Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3084/20.1T8VFX.L1-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO
Descritores: NULIDADES DE SENTENÇA
CONTRATO DE TRANSPORTE
RESPONSABILIDADE DO TRANSPORTADOR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/16/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I) Especificando-se na sentença recorrida os meios probatórios em que assentou o juízo probatório levado a efeito pelo Tribunal e, bem assim, as razões pelas quais o Tribunal recorrido entendeu afirmar tal juízo, num sentido positivo ou negativo, por contraponto com as referências efetuadas a respeito de cada depoimento e, bem assim, naquilo que se retira dos documentos mencionados em sede de motivação decisória, a motivação da decisão de facto – no que toca aos factos provados e aos não provados – e da decisão de direito, não se mostra desprovida de fundamentação, não se verificando a nulidade a que respeita a alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
II) Só existirá contradição ou oposição entre os fundamentos de facto e de direito e a decisão judicial quando aqueles conduzirem, de acordo com um raciocínio lógico, a um resultado oposto ao que foi decidido, ou seja, quando a decisão tomada justifica uma decisão oposta à tomada, o que, no caso não sucede, pois, as premissas de facto e de direito em que assentou o decidido, estão conformes com a decisão proferida, não ocorrendo a nulidade da sentença a que se reporta a alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
III) Não ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, se o Tribunal apreciou todas as questões que lhe incumbia apreciar, em conformidade com o disposto no artigo 608.º do CPC.
IV) O contrato de transporte é a convenção pela qual um transportador profissional se compromete perante outrem – o interessado ou expedidor – a garantir a deslocação de pessoas ou de mercadorias de um ponto a outro, conforme um meio de locomoção e mediante um preço determinado, denominado frete.
V) Ao se comprometer a realizar a deslocação de mercadorias de um ponto para outro, o transportador assume uma obrigação de resultado, sendo fundamental o dever de custódia dos bens transportados e dado que o ponto de partida e de entrega se situavam em países diferentes (Portugal e Espanha, respetivamente), ao contrato de transporte em causa é aplicável a Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, assinada em Genebra, de 19/05/1956, aprovada para adesão por Portugal pelo D.L. nº 46235, de 18 de Março de 1965 (vulgarmente conhecida por Convenção CMR).
VI) Nos termos do artigo 17.º, n.º 1, da Convenção CMR, o transportador, é presuntivamente responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora na entrega, ficando desobrigado desta responsabilidade se demonstrar alguma “causa liberatória”, prevista no n.º 2 do artigo 17.º da Convenção - que a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar –, ou se, demonstrar a ocorrência de “factos liberatórios”, ou causas privilegiadas de liberação, constantes do n.º 4 do artigo 17.º da Convenção - entre os quais se encontra a circunstância, prevista na alínea c), atinente à “Manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria pelo expedidor ou pelo destinatário ou por pessoas que actuem por conta do expedidor ou do destinatário”.
VII) Porque cabe ao transportador demonstrar que a responsabilidade não lhe pode ser assacada, é dele a responsabilidade por danos derivados de causas desconhecidas.
VIII) O dever de verificação da carga e de acondicionamento ou de arrumação da mesma constitui, salvo estipulação em contrário, uma obrigação elementar a cargo do transportador (dever que, por exemplo, é reforçado pelas prescrições contidas no artigo 56.º do Código da Estrada), que deverá zelar pelo adequado acondicionamento ou arrumação da carga que vai transportar.
IX) Tal dever mantém-se, ainda que, na operação de carga tenham que ser utilizados meios do expedidor, não ficando o transportador dispensado do dever de verificar a mercadoria, de confirmar e de fazer o reconhecimento da carga e de a dispôr da forma que entenda por mais adequada ao transporte que vai realizar.
X) Tendo o motorista da autora, na execução do transporte, guinado o veículo que conduzia, em direção ao eixo da via, e efetuado um travagem brusca (por causas não concretamente apuradas, mas atinentes à sua pessoa, por distração, sonolência ou má disposição), em razão do que a carga se deslocou para o lado direito do camião onde seguia, contra a lona e para trás, danificando-a, foi causa eficiente do sinistro ocorrido, a deficiente arrumação ou travamento da mercadoria transportada.
XI) Não obstante a operação de carregamento ter sido desenvolvida pela 2.ª ré - que com o auxílio de um empilhador e por intermédio de um operador deste veículo, colocou a mercadoria no interior do veículo da autora – tinha a autora (enquanto transportadora), que colaborou nessa operação, o dever de averiguar a forma como a carga era colocada, supervisionando tal operação e procedendo à correta arrumação das mercadorias, tendo a obrigação de tomar todas as medidas para que o veículo estivesse pronto para suportar todas as condições do transporte (aqui se incluindo a tomada das medidas adequadas - como o travamento da mercadoria ou a colocação de almofadas de ar - a evitar o tombamento da mercadoria).
XII) Tendo o sinistro derivado da deficiente arrumação ou travamento da mercadoria, não se mostra exonerada a responsabilidade do transportador pelas suas consequências.
XIII) Mostra-se excluída a reparação do sinistro pela seguradora, na medida em que, nas condições gerais do contrato de seguro, se excluem da garantia de tal contrato, “os danos, perdas ou despesas que decorram, direta ou indiretamente, de (…) deficiente arrumação e/ou travamento das mercadorias transportadas”.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
1. TRANSPORTES NACIONAIS E INTERNACIONAIS MA, LDA., identificada nos autos, instaurou a presente ação declarativa, com processo comum, contra SOCICARGAS – SOCIEDADE DE TRANSPORTES, LDA., COCA-COLA EUROPEAN PARTNERS PORTUGAL, UNIPESSOAL, LDA. e FIDELIDADE – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., também identificadas nos autos, pedindo:
“A) Serem as 1.ª e 2.ª rés solidariamente condenadas a pagar à autora a quantia de € 21.798,72, acrescida dos juros de mora calculados à taxa anual que for legal, desde a citação até ao momento do integral e efectivo pagamento.
B) Subsidiriamente, e em caso de não procedência do pedido supra formulado, desde já se requer a declaração de responsabilidade da 3.ª ao abrigo do contrato de seguro celebrado com a autora e consequentemente deve a 3.ª ré ser condenada a pagar à autora a quantia de € 21.798,72, acrescida dos juros de mora calculados à taxa anual que for legal, desde a citação até ao momento do integral e efectivo pagamento”.
Em síntese, a autora invocou que:
- Se dedica à atividade de transportes, nacionais e internacionais, de mercadorias e no dia 14-01-2020, celebrou um contrato de transporte internacional de mercadorias com a 1.ª ré, designadamente, um serviço de transporte de 28 paletes contendo produtos “Coca-Cola”, das quais a proprietária e expedidora é a ré, Coca-Cola European Partners;
- A 2.ª ré tinha contratado, para realização deste serviço de transporte de mercadorias, a Transportadora LS – LS, que por sua vez subcontratou a 1.ª ré Socicargas, Transportes, Lda., e esta subcontratou a autora;
- Nesse dia as mercadorias foram colocadas e arrumadas no veículo automóvel da autora, com a matrícula …-…-… e reboque …-…, nas instalações da 2.ª ré na QS, ..., ..., unicamente por funcionários da 2.ª ré, sem qualquer intervenção da autora;
- No dia 16/02/2020, o motorista da autora seguia com o veículo automóvel e mercadorias aqui indicados, para o local da descarga, em Leganes, Espanha, quando, na EN 251, Pavia, surgiram, subitamente, na estrada alguns animais (javalis) que atravessaram a via, e o condutor para evitar embater de frente com os animais, teve de efetuar uma travagem e desviar o veículo dos animais;
- O motorista da autora constatou, que devido à travagem súbita do veículo automóvel, parte da carga se deslocou e inclinou, sendo que a carga apenas tinha à sua volta uma fina película de plástico, pelo que, o motorista da autora voltou para trás, para o local da carga, as instalações da 2.ª ré, ..., para reportar o acidente ocorrido.
- Porque a autora tinha celebrado um contrato de seguro a que corresponde a apólice n.º …, com a 3.ª ré, Fidelidade, participou-lhe o sinistro ocorrido em 16-02-2020, tendo a 3.ª ré declinado assumir qualquer responsabilidade porquanto entendeu que os danos reclamados não estão cobertos pela apólice contratada, uma vez que na sequência da perícia realizada concluiu que os danos verificados na carga se deveram a uma deficiente arrumação e travamento das mercadorias, pelo que a responsabilidade pelos danos cabe exclusivamente ao expedidor;
- A 2.ª ré cobrou à empresa LS Logística Integrada, S.A., o valor de € 21.798,72, respeitante às mercadorias envolvidas no sinistro aqui descrito e que foram destruídas pela 2.ª ré, e a empresa LS SA, por sua vez, porque tinha contratado a 1.ª ré, reclamou o pagamento do valor de € 21.798,72 a esta sociedade, que contratou a autora e exigiu desta o pagamento de tal valor;
-  A autora pagou à 1.ª ré o valor por ela reclamado, porque ela a pressionou dizendo que não lhe pagaria o preço de outros serviços que a autora lhe havia prestado anteriormente, e que estavam em dívida em quantia que ascendia a € 40,000,00.
- Devido à situação de pandemia que se instalou no nosso país e no mundo, desde Março de 2020 e até hoje, a autora encontrava-se numa situação de carência económica e acedeu à “chantagem” da 1.ª ré, e pagou-lhe o valor das mercadorias destruídas (€ 21.798,72) para que a 1.ª ré lhe pagasse os valores que lhe devia, tendo esta exercido coação moral sobre a autora, pelo que, a declaração emitida pela autora à 1.ª ré não pode ter os efeitos pretendidos pela mesma, não correspondendo à vontade real da autora e a mesma apenas a assinou por receio de que a 1.ª ré não lhe pagasse os valores em dívida e de que tanto necessitava para enfrentar as graves carências económicas de que padecia devido à pandemia covid 19 que a deixou sem trabalho, e sem rendimentos para prover às suas despesas e encargos, incluindo pagar os vencimentos dos seus funcionários que dela dependem, colocando assim em risco não só a sobrevivência da empresa como dos seus funcionários e respetivos agregados familiares; e
- A autora, porque entende não teve qualquer responsabilidade na produção dos danos na mercadoria que era da propriedade da 2.ª ré e que foi por esta expedida, vem intentar a presente ação para obter a condenação das rés ao pagamento do valor de € 21.798,72.
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2. A ré FIDELIDADE contestou, por impugnação e por exceção, confirmando ter celebrado contrato de seguro e ter recebido participação de sinistro, datada de 18-02-2020, da sua segurada, ora autora, concluindo que a mercadoria transportada não estava devidamente acondicionada, considerando que, tendo presente o disposto no artigo 4.º, n.º 1, al. q) das Condições Gerais do seguro e o disposto no artigo 17.º, ponto 4, b) e c) da CMR, os alegados danos produzidos nas mercadorias transportadas foram causa única e exclusiva da deficiente arrumação e travamento das mercadorias transportadas, pelo que a responsabilidade está excluída do âmbito da cobertura do seguro.
Concluiu pela sua absolvição do pedido.
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3. A ré SOCICARGAS contestou invocando, em suma, que nenhuma participação teve no acidente, nem na operação de transporte, limitando-se a ceder o serviço que tinha adquirido por subcontrato com a transportadora LS, que o tinha inicialmente contratado com a ré Coca-Cola, concluindo ser parte ilegítima e nenhuma responsabilidade lhe pode ser imputada, limitando-se a imputar à autora o valor que liquidou pelo danos sofridos pela cliente aquando do transporte que solicitou e a A. se disponibilizou a efetuar, com perfeito conhecimento de ambos.
Concluiu pela improcedência da ação, com a sua absolvição do pedido.
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4. A ré COCA-COLA contestou invocando que as paletes foram movimentadas para cima do veículo de carga da A., por empilhadores operados por pessoal da ré, sendo falso que tais operações houvessem sido exclusivamente efetuadas por pessoal da Coca Cola, sem qualquer intervenção da autora, sendo que, foi o motorista da transportadora, A., quem determinou aos operadores de empilhador da R. como e onde assentarem as paletes, na caixa de carga do veículo e do seu reboque e foi igualmente o motorista da A. quem procedeu ao travamento e colocação de réguas de contenção da carga. Foi o motorista quem procedeu, pois, à orientação da estiva, e exata colocação das paletes e quem fisicamente procedeu a amarração e colocação de algumas réguas de contenção da carga, que são equipamentos próprios daquelas viaturas. Foi sobretudo a falta de travamento superior da carga das paletes, onde o motorista não aplicou réguas de contenção lateral e falta de preenchimento de vazios em frente a carga, impedindo a sua deslocação longitudinal, que por força da brusca travagem e guinada deram lugar a deslocação dessa carga e aos danos verificados. Não foi, pois, o tipo de embalagem, o motivo dos danos verificados.
Concluiu pela improcedência da ação, com a sua absolvição do pedido e condenação da autora como litigante de má fé, caso não prove o alegado surgimento de javalis e se prove que a travagem e guinada se verificaram em local diverso daquele que veio alegar.
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5. Tendo as partes acordado na dispensa de realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente exceção de ilegitimidade da 1.ª ré, identificado o objeto do litígio e fixados os temas da prova.
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6. Após teve lugar audiência de discussão e julgamento, com sessões realizadas em 14-02-2022 e 16-02-2022.
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7. Em 05-09-2022, foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente, com absolvição das rés do pedido.
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8. Não se conformando com a sentença proferida, dela apela a autora, pugnando pela revogação da mesma e sua substituição por outra que julgue a ação procedente, tendo formulado as seguintes conclusões:
“1. A apelante não se conforma com a sentença de primeira instância, na medida em que considerada verificada a existência a responsabilidade da ré Fidelidade Seguros pela reparação do sinistro, uma vez que a apelante tinha a responsabilidade infortunística decorrente do exercício da sua actividade profissional validamente transferida para a Seguradora Fidelidade, mediante contrato de seguro, titulado por Apólice válida.
2. A factualidade aqui em causa é a seguinte: entre a ora apelante e a 1.ª ré Socicargas existia um contrato de subempreitada, no caso de transporte internacional de mercadorias (que consistia em carregar 28 paletes de produtos da Coca-Cola, na sede da 2.ª ré Coca-Cola, para transportar e ser entregue em Leganes, Espanha, num cliente da 2.ª ré Coca-Cola), e a 1.ª ré Socicargas foi, por sua vez, subcontratada pela LS SA para realização de tal transporte, que lhe foi adjudicado pela 2.ª ré Coca-Cola, e tendo ocorrido um sinistro a apelante acionou o seu contrato de seguro com a 3.ª ré Fidelidade
3. No dia 14 de Fevereiro de 2020, a apelante celebrou um contrato de transporte internacional de mercadorias com a 1.ª ré, a sociedade Socicargas, Transportes, Lda., e nesse mesmo dia, 14/02/2020, as mercadorias (28 paletes contendo produtos “Coca-Cola”) foram colocadas e arrumadas no veículo automóvel da apelante, com a matrícula …-…-… e reboque …-…, nas instalações da 2.ª ré na QS, ..., ..., unicamente por funcionários da 2.ª ré, sem qualquer intervenção da apelante.
4. No dia 16/02/2020, cerca das 21h20m, o motorista da apelante, PRS, seguia, com o veículo automóvel e mercadorias aqui indicados, para o local da descarga, em Leganes, Espanha, quando, na EN 251, Pavia, surgiram, subitamente, na estrada alguns animais (javalis) que atravessaram a via, e o condutor para evitar embater de frente com os animais, teve de efectuar uma travagem e desviar o veículo dos animais.
5. O motorista da apelante conduziu o veículo até ao Vimeiro, local onde pôde parar, e foi verificar se a carga estava bem, sem danos.
6. Contudo, o motorista da apelante constatou, que devido à travagem súbita do veículo automóvel, parte da carga se deslocou e inclinou, sendo que a carga apenas tinha à sua volta uma fina película de plástico.
7. Pelo que, o motorista da apelante voltou para trás, para o local da carga, as instalações da 2.ª ré sitas na QS, ..., ..., para reportar o acidente ocorrido.
8. Uma vez aí, um funcionário da 2.ª ré realizou uma avaliação às mercadorias e concluiu que as mesmas não estavam em condições de ser comercializadas e ordenou a destruição de todas as mercadorias.
9. Ou seja, se o acidente com o javali não tivesse ocorrido e se a 1.ª e 2:ª rés tivessem colocado mais película plástica à volta das mercadorias, provavelmente o sinistro aqui em causa não se teria verificado, logo, a responsabilidade pelos danos causados às mercadorias só pode ser imputado às rés.
10. Porque a apelante tinha celebrado um contrato de seguro a que corresponde a apólice n.º …, com a 3.ª ré, Fidelidade, participou-lhe o sinistro ocorrido em 16/02/2020, tendo a 3.ª ré declinado assumir qualquer responsabilidade porquanto entendeu que os danos reclamados não estão cobertos pela apólice contratada, uma vez que na sequência da perícia realizada concluiu que os danos verificados na carga se deveram a uma deficiente arrumação e travamento das mercadorias, pelo que a responsabilidade pelos danos cabe exclusivamente ao expedidor.
11. As mercadorias foram destruídas nas instalações da 2.ª ré, em 26/05/2020, e por conseguinte, a 2.ª ré cobrou à empresa LS Logística Integrada, SA, o valor de € 21.798,72, respeitante às mercadorias envolvidas no sinistro aqui descrito e que foram destruídas pela 2.ª ré, e a empresa LS SA, por sua vez, porque tinha contratado a 1.ª ré, a empresa Socicargas Transportes, Lda. reclamou o pagamento do valor de € 21.798,72 a esta sociedade, e a 1.ª ré Socicargas Transportes, Lda., que contratou a aqui apelante, exigiu desta o pagamento do valor das mercadorias destruídas, € 21.798,72.
12. O tribunal “a quo” entendeu, erradamente, que a apelante era a responsável pela reparação do sinistro.
13. E dizemos erradamente, porque o acidente descrito nos autos ocorreu devido ao surgimento de um javali na estrada que obrigou o motorista a travar e desviar o veículo do animal, (e porque a carga estava acondicionada de forma deficiente – facto que a 3.ª ré Fidelidade não logrou provar), deslocou-se dentro da viatura e danificou-se.
14. A manobra de emergência, efectuada pelo condutor para se desviar de um animal que se atravessa de repente à sua frente, da qual resulta a travagem brusca e desvio da viatura e danificação da carga transportada, constitui um risco inerente à circulação automóvel.
15. A causa primeira dos danos na carga aqui em causa foi o surgimento do javali na estrada, e consequente travagem pelo motorista, pois se tal não tivesse ocorrido, mesmo que a carga estivesse mal acondicionada – o que não se provou, sem o acidente com o javali, a carga não se teria danificado e teria sido entregue em boas condições pela apelante.
16. Por conseguinte, sempre existe responsabilidade da ré Fidelidade Seguros pela reparação do sinistro, uma vez que a apelante tinha a responsabilidade infortunística decorrente do exercício da sua actividade profissional validamente transferida para a Seguradora Fidelidade, mediante contrato de seguro, titulado por Apólice válida.
17. A apelante entende que foram incorretamente julgados como provados os factos constantes dos seguintes pontos da sentença recorrida:
18. - ponto 8), designadamente a 2.ª parte deste ponto, a saber, em face da prova produzida não podia ser dado como provado que a carga foi carregada “(…) mediante a colaboração, supervisão e observação de um funcionário da autora, o motorista do veículo, PRS;”
19. - ponto 10) também a 2.ª parte deste, nomeadamente que “(…) subitamente por causa não concretamente apurada, mas atinente a sonolência ou distracção do condutor, o referido condutor efectuou uma travagem brusca e guinou o veículo, em direcção ao eixo da via, provocando a deslocação da carga para o seu lado direito, contra a lona, e para trás, sem que o veículo saísse da sua faixa de rodagem;
20. - ponto 16) A 3.ª ré declinou toda e qualquer responsabilidade na reparação do sinistro e comunicou-o à autora porquanto entendeu que os danos reclamados, não estão a coberto da Apólice contratada, ie, deveram-se a uma deficiente arrumação e travamento da mercadoria (…);
21. E foram Incorrectamente Julgados Não Provados os seguintes factos:
- a) “Foi a 2.ª ré, através de seus funcionários, quem carregou e arrumou a mercadoria supra referida, no reboque,
- b) e que fechou e selou o reboque,
- c) a autora não teve qualquer intervenção no referido em a) e b);
- d) O referido em 9) e 10), deveu-se ao surgimento súbito na estrada, de alguns animais (javalis), que atravessaram a via, e à necessidade do tripulante do veículo supra identificado, evitar o embate de frente, nos animais, travando;
22. Entendemos que foi produzida prova, na audiência de discussão e julgamento, que permitia a procedência do pedido formulado pela apelada.
23. A primeira testemunha, funcionário da apelante, PRS, motorista e interveniente no sinistro em causa nos autos, com conhecimento directo dos factos controvertidos, disse ao tribunal que carregou o camião dos autos nas instalações da ré Coca- Cola e que foi um funcionário da Coca-Cola quem carregou a carga no camião, e que ele motorista não teve qualquer intervenção no acondicionamento da carga, mais disse que no seu entender a carga estava mal estivada, com pouco filme, mas que tal procedimento – carga com pouco filme, naquele tipo de produtos – era habitual por parte da ré Coca- Cola, pois já tinha feito dezenas de transportes naquelas condições e nunca houve problemas com a carga, mas desta vez, devido ao acidente com o javali e consequente travagem súbita e violente, a carga deslocou-se e danificou-se.
24. As duas outras testemunhas da apelante corroboraram o depoimento do motorista PRS quanto ao carregamento das paletes no camião da apelante.
25. Após a audição dos depoimentos produzidos em julgamento facilmente se pode concluir que o Meritíssimo Juiz “a quo” nunca poderia dar como provado o facto constante do n.º 8 da Sentença, pois na verdade devia constar que, no dia 14 de Fevereiro de 2020, sexta-feira, a referida carga foi carregada nas instalações da 2.ª ré, por um funcionário da 2.ª ré, conduzindo um empilhador, sem qualquer colaboração, supervisão ou observação do funcionário da autora/apelante, o motorista do veículo, PRS.
26. Através do exame dos depoimentos prestados em Julgamento verifica-se que o Meritíssimo Juiz “a quo” não possuía elementos para dar como provado que a causa do acidente descrito não foi apurada mas que poderia ter sido devido a sonolência ou distracção do condutor, antes pelo contrário, o Meritíssimo Juiz “a quo” tinha elementos de prova suficientes para fixar a causa do acidente dos autos – o surgimento inesperado de um animal, javali, na estrada.
27. A testemunha PRS, que depôs de forma isenta e credível, como aliás o afirma o tribunal “a quo” na sua fundamentação da sentença, declarou, sem margem para dúvidas, que o acidente que ocorreu no dia 16/02/2020, domingo, cerca das 21h:20m, quando efectuava o aqui referido transporte, com o veículo de matrícula …-…-… e reboque …-…, na EN 251 Paiva, se deveu ao facto de inesperadamente ter surgido um animal – um javali – na estrada, que o obrigou a travar subitamente e desviar a viatura para evitar o embate com o referido animal.
28. Este facto – o surgimento inesperado do javali na estrada e inevitável travagem do camião onde seguia a carga - foi presenciado pela testemunha JC, que seguia atrás do motorista PRS, ou seja, a testemunha JC também tinha conhecimento directo das circunstâncias em que ocorreu o acidente e confirmou a presença de um animal no meio da estrada, o que obrigou o motorista PRS a travar e desviar o camião do eixo da via, para impedir o embate com o animal, e por cauda dessa travagem e guinada, a carga transportada deslocou-se dentro da viatura e danificou-se.
29. Após a audição dos depoimentos produzidos em julgamento facilmente se pode concluir que o Meritíssimo Juiz “a quo” nunca poderia dar como provado o facto constante do n.º 10 da Sentença, pois na verdade devia constar – Carga essa, que seguia no veículo automóvel da autora, com a matrícula …-…-… e reboque … – …, tripulada por PRS, na EN 251 Paiva, quando subitamente surgiu um animal, um javali, na estrada, e o referido condutor efectuou uma travagem brusca e guinou o veículo, em direcção ao eixo da via, provocando a deslocação da carga para o seu lado direito, contra a lona, e para trás, forçando a sair da sua faixa de rodagem.
30. Através do exame dos depoimentos prestados em Julgamento verifica-se que o Meritíssimo Juiz “a quo” não possuía elementos para dar como provado que a 3.ª ré podia declinar toda e qualquer responsabilidade na reparação do acidente, porque o mesmo se deveu a uma deficiente arrumação e travamento da mercadoria, pois, a causa do acidente foi o surgimento inesperado e imprevisível de um animal, javali, na estrada, que deu origem ao acidente, e por sua vez aos danos na mercadoria, sendo este um risco inerente à circulação automóvel e também um caso fortuito.
31. Foi erradamente dada como não provada a matéria de facto constante dos pontos A, B e C da Sentença.
32. Através do exame dos depoimentos prestados em Julgamento verifica-se que o Meritíssimo Juiz “a quo” não possuía elementos para dar como não provado o facto vertido no ponto A. da sentença, porquanto as testemunhas PRS, NS, JC, e CC foram peremptórios em afirmar que a carga foi carregada e arrumada pela 2.ª ré Coca-Cola, sem intervenção da apelante.
33. Consta expressamente da página 9 da sentença ora impugnada, 7.º paragrafo, que a sexta testemunha – CC – declarou que a carga é feita por um operador da 2.ª ré, manobrando uma empilhadora, razão porque o motorista tem uma zona onde aguardar.
34. Após a audição dos depoimentos produzidos em julgamento facilmente se pode concluir que o Meritíssimo Juiz “a quo” nunca poderia dar como não provados os factos constantes dos pontos A, B, e C da Sentença, ou seja, estes factos deviam ser dados como provados, pois, foi a 2.ª ré, através dos seus funcionários, quem arrumou a mercadoria supra referida no reboque, quem fechou e selou o reboque, sem qualquer intervenção da autora/apelante.
35. Foi erradamente dada como não provada a matéria de facto constante do ponto D) da Sentença.
36. Não podia o Meritíssimo Juiz “a quo” dar como não provado, em face da prova produzida em julgamento, o ponto D, antes pelo contrário, o Meritíssimo Juiz “a quo” tinha elementos de prova suficientes para fixar a causa do acidente dos autos – o surgimento inesperado de um animal, javali, na estrada.
37. A testemunha PRS, que depôs de forma isenta e credível, como aliás o afirma o tribunal “a quo” na sua fundamentação da sentença, declarou, sem margem para dúvidas, que o acidente que ocorreu no dia 16/02/2020, domingo, cerca das 21h:20m, quando efectuava o aqui referido transporte, com o veículo de matrícula …-…-… e reboque …-…, na EN 251 Paiva, se deveu ao facto de inesperadamente ter surgido um animal – um javali – na estrada, que o obrigou a travar subitamente e desviar a viatura para evitar o embate com o referido animal.
38. Este facto – o surgimento inesperado do javali na estrada e inevitável travagem do camião onde seguia a carga - foi presenciado pela testemunha JC, que seguia atrás do motorista PRS, ou seja, a testemunha JC também tinha conhecimento directo das circunstâncias em que ocorreu o acidente e confirmou a presença de um animal no meio da estrada, o que obrigou o motorista PRS a travar e desviar o camião do eixo da via, para impedir o embate com o animal, e por cauda dessa travagem e guinada, a carga transportada deslocou-se dentro da viatura e danificou-se.
39. Mais nenhuma testemunha ouvida em sede de julgamento tinha conhecimento directo e presencial das circunstâncias em que ocorreu o acidente no dia 16 de Fevereiro de 2020, apenas as testemunhas PRS e JC estiverem presentes nesse acidente e ambos viram um animal na estrada.
40. Assim, não se percebe porque o tribunal “a quo” preferiu atender a depoimentos indirectos, de “ouvi dizer”, em vez de atender aos depoimentos directos e com conhecimento presencial dos factos que determinaram a produção do acidente, e que este acidente foi a causa primeira dos danos provocados na mercadoria, pois se o animal não tivesse surgido na estrada e obrigado o motorista a travar e a guinar o camião a carga não se teria deslocado nem danificado.
41. Após a audição dos depoimentos produzidos em julgamento facilmente se pode concluir que o Meritíssimo Juiz “a quo” nunca poderia dar como não provado o facto constante do ponto D da Sentença, pois na verdade devia constar que o acidente se deveu ao surgimento súbito na estrada, de um animal (javali) que atravessou a via, e à necessidade do tripulante do veículo supra identificado, evitar o embate de frente, no animal, travando.
42. Ao contrário do que podemos ler na sentença ora trazida a lume, a apelante fez prova quanto a quem carregou a carga no camião – foi a 2.ª ré Coca- Cola, e fez prova quanto à dinâmica do acidente – deveu-se ao surgimento inesperado de um javali na estrada, que obrigou o motorista da apelante a travar e desviar o veículo da sua faixa de rodagem para evitar embater no animal, e tal travagem e guinada brusca levou a que a carga transportada se deslocasse e se danificasse.
43. A manobra de emergência, efectuada pelo condutor para se desviar do animal que se atravessou de repente na sua frente, da qual resultou a travagem brusca e guinada para fora da sua faixa de rodagem, constitui um risco inerente à circulação automóvel.
44. A travessia de vias por animais, como é do conhecimento geral, implica reacções instintivas dos condutores, manobras defensivas, que não permitem um controle eficaz das viaturas, mesmo rodando nos limites de velocidade legalmente permitidos.
45. Razão pela qual a travagem e a guinada do camião, sendo consequências reflexas de manobras de emergência, são inerentes ao risco de funcionamento e circulação do veículo.
46. Não tendo havido culpa do condutor do veículo na produção do acidente aqui em causa, há que concluir pela existência de responsabilidade objectiva, fundada no risco da circulação, que tem de ser assumida pela seguradora aqui demandada.
47. Responsabilidade essa que obriga ao pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais aqui reclamados.
48. A apelante tinha um contrato de seguro válido celebrado com a 3.ª ré Fidelidade Seguros, e a apelante logrou provar que o acidente se deveu, se não a um caso fortuito, certamente a um risco inerente à circulação automóvel, risco esse que está coberto pela apólice de seguro a apólice n.º …, com a 3.ª ré, Fidelidade, e participou-lhe o sinistro ocorrido em 16/02/2020.
49. A 3.ª ré Fidelidade não conseguiu provar a causa de exclusão por si invocada – que os danos da carga se deveram a uma deficiente arrumação e travamento da mercadoria – e tal foi declarado como não provado no ponto E da sentença aqui trazida a lume, logo, tem que ser declarada responsável pelos danos patrimoniais aqui em causa, e pagar à apelante o valor de € 21.798,72.
50. O atravessamento de animais na estrada onde circulava o veículo automóvel da autora pode classificarse como um caso fortuito e/ou um caso de força maior, pois configura a situação descrita na parte final do n.º 2, do artigo 17.º da CMR – “(…), circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar.”
51. O comportamento do motorista da apelante foi prudente, evitando o embate com os animais que se atravessaram na estrada, tal como o faria um profissional experiente, de acordo com o padrão de diligência exigível ao bónus pater-familias – artigo 487.º, n.º 2 do Código Civil.
52. O motorista da apelante não podia prever que os animais iam atravessar a estrada no momento em que circulava, nem o reflexo que ele teve de travar e desviar o veículo dos animais para evitar embater nos mesmos, obstando assim à produção de um acidente rodoviário, que poderia colocar em causa a sua vida e/ou integridade física e bem assim de outros eventuais condutores que ali circulassem, pelo que nenhuma responsabilidade lhe pode ser assacada.
53. Mais, ainda que não se entenda que estamos perante um caso fortuito, sempre subiste que estamos certamente e sem margem para dúvidas perante um risco inerente à própria circulação automóvel, e há responsabilidade objectiva que tem de ser assumida pela 3.ª ré Fidelidade Seguros perante a apelante.
54. Assim, sempre teria de proceder o pedido formulado pela apelante de condenação da 3.ª ré Fidelidade a pagar à autora a quantia de € 21.798,72, porquanto entre a apelante e a 3.ª ré existe um contrato de seguro denominado de responsabilidade do transportado (apólice …) e como a própria seguradora afirma na sua missiva de 02/07/2020, as travagens bruscas ou outras, são vicissitudes normais do trânsito rodoviário, pelo que o sinistro ocorrido inclui-se no risco do próprio transporte.
55. Ou seja, a travagem brusca realizada pelo motorista da apelante no dia 16/02/2020, cerca das 21h20m, no local EN 215, Pavia, quando seguia das instalações da Coca-Cola, sitas na QS, ..., ..., com o veículo automóvel e mercadorias - 28 paletes contendo produtos “Coca-Cola” -, para o local da descarga, em Leganes, Espanha, foi um acto normal do trânsito rodoviário que ocorreu porque animais se atravessaram na estrada e foi também um acto necessário para evitar a colisão de veículo com os animais, obviando assim à produção de um acidente rodoviário de maior gravidade do que a que ocorreu – danos em mercadorias – e não ferimentos ou mesmo morte de pessoas, incluindo o próprio motorista da apelante, ou outros eventuais condutores naquela estrada.
56. Pelo que o sinistro ocorrido se inclui na apólice subscrita pela apelante junto da 3.ª ré Fidelidade.
57. Uma das principais, senão a principal obrigação de uma seguradora é o pagamento das indemnizações que sejam devidas nos termos do contrato ou da lei. Ao fazê-lo, a seguradora está a assumir perante terceiros uma responsabilidade que seria do segurado mas que este transferiu para ela mediante o pagamento do prémio.
58. No caso em apreço, o sinistro ocorreu na vigência do contrato de seguro celebrado pela apelante com a 3.ª ré, pelo que deve ser condenada a pagar à autora o valor de € 21.798,72, correspondente ao preço das mercadorias destruídas pela 2.ª ré Coca-Cola.
59. A sentença recorrida, julgando improcedente a acção apresentada pela apelante, é nula porque deixou de se pronunciar sobre questões devia conhecer, por contradição entre fundamentos e decisão, por incorrecta apreciação dos factos em face dos concretos meios probatórios produzidos em julgamento, que por si só impunham decisão diversa da ora recorrida, e por errada aplicação do direito aos factos.
60. A sentença foi proferida em clara violação da prova carreada para os autos, e que impunha a condenação da ré Fidelidade Seguros.
61. Estamos perante um caso óbvio de nulidade da sentença, conforme preceitua o artigo 615.º, n.º 1, alíneas b) e c), do CPC – falta de fundamentação e oposição dos parcos fundamentos apresentados com a decisão, o que também aqui se invoca.
62. Pelas razões supra expostas deve ser dado provimento ao presente recurso, e consequentemente, deve ser anulada a decisão proferida e substituída por outra que julgue procedente a acção formulada pela apelante Transportes Nacionais e Internacionais MA, Lda. e condene no pedido a ré Fidelidade – Companhia de Seguros, SA”.
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14. A FIDELIDADE apresentou contra-alegações, concluindo pela improcedência do recurso, com manutenção da sentença recorrida.
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15. Nos termos do despacho proferido em 18-01-2023 foi admitido o requerimento recursório.
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16. Foram colhidos os vistos legais.
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2. Questões a decidir:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso - , as questões a decidir são as de saber:
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I) Nulidades da sentença:
A) Se a sentença é nula, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC?
B) Se a sentença é nula, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC?
C) Se a sentença é nula, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC?
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II) Impugnação da matéria de facto:
D) Se a matéria constante dos factos provados n.ºs 8) 10) e 16) da decisão recorrida deve transitar para o rol dos factos não provados e a matéria constante dos factos não provados nas alíneas a), b), c) e d) da decisão recorrida deve transitar para o rol dos factos provados?
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III) Impugnação da matéria de direito:
E) Se a ação deverá ser julgada procedente, com condenação da ré FIDELIDADE no pedido?
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3. Fundamentação de facto:
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
1. A Autora dedica-se, além do mais, ao transporte rodoviário nacional e internacional de mercadorias, conforme certidão permanente;
2. A 1.ª Ré dedica-se, além do mais, a transportes rodoviários de mercadorias conforme certidão permanente;
3. A 3ª Ré dedica-se, além do mais, devidamente autorizada, à atividade de seguro e de resseguro, em todos os ramos e operações de seguros não vida, conforme certidão permanente;
4. No exercício dessa actividade da 3ª Ré, a Autora celebrou com aquela, contrato de seguro, titulado pela Apólice n.° …, transferindo para aquela, a responsabilidade infortunística emergente da sua actividade profissional, com existência de uma franquia contratual de 10% dos prejuízos indemnizáveis, tudo conforme doc. 1 junto com a Contestação de fls. 49 e ss. dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais;
5. Na qualidade referida em 1), a Autora foi subcontratada pela 1a Ré, como em muitos outros serviços, para a realização de um transporte rodoviário de mercadorias;
6. A ia Ré, por sua vez, fora subcontratada pela LS, S.A., para a realização de tal transporte, que lhe foi adjudicado pela 2ª Ré;
7. O transporte rodoviário internacional de mercadorias consistia em carregar 28 paletes, de produtos da Coca-cola, na sede da 2ª Ré, sita em QS, ..., … ..., para transportar e ser entregue em Leganes, Espanha, num cliente da 2a Ré, tudo conforme doc. 1 junto com a PI de fls. 13, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais;
8. No dia 14 de fevereiro de 2020, sexta-feira, a referida carga foi carregada nas instalações da 2ª Ré, por um funcionário da 2ª Ré, conduzindo um empilhador, mediante a colaboração, supervisão e observação de um funcionário da Autora, o motorista do veículo, PRS;
9. Sucede que, no dia 16 de fevereiro de 2020, domingo, cerca das 21.20 horas, a Autora efectuava o referido transporte, a pedido da 1a Ré, quando sofreu um sinistro, causando danos na carga transportada, pertença da 2a Ré,
10. carga essa, que seguia no veiculo automóvel da Autora, com a matricula …-…-… e reboque …-…, tripulado por PRS, na EN 251 Paiva, quando, subitamente por causa não concretamente apurada, mas atinente a sonolência ou distracção do condutor, o referido condutor efectuou uma travagem brusca e guinou o veículo, em direcção ao eixo da via, provocando a deslocação da carga para o seu lado direito, contra a lona, e para trás, sem que o veículo saísse da sua faixa de rodagem;
11. Após isto, o tripulante do ... conduziu-o até ao Vimeiro, cerca de 4 a 5 kms, local onde estacionou e verificou a carga;
12. Tendo então visionado, que parte da carga se deslocou e se inclinou como supra referido;
13. Na sequência disto, a Autora tomou conhecimento do sucedido, através do seu motorista, e participou a ocorrência às 1a e 2a Rés, tendo esta última determinado o retorno do veículo supra referido, às suas instalações (da 2a Ré);
14. A Autora participou o sinistro à 3a Ré, em 18 de fevereiro;
15. A 3a Ré ordenou a realização de peritagem à carga danificada, dando início ao processo de sinistro n.° …, com a colaboração de um averiguador da empresa “Siniscarga, Lda”, em 20 de fevereiro, tudo conforme relatório junto como doc. 5 da Contestação da 3a Ré, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
16. A 3ª Ré declinou toda e qualquer responsabilidade na reparação do sinistro, e comunicou-o à Autora, porquanto entendeu que os danos reclamados, não estão a coberto da Apólice contratada, ie deveram-se a uma deficiente arrumação e travamento da mercadoria, conforme documentos 25 e 26 juntos com a PI e 6 e 7 juntos com a Contestação da 3a Ré, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos;
17. A carga/mercadoria foi destruída nas instalações da 2a Ré, em 26 de maio de 2020;
18. Após, a 2ª Ré debitou o valor integral da carga à LS e esta debitou tal valor à ia Ré, que, por sua vez, debitou tal valor à Autora, amortizando-o nas facturas por si devidas à Autora, pelos transportes efectuados, e reflectidos em conta corrente, fazendo a Autora suportar o valor de € 21.798,72 (vinte e um mil, setecentos e noventa e oito euros e setenta e dois cêntimos);
19. O referido em 18), resultou do acordado entre todos, quer verbalmente, quer por escrito;
20. A Autora emitiu e assinou um escrito intitulado “declaração”, datado de 25 de maio, conforme doc. 31 junto com a PI, de fls. 35 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
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A DECISÃO RECORRIDA CONSIDEROU COMO NÃO PROVADA A SEGUINTE FACTUALIDADE:
a. Foi a 2a Ré, através de seus funcionários, quem carregou e arrumou a mercadoria supra referida, no reboque,
b. e quem fechou e selou o reboque,
c. a Autora não teve qualquer intervenção no referido em a) e b);
d. O referido em 9) e 10), deveu-se ao surgimento súbito na estrada, de alguns animais (javalis), que atravessaram a via, e à necessidade do tripulante do veiculo supra identificado, evitar o embate de frente, nos animais, travando;
e. O referido em 12), deveu-se ao facto das paletes de caixas de produtos coca-cola, estarem envolvidos por uma fina película de plástico, insuficiente para o fim a que se destinava;
f. Nas circunstâncias referidas em 15), um funcionário da 2a Ré, na presença de um funcionário da Autora, colocou mais película de plástico, à volta da mercadoria, para proteger a mesma e poder retirá-la do reboque para o chão;
g. E nessa ocasião, verificou-se que apenas uma parte da carga, se tinha deslocado no reboque, e não toda a carga;
h. A Autora só pagou à 1a Ré, porque esta a pressionou, “ameaçando” que não pagaria à Autora qualquer outro serviço por esta já prestado e devido, serviços esses que à data ascendiam a cerca de € 40.000,00 (quarenta mil euros);
i. Devido à situação de pandemia que se instalou no País e no Mundo, a partir de Março de 2020, a Autora passou a encontrar-se numa situação de carência económica e por essa razão, acedeu à ”chantagem” da 1ª Ré, e pagou-lhe para que a Ré lhe pagasse o que devia;
j. Além disso, a 1ª Ré exerceu “coacção moral” sobre a Autora, fazendo-a assinar a declaração referida em 20), contra a sua vontade.
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4. Fundamentação de Direito:
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I) Nulidades da sentença:
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A) Se a sentença é nula, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC?
Invoca a autora/apelante que a sentença recorrida é nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, als. b) e c) do CPC – “falta de fundamentação e oposição dos parcos fundamentos apresentados com a decisão” (cfr. conclusão 61.ª das alegações da apelante).
Nas conclusões 59.ª e 60.ª das alegações da apelante a mesma invocou, ainda, que:
“59. A sentença recorrida, julgando improcedente a acção apresentada pela apelante, é nula porque deixou de se pronunciar sobre questões devia conhecer, por contradição entre fundamentos e decisão, por incorrecta apreciação dos factos em face dos concretos meios probatórios produzidos em julgamento, que por si só impunham decisão diversa da ora recorrida, e por errada aplicação do direito aos factos.
60. A sentença foi proferida em clara violação da prova carreada para os autos, e que impunha a condenação da ré Fidelidade Seguros”.
Não obstante a invocação de tais nulidades não encontrar respaldo inovador na motivação da alegação (onde o último parágrafo se limita a reproduzir, textualmente, o que ficou incluído na conclusão 59.ª, acima reproduzida), vejamos se, ainda assim, se verificam as nulidades arguidas relativamente à decisão recorrida, começando pela referente à alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Estabelece o artigo 205.º, n.º 1, da Constituição que “as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Conforme referem Jorge Miranda e Rui Medeiros (Constituição Portuguesa Anotada, Vol. III, 2.ª ed., Universidade Católica Portuguesa, 2020, pp. 61-62) “a fundamentação das decisões judiciais deve ser expressa, clara e coerente e suficiente.
a) Antes de mais, a fundamentação há de ser expressa. Apesar de, em confronto com o artigo 268.º, n.º 3, que trata da fundamentação dos atos administrativos, nada se dizer no artigo 205.º quanto ao carácter expresso da fundamentação, uma opção que deixe ao destinatário a descoberta das razões da decisão não cumpre a exigência constitucional de fundamentação, justamente porque “fundamentar é pôr em comunicação” e “O próprio ato de pôr em comunicação não pode deixar de ser comunicado” (ANTÓNIO CORTÊS, A fundamentação, pág. 301).
b) A fundamentação deve, além disso, ser clara e coerente. Os motivos apresentados pelo órgão decisor não podem ser obscuros ou de difícil compreensão, nem padecer de vícios lógicos, que tornam o raciocínio que lhe está subjacente em algo imprestável para a inteligibilidade da decisão. Como refere VIEIRA DE ANDRADE [O Dever de Fundamentação Expressa de Actos Administrativos, Coimbra, 2003 (reimp.), pág. 234], uma declaração incongruente “não é uma fundamentação, porque não pode ser um discurso justificativo, faltando-lhe a racionalidade que é uma condição necessária de toda a decisão pública de autoridade num Estado de Direito”.
c) Por fim, a fundamentação há de ser suficiente. Naturalmente, como foi sublinhado nos trabalhos preparatórios da revisão constitucional de 1997 pelo deputado Miguel Macedo, a Constituição não pretende impor “fundamentações densas, particularmente de origem doutrinária”, mas antes uma “fundamentação adequada, obviamente, à importância e circunstância da decisão judicial em causa” (Diário da Assembleia da República, de 26.7.1997, pág. 17 (…)). Mas, para que a fundamentação seja suficiente, dela devem constar os motivos, de facto e de direito, que justificam o sentido da decisão, de modo a que o destinatário a possa compreender e, sobretudo, apreciá-la criticamente. Na medida em que toda a questão jurídica é simultaneamente uma questão de facto e uma questão de direito, a fundamentação da decisão há de refletir essa bidimensionalidade (…)”.
Mas, a fundamentação deverá também ser adequada à importância e circunstância da decisão. Quer isto dizer que as decisões judiciais, ainda que tenham que ser sempre fundamentadas, podem sê-lo de forma mais ou menos exigente (de acordo com critérios de razoabilidade) consoante a função dessa mesma decisão.
A lei processual concretiza no artigo 154.º do CPC o comando constitucional.
Prescreve o n.º 1 do artigo 154.º do CPC que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”.
O dever de fundamentação apenas é dispensado no caso das decisões de mero expediente.
“Deste modo, ainda que o pedido não seja controvertido ou que a questão não suscite qualquer dúvida, a respetiva decisão deverá ser fundamentada nos termos que forem ajustados ao caso. Naturalmente que tal dependerá da complexidade das questões ou da maior ou menor discussão que exista na jurisprudência ou na doutrina acerca das mesmas. Noutros casos a simplicidade da fundamentação é expressamente anunciada por preceitos legais (art. 385.º, n.º 3, a respeito dos alimentos provisórios, ou o art. 664.º, n.º 5, a respeito de certos recursos de apelação). (…).
Não pode medir-se a fundamentação pelo seu “volume” ou “extensão”, antes pelo seu conteúdo substancial.” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa; Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 188).
Conforme se concretizou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-04-2019 (Pº 539/17.9T8VRL.G1.S1, rel. ILÍDIO SACARRÃO MARTINS), “a fundamentação deve conter, como suporte mínimo, a concretização do meio probatório gerador da convicção do julgador e ainda a indicação, na medida do possível, das razões da credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova, a menção das razões justificativas da opção feita pelo julgador entre os meios probatórios de sinal oposto relativos ao mesmo facto”.
Por sua vez e na linha da previsão constitucional, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC, será nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
Sobre a nulidade por falta de fundamentação, “o que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade” (assim, Alberto dos Reis; Código de Processo Civil Anotado, vol. V, reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 140).
Na verdade, só a falta absoluta de fundamentação, entendida como a total ausência de fundamentos de facto e de direito, gera a nulidade prevista na al. b) do nº 1 do citado artº 615º do CPC. A fundamentação deficiente, medíocre, incompleta ou errada afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade (neste sentido, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 08-04-1975, in BMJ 246.º, p. 131; de 08-10-2020, Pº 5243/18.8T8LSB.L1.S1, rel. NUNO PINTO OLIVEIRA; e de 21-09-2021, Pº 1480/18.3T8LSB-A.L1.S1, rel. FERNANDO SAMÕES; Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-03-1980, in BMJ 300.º, p. 438 e de 08-03-2018, Pº 908/17.4T8FNC-B.L1-8, relatora TERESA PRAZERES PAIS; Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 08-07-1982, in BMJ 319.º, p. 343 e de 14-03-2016, Processo 171/15.1T8AVR.P1, relatora PAULA MARIA ROBERTO; Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-11-2012, P.º 983/11.5TBPBL.C1, rel. JOSÉ AVELINO GONÇALVES e de 26-10-2018, Pº 121/07.0T8FIG.C1, rel. FELIZARDO PAIVA; Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20-12-2012, P.º 5313/11.3YYLSB-A.E1, rel. PAULO AMARAL; e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-11-2020, Pº 1307/20.6T8VNF-A.G1, rel. JORGE TEIXEIRA).
Dispõe o n.º 2 do artigo 154.º do CPC que a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não se tenha oposto ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
Conforme se referiu, a propósito desta norma, no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-11-2020 (Pº 1307/20.6T8VNF-A.G1, rel. JORGE TEIXEIRA): “No artigo 154, nº 2, do C.P.C., o legislador afastou a fundamentação meramente formal ou passiva, consistente na mera declaração de aderência a razões invocadas por uma parte, exigindo a fundamentação material ou activa, consistente na invocação própria de fundamentos que, ainda que coincidentes com os invocados pelas partes, sejam expostos num discurso próprio, capaz de demonstrar que ocorreu uma verdadeira reflexão autónoma. Assim, para que a decisão careça de fundamentação “não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente”, sendo também “preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”.
Para além desta previsão normativa, tem-se entendido que a forma de fundamentação – por remissão – é admissível (neste sentido, o Ac. Tribunal Constitucional n.º 147/2000, Proc. nº 56/00, rel. ARTUR MAURÍCIO; o Ac. Tribunal Constitucional n.º 396/2003, de 30-07-2003, proferido no Processo n.º 485/03, rel. PAULO MOTA PINTO, publicado no D.R., II Série, de 04-02-2004; o Ac. Relação de Lisboa 13-10-2004, proferido no Proc. 5558/04-3; o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 25-09-2017, Processo 18/16.1T9MAC-B.G1, rel. ALDA CASIMIRO), não determinando, por si, nulidade por falta de fundamentação, “desde que cumpra com a razão de ser da imposição constitucional e legal da fundamentação: dar a conhecer as razões de decidir de modo que, nomeadamente, permita dissentir” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05-12-2019, Processo 3689/19.3 T8LRS-F.L1-6, rel. ANA DE AZEREDO COELHO).
De facto, conforme evidencia Rui Pinto (“Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º CPC”, in Julgar Online, maio de 2020, p. 11, disponível em: http://julgar.pt/wp-content/uploads/2020/05/20200525-JULGAR-Os-meios-reclamat%C3%B3rios-comuns-da-decis%C3%A3o-civil-Rui-Pinto-v2.pdf): “(…) o artigo 154.º impõe ao tribunal o dever de fundamentar as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo, a qual fundamentação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição da parte. Poderá, porém, consistir numa adesão a outra decisão, em clara economia processual.
Exemplos: é “nulo um despacho que omite por completo a fundamentação em que se baseia, limitando-se a deferir o requerido” (RG 21-5-2015/Proc. 1/08.0TJVNF-EK.G1 (ANA CRISTINA DUARTE)); porém, nada “obsta a que a fundamentação se faça por adesão à fundamentação jurídica de anterior acórdão de tribunal superior” (STA 20-5-2015/Proc. 050/15 (PEDRO DELGADO)) (…)”.
Concretizando a diferença entre falta de fundamentação – geradora da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b) do CPC – e insuficiente fundamentação, referiu-se – considerações que se subscrevem – no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-09-2020 (Pº 35708/19.8YIPRT.L1-2, rel. INÊS MOURA) que: “A falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e que devem constar da sentença, como expressamente previsto no art.º 607.º n.º 3 do CPC é cominada com a nulidade da sentença no art.º 615.º n.º 1 al. b) do CPC.
Questão diferente da falta de especificação dos fundamentos de facto e de direito na sentença, prevista no n.º 3 do art.º 607.º do CPC, é a falta de fundamentação ou de motivação da decisão de facto, prevista no n.º 4 do mesmo artigo.
Quando está em causa uma deficiente ou insuficiente fundamentação da decisão de facto, na explicação dada pelo tribunal para a formação da sua convicção na decisão que proferiu ao considerar provados e não provados os factos controvertidos em razão dos meios de prova produzidos, tal não determina a nulidade da sentença nos termos do art.º 615.º n.º 1 al. b), apenas podendo haver lugar à remessa do processo ao tribunal de 1ª instância, para que fundamente algum facto essencial para o julgamento que não esteja devidamente fundamentado, conforme prevê expressamente o art.º 662.º n.º 2 al. d) do CPC ao dar a possibilidade à Relação de, mesmo oficiosamente, “determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.””.
De todo o modo, conforme sublinham Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 798), “quando estiver em causa a deficiente fundamentação da decisão da matéria de facto, a devolução do processo [à 1.ª instância] deve ser guardada para casos em que, além de serem efetivamente relevantes, não possam sequer ser remediados através do exercício autónomo do poder de reapreciação dos meios de prova”.
No caso, a respeito da motivação da decisão de facto operada, verifica-se que a decisão recorrida enuncia o seguinte:
“(…) Para a formação da convicção do Tribunal, concorreram desde logo o acordo das partes plasmado nos articulados, a par dos documentos juntos aos autos, a saber, o CMR da 1a Ré à 2a Ré, escrito particular intitulado “relatório de análise ” da 2a Ré e datado de 17 de fevereiro de 2020, escrito particular, print de foto aérea do Google, fotografias várias da mercadoria tombada, cartas da 3a Ré à Autora, de 19 de Março de 2020 e 2 de Julho de 2020, auto de destruição de mercadoria de 26 de Maio de 2020, factura da 2aRé com o n.° ZFBO …/…, de 4 de Junho de 2020, factura n.° …/…, de 19 de Junho de 2020, factura da 1a Ré n.° F1FAC 0/2001367, de 30 de Junho de 2020, escrito particular intitulado “declaração” datado de 25 de Maio de 2020, apólice de seguro da Fidelidade e condições gerais e condições especiais, carta da Autora à 3aRé de 18 de Fevereiro de 2020, relatório de peritagem de 17 págs. de empresa denominada “Siniscarga” e dois emails datados de 17 de Fevereiro de 2020, das 10:06 e 10:32 horas, respectivamente, em conjugação com o depoimento prestado pelas testemunhas ouvidas, a saber, PRS, NS, JC, AP, CC, AS, MF, PS e ACS, as quais depuseram com credibilidade e revelaram isenção.
A primeira testemunha, funcionário da Autora, motorista e interveniente no sinistro em causa nos autos, com conhecimento de parte dos factos controvertidos, esclareceu o Tribunal como decorreu o transporte em causa, quais as viaturas intervenientes, o carregamento da mercadoria nas instalações da 2a Ré, os procedimentos aí adoptados enquanto o reboque é carregado, por um motorista de um empilhador da 2a Ré, e de que forma vai “acondicionada a carga”, no caso sobre paletes de madeira, revestidas a pelicula/filme transparente, cabendo ao motorista do camião e atrelado, assistir a toda esta operação, partir de uma “zona segura, delimitada no chão”; de relevante, esta testemunha admite que cabe ao motorista organizar a carga dentro do camião, depois de carregada, ou apresentar as reclamações que entenda, nomeadamente fazendo constar do CMR, esses reparos, mas o mais das vezes, não o faz, porque senão não tem mais transportes/trabalho.
Quanto à dinâmica do sinistro propriamente dito, referiu que ao “avistar o animal na estrada, o instinto foi desviar...”, mais referindo que viu que a lona ficou a fazer barriga, pelo que deteve a marcha poucos quilómetros à frente e visionou a carga “tombada”.
Mais referiu que sinistro se deu em estrada, no domingo e de noite, cerca de 60 a 70 Kms depois de arrancar, numa recta entre duas povoações com pouca visibilidade e que viu bem “o animal” era um javali.
Depois de contactar o Patrão, e este contactar a 1a Ré, mandaram-no regressar às instalações da Coca Cola, e só na segunda-feira de manhã, presenciou porque esteve presente, viu lá um Sr. do Seguro e uns Srs. da Coca Cola.
Mais referiu que não assistiu à descarga, pelo que desconhece o que aconteceu à carga.
De relevante, referiu a instâncias dos mandatários das Rés, que as paletes levavam pouco filme/pelicula, e que o reboque, com lonas, é carregado de lado, cabendo ao motorista retirar as réguas laterais e depois colocá-las novamente, e fechar o camião; mais referiu que, usualmente usam cintas para contenção da carga, mas neste tipo de carga, não podiam, porque danifica as caixas de cartão onde estão as latas de refrigerante.
Igualmente admitiu que a distribuição da carga não foi linear, porque criava espaços vazios, entre as paletes, e que tentou estabilizar a carga em toda a traseira do reboque.
A segunda testemunha, ex-funcionário da Autora, com conhecimento parcial dos factos controvertidos, corroborou o depoimento da anterior testemunha, quanto aos procedimentos da Coca Cola; mais referiu que esteve presente aquando da descarga desta mercadoria, mas não assistiu à carga, ou ao sinistro; diz que visionou a carga tombada para o lado direito, para as réguas do reboque, e as paletes com as caixas envolvidas em pouca pelicula, 2 ou 3 folhas, disse; na sua opinião, dado que não havia líquido derramado, haviam paletes que se podiam abrir e aproveitar a carga; referiu que na descarga se apercebeu que carga foi mal acondicionada, por falta de pelicula, e mal distribuída no reboque, porque devia ser 2,2,2,2 paletes e estavam 1,2,3,3,2,1 paletes.
A terceira testemunha, motorista e funcionário da Autora, seguia imediatamente atrás da primeira testemunha, mas não avistou os “javalis”, apenas se apercebeu que o motorista “pisou o travão e desviou-se ligeiramente para o eixo da via”; mais afirmou que, não assistiu à carga do veículo sinistrado, corroborando no mais, o local, a hora e as condições da via, estrada pouco iluminada, que liga duas povoações, e não chovia, mais referindo “é zona onde normalmente durante a noite, se vêm alguns javalis”.
De relevante esta testemunha disse que pararam mais à frente e visionaram a carga, que estava envolvida em pouca pelicula, e a carga tombada para a direita; as paletes estavam encostadas duas a duas, nalguns locais e noutros não, “porque havia espaço entre as paletes, acha que a meio, estava só umapalete ”.
De relevante, corroborou ainda o depoimento das duas anteriores testemunhas quanto ao procedimento logístico de colocação da carga nos reboques, da Coca Cola.
A quarta testemunha, funcionário da Socicargas, e operador de tráfego, depôs com relevância sobre as relações comerciais entre a Autora e a 1a Ré e a LS, esta última dá/vende as cargas à Socicargas, que, por sua vez, as dá/vende à Autora, quando não as pode fazer, e que foi o que sucedeu, nos autos com o cliente da LS, Coca Cola.
Funcionalmente, sabe que a 2a Ré exigiu indemnização da P Ré, e esta por sua vez, debitou à Autora, exactamente aquilo, que lhe foi debitado a si; esta testemunha, referiu que, à data do sinistro, acha que a Autora tinha 2 ou 3 carros a laborar.
A quinta testemunha, ex-funcionária da P Ré, fazia distribuição dos serviços, e depôs com conhecimento funcional sobre a subcontratação da Autora, pela P Ré, que por sua vez, era subcontratada pela LS; esta era a empresa que dava serviços à P Ré; mais disse saber, que a LS debitou à P Ré e esta debitou à Autora, que pagou logo, embora admita que em termos de contabilidade, o que sabe, é “de ouvir dizer”, desconhecendo se houve “encontro de contas”.
A sexta testemunha, funcionário da 2a Ré e responsável da área logística, depôs com conhecimento directo dos procedimentos logísticos, quanto ao prestador de serviços de transporte, a LS, que por sua vez os camiões chegam com a identificação, um número atribuído pelo transportador, o motorista estaciona, abre as lonas e retira as travessas do camião, que é carregado lateralmente, e a operação seguinte é o carregamento por um operador da 2a Ré manobrando um empilhador, razão porque o motorista tem uma “zona” onde aguardar, corroborando os depoimentos anteriores; foi peremptório em afirmar que tal carregamento é feito por um funcionário da Coca Cola, mas é feito de acordo com as indicações do motorista (como corrigir e distribuir a carga), por causa da estabilidade na condução, tanto mais que o motorista assina um documento, quando sai das instalações da Coca Cola.
Igualmente depôs esta testemunha, sobre o “embalamento” que é feito numa linha de montagem, ficando as paletes prontas à espera do carregamento; só em situações pontuais, se o motorista alertar, a 2a Ré rectifica. No mais, admitiu não ter assistido à carga e à descarga desta mercadoria, foi um outro elemento da sua equipa, uma equipa de 30 pessoas; mas esteve presente na “destruição” desta carga, sendo a decisão de destruição da área da qualidade.
A sétima testemunha, ex-funcionário da 2a Ré e encarregado geral de armazém, depôs com conhecimento directo de parte dos factos controvertidos, referindo que quando o camião e reboque retornaram às instalações da Coca Cola, assistiu à abertura do camião, e verificou umas paletes inclinadas e outras todas tortas, diz que se limitou a receber a carga e chamar o controle de qualidade; de relevante esta testemunha referiu que o motorista desabafou que “adormeceu rapidamente e teve necessidade de travar...”; acha que controlo de qualidade foi verificar a carga no próprio dia ou no dia seguinte, e disse que a carga não podia ser utilizada, tinha de ser toda destruída; instada esta testemunha referiu que não viu qualquer liquido vertido, mas que viu todas as paletes inclinadas ou tombadas, sendo certo que não é a sua função avaliar a carga.
A oitava testemunha, funcionária da LS (assistente de clientes), depôs com relevância sobre o relacionamento comercial da LS com a Coca Cola e com as transportadoras subcontratadas, sendo conhecedora da situação dos autos, e de que duas funcionárias da LS, se deslocaram às instalações do cliente (Coca Cola) e assistiram à peritagem levada a cabo pela 3a Ré, uma técnica de qualidade e uma coordenadora de maios, que identificou, sendo conhecedora da decisão da Coca Cola de que mercadoria não estava em condições (atentos os padrões estabelecidos de Área da Qualidade) e teria de haver “destruição total” da mercadoria.
A nona testemunha, funcionário de empresa colaboradora com a 3a Ré, depôs com conhecimento de parte dos factos controvertidos, pois foi quem levou a cabo a peritagem na presença de representantes da transportadora e motorista, representantes da Coca Cola e outras pessoas que não soube identificar; descreveu o estado da mercadoria dentro da galera do camião, no dia 20 de fevereiro, acha, viu paletes tombadas sobre cortina do lado direito do reboque e tombadas para trás; viu ainda uma caixa estivada sozinha e depois duas a duas, depois outra caixa sozinha, sendo claramente deficiente a “arrumação” da mercadoria no reboque; não havia qualquer tipo de travamento entre as paletes, e deveria haver almofadas de ar ou qualquer outro material que permitisse dar suporte à carga e atrás ser colocado um travamento, para evitar a deslocação das paletes para trás; era “claramente percetível a barriga na lona do camião”, embora não houvesse produto no chão do camião, nem as paletes se tivessem soltado, não se desfizeram.
De relevante referiu que ainda antes da sua participação havia já um parecer da Coca Cola para rejeição total da carga, sendo que “ia sugerir a escolha da carga, mas de nada valia”, sendo que das 28 paletes transportadas, apenas 11 paletes estavam tombadas.
Quanto à versão dos factos do motorista, diz que este identificou o local exacto onde avistou um javali, tratando-se de recta de boa visibilidade.
A décima testemunha, funcionária da 3a Ré, depôs com relevância sobre a participação do sinistro pela Autora, e subsequente averiguação, sendo que recebido o relatório de peritagem “declinou a responsabilidade na sua reparação”, com fundamento no “mau acondicionamento da carga no veiculo de transporte”, exclusão das cláusulas gerais contratuais (art.° 4°, n.° 1, al. q), para além da existência de 10% de franquia contratual, caso houvesse responsabilização.
Relevaram ainda as declarações tomadas ao legal representante da Autora que esclareceu de que forma tomou conhecimento do sucedido, no próprio dia à noite, cerca das 9.30 horas, e versão do motorista e os contactos que estabeleceu, mais referindo que no dia seguinte, visionou a carga, nas instalações da Coca Cola, estando presente um perito da sua Companhia de Seguros, duas Sras. da empresa LS e um Sr. da Coca Cola, bem como o que visionaram, referindo que a Coca Cola demorou 5 dias a tomar decisão quanto à carga.
Mais referiu o legal representante da Autora, que não mais viu a carga e que a 1a Ré debitou a referida quantia à Autora, directamente, sem pergunta alguma, apenas lhe tendo transmitido que ou a empresa LS ou a Coca Cola, haviam debitado à 1a Ré, o mesmo montante.
Os factos não provados foram assim considerados, dada a ausência de produção de prova sobre os mesmos, ónus que in casu recaia sobre a Autora, seja quanto aos contornos do carregamento do reboque e estiva, seja quanto à dinâmica do acidente, seja ainda quanto às diligências encetadas após a sua ocorrência com vista à responsabilização de cada interveniente.”
E, após, em sede de fundamentação da decisão de direito tomada, a decisão recorrida tece diversas considerações de fundamentação com as quais se motiva a decisão que veio a ser proferida, no dispositivo da sentença.
Ora, apreciada a decisão recorrida, verifica-se que, nesta, se especificaram quais os meios probatórios em que assentou o juízo probatório levado a efeito pelo Tribunal e, bem assim, as razões pelas quais o Tribunal recorrido entendeu afirmar tal juízo, num sentido positivo ou negativo, por contraponto com as referências efetuadas a respeito de cada depoimento e, bem assim, naquilo que se retira dos documentos mencionados em sede de motivação decisória.
Vê-se, pois, que quer quanto à motivação da decisão de facto – no que toca aos factos provados e aos não provados -, quer no que toca à motivação da decisão de direito, a decisão não se mostra desprovida de fundamentação.
E, como tal, resta concluir pela improcedência da arguição de nulidade da decisão recorrida, fundada no artº 615º, nº 1, al. b), do CPC, sendo que, aliás, a própria apelante reconhece na decisão recorrida a existência de fundamentos (que, todavia, apelida de “parcos”).
Contudo, questão diversa da falta de fundamentação é a da discordância com os fundamentos enunciados e, bem assim, o apuramento da sua suficiência/insuficiência, mas aí, a divergência não se resolve no plano da nulidade da sentença, antes, no do eventual erro de julgamento inscrito na decisão recorrida, o que coloca a questão no plano da sua eventual revogação por ilegalidade.
Improcede, pois, a nulidade arguida.
*
B) Se a sentença é nula, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC?
Como se viu invoca, ainda, a apelante que a sentença é nula, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. c) do CPC, porque – segundo a recorrente – ocorre oposição dos fundamentos com a decisão.
Vejamos:
Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, relativo às causas de nulidade da sentença, a mesma é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Relativamente à ambiguidade ou obscuridade, causas de nulidade a que se referem a 2.ª parte da alínea c) deste preceito legal, as mesmas “verificam-se, respectivamente, quando alguma passagem da decisão seja ininteligível, ou quando se preste a mais do que um sentido” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05-11-2019, Pº 2012/15.0T8CBR.C1, rel. ANTÓNIO CARVALHO MARTINS).
“A nulidade da sentença a que se refere a 1.ª parte da alínea c), do n.º1, do art.º 615.º do C. P. Civil, remete-nos para o princípio da coerência lógica da sentença, pois que entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica. Não está em causa o erro de julgamento, quer quanto aos factos, quer quanto ao direito aplicável, mas antes a estrutura lógica da sentença, ou seja, quando a decisão proferida seguiu um caminho diverso daquele que apontava os fundamentos. A ambiguidade da sentença exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos (dois ou mais) de algum trecho, e a obscuridade traduz os casos de ininteligibilidade. A estes vícios se refere a 2.ª parte [da alínea c)] do n.º1, do art.º 615.º do C. P. Civil” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 03-11-2016, Processo 1774/13.4TBLLE.E1, rel. TOMÉ RAMIÃO).
Ou seja: Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica, pelo que, se na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide em sentido divergente, ocorre tal oposição (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11-01-94, rel. CARDOSO ALBUQUERQUE, in BMJ nº 433, p. 633, o Acórdão do STJ de 13-02-97, rel. NASCIMENTO COSTA, in BMJ nº 464, p. 524 e o Acórdão do STJ de 22-06-99, rel. FERREIRA RAMOS, in CJ 1999, t. II, p. 160).
Trata-se de um erro lógico-discursivo na medida em que, ocorrendo tal vício, a decisão segue uma determinada fundamentação e linha de raciocínio, mas vem, a final, a decidir em conflito com tal fundamentação.
Esta nulidade verificar-se-á, assim, quando a fundamentação aponta num certo sentido que é contraditório com o que vem a decidir-se, constituindo um vício de natureza processual.
Relativamente ao segmento atinente à ocorrência de alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, tem entendido a doutrina que “a sentença é obscura quando contém um passo cujo sentido é ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos” (cfr. Pais do Amaral, Direito Processual Civil, 11ª ed., 2013, Almedina, p. 400).
“Diz-se que a sentença padece de obscuridade quando algum dos seus passos enferma de ambiguidade, equivocidade ou de falta de inteligibilidade: de ambiguidade quando algumas das suas passagens se presta a diferentes interpretações ou pode comportar mais do que um sentido, quer na fundamentação, quer na decisão; de equivocidade quando o seu sentido decisório se perfile como duvidoso para um qualquer destinatário normal. Mas só ocorre esta causa de nulidade constante do 2º segmento da al. c) do nº. 1 do artº. 615º, se tais vícios tornarem a “decisão ininteligível” ou incompreensível” (assim, Francisco Ferreira de Almeida; Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, Almedina, p. 371).
Apreciando:
Se considerarmos a sentença recorrida verificamos que o Tribunal recorrido concluiu – na decisão proferida – pela improcedência da pretensão deduzida pela autora (ora recorrente).
Fê-lo depois de selecionar os factos apurados e não provados e de efetuar o enquadramento jurídico da factualidade apurada, tecendo as seguintes considerações em sede de fundamentação de Direito:
“(…) impõe-se aferir sobre a existência ou não de obrigação de indemnizar, por parte da Autora a 2a Ré, e ou restituição do indevido, quanto aos danos patrimoniais reclamados, da sua quantificação e reparação; da relação entre o transportador e o expedidor e das condições de transporte e acondicionamento de carga; do evento lesivo; da obrigação da 3a Ré em reparar o sinistro dos autos e da aplicabilidade de uma cláusula de exclusão, vertida nesse contrato de seguro (além de franquia contratual).
De acordo com os factos provados e supra elencados, impõe-se desde já atender ao tipo de contrato que vinculou as partes, e com referência desde logo ao relacionamento comercial entre a Autora e a P Ré, como sendo de subcontrato de empreitada, no caso de transporte internacional de mercadorias.
É incontroverso, que a P Ré subcontratou a Autora, como anteriormente já o fizera, e que na execução da prestação de um serviço de transporte de mercadorias, ocorreu um sinistro que a Autora assumiu, assumiu a sua responsabilidade perante a 1a Ré e acionou o seu contrato de seguro, celebrado com a 3a Ré, e que esta, por sua vez, desenvolveu os trâmites necessários, até decidir, no caso, declinar a sua responsabilidade na reparação do sinistro, com base em relatório de averiguação das causas do acidente, pelo acionamento de clausula contratual de exclusão de responsabilidade.
Sucede que, dos autos, face ao que resulta provado e não provado, temos que atentar no seguinte, ante o que dispõem os art.°s 428° e 1208° ambos do CC, a par de legislação específica como os art.°s 17°, n.°s 1 e 4, al. b) e c), 18°, n.° 2 e 23° a 25° todos da Convenção CMR (Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada), assinada em Genebra em 19-05-1956, aprovada em Portugal pelo Dec. Lei n.° 46235, de 1803-1965, temos que, no âmbito de tal Convenção, o transportador é presuntivamente, e salvo se provar, caso fortuito ou de força maior, responsável pelos prejuízos causados, nos termos e com os limites do art.° 23°, pelo que tem a Autora de pagar o preço da mercadoria avariada.
Assim, cfr. Ac. STJ de 15.05.2013, in www.dgsi.pt “I - Designa-se contrato de transporte internacional de mercadorias a convenção pela qual alguém (transportador) se obriga perante outrem (expedidor), mediante um preço, a realizar, por si ou por terceiro, a mudança de coisas de um local (designado de expedição) para outro (destino), sitos em países diferentes. II - Tal contrato é oneroso, sinalagmático, consensual e de resultado, apenas se mostrando cumprido com a entrega da mercadoria ao destinatário. III - A entrega, enquanto obrigação essencial do transportador, é um acto jurídico que se pode compor em dois momentos: a apresentação da mercadoria e a sua aceitação pelo destinatário. IV - Recai sobre o transportador uma_presunção de culpa no incumprimento da obrigação de entrega, para com o expedidor, nos termos definidos em III, (...)” (sublinhado nosso).
Ora, em face da factualidade provada, não logrou a Autora comprovar que a perda ou avaria resultou de caso fortuito ou de força maior ou dos seguintes riscos particulares (...) b) a falta ou defeito da embalagem, quanto às mercadorias que, pela sua natureza, estão sujeitas a perdas ou avarias quando não estão embaladas ou são mal embaladas e c) a manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria pelo expedidor (. ) ou por pessoas que actuem por conta do expedidor (. ).
Aliás, da prova produzida, apesar do rigor exigido e mantido, para várias outras cargas, por vários outros motoristas, pela Ré Coca Cola, os motoristas têm ainda o dever de sugerir alterações, pedir reforço de filme de plástico envolvente das paletes, ou a colocação de materiais entre as paletes, de forma a travar a carga, em caso de sinistro, caso que não é inusitado, aliás é frequente acontecer (como referiu o perito averiguador colaborador da 3a Ré) e sucede com quaisquer veículos em Estrada, ou em ultimo caso fazer constar qualquer incidente na declaração CMR (cfr. art.° 6° n.° 3).
E só se tivesse logrado esta prova, gozava da presunção a que alude o art.° 18°, n.° 2, caso em que ainda assim a 2a Ré e expedidora, poderia alegar e provar que tal prejuízo não teve por causa total ou _parcial um desses riscos (a falta ou defeito da embalagem ou a carga e arrumação da mercadoria (sublinhado nosso).
Aqui chegados, e sendo responsável pela reparação do sinistro a Autora, inexistindo qualquer causa de responsabilização das 1a e 2a Rés, aquela que apenas contratualmente “vendeu” o transporte que “comprou” à LS, temos que a responsabilidade infortunística decorrente do exercício da sua actividade profissional (de transportador), estava, à data do sinistro, validamente transferida para Seguradora, mediante contrato de seguro, titulado por Apólice válida.
E a dinâmica do sinistro é aquela que supra resultou provada, logrando a 3a Ré provar, como alegara, e a si incumbia, pelas regras de repartição do ónus da prova, que a cláusula geral do Contrato, cláusula 4a n.° 1 al. q) se mostra verificada, que estabelece “O presente Contrato nunca garante os danos, perdas ou despesas que decorram, directa ou indirectamente, de: (...) q) Deficiente arrumação e/ou tratamento das mercadorias transportadas (...) ””.
A Autora não entregou a mercadoria ao destinatário, pelas razões supra apuradas, e a mercadoria sofreu uma perda total, pela falta de qualidade do produto em causa, que já não poderia ser comercializado, prova que a 2a Ré logrou fazer, perante a passividade da Autora e 3a Ré, à data dos factos, pelo menos em termos de peritagem e reclamações levadas a cabo, pelo que passou a recair sobre o transportador no caso a Autora o dever de indemnizar com os limites previstos no art.° 23° da CMR (factualidade que não foi impugnada, vg o valor de indemnização), o expedidor.
Provou-se que a Autora pagou, à P Ré e esta à 2a Ré, e cliente da transportadora LS, certa quantia pecuniária atinente à carga totalmente danificada (o que era controvertido, mas resultou provado).
Por sua vez, prevêm os art.°s 102° e 103° do Dec. Lei n.° 72/2008, de 16 de Abril, na redação introduzida pela Lei n.° 75/2021, de 18.11, que estabelece o Regime Jurídico do Contrato de Seguro, que “1 - O segurador obriga-se a satisfazer a prestação contratual a quem for devida, após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências”. E n.° “2 - Para efeito do disposto no número anterior, dependendo das circunstâncias, pode ser necessária a prévia quantificação das consequências do sinistro”.
Ora, podia a 3a Ré opor ao segurado, aqui Autora, provando que a causa de destruição da carga, se deveu à deficiente arrumação e tratamento, no ato de carregamento, declinando o dever de indemnizar, por verificação de uma causa de exclusão da sua responsabilidade contratualmente aceite.
A Autora, confrontada com esta matéria de excepção, não logrou provar como alegara, aliás de forma pouco verosimel, que o seu motorista, neta e noutras cargas, se limita a esperar e visionar, todo o ato de carregamento e inclusive (vg como alegado) o fecho das lonas e traves do camião por funcionários da 2a Ré, resultando antes provado que estes apenas conduzem empilhadores que sobem e descem o reboque, deixando as paletes, nada mais fazem, cabe ao transportador e mais concretamente, ao motorista zelar pelo correcto acondicionamento da carga que vai transportar, sob pena de responsabilidade pela sua perda ou avaria.
Improcede, assim, a acção.”.
Ora, conforme decorre destas considerações de fundamentação, a decisão recorrida acha-se em perfeita consonância com a aludida fundamentação, em termos de se poder dizer que a mesma é seu desfecho lógico, porque a fundamentação exposta desembocava nesse sentido decisório.
Não se nos afigura que, em face da apreciação efetuada por este Tribunal, ocorra alguma contradição lógica entre os factos provados e a subsunção jurídica efetuada com base na aludida factualidade que, foi, em congruência e plena lógica, considerada na aludida aplicação do Direito, culminando, em termos congruentes, com a decisão prolatada.
Na realidade, só existirá contradição ou oposição entre os fundamentos de facto e de direito e a decisão judicial quando aqueles conduzirem, de acordo com um raciocínio lógico, a um resultado oposto ao que foi decidido, ou seja, quando a decisão tomada justifica uma decisão oposta à tomada, o que, no caso não sucede, pois, como se viu, as premissas de facto e de direito em que assentou o decidido, estão conformes com a decisão proferida, o que se alcança ser claro e lídimo da fundamentação exarada.
Assim, conclui-se não se vislumbrar qualquer obscuridade ou ambiguidade, do mesmo modo que não ocorre qualquer contradição entre a decisão e os fundamentos, pelo que, não padece a decisão recorrida da invocada nulidade.
A nulidade invocada, com fundamento na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, soçobra.
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C) Se a sentença é nula, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC?
Conforme também já se aludiu, a recorrente invocou que a sentença “é nula porque deixou de se pronunciar sobre questões devia conhecer”.
A vacuidade da alegação é evidente, mas, atento o invocado vejamos se, ainda assim, se divisa na sentença recorrida o fundamento de nulidade decisória alegado.
Nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, relativo às causas de nulidade da sentença, a sentença será nula se “[o] juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Vejamos se, no caso, o juiz deixou de se pronunciar sobre questões de que devesse conhecer, sabendo-se que, é «frequente a enunciação nas alegações de recurso de nulidades da sentença, numa tendência que se instalou e que a racionalidade não consegue explicar, desviando-se do verdadeiro objecto do recurso que deve ser centrado nos aspectos de ordem substancial. Com não menos frequência a arguição de nulidades da sentença acaba por ser indeferida, e com toda a justeza, dado que é corrente confundir-se o inconformismo quanto ao teor da sentença com algum dos vícios que determinam tais nulidades» (assim, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, pág. 132).
Apenas existirá nulidade da sentença por omissão de pronúncia (ou por pronúncia indevida) com referência às questões objeto do processo, não com atinência a todo e qualquer argumento esgrimido pela parte.
A nulidade por omissão de pronúncia supõe o silenciar, em absoluto, por parte do tribunal sobre qualquer questão de cognição obrigatória, isto é, que a questão tenha passado despercebida ao tribunal, já não preenchendo esta concreta nulidade a decisão sintética e escassamente fundamentada a propósito dessa questão (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-03-2007, Pº 07A091, rel. SEBASTIÃO PÓVOAS).
Caso o tribunal se pronuncie quanto às questões que lhe foram submetidas, isto é, sobre todos os pedidos, causas de pedir e exceções que foram suscitadas, ainda que o faça genericamente, não ocorre o vício da nulidade da sentença, por omissão de pronúncia. Poderá, todavia, existir mero erro de julgamento, atacável em via de recurso, onde caso assista razão ao recorrente, se impõe alterar o decidido, tornando-o conforme ao direito aplicável.
A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronuncia) há de, assim, resultar da violação do dever prescrito no n.º 2 do referido artigo 608º do Código de Processo Civil do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
A questão a decidir pelo julgador está diretamente ligada ao pedido e à respetiva causa de pedir, não estando o juiz obrigado a apreciar e a rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a procedência da sua pretensão, ou a pronunciar-se sobre todas as considerações tecidas para esse efeito. O que o juiz deve fazer é pronunciar-se sobre a questão que se suscita apreciando-a e decidindo-a segundo a solução de direito que julga correta.
De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 608.º do CPC, “o juiz resolve todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”, pelo que, não se verifica omissão de pronúncia quando o não conhecimento de questões fique prejudicado pela solução dada a outras, sendo certo que, o dever de pronúncia obrigatória é delimitado pelo pedido e causa de pedir e pela matéria de exceção.
“O dever imposto no nº 2, do artigo 608º diz respeito ao conhecimento, na sentença, de todas as questões de fundo ou de mérito que a apreciação do pedido e da causa de pedir apresentadas pelo autor (ou, eventualmente, pelo réu reconvinte) suscitam. Só estas questões é que são essenciais à solução do pleito e já não os argumentos, razões, juízos de valor ou interpretação e aplicação da lei aos factos. Para que este dever seja cumprido, é preciso que haja identidade entre a causa petendi e a causa judicandi, entre a questão posta pelas partes e identificada pelos sujeitos, pedido e causa de pedir e a questão resolvida pelo juiz” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15-03-2018, Processo nº 1453/17.3T8BRG.G1, relatora EUGÉNIA CUNHA).
Assim, “importa distinguir entre os casos em que o tribunal deixa de pronunciar-se efetivamente sobre questão que devia apreciar e aqueles em que esse tribunal invoca razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção, sendo coisas diferentes deixar de conhecer a questão de que devia conhecer-se e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte, por não ter o tribunal de esgotar a análise da argumentação das partes, mas apenas que apreciar todas as questões que devam ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25-03-2019, Processo 226/16.5T8MAI-E.P1, relator NELSON FERNANDES).
Na realidade, como se referiu no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-09-2011 (P.º n.º 480/09.9JALRA.C1, relator ORLANDO GONÇALVES): “1.- A nulidade de sentença por omissão de pronúncia refere-se a questões e não a razões ou argumentos invocados pela parte ou pelo sujeito processual em defesa do seu ponto de vista. 2.- O que importa é que o tribunal decida a questão colocada e não que tenha que apreciar todos os fundamentos ou razões que foram invocados para suporte dessa pretensão”.
Se a decisão não faz referência a todos os argumentos invocados pela parte tal não determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, sendo certo que a decisão tomada quanto à resolução da questão poderá muitas vezes tornar inútil o conhecimento dos argumentos ou considerações expendidas, designadamente por opostos, irrelevantes ou prejudicados em face da solução adotada.
Conclui-se – como se fez no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-05-2019 (Processo 1211/09.9GACSC-A.L2-3, relatora MARIA DA GRAÇA SANTOS SILVA) - que: “A omissão de pronúncia é um vício que ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre essas questões com relevância para a decisão de mérito e não quanto a todo e qualquer argumento aduzido. O vocábulo legal -“questões”- não abrange todos os argumentos invocados pelas partes. Reporta-se apenas às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, às concretas controvérsias centrais a dirimir”.
No caso em apreço, conforme decorre do que já foi dito, a decisão recorrida enunciou como questões a decidir – em harmonia, aliás, com o que foi identificado em sede de despacho saneador como temas da prova – as atinentes à “existência ou não de obrigação de indemnizar, por parte da Autora a 2a Ré, e/ou restituição do indevido, quanto aos danos patrimoniais reclamados, sua quantificação e reparação; da relação entre o transportador e o expedidor e das condições de transporte e acondicionamento de carga; do evento lesivo; da obrigação da 3a Ré em reparar o sinistro dos autos e/ou da aplicabilidade de uma cláusula de exclusão, vertida nesse contrato de seguro (além de franquia contratual)”.
Essas questões apresentam total tradução na fundamentação desenvolvida na decisão recorrida, não se afigurando que tenha ocorrido omissão de pronúncia sobre as mesmas ou que, alguma outra, devesse ser conhecida pelo Tribunal, e não o tenha sido.
Assim, não ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, se o Tribunal apreciou todas as questões que lhe incumbia apreciar, em conformidade com o disposto no artigo 608.º do CPC.
Em face do exposto, improcede a nulidade arguida, que não se verifica.
*
II) Impugnação da matéria de facto:
Nas conclusões 17.ª a 42.ª das alegações da apelante, na sequência da alegação que desenvolve, conclui a recorrente que deve ser a alterada a seleção factual, nos termos que concretiza.
Com a alegação produzida, desenvolvida na motivação das alegações, a recorrente/apelante pretende colocar em crise a factualidade selecionada pelo Tribunal a quo.
No caso sub judice, a prova produzida em audiência foi gravada, pelo que, cumpre apreciar se deve este Tribunal ad quem proceder à reapreciação da matéria de facto impugnada.
Prescreve o artigo 639.º do CPC – sobre o ónus de alegar e de formular conclusões - nos seguintes termos:
“1 - O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 - Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada.
3 - Quando as conclusões sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o número anterior, o relator deve convidar o recorrente a completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, no prazo de cinco dias, sob pena de se não conhecer do recurso, na parte afetada.
4 - O recorrido pode responder ao aditamento ou esclarecimento no prazo de cinco dias.
5 - O disposto nos números anteriores não é aplicável aos recursos interpostos pelo Ministério Público, quando recorra por imposição da lei.”.
Por sua vez, dispõe o artigo 640.º do CPC que:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
Assim, aos concretos pontos de facto, concretos meios probatórios e à decisão deve o recorrente aludir na motivação do recurso (de forma mais desenvolvida), sintetizando-os nas conclusões.
As exigências legais referidas têm uma dupla função: Delimitar o âmbito do recurso e tornar efetivo o exercício do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
O recorrente deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respectiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-03-2014, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, relator ALBERTO RUÇO).
Os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (cfr. o Acórdão do STJ de 28-04-2014, P.º nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1, rel. ABRANTES GERALDES).
Não cumprindo o recorrente os ónus do artigo 640º, n.º 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639º, nº 3 do C.P.C. (cfr. Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-06-2014, P.º n.º 1458/10.5TBEPS.G1, rel. MANUEL BARGADO).
Dever-se-á usar de maior rigor na apreciação da observância do ónus previsto no n.º 1 do art. 640.º (de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo), face ao ónus do n.º 2 (destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, rel. LOPES DO REGO).
O ónus atinente à indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação, com exatidão, só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (cfr. Acs. do STJ, de 26-05-2015, P.º nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, rel. HÉLDER ROQUE, de 22-09-2015, P-º nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, rel. PINTO DE ALMEIDA, de 29-10-2015, P.º n.º 233/09.4TBVNG.G1.S1, rel. LOPES DO REGO e de 19-01-2016, P.º nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, rel. SEBASTIÃO PÓVOAS).
A apresentação de transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 405/09.1TMCBR.C1.S1, rel. MARIA DOS PRAZERES BELEZA), o mesmo sucedendo com o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (cfr. Ac. do STJ de 28-05-2015, P.º n.º 460/11.4TVLSB.L1.S1, rel. GRANJA DA FONSECA).
Nas conclusões do recurso devem ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação, bastando que os demais requisitos constem de forma explícita da motivação (neste sentido, Acs. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, rel. TOMÉ GOMES, de 01-10-2015, P.º nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, relatora ANA LUÍSA GERALDES, de 11-02-2016, P.º nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, rel. MÁRIO BELO MORGADO).
Note-se, todavia, que atenta a função do tribunal de recurso, este só deverá alterar a decisão sobre a matéria de facto se concluir que as provas produzidas apontam em sentido diverso ao apurado pelo tribunal recorrido. Ou seja: “I. Mantendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. II: Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-06-2017, Pº 6095/15T8BRG.G1, rel. PEDRO DAMIÃO E CUNHA).
A insuficiência da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ de 19-02-2015, P.º nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, rel. TOMÉ GOMES).
Contudo, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Pº 6871/14.6T8CBR.C1, rel. MOREIRA DO CARMO), sob pena de se praticar um acto inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).
Estas as linhas gerais em que se baliza a reapreciação da matéria de facto na Relação.
No caso dos autos, a recorrente visa impugnar os factos selecionados pelo Tribunal recorrido, nos termos sobreditos.
Ora, afigura-se que, quer quanto à impugnação deduzida a respeito dos factos provados, quer quanto aos factos não provados, a recorrente cumpriu, suficientemente, os ónus de impugnação a que se referem as várias alíneas do n.º 2 do artigo 640.º do CPC, tendo identificado os pontos de facto que, em seu entender, deveriam ter tido decisão diversa, identificou qual a decisão que, em seu entender, deve ser proferida e concretizou os meios de prova, tendo procedido, quanto aos depoimentos a que alude e que considera relevante, à transcrição de excertos de tais depoimentos (faculdade que a lei lhe confere).
Cumpre, pois, apreciar os pontos objeto da impugnação de facto.
*
D) Se a matéria constante dos factos provados n.ºs 8) 10) e 16) da decisão recorrida deve transitar para o rol dos factos não provados e a matéria constante dos factos não provados nas alíneas a), b), c) e d) da decisão recorrida deve transitar para o rol dos factos provados?
Conclui a apelante, nomeadamente, que:
“(…) foram incorretamente julgados como provados os factos constantes dos seguintes pontos da sentença recorrida:
18. - ponto 8), designadamente a 2.ª parte deste ponto, a saber, em face da prova produzida não podia ser dado como provado que a carga foi carregada “(…) mediante a colaboração, supervisão e observação de um funcionário da autora, o motorista do veículo, PRS;”
19. - ponto 10) também a 2.ª parte deste, nomeadamente que “(…) subitamente por causa não concretamente apurada, mas atinente a sonolência ou distracção do condutor, o referido condutor efectuou uma travagem brusca e guinou o veículo, em direcção ao eixo da via, provocando a deslocação da carga para o seu lado direito, contra a lona, e para trás, sem que o veículo saísse da sua faixa de rodagem;
20. - ponto 16) A 3.ª ré declinou toda e qualquer responsabilidade na reparação do sinistro e comunicou-o à autora porquanto entendeu que os danos reclamados, não estão a coberto da Apólice contratada, ie, deveram-se a uma deficiente arrumação e travamento da mercadoria (…);
(…)
23. A primeira testemunha, funcionário da apelante, PRS, motorista e interveniente no sinistro em causa nos autos, com conhecimento directo dos factos controvertidos, disse ao tribunal que carregou o camião dos autos nas instalações da ré Coca- Cola e que foi um funcionário da Coca-Cola quem carregou a carga no camião, e que ele motorista não teve qualquer intervenção no acondicionamento da carga, mais disse que no seu entender a carga estava mal estivada, com pouco filme, mas que tal procedimento – carga com pouco filme, naquele tipo de produtos – era habitual por parte da ré Coca-Cola, pois já tinha feito dezenas de transportes naquelas condições e nunca houve problemas com a carga, mas desta vez, devido ao acidente com o javali e consequente travagem súbita e violente, a carga deslocou-se e danificou-se.
24. As duas outras testemunhas da apelante corroboraram o depoimento do motorista PRS quanto ao carregamento das paletes no camião da apelante.
25. Após a audição dos depoimentos produzidos em julgamento facilmente se pode concluir que o Meritíssimo Juiz “a quo” nunca poderia dar como provado o facto constante do n.º 8 da Sentença, pois na verdade devia constar que, no dia 14 de Fevereiro de 2020, sexta-feira, a referida carga foi carregada nas instalações da 2.ª ré, por um funcionário da 2.ª ré, conduzindo um empilhador, sem qualquer colaboração, supervisão ou observação do funcionário da autora/apelante, o motorista do veículo, PRS.
26. Através do exame dos depoimentos prestados em Julgamento verifica-se que o Meritíssimo Juiz “a quo” não possuía elementos para dar como provado que a causa do acidente descrito não foi apurada mas que poderia ter sido devido a sonolência ou distracção do condutor, antes pelo contrário, o Meritíssimo Juiz “a quo” tinha elementos de prova suficientes para fixar a causa do acidente dos autos – o surgimento inesperado de um animal, javali, na estrada.
27. A testemunha PRS, que depôs de forma isenta e credível, como aliás o afirma o tribunal “a quo” na sua fundamentação da sentença, declarou, sem margem para dúvidas, que o acidente que ocorreu no dia 16/02/2020, domingo, cerca das 21h:20m, quando efectuava o aqui referido transporte, com o veículo de matrícula …-…-… e reboque …-…, na EN 251 Paiva, se deveu ao facto de inesperadamente ter surgido um animal – um javali – na estrada, que o obrigou a travar subitamente e desviar a viatura para evitar o embate com o referido animal.
28. Este facto – o surgimento inesperado do javali na estrada e inevitável travagem do camião onde seguia a carga - foi presenciado pela testemunha JC, que seguia atrás do motorista PRS, ou seja, a testemunha JC também tinha conhecimento directo das circunstâncias em que ocorreu o acidente e confirmou a presença de um animal no meio da estrada, o que obrigou o motorista PRS a travar e desviar o camião do eixo da via, para impedir o embate com o animal, e por cauda dessa travagem e guinada, a carga transportada deslocou-se dentro da viatura e danificou-se.
29. Após a audição dos depoimentos produzidos em julgamento facilmente se pode concluir que o Meritíssimo Juiz “a quo” nunca poderia dar como provado o facto constante do n.º 10 da Sentença, pois na verdade devia constar – Carga essa, que seguia no veículo automóvel da autora, com a matrícula …-…-… e reboque … – …, tripulada por PRS, na EN 251 Paiva, quando subitamente surgiu um animal, um javali, na estrada, e o referido condutor efectuou uma travagem brusca e guinou o veículo, em direcção ao eixo da via, provocando a deslocação da carga para o seu lado direito, contra a lona, e para trás, forçando a sair da sua faixa de rodagem.
30. Através do exame dos depoimentos prestados em Julgamento verifica-se que o Meritíssimo Juiz “a quo” não possuía elementos para dar como provado que a 3.ª ré podia declinar toda e qualquer responsabilidade na reparação do acidente, porque o mesmo se deveu a uma deficiente arrumação e travamento da mercadoria, pois, a causa do acidente foi o surgimento inesperado e imprevisível de um animal, javali, na estrada, que deu origem ao acidente, e por sua vez aos danos na mercadoria, sendo este um risco inerente à circulação automóvel e também um caso fortuito.
31. Foi erradamente dada como não provada a matéria de facto constante dos pontos A, B e C da Sentença.
32. Através do exame dos depoimentos prestados em Julgamento verifica-se que o Meritíssimo Juiz “a quo” não possuía elementos para dar como não provado o facto vertido no ponto A. da sentença, porquanto as testemunhas PRS, NS, JC, e CC foram peremptórios em afirmar que a carga foi carregada e arrumada pela 2.a ré Coca-Cola, sem intervenção da apelante.
33. Consta expressamente da página 9 da sentença ora impugnada, 7.° paragrafo, que a sexta testemunha - CC - declarou que a carga é feita por um operador da 2.a ré, manobrando uma empilhadora, razão porque o motorista tem uma zona onde aguardar.
34. Após a audição dos depoimentos produzidos em julgamento facilmente se pode concluir que o Meritíssimo Juiz “a quo” nunca poderia dar como não provados os factos constantes dos pontos A, B, e C da Sentença, ou seja, estes factos deviam ser dados como provados, pois, foi a 2.a ré, através dos seus funcionários, quem arrumou a mercadoria supra referida no reboque, quem fechou e selou o reboque, sem qualquer intervenção da autora/apelante.
35. Foi erradamente dada como não provada a matéria de facto constante do ponto D) da Sentença.
36. Não podia o Meritíssimo Juiz “a quo” dar como não provado, em face da prova produzida em julgamento, o ponto D, antes pelo contrário, o Meritíssimo Juiz “a quo” tinha elementos de prova suficientes para fixar a causa do acidente dos autos - o surgimento inesperado de um animal, javali, na estrada.
37. A testemunha PRS, que depôs de forma isenta e credível, como aliás o afirma o tribunal “a quo” na sua fundamentação da sentença, declarou, sem margem para dúvidas, que o acidente que ocorreu no dia 16/02/2020, domingo, cerca das 21 h:20m, quando efectuava o aqui referido transporte, com o veículo de matrícula …-…-… e reboque …-…, na EN 251 Paiva, se deveu ao facto de inesperadamente ter surgido um animal - um javali - na estrada, que o obrigou a travar subitamente e desviar a viatura para evitar o embate com o referido animal.
38. Este facto - o surgimento inesperado do javali na estrada e inevitável travagem do camião onde seguia a carga - foi presenciado pela testemunha JC, que seguia atrás do motorista PRS, ou seja, a testemunha JC também tinha conhecimento directo das circunstâncias em que ocorreu o acidente e confirmou a presença de um animal no meio da estrada, o que obrigou o motorista PRS a travar e desviar o camião do eixo da via, para impedir o embate com o animal, e por cauda dessa travagem e guinada, a carga transportada deslocou-se dentro da viatura e danificou-se.
39. Mais nenhuma testemunha ouvida em sede de julgamento tinha conhecimento directo e presencial das circunstâncias em que ocorreu o acidente no dia 16 de Fevereiro de 2020, apenas as testemunhas PRS e JC estiverem presentes nesse acidente e ambos viram um animal na estrada.
40. Assim, não se percebe porque o tribunal “a quo” preferiu atender a depoimentos indirectos, de “ouvi dizer”, em vez de atender aos depoimentos directos e com conhecimento presencial dos factos que determinaram a produção do acidente, e que este acidente foi a causa primeira dos danos provocados na mercadoria, pois se o animal não tivesse surgido na estrada e obrigado o motorista a travar e a guinar o camião a carga não se teria deslocado nem danificado.
41. Após a audição dos depoimentos produzidos em julgamento facilmente se pode concluir que o Meritíssimo Juiz “a quo’’ nunca poderia dar como não provado o facto constante do ponto D da Sentença, pois na verdade devia constar que o acidente se deveu ao surgimento súbito na estrada, de um animal (javali) que atravessou a via, e à necessidade do tripulante do veículo supra identificado, evitar o embate de frente, no animal, travando. (…)”.
A apelada não se revê nestas conclusões recursórias tendo concluído, em sede de contra-alegações, sobre estes pontos, o seguinte:
“(…) U) No que respeita ao apuramento da matéria de facto, o Tribunal decide com base no exame crítico da prova produzida em audiência de julgamento e de acordo com as regras da experiência e a sua livre convicção - tudo nos termos do disposto no artigo 607°., n.° 4 do Código de Processo Civil, sendo que, da prova testemunhal prestada nas sessões de julgamento, resulta evidente que o Tribunal a quo fez uma correcta apreciação da prova produzida e dos depoimentos prestados, não merecendo aquela decisão qualquer juízo de censura;
V) O depoimento prestado pelas testemunhas deverá ser analisado de forma total e integral do que aquelas transmitiram ao douto Tribunal a quo, não devendo ser retiradas frases descontextualizadas ou desprovidas de enquadramento, na essência daquilo que as mesmas depuseram., sendo que vem a Autora/Apelante retirar frases isoladas e descontextualizadas, para assim tentar alterar a o sentido dado pelas mesmas e levar a uma conclusão diversa;
W) De acordo com o exposto na Sentença proferida pelo Tribunal a quo, relativamente à apreciação dos factos 8., 10. e 16. (dados como Provados), e alíneas a., b., c. e d. (dados como Não Provados), esta formou a sua convicção com a diversa prova produzida, e, bem assim, com base no depoimento prestado pelas testemunhas PRS, NS, JC, CC e PS, os quais, considerados na transcrição supra, resulta evidente que bem andou aquele Tribunal a quo;
X) Veja-se, a título exemplificativo, os depoimentos prestados pelas testemunhas PRS (reprodução CD 20220214092558_6025784_2871260 (14.02.2022 - 10:29 horas)), NS (Reprodução CD 20220214092558_6025784_2871260 (14.02.2022 - 10:47 horas)), JC (Reprodução CD 20220214092558_6025784_2871260 (14.02.2022 -11:07 horas)), CC (Reprodução CD 20220214092558_6025784_2871260 (14.02.2022 - 14:46 horas)), e PS (Reprodução CD 20220214092558_6025784_2871260 (14.02.2022 - 14:46 horas)) (…)”.
Especificamente sobre a reapreciação probatória, importa referir que “o recorrente que pretenda contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo terá de apresentar razões objectivas para contrariar a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário, não sendo suficiente para o efeito a mera transcrição de excertos de alguns dos depoimentos prestados, já antes ouvidos pelo julgador sindicado e ponderados na sua decisão recorrida (art. 640º do C.P.C.)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02-11-2017 (Processo n.º 501/12.8TBCBC.G1, rel. MARIA JOÃO MATOS).
O artigo 607.º, n.º 4, do CPC impõe ao julgador que na fundamentação da sentença declare “quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
“A exigência de fundamentação da matéria de facto provada e não provada com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objectividade e discriminadamente, de modo a que as partes, destinatárias imediatas, saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-02-2019, Pº 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, rel. FONSECA RAMOS).
Lebre de Freitas (A Acção Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil, 3.ª ed., p. 315) refere, a este respeito, que: “No novo código, a sentença engloba a decisão de facto, e já não apenas a decisão de direito. Na decisão de facto, o tribunal declara quais os factos, dos alegados pelas partes e dos instrumentais que considere relevantes, que julga provados (total ou parcialmente) e quais os que julga não provados, de acordo com a sua convicção, formada no confronto dos meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador; esta convicção tem de ser fundamentada, procedendo o tribunal à análise crítica das provas e à especificação das razões que o levaram à decisão tomada sobre a verificação de cada facto (art. 607, n.º 4, 1.ª parte, e 5) ”.
Conforme se sublinhou no já citado Acórdão do STJ de 26-02-2019, Pº 1316/14.4TBVNG-A.P1.S2, rel. FONSECA RAMOS): “Sendo os temas da prova enunciados de maneira sucinta, ainda que pressuponham ampla matéria de facto, a exigência de fundamentação desta justifica-se, de modo mais acentuado, porquanto não acontece, como no passado, quando a análise da peça processual onde se respondia aos quesitos permitia, em regra, saber de modo discriminado (os quesitos eram enumerados) o que tinha ficado provado e não provado e a fundamentação, que sempre se reputou não ter que ser exaustiva, mas devendo dar a conhecer os meios de prova em que acentuou a convicção quanto à prova submetida a julgamento”.
Por seu turno, refere Francisco Manuel Lucas de Ferreira de Almeida (Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, pp. 350-351) que: “A estatuição do citado nº4 do art- 607º (1º- segmento) é, contudo, meramente indicadora ou programática, não obrigando o tribunal a descrever de modo exaustivo o iter lógico-racional da apreciação da prova submetida ao respectivo escrutínio; basta que enuncie, de modo claro e inteligível, os meios e elementos de prova de que se socorreu para a análise crítica dos factos e a razão da sua eficácia em termos de resultado probatório. Trata-se de externar, de modo compreensível, o itinerário cognoscitivo e valorativo percorrido pelo tribunal na apreciação da realidade ou irrealidade dos factos submetidos ao seu escrutínio. Deve, assim, o tribunal enunciar os meios probatórios que hajam sido determinantes para a emissão do juízo decisório, bem como pronunciar-se: - relativamente aos factos provados, sobre a relevância deste ou daquele depoimento (de parte ou testemunhal), designadamente quanto ao seu grau de isenção, credibilidade, coerência e objectividade; - quanto aos factos não provados, indicar as razões pelas quais tais meios não permitiram formar uma convicção minimamente segura quanto à sua ocorrência ou convencer quanto a uma diferente perspectiva da sua realidade ou verosimilhança […].Não impõe, contudo, a lei que a fundamentação das conclusões fácticas decisórias seja indicada separadamente por cada um dos factos, isolada e autonomamente considerado (podendo sê-lo por conjuntos ou blocos de factos sobre os quais a testemunha se haja pronunciado)”.
Conforme se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-10-2020 (Pº 258/18.9T8PNF-A.P1, rel. EUGÉNIA CUNHA): “Podendo ser objeto de instrução tudo quanto, de algum modo, possa interessar à prova dos factos relevantes para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, vedado está aquilo que se apresenta como irrelevante (impertinente) para a desenhada causa concreta a decidir, devendo, para se aferir daquela relevância, atentar-se no objeto do litígio (pedido e respetiva causa de pedir e matéria de exceção); Havendo enunciação dos temas de prova, o objeto da instrução são os temas da prova formulados, densificados pelos respetivos factos, principais e instrumentais (constitutivos, modificativos, impeditivos ou extintivos do direito afirmado) –v. arts 410º, do CPC e 341º e seguintes, do Código Civil e, ainda, artigo 5º, daquele diploma legal”.
Nesta linha é, pois, crucial que seja feita a indicação e especificação dos factos provados e não provados e a indicação dos fundamentos por que o Tribunal formou a sua convicção acerca de cada facto que estava em apreciação e julgamento, de acordo com os temas da prova fixados.
“A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma fluente e harmoniosa, técnica bem diversa de uma que continue a apostar na mera transcrição de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados, como os que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória (e do anterior questionário). Se, por opção, por conveniência ou por necessidade, se inscreveram nos temas de prova factos simples, a decisão será o reflexo da convicção formada sobre tais factos, a qual deve ser convertida num relato natural da realidade apurada… […]. O importante é que, na enunciação dos factos provados e não provados, o juiz use uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da acção.” (assim, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, p. 717).
Ora, conforme se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-05-2018 (Pº 3811/13.3TBPRD.P1.S1, rel. ROSA TCHING), “[f]actos provados são os factos concretos assim julgados, na sentença final, após exame crítico das provas e não os factos tidos como assentes no despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova. Ainda que se admita não haver obstáculo a que o juiz, no âmbito do novo Código de Processo Civil, continue a proferir despacho de fixação da matéria de facto considerada assente, é inquestionável que tal despacho não pode deixar de ser visto como um “guião” ou mero “suporte de trabalho” para o julgamento, pelo que, mesmo depois de decididas as reclamações contra ele apresentadas, não se forma  caso julgado formal sobre ele, podendo, por isso, os factos dados como assentes ser alterados pelo juiz do julgamento e/ou pelo juiz do tribunal de recurso”.
Ainda na mesma linha, cite-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23-11-2017 (Pº 3811/13.3TBPRD.P1, rel. MADEIRA PINTO) onde se escreveu que: “Sendo certo que a instrução tem por objecto os temas de prova enunciados e que no NCPC estes não se confundem apenas com factos podendo ser conclusões jurídicas ou versões contrárias de factos ou conclusões, é seguro para nós e de acordo com a generalidade da doutrina e da jurisprudