Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3847/2005-8
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: ESTABELECIMENTO COMERCIAL
TRESPASSE
CLÁUSULA PENAL
NULIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/19/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Sumário: I- O trespasse do estabelecimento comercial levado a cabo pelo locatário de equipamento destinado a ser utilizado nesse estabelecimento, ainda que impossibilite o locatário/trespassante de tirar proveito desse equipamento, não constitui alteração anormal ou imprevisível das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar, designadamente porque tal alteração resultou da própria vontade daquele locatário (artigo 437º do Código Civil).
II- As dificuldades comerciais resultantes do risco normal de quem exerce actividades comerciais, em que a mira do lucro pode ser ensombrada pelo espectro do prejuízo, não constituem em si alterações anormais nos termos e para os efeitos do artigo 437º do Código Civil.
III- Deve ser declarada nula, e não é passível de redução, a cláusula contratual geral que estabelece a favor do locador cláusula penal equivalente ao valor da totalidade das rendas vincendas após declaração de resolução do contrato de aluguer, atento o disposto nos artigos 12º e 19º, alínea c) do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro.
IV- E tal nulidade ocorre sempre, pois verifica-se ao nível da própria previsão dos prejuízos considerados no âmbito de uma cláusula firmada no seio de quadro negocial padronizado.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:


1. S… Ldª intentou acção declarativa com processo ordinário contra L… Ldª pedindo a condenação da ré nos seguintes termos:

a) Ser declarada lícita a rescisão dos contratos celebrados entre A. e Ré por falta de pagamento de rendas.
b) Ser a ré condenada a pagar as rendas vencidas  no valor de € 9.561,96.
c) Ser a ré condenada a pagar as rendas vincendas até restituição dos bens locados, acrescidas de juros de mora à taxa legal em vigor de 12% ao ano, desde a data de citação até integral pagamento.
d) Ser a ré condenada a pagar à A., a título de cláusula penal, a proporção de 20% das rendas vincendas entre a data da restituição do locado e a data em que, não fora a rescisão, o contrato teria o seu normal termo.
e) Ser a ré condenada a devolver a expensas suas os equipamentos objecto dos contratos de aluguer.

A. e Ré celebraram dois contratos de aluguer pelo prazo de 60 meses iniciando-se um deles em 1/11/1999 e o outro em 1/12/1999.

A A. resolveu pela presente acção  o contrato face ao não pagamento das rendas vencidas desde 15/2/2001 até 15/11/2003.

No entanto a ré considerou que o contrato estava já resolvido por via da comunicação que fez à A. em 9/10/2002.

Essa resolução fundava-se no facto de os equipamentos instalados pela A. nos estabelecimentos comerciais da ré não serem já necessários visto que tais estabelecimentos comerciais deixaram por trespasse de ser pertença da Ré. A intenção de resolver o contrato resultava da alteração da circunstâncias que levaram à celebração dos aludidos contratos de aluguer (artigo 437º do Código Civil)

E quanto à restituição do equipamento, que estava desde a resolução à disposição da A., não procedeu esta ao seu levantamento o que lhe incumbia face à cláusula 11ª dos contratos.

Quanto à cláusula penal incidente sobre as rendas vencidas, tal cláusula deve considerar-se nula.

A decisão proferida reconheceu validamente efectuada a resolução dos aludidos contratos de aluguer de bens móveis com manutenção, condenou a Ré a restituir à A. o equipamento de segurança e a pagar, por força da resolução, € 12.821,04 a título de alugueres vencidos e não pagos à data em que operou a resolução (28-1-2004: data de citação da ré)  e  € 854,74 a título de indemnização correspondente a 20% das rendas então vincendas.

Nas suas alegações de recurso a ré considerou que os aludidos contratos devem considerar-se resolvidos a partir da aludida comunicação de 24-7-2002, que não foi objecto de qualquer reacção por parte da A. Se a A. discordasse dessa resolução deveria ter-se oposto (artigo 437º/2 do Código Civil) devendo, assim, relevar o silêncio, contrariamente ao entendimento da decisão sob recurso.

A cláusula 15ª do contrato deve considerar-se nula nos termos do artigo 19º, alínea c) em conjugação com o artigo 12º do DL 446/85, de 25 de Outubro e, assim sendo, não se pode ficcionar a sua validade considerando-a redutível a 20% das rendas vincendas.

Remete-se para os termos da decisão de 1ª instância que decidiu a matéria de facto (artigo 713º/6 do C.P.C.).

Apreciando:


2. A Ré não questiona que deixou de pagar as rendas respeitantes ao contrato de aluguer celebrado (artigos 1022º e 1023º do Código Civil) a partir de 15-2-2001.

No entanto sustenta que tinha fundamento para resolver o contrato nos termos do artigo 437º do Código Civil pois os equipamentos alugados deixaram de ser utilizados e de ser necessários nos estabelecimentos comerciais que já não são pertença da empresa.

Admitindo que aquela declaração preenche as condições de admissibilidade que permitem considerar o contrato resolvido por alteração das circunstâncias, certo é que a recorrente não gozava de tal direito visto que se encontrava em mora (não pagamento de rendas desde 15-2-     -2001) quando comunicou  no dia 24-7-2002 a sua intenção de resolver os contratos (artigo 438º do Código Civil).

Ainda que se possa admitir (questão sobre a qual não há alegação) que os estabelecimentos deixaram de ser pertença da ré em momento anterior à data em que ela deixou de pagar as rendas, a verdade é que, não definindo a ré na aludida comunicação esse momento, a A. encontrava-se face a uma declaração emitida num momento em que as rendas já não eram pagas há alguns meses.

Por isso, se não quisermos daqui retirar a ideia de que a ré não gozava então de um tal direito, atento o disposto no artigo 438º do Código Civil, seria sempre excessivo à luz dos ditames da boa fé censurar a A. por omissão de resposta à referida carta.

3. É admitida a resolução do contrato fundada na lei ou em convenção (artigo 432º do Código Civil) e a resolução a que alude o artigo 437º do Código Civil tem por base a lei; dito isto não se extrai da lei que o destinatário, que não respondeu à declaração extrajudicial de resolução, deva ser fulminado com a cominação de se considerarem, por tal inércia, imediatamente indiscutíveis as razões invocadas para sustentar a resolução tanto na sua expressão de facto como nas suas consequências jurídicas.

O silêncio assume valor de declaração negocial se assim resultar da lei, uso ou convenção (artigo 218º do Código Civil). Ora, no caso vertente, nem a lei, nem convenção, nem quaisquer não invocados usos (artigo 3º do Código Civil) atribuem à ausência de resposta aquele pretendido significado.

4. A ideia de que a A., por não ter respondido à aludida carta, de algum modo levou a ré a admitir que a declaração de resolução fora aceite, assim permanecendo na passividade, designadamente no que toca à restituição do equipamento alugado, não tem, a nosso ver, a virtualidade de, recorrendo-se à figura do abuso do direito, levar a considerar efectivado um distrate, livrando a ré do pagamento das quantias correspondentes às rendas enquanto contrapartida da não restituição do equipamento.

Não só não há elementos de facto que permitam o que seria, no caso, um  muito arrojado entendimento daquela figura (aliás, nem sequer expressamente invocada pela recorrente) como há uma apontada situação de incumprimento da ré (não pagamento de rendas) que em termos de compreensão de atitudes à luz da boa fé permite considerar justificada a atitude da A. que teve por desnecessário e irrelevante tomar posição sobre uma tal pretensão vinda de quem não teve nem o cuidado de explicar a mora, nem se  comprometeu a pagar aquilo que sempre seria devido.

5. Permite o artigo 437º/2 do Código Civil que, requerida a resolução, a parte contrária se oponha ao pedido, declarando aceitar a modificação do contrato segundo juízos de equidade; trata-se, porém, de uma faculdade e não de um regime legal impositivo no sentido em que, não havendo tal oposição, fique a valer a resolução nos termos pedidos. Parece manifesto que outro entendimento não é sustentável.

Refira-se ainda que tal faculdade pode ser sempre exercida no âmbito de acção, não ficando precludida à parte contrária o seu exercício judicial pelo facto de, declarado resolvido o contrato extrajudicialmente, nada ter dito então a este propósito.  

6. Decorre do exposto que a ré não está eximida do ónus da prova dos factos invocados fundamentadores da pretendida resolução;  não pode, portanto, querer, pela ausência de resposta, que se considere que a A. aceitou a verdade das razões indicadas na carta e ainda a indiscutibilidade jurídica dessa razões enquanto razões relevantes para se reconhecer válida a resolução extrajudicial do contrato.

Muito menos se pode sustentar que, pelo silêncio, independentemente da veracidade de tais razões e da sua configuração jurídica, houve afinal um acordo entre as partes no sentido de se considerar findo o contrato a partir desse momento.

7. Acaso o trespasse do estabelecimento (aceitando que houve um trespasse, invocado que foi pela recorrente: artigo 18º da contestação) traduz uma alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar? Traduz também alteração anormal o insucesso do negócio levado a cabo pelo dono do estabelecimento onde foram instalados os equipamentos alugados?

No que respeita ao trespasse - causa que levou a ré a perder o gozo do estabelecimento - não estamos diante de uma alteração imprevisível ou anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar visto que se houve trespasse foi porque a ré assim o quis. Deveu-se, pois, à ré a invocada circunstância de o equipamento não poder ser doravante por ela utilizado no aludido estabelecimento.

No que se cinge à base negocial subjectiva (“ as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar”) não se afigura, no caso vertente, possível concluir-se que A. e Ré figuraram intolerável a subsistência do contrato para além do momento em que a ré viesse a perder a posse do estabelecimento onde o equipamento fora instalado, designadamente quando tal perda resultou da vontade da ré, ainda que originada pela circunstância de o negócio não lhe estar a correr em conformidade com as suas intenções.

É que, admitindo-se que estamos face a equipamento não recolocável (ver artigo 14º da resposta), a A., salvo estipulação em contrário, não iria certamente querer suportar o risco de perder a possibilidade de utilização futura do equipamento, suportando a perda das prestações, apenas porque o locatário deixou de poder fruir o estabelecimento onde o equipamento foi  instalado em razão dos normais acidentes da vida comercial.

Não estamos diante de uma situação anormal de perda do estabelecimento ditada por uma razão absolutamente inesperada (v.g. expropriação do imóvel, impossibilidade de prosseguimento naquele local da actividade comercial desenvolvida, etc) casos estes subsumíveis ao disposto no artigo 437º do Código Civil: ver outros exemplos em parecer do Prof. Antunes Varela em colaboração com o Dr. Manuel Henrique Mesquita, C.J.,1982 (Ano VII), Tomo II, pág. 5/17.

As meras dificuldades económicas, que ditaram o incumprimento da ré, não são as alterações anormais a que alude o artigo 437º/1 do Código Civil; elas nem constituem no caso a causa fundamentadora da resolução, pois esta, de acordo com a orientação artigo 563º do Código Civil (nexo de causalidade), consistiu tão somente na invocada alienação por trespasse do estabelecimento e, quanto a este ponto, importa realçar ainda que a recorrente não explica por que razão nem sequer tentou previamente acautelar junto do locador e do trespassário a permanência do equipamento instalado no estabelecimento por via, por exemplo, de uma cessão da posição contratual; também não explica por que razão não transferiu para o trespassário, se o não fez efectivamente, os custos derivados da subsistência de um contrato de aluguer de equipamento cuja permanência interessaria certamente ao trespassário.

8. A cláusula 15ª do contrato prescreve: “ a rescisão do contrato antes do seu término fará reverter a favor do locador e a título de penalização o total do montante me dívida desde a data da resolução até à data em que deveria terminar  o arrendamento...”.

A A., no entanto, logo na petição, face à orientação da jurisprudência, considerou reduzida a aludida cláusula a 20% das rendas vincendas.

A recorrente considera que a aludida cláusula é nula nos termos do disposto no artigo 19º, alínea c) em conjugação com o artigo 12º todos do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro e, portanto, insusceptível de redução. Abona-se no Ac. do S.T.J. de 5-7-1994 (Machado Soares) C.J.2, pág. 41.

No caso vertente está em causa saber se a ré deve ou não deve ser condenada no pagamento de € 854,74, montante correspondente a 20% das rendas em dívida (4 rendas trimestrais) à data (28-1-2004) em que o contrato foi resolvido.

A própria A. considera, como se viu, que não é válida a aludida cláusula à luz dos artigos 12º e 19º, alínea c)  do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro (ver artigo 16º da petição); ou seja, estamos perante uma cláusula proibida (relativamente proibida) por desproporcionada face aos danos a ressarcir.

Nesse acórdão, acompanhando-se e citando-se o Prof. Pinto Monteiro (Cláusula Penal e Indemnização, Almedina, 1990, pág. 732) salientou-se o seguinte: “ ponto que interessa sobremaneira aqui realçar, como elemento diferenciador do regime das cláusulas gerais, inserto nos artigos 810º a 812º do Código Civil é o de que as cláusulas penais, em contratos de adesão, quando abrangidas pelo  mencionado diploma legislativo (Decreto-Lei nº 446/85),‘ se forem desproporcionadas aos danos a ressarcir, não são meramente redutíveis antes feridas de nulidade, por conjugação  do disposto no artigo 19º,al c) com a doutrina do artigo 12º’”.

Outro não é o entendimento dos profs. Almeida Costa e Menezes Cordeiro quando salientam que “ o artigo 812º do Código Civil permite que a cláusula penal (rectius, a pena nela prevista) seja judicialmente reduzida de acordo com a equidade. Esta solução, no seu modo de operar, revela-se um tanto incompatível com o tráfico negocial de massas. Eis por que a alínea c) proíbe as cláusulas penais excessivas, quando fixadas através do recurso à mera adesão” (Cláusulas Contratuais Gerais. Anotação ao Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, Almedina, 1995, pág. 47).

Recentemente defendeu-se que ao nível das cláusulas contratuais gerais inseridas num quadro padronizado seria possível operar a redução desde que não existisse “ ‘ nenhuma deficiência genética’ no negócio jurídico, não existindo desproporção sensível entre a pena e os prejuízos previsíveis no momento em que a declaração negocial’ sai da esfera de poder do declarante com a vontade deste’”; ou seja, apontando o corpo do artigo 19º do Decreto-lei nº 446/85, de 25 de Outubro para uma aferição do excesso em função do quadro negocial, o critério interpretativo da alínea c) cuidar-se-ia na consideração daqueles prejuízos ‘ que são de prever de acordo com o normal decurso das coisas (critério restritivo). Assim sendo, no caso de se verificar que fora estipulada uma pena desproporcionada aos prejuízos verificados pelo incumprimento, então já a cláusula podia ser corrigida por intermédio da redução judicial (artigo 812º do Código Civil): ver “ Cláusulas Penais em Contratos por Adesão: Interpretação Restritiva da Alínea c) do Artigo 19º da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais”  pelo Prof. Nuno Manuel Pinto Oliveira in Boletim da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, IV Série, nº2, Dezembro de 2003, pág. 41/51.

Quer isto dizer, se bem compreendemos o referido entendimento, que a invalidade da cláusula operaria ao nível da previsão, já não ao nível da aplicação.

Verificando-se em concreto uma efectiva desproporção entre o montante previsto na cláusula e os prejuízos indicados, valeria a redução; se essa desproporção se evidenciasse logo face aos prejuízos previsíveis, a cláusula devia ser declarada proibida.

É esta última a hipótese que, a nosso ver, se verifica: o valor das rendas coincide com o proveito que a locadora pretende obter do negócio. Ao fazer coincidir esse proveito, que corresponde ao integral cumprimento do contrato, com os prejuízos decorrentes do incumprimento, evidencia-se uma desproporção manifesta ao nível da própria previsão dos prejuízos.

Assim, ainda que se perfilhe o referido entendimento, a solução do caso não sofre alteração e outra não pode ser se não a de reconhecer e declarar a nulidade da aludida cláusula e a sua irredutibilidade.

Não importa, pois, para o caso analisar as consequências práticas de um tal entendimento: pense-se, no entanto, que, não sendo a redução de conhecimento oficioso - ver, por exemplo, Ac. do S.T.J. de 20-11-2003 (Silva Salazar) P. 3514/2003 e Ac. do S.T.J. de 27-1-2004 (Fernandes Magalhães) (revista nº 4080/2003 da 6ª secção) in www. dgsi.pt - pode dar-se o caso, por falta de pedido nesse sentido, de o devedor se confrontar com a aplicação de cláusulas penais desproporcionadas atentos os prejuízos em concreto a ressarcir. Parece-nos que tal interpretação restritiva não se harmoniza com o princípio do pedido podendo gerar situações chocantes que são evitadas pela interpretação que os tribunais têm vindo a consagrar.

Decisão: concede-se parcial provimento ao recurso absolvendo-se a ré do pagamento da aludida quantia de € 854,74 em tudo o mais se confirmando a decisão recorrida.

Custas pela A e Ré na medida do respectivo decaimento


Lisboa,19 de Maio de 2005


(Salazar Casanova)
(Silva Santos)
(Bruto da Costa)