Oliveira, in “O Testamento- apontamentos”, in “Temas de Direito de Família”, 2ª edição, Coimbra Editora pagina 146, afirmando designadamente: “o legislador ditou o artigo 2223º não apenas para evitar a eficácia de algum raro testamento oral, mas sim para impor sistematicamente a exigência portuguesa da utilização da forma escrita com a intervenção de um notário ou oficial equivalente. O que teria o resultado de limitar a eficácia dos testamentos àqueles que tivessem sido “feitos” por um oficial público ou aprovados por ele”, bem como na “Revista de Legislação e Jurisprudência”, ano 125º, a páginas 309 a 316, em anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Maio de 1992 (relator Bessa Pereira) referenciado supra, onde pode ler-se, a páginas 314 a 316:
“Inclino-me para pensar que o legislador ditou o artigo 2223º não apenas para evitar a eficácia do raro testamento oral, mas sim para impor sistematicamente a exigência portuguesa da utilização da forma escrita com a intervenção de um notário ou oficial equivalente. O que teria o resultado de limitar a eficácia dos testamentos àqueles que tivessem sido “feitos” por um oficial público ou “aprovados” por ele.
Certamente que esta “feitura” ou esta “aprovação” seguiriam os trâmites concretos definidos pela lei estrangeira aplicável – a lei do lugar. Mas sempre poderia reconhecer-se, no testamento cuja eficácia se reconhecia, o cumprimento dos requisitos básicos cuja observância se pode esperar num testamento público ou num testamento cerrado.
Pode retorquir-se que esta maneira de estender o artigo 2223º vai inutilizar, por exemplo, testamento ológrafos feitos em países vizinhos, onde os cidadãos portugueses se encontram radicados, sendo certo que a ineficácia dos testamentos pode ser compreensivelmente ignorada pelo testador; e assim se vai beneficiar os sucessores legítimos contra uma expressão da vontade que pode, em cada caso, não oferecer dúvida. Em contrário, poderá dizer-se que esta exigência não é maior do que a que se faz, tradicionalmente, aos nacionais residentes em Portugal”.
Pronuncia-se também Capelo de Sousa in “Lições de Direito das Sucessões”, I Volume, 4ª edição, Coimbra Editora, a fls. 195, nos seguintes termos:
“(...) exige-se um testamento escrito com intervenção de notário ou de outra entidade dotada de fé pública, aquando da elaboração do testamento ou do instrumento de aprovação, não se admitindo, pois, como produzindo efeitos em Portugal os testamentos nuncupativos ou testamentos ológrafos feitos no estrangeiro” (....)”Tratando-se de cidadão português a testar no estrangeiro, o limite do artigo 65º, nº 2, traduz-se no artigo 2223º”.
Convém salientar, ainda, na lógica intrínseca do sistema jurídico português quanto à validade do testamento celebrado por cidadão português em país estrangeiro onde tem a sua residência habitual e em conformidade com as exigências da lei do local da celebração, que o artigo 65º do Código Civil, aplicável à situação sub judice, ao estabelecer uma conexa alternativa, teve especialmente em mente, conforme escreve Marques dos Santos in “Parecer” publicado in Colectânea de Jurisprudência/STJ, Ano III, Tomo 2º, pagina 7:
“...uma nítida preocupação de justiça material, uma ideia de favor negotii (aqui favor testamenti), na acepção de favor validitatis, tendente a favorecer a validade formal das disposições por morte, segundo o princípio ut res magit valeant quam pereant”.
Analisando agora a situação sub judice:
O decujus tinha a sua residência habitual em França.
Poucos meses antes do seu falecimento, dirigiu-se a um notário por si escolhido, ou seja, a um oficial público com cartório aberto em Paris, com vista a redigir o seu testamento, em conformidade com os procedimentos formais exigidos pela lei francesa, procurando e confiando na segurança, certeza e eficácia da produção dos efeitos do acto testamenteiro, o que lhe seria razoavelmente transmitido pela presença e actuação daquele oficial da Administração no exercício profissional das respectivas funções públicas.
Foi pois nesse cartório notarial, assistido presencialmente pelo notário, cujas especiais funções e conhecimentos técnicos solicitou para a consumação do acto testamentário, que o testador, sob sua orientação, redigiu, datou e assinou o seu testamento, confiando naturalmente que o mesmo fosse para valer em Portugal, onde era titular de património imobiliário.
O dito notário recebeu da mão do autor da sucessão o seu testamento, que guardou, de imediato, no seu cofre-forte.
Em suma, o acto testamentário foi reduzido a escrito e integralmente acompanhado por um oficial público, o qual zelou diligentemente pela sua autenticidade e fidedignidade, que desse modo garantiu.
Ora, não se concebe que o artigo 2223º do Código Civil imponha que a validade e subsequente produção de efeitos em Portugal do testamento elaborado por escrito em cartório notarial em França, com a presença do notário respectivo que acompanhou o acto, esclareceu e orientou tecnicamente o testador, o que demonstra claramente a sua intervenção proactiva no respeito integral pelos procedimentos exigidos pela lei francesa, deva ficar ainda dependente de qualquer outro tipo de formalidade para poder considerar-se que, perante o ordenamento jurídico português, revestiu uma “forma solene”.
Bem pelo contrário, entendemos que os requisitos de solenidade do testamento previstos no artigo 2223º do Código Civil encontram-se desta forma totalmente assegurados, não se exigindo, de resto, que estejam presentes, cumulativamente na fase da sua feitura e na da sua aprovação.
O disjuntivo “ou” inserto na citada disposição legal significa precisamente que a exigência de solenidade terá que estar presente ou na feitura, ou na aprovação do testamento pela entidade dotada de fé pública.
Caso contrário, o legislador teria feito uso da conjunção aditiva “e”.
Tal não sucedendo, deverá retirar-se a consequente ilação, em conformidade com o espírito que preside ao disposto no artigo 9º, nº 3, do Código Civil (“Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”).
Segundo, portanto, a interpretação que perfilhamos no que concerne ao âmbito e alcance do artigo 2223º do Código Civil, o testamento feito por português no estrangeiro, onde reside, de acordo com a lei desse lugar, é formalmente válido e, nessa medida, produz os seus efeitos em Portugal, desde que reduzido a escrito – excluindo-se portanto a validade dos testamentos nuncupativos – e se for acompanhado na sua feitura, directa e presencialmente, por funcionário dotado de poderes de fé pública – normalmente um notário -, seja na fase da sua elaboração pelo testador (texto, data e assinatura), seja, em alternativa, na fase posterior da sua aprovação pelo dito agente público.
Esta leitura da disposição legal, não exarcerbando em demasia, exageradamente, as exigências de forma, é aquela que concorre no sentido da conservação do negócio jurídico celebrado de acordo com a vontade expressa do testador e em conformidade com a lei da celebração do acto, permitindo que a mesma se concretize em toda a sua plenitude, com natural prevalência sobre as regras da sucessão legítima, por natureza meramente subsidiária, e desde que exista uma garantia segura de autenticidade e fidedignidade do acto que é transmitida pela intervenção de um funcionário com poderes de fé pública durante toda a sua realização ou através da posterior aprovação por ele do testamento.  
Na situação sub judice existe um escrito redigido, datado e assinado pessoalmente pelo testador, na presença do notário que acompanhou o acto de princípio a fim, apercebendo-se do seu teor e havendo mesmo previamente esclarecido o autor da sucessão quanto ao significado e alcance do acto testamenteiro que iria sob a sua égide praticar, e que guardou imediatamente o testamento no seu cofre forte, tudo em plena conformidade com a lei do lugar em que o acto foi praticado, concretamente a lei civil francesa.
Contrariamente ao que sucedeu em várias das situações versadas pela jurisprudência citada supra, não se trata aqui de um “mero papel” que surge sem se perceber em que circunstâncias concretas foi elaborado, ou sem a presença de um oficial público que, actuando profissionalmente, lhe conferisse a imprescindível fé pública.
Ou seja, estamos em face de um documento que é elaborado num cartório notarial, acompanhado a pari passu pelo oficial público que garante por si a autenticidade e a fidedignidade da sua autoria, e o guarda, de imediato, no seu cofre-forte.
A solenidade exigida pelo artigo 2223º do Código Civil satisfaz-se com a descrita formalidade, a qual, uma vez provada como o foi neste processo, não deixa a menor dúvida acerca das às reais e efectivas intenções do autor da sucessão ao produzir aquela disposição de última vontade que, nessa mesma medida, com respeito pelo apuramento e satisfação da mesma e na defesa do princípio da conservação dos negócios jurídicos, deverá ser acatada e tornada eficaz em Portugal, não obstante a tentativa de alguns familiares - que com ele não mantinham relação próxima alguma (designadamente uma irmã consanguínea com quem não se dava regularmente) - em procurar, fundada em argumentário estritamente formal, construído sobre a dúvida e a nebulosa especulação, e na aplicação das regras meramente subsidiárias da sucessão legítima (artigos 2027º e 2131 a 2155º do Código Civil), frustrá-la e paralisá-la, tudo em benefício próprio e obviamente contrário à vontade do decujus.
O testamento sub judice é portanto válido perante o ordenamento jurídico português, produzindo no nosso país os efeitos associados à natureza do negócio jurídico unilateral em apreço.
Dir-se-á muito sinteticamente relativamente às conclusões de recurso da apelante:
1º– Não se vê qualquer fundamento legal para obrigar a que o testamento celebrado em França, segundo as leis francesas, tivesse de contemplar qualquer das modalidades e especificidades previstas na legislação nacional, mormente as mencionadas nos nºs 4 e 5 do artigo 2206º do Código Civil e o consignado no Código do Notariado português, na versão aplicável, que obviamente não revestem a natureza de imperativo de ordem públicado do Estado português.
O artigo 2223º do Código Civil, devidamente interpretada, afasta obviamente tais considerações que equivaleriam à necessidade de importar, com rigor excessivo e injustificado, todas as obrigatoriedades específicas da lei portuguesa nos testamentos celebrados em país estrangeiro, de acordo com a lei respectiva e sendo o testador seu residente habitual, quando os procedimentos aí concretamente seguidos, observando desde logo a forma escrita e a intervenção activa e ficalizadora de oficial público que lhe confere a necessária fé pública, garantem naturalmente a fidedignidade e segurança da prática do acto testamenteiro que interessa naturalmente preservar.
O critério da norma legal é apenas o da observância de solenidade na prática do acto ou na sua aprovação, conforme se desenvolveu supra.
(Diverge-se neste ponto, respeitosamente, da posição assumida no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11 de Fevereiro de 2016, citado supra).
2º– Também não se compreende que a intervenção de notário durante todo o acto testamenteiro, nos termos da lei francesa aplicável, com a posterior realização de um depósito do testamento não seja susceptível de garantir, com a solenidade exigível, a integridade da autonomia da vontade do testador.
Note-se que o notário respectivo teve que proceder à identificação do autor da sucessão, auscultar as suas disposições, explicar-lhe os procedimentos legais que se impunham no caso, e de receber das suas mãos o escrito que as consubstancia e que foi por si depositado no cofre forte do cartório respectivo.
Todos estas diligências, devidamente formalizadas, conferem a solenidade mínima exigida pela lei portuguesa (artigo 2223º do Código Civil), sendo certo que não se trata apenas de um testamento alógrafo, inteiramente escrito pelo testador, sem a presença e intervenção pessoal e extremamente participativa do oficial público em causa, nos termos que ficaram descritos.
As exigências de forma consagradas pela lei portuguesa encontram-se, como se disse, inteiramente satisfeitas.
A apelação improcede, portanto.


IV–DECISÃO:
 
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela A. apelante.



Lisboa, 24 de Setembro de 2019.


 
(Luís Espírito Santo).                                                    
(Conceição Saavedra).
(Cristina Coelho).

Decisão Texto Integral: