Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2042/09.1IDLSB-A.L1-9
Relator: CRISTINA BRANCO
Descritores: ADVOGADO
MANDATÁRIO
QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/07/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: QUEBRA DE SIGILO PROFISSINAL
Decisão: NEGADA
Sumário: Não pode depor como testemunha porque tal contraria um princípio fundamental do direito processual, o advogado que mantém em vigor a relação jurídico-profissional com alguma das partes do processo
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. No âmbito dos autos de inquérito n.º 2042/09.1IDLSB, a correrem termos no G.I.N. Amadora – MP D.I.A.P. 8.ª Secção, da Comarca da Grande Lisboa-Noroeste – Ministério Público de Oeiras, em que está em investigação a prática de crime de fraude fiscal, p. e p. pelo art. 103.º do RGIT, foi determinada a inquirição do Sr. Dr. F(...), advogado, o qual se escusou a prestar declarações, em virtude de ser mandatário dos arguidos J(...), A(...) e Jo(...).
2. Perante tal escusa, o Ministério Público, em douta promoção, considerando indispensável à investigação do crime em causa a inquirição da referida testemunha e ser de prevalecer o interesse público da descoberta da verdade sobre o da manutenção do segredo profissional, requereu que fosse suscitado o competente incidente de dispensa de sigilo junto do Tribunal da Relação.
3. O Mmo. Juiz de Instrução Criminal solicitou à Ordem dos Advogados que se pronunciasse sobre a legitimidade ou ilegitimidade da escusa, vindo aquela a emitir Parecer no qual conclui pela respectiva legitimidade.
4. Reconhecendo a legitimidade formal da escusa, por despacho proferido a fls. 1098-1099 destes autos, o Mmo. Juiz de Instrução Criminal suscitou a intervenção deste Tribunal, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 135.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
5. Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

*

II. Fundamentação

A única questão que nos autos se suscita é a de apreciar se, no caso concreto, deve ou não ser determinada a quebra do sigilo profissional do Sr. Dr. F(...), a fim de o mesmo ser ouvido como testemunha.

Estabelece o n.º 1 do art. 135.º do CPP que «os ministros de religião ou de confissão religiosa e os advogados, médicos, jornalistas, membros de instituições de crédito e as demais pessoas a quem a lei permitir ou impuser que guardem segredo podem escusar-se a depor sobre os factos por ele abrangidos».

Por seu turno, dispõe o art. 87.º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei n.º 15/05, de 26-01, sob a epígrafe “Segredo profissional”:

«1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;

c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d) A factos comunicados por co-autor, co-réu ou co-interessado do seu constituinte ou pelo respectivo representante;

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respectivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham qualquer intervenção no serviço.

3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo.

4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respectivo regulamento.

5 – Os actos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.

6 – Ainda que dispensado nos termos do disposto no nº 4, o advogado pode manter o segredo profissional.

7 – O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no nº 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua actividade profissional, com a cominação prevista no nº 5.

8 – O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração.»

Daqui decorre, pois, que o advogado está legalmente obrigado a segredo profissional no que respeita a factos conhecidos no exercício das suas funções, seja qual for a origem da fonte.

O dever de sigilo dos profissionais do foro, mais concretamente dos advogados, está conexamente consagrado como uma das dimensões constitucionais do patrocínio forense, considerado como «um elemento essencial à administração da justiça» (cf. art. 208.º da CRP), sendo que o direito fundamental e constitucional de acesso ao direito (cf. art. 20.º da CRP) implica, para além do mais, o correspondente patrocínio judiciário, com a particular relação de confiança entre o advogado e o seu cliente, a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes.

A lei penal sanciona, no seu art. 195.º, «Quem, sem consentimento revelar segredo alheio de que tenha tomado conhecimento em razão do seu estado, ofício, emprego, profissão ou arte.»

E da violação desse dever de reserva decorrem também consequências no plano estatutário e no plano processual.

No âmbito do primeiro, a ofensa do dever de sigilo faz incorrer o advogado infractor em responsabilidade disciplinar (cf. art. 11.º do EOA).

No domínio processual, os actos praticados com violação daquele dever redundam numa proibição de prova (cf. art. 87.º, n.º 5, do EOA e 126.º, n.º 3 do CPP).

No entanto, contrariamente ao que sucede, por exemplo, com o segredo religioso, o dever de sigilo que vincula o advogado não tem um carácter absoluto, cedendo desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes (cf. n.º 4, 1,ª parte, da citado art. 87.º do EOA).

Essa quebra do dever de sigilo só é admissível desde que obtida a prévia autorização do presidente do conselho distrital respectivo (cf. art. 87.º, n.º 4 do EOA). E, mesmo no caso de ter sido devidamente autorizado pelo seu conselho, o advogado pode escusar-se à revelação (art. 87.º, n.º 6 do EOA).

Se o presidente não autorizar a quebra, o advogado deve escusar-se a depor com base no segredo, cabendo ao tribunal decidir da legitimidade dessa escusa e ao tribunal a superior decidir da respectiva justificação, mediante o incidente processual a que se refere o n.º 3 do art. 135.º do CPP.

Neste incidente o Tribunal «pode decidir a prestação do testemunho com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos».

Segundo refere Costa Andrade[1], este critério material do princípio da relevância do interesse preponderante projecta-se «em quatro implicações normativas fundamentais:

a) Em primeiro lugar e por mais óbvia, avulta a intencionalidade normativa de vincular o julgador a padrões objectivos e controláveis, não cometendo a decisão à sua livre apreciação;

b) Em segundo lugar, resulta líquido o propósito de afastar qualquer uma de duas soluções extremadas: tanto a tese de que o dever de segredo prevalece invariavelmente sobre o dever de colaborar com a justiça penal (...) como a tese inversa de que a prestação de testemunho perante o tribunal (penal) configura só por si e sem mais, justificação bastante da violação do segredo profissional (…);

c) Em terceiro lugar, o apelo ao princípio da ponderação de interesses significa o afastamento deliberado da justificação, neste contexto, a título de prossecução de interesses legítimos. Isto é: a realização da justiça penal, só por si e sem mais (despida do peso específico dos crimes a perseguir) não figura como interesse legítimo bastante para justificar a imposição da quebra do segredo. E isto sem prejuízo da pertinência e validade reconhecidas a esta derimente no regime geral da violação de segredo (…);

d) Em quarto lugar, com o regime do artigo 135º do CPP, o legislador português reconheceu à dimensão repressiva da justiça penal a idoneidade para ser levada à balança da ponderação com a violação do segredo: tudo dependerá da gravidade dos crimes a perseguir.»

Assim, a decisão sobre a quebra do sigilo profissional impõe uma criteriosa ponderação dos valores em conflito, avaliando, perante as particularidades de cada caso concreto, a diferente natureza e relevância dos bens jurídicos tutelados pelos deveres em confronto, segundo um critério de proporcionalidade na restrição, na medida do necessário, de direitos e interesses constitucionalmente protegidos, em obediência ao que dispõe o art. 18.º, n.º 2, da CRP.

No caso concreto, haverá, pois, que ponderar, a intensidade da lesão dos interesses que fundamentam a instituição do sigilo profissional de advogado, a concreta relevância das informações pretendidas para a investigação e a gravidade do(s) crime)s) que constituem o objecto do processo, e o interesse público na boa administração da Justiça, o exercício do jus puniendi por parte do Estado relativamente a quem ofenda, de forma intolerável, a ordem jurídica estabelecida.

Nos autos está em investigação a prática de um crime de fraude fiscal, por eventual ocultação de proventos, tipificado no art. 103.º do RGIT, ilícito que não está a coberto de qualquer norma legal que expressamente derrogue o segredo profissional, pelo que se apresenta como formalmente legítima a escusa a depor do senhor advogado relativamente a factos cujo conhecimento lhe tenha advindo do exercício das suas funções.

Compulsada a certidão que instrui o presente incidente, verifica-se que:

- Os autos foram instaurados contra “S(...), SA”, por eventual ocultação de proventos, estando em causa a alienação de diversos imóveis no decurso dos anos de 2004, 2005 e 2008, sem que os respectivos proveitos tenham sido reconhecidos nos exercícios da sociedade;

- Dessa sociedade anónima foram administradores, até 04-12-2007, (...) (cf. fls. 41-45), entretanto constituídos arguidos nos autos;

- Por deliberação de 31-12-2007 da assembleia geral da sociedade, foi nomeado administrador único da sociedadeS(...), que renunciou ao cargo em 25-01-2008;

- Nessa mesma data, em assembleia geral, foi nomeado administrador único da sociedadeA(...), entretanto constituído arguido nos presentes autos;

- Em assembleia geral realizada em 02-04-2008, A(...) renunciou às suas funções de administrador, tendo sido nomeado An(...), entretanto constituído arguido nos autos;

- A assembleia geral realizada em 25-01-2008 foi presidida pelo Sr. Dr. F(...) (cf. fls. 862-863);

- Na escritura pública de compra e venda celebrada em 15-02-2008 entre a “S(...),SA” e a “C(...), S.A.”, o Sr. Dr. F(...) interveio em representação da primeira, com procuração com poderes para o acto, datada de 04-02-2008 (cf. fls. 655-662 e 745-749);

- Das declarações das testemunhas A(...) e R(...) resulta que a compra e venda do imóvel a que essa escritura respeita foi negociada com o Sr. Dr. F(...) enquanto representante da “S(...),SA”, tendo o mesmo participado na elaboração do respectivo contrato-promessa e recebido, antes da celebração desse contrato, um cheque no valor de € 1 500 00,00, datado de 12-09-2007 e emitido à sua ordem (cf. fls. 732-744, 776-778, 783-785 e 870);

- Das declarações da testemunha Se(...) resulta que foi contactado pelo Dr. F(...), em finais de 2007, para ser administrador da sociedade “S(...),SA”, a troco de um vencimento, ao que acedeu por ter toda a confiança naquele, desconhecendo, no entanto, a concreta actividade da referida empresa, em cujas assembleias gerais nunca terá estado presente; a testemunha referiu também que no início do ano de 2008 foi contactado, quando se encontrava detido no EP da PJ, por uma senhora advogada ou advogada estagiária do escritório do Sr. Dr. F(...), que lhe apresentou algumas folhas em branco, para que as rubricasse e assinasse, o que fez; tendo-lhe sido exibido, no decurso da sua inquirição, o contrato-promessa a que acima se aludiu, reconheceu como suas a assinatura e as rubricas nele apostas, embora desconhecesse o teor do contrato; acrescentou ainda a testemunha que no dia em que foi detido tinha agendada uma reunião com o Presidente da Câmara da Amadora, em que iria comparecer em representação da sociedade “S(...),SA”, a fim de falar sobre uns terrenos cuja localização desconhecia, aguardando instruções do Sr. Dr. F(...) e do respectivo cliente, cuja identidade ignora (cf. fls. 916-918).

Em face destes elementos, facilmente se conclui que o esclarecimento, por parte do Sr. Dr. F(...), das razões e circunstâncias que envolveram a sua própria intervenção nos factos, quer em representação da “S(...),SA”, quer no recebimento, em nome pessoal, do cheque no valor de € 1 500 000,00 a que acima se aludiu, se revela essencial – ou mesmo indispensável – ao prosseguimento da investigação dos factos em causa no processo criminal, à descoberta da verdade material e à realização da justiça, sendo certo que com a tipificação legal em questão se pretende tutelar a verdade e transparência nas relações tributárias, bem como o património ou erário público, o interesse do Estado na arrecadação de receitas fiscais.

Sucede que dos autos também resulta que o Sr. Dr. F(...) neles tem a qualidade de mandatário forense dos arguidos (...)(cf. procurações de fls. 233 e 511, datadas, respectivamente, de 09-09-2009 e 23-04-2010), (...) (cf. procuração de fls. 489, datada de 04-05-2010), (...) (cf. procuração de fls. 492, datada de 03-05-2010) e da arguida “S(...),SA” (cf. procuração de fls. 665, datada de 03-08-2010).

Estamos, assim, perante uma problemática semelhante à que esteve na base do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-10-2009, proferido no Proc. n.º 874/08.TAVCD-A.P1[2], no qual, citando Parecer do Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados emitido para o caso, se lê:
«”Na verdade, um obstáculo subsiste, que impossibilita irremediavelmente a possibilidade de o advogado em questão vir a depor sobre matéria abrangida pelo segredo profissional.
“Com efeito, é jurisprudência pacífica deste Conselho Distrital que o advogado não pode depor em circunstância nenhuma em processo no qual seja advogado constituído. É a máxima: «Advogado e testemunha, nunca!» que a Ordem tem perfilhado, ao que sabemos, de forma unânime, em todas as decisões.
“Segundo doutrina que inteiramente acolhemos, e que encontrou tradução na jurisprudência da Ordem dos Advogados, “é inaceitável autorizar a depor um Advogado para prestar depoimento em processo no qual esteja ou tenha estado constituído”, pois que “isso seria completa subversão do próprio sistema processual, em que o Advogado entre nós, se não pode nunca confundir com simultânea testemunha. E seria outrossim altamente desprestigiante para a Advocacia” - Augusto Lopes Cardoso, “Do Segredo Profissional na Advocacia”, ed. CELOA, 1997, pág. 82.
“É certo que o Tribunal não parece ainda ter em seu poder procuração que traduza esse mandato forense, nesta fase processual de inquérito. Mas tal não significa que o mandato não exista já. E o próprio advogado, ao ser inquirido, afirmou isso mesmo, dizendo que é igualmente mandatário da arguida neste inquérito, rectius, relativamente aos factos em averiguação neste inquérito.
“Ora, é sabido que o mandato forense se constitui pela declaração de vontade do constituinte, no sentido de que o advogado o represente ou patrocine num determinado assunto, sendo essa declaração de vontade (unilateral e receptícia) completada com uma declaração (expressa ou tácita) do advogado no sentido de aceitação desse patrocínio, que lhe é proposto pelo cliente. Assim se forma o contrato de mandato, que seguidamente se consubstancia numa procuração com poderes forenses, no caso de se tratar dum processo judicial.
“Portanto, pode existir a procuração e não constar ainda dos autos, por razões que só à parte e seu mandatário dizem respeito, como pode bem acontecer que o mandato já tenha sido ajustado mas ainda não tenha sido traduzido num instrumento de representação escrito.
“Num caso como noutro, o mandato já existe e as obrigações decorrentes do mesmo já têm de ser respeitadas pelo advogado, maxime as de índole deontológica e os deveres para com o seu cliente, entre os quais avulta o dever de guardar sigilo profissional.
“Por isso, a ocorrer mandato forense, bem andou o advogado em suscitá-lo e o sigilo — como vimos — não poderá ser dispensado neste caso”».

E, mais adiante:
«Uma vez que o CPP, não obstante tantas e tamanhas alterações, continua a estatuir apenas que “nenhum juiz pode exercer a sua função num processo penal … Quando, no processo, tiver sido ouvido ou dever sê-lo como testemunha” (art 39º nº 1 al d) e que “As disposições do capítulo VI do título I são correspondentemente aplicáveis, com as adaptações necessárias, nomeadamente as constantes dos números seguintes, aos magistrados do Ministério Público” (art 55º nº 1), “estão impedidos de depor como testemunhas: a) o arguido e os co-arguidos no mesmo processo ou em processos conexos, enquanto mantiverem aquela qualidade; b) As pessoas que se tiverem constituído assistentes, a partir do momento da constituição; c) As partes civis; d) Os peritos, em relação às perícias que tiverem realizado” (art 133º nº 1), “Podem recusar-se a depor como testemunhas: a) Os descendentes, os ascendentes, os irmãos, os afins até ao 2º grau, os adoptantes, os adoptados e o cônjuge do arguido; b) Quem tiver sido cônjuge do arguido ou quem, sendo de outro ou do mesmo sexo, com ele conviver ou tiver convivido em condições análogas às dos cônjuges, relativamente a factos ocorridos durante o casamento ou a coabitação” (art 134º nº 1);
Uma vez que o Código de Processo Civil, não obstante tantas e tamanhas alterações, continua a estatuir apenas que “Nenhum juiz pode exercer as suas funções, em jurisdição contenciosa ou voluntária: h) Quando haja deposto ou tenha de depor como testemunha (art 122º nº 1)” e que “Estão impedidos de depor como testemunhas os que na causa possam depor como partes” (art 617º),
Importa afirmar que o estatuto jurídico-processual-penal da Testemunha não se compagina com o estatuto jurídico processual-penal, civil e estatutário-deontológico do Defensor constituído.
Enquanto “qualquer pessoa que se não encontrar interdita por anomalia psíquica tem capacidade para ser testemunha e só pode recusar-se nos caso previstos na lei” (art 131º nº 1), “é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova” (art 128º nº 1) e, maxime, “incumbem à testemunha os deveres de: b) Prestar juramento, quando ouvida por autoridade judiciária; d) Responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas” (art 132º nº 1) e “Não pode acompanhar testemunha, nos termos do número anterior, o advogado que seja defensor de arguido no processo” (art 132º nº 2, todos do CPP),
“O defensor exerce os direitos que a lei reconhece ao arguido (discriminados nas 9 alíneas do nº 1 do art 61º nº 1), salvo os que ela reservar pessoalmente a este” (art 63º nº 1), “o arguido pode retirar eficácia ao acto realizado em seu nome pelo defensor, desde que o faça por declaração expressa anterior a decisão relativa àquele acto” (art 63º nº 2, todos do CPP), “Mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra” (art 1157º), “O mandato geral só compreende os actos de administração ordinária (art 1159º), “O mandatário é obrigado: a) A praticar os actos compreendidos no mandato, segundo as instruções do mandante; b) A prestar as informações que este lhe peça, relativas ao estado da gestão; c) A comunicar ao mandante, com prontidão, a execução do mandato ou, se o não tiver executado, a razão por que assim procedeu; d) A prestar contas, findo o mandato ou quando o mandante as exigir; e) A entregar ao mandante o que recebeu em execução do mandato ou no exercício deste, se o não despendeu normalmente no cumprimento do contrato (art 1161º); O mandatário pode deixar de executar o mandato ou afastar-se das instruções recebidas, quando seja razoável supor que o mandante aprovaria a sua conduta, se conhecesse certas circunstâncias que não foi possível comunicar-lhe em tempo útil (art 1162º), “O mandato é livremente revogável por qualquer das partes, não obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação (art 1170º), “Se o mandatário for representante, por ter recebido poderes para agir em nome do mandante, é também aplicável ao mandato o disposto nos artigos 258º e seguintes (art 1178º nº 1), “O mandatário, se agir em nome próprio, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra, embora o mandato seja conhecido dos terceiros que participam nos actos ou sejam destinatários destes (art 1180º, todos do CPC), “O advogado, no exercício da profissão, mantém sempre em quaisquer circunstâncias a sua independência, devendo agir livre de qualquer pressão, especialmente a que resulte dos seus próprios interesses ou de influências exteriores, abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao cliente, aos colegas, ao tribunal ou a terceiros” (art 84º), “A relação entre o advogado e o cliente deve fundar-se na confiança recíproca” (art 92º nº 1), “O advogado tem o dever de agir de forma a defender os interesses legítimos do cliente, sem prejuízo do cumprimento das normas legais e deontológicas” (art 92º nº 2).
Conforme síntese efectuada no Acórdão de 07.02.2007 desta 1ª Secção Criminal do TRPRT, relatado por Maria Leonor Esteves tendo, como Adjuntos, Maria do Carmo Dias e Augusto Carvalho, como Presidente daquela, Baião Papão, publicado na CJ XXXIIII Tomo I / 2007, pág 207:
“Muito embora em nenhum dos preceitos legais que regulam a matéria da prova testemunhal se vislumbre a referência textual a qualquer impedimento que obste a que o advogado de uma das partes do processo preste depoimento durante a vigência da relação processual que o liga àquela, a inadmissibilidade de tal depoimento decorre não só do princípio da não promiscuidade dos intervenientes, princípio geral do processo, mas também de interesses de ordem pública. As razões justificativas que obstam à acumulação das qualidades processuais - seja de julgador com a de parte, seja desta com a de testemunha ou de perito -, que vários preceitos legais procuram prevenir, têm igual cabimento relativamente a actuações que possam produzir efeitos na esfera jurídica de qualquer dos interessados, como sucede com a do mandatário que, em termos jurídicos, se identifica com a do mandante. Por outro lado, a função da testemunha no processo, com o inerente dever de comunicar ao tribunal, de forma isenta, objectiva e verdadeira, todos os factos acerca dos quais seja inquirida (cfr. al. d) do n° 1 do art. 132°), não se coaduna com a do advogado que, não obstante participe na realização da Justiça, se encontra sempre condicionado pelo interesse da parte que representa e ao qual em muitos casos tem de dar prevalência. Nessa medida, os deveres processuais do advogado - que não raro implicam o dever de reservar factos de que tenha conhecimento quando esteja em causa o interesse do seu constituinte, não lhe permitem desempenhar as funções de testemunha de acordo com o figurino traçado na lei para quem ocupa esta posição processual.
“São estas as linhas gerais traçadas no Parecer n° E/950, aprovado em sessão do Conselho Geral da Ordem dos Advogados de 22 de Setembro de 1995 (publicado em www.oa.pt) e de acordo com o qual, em processo penal, «Não pode depor como testemunha porque tal contraria um princípio fundamental do direito processual, o advogado que mantém em vigor a relação jurídico-profissional com alguma das partes do processo».

Subscrevemos integralmente estas considerações, sendo que, diversamente do que sucedia no caso ali tratado, nos presentes autos não estamos perante a mera invocação de um mandato forense mas ante a verificação dessa realidade: as procurações juntas aos autos atestam que o Sr. Dr. F(...) tem neles efectivamente a qualidade de mandatário constituído dos arguidos (...), (...), (...), (...), sendo que, quanto a esta última, dos autos decorre ainda que a relação de prestação de serviços existiria já anteriormente, não podendo olvidar-se que «a obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial (…)» - cf. art. 87.º, n.º 2 do EOA.

À luz das considerações expendidas, não poderemos, pois, deixar de concluir que se mostra inadmissível impor a um advogado que deponha como testemunha num processo em que figura como mandatário do(s) arguido(s), sob pena de subversão do próprio sistema processual penal.

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III. Decisão

Em face do exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar justificada a escusa do Sr. Dr.F(...), porquanto subsiste o seu dever, como mandatário dos arguidos constituído nos autos, de guardar segredo profissional, com a inerente proibição de neles depor como testemunha.

Sem tributação.

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(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária)

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Lisboa, 07.03.2013

Cristina Branco
Margarida Vieira de Almeida

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[1] In Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, Coimbra Editora, 1999, págs. 795-796.
[2] In www.dgsi.pt.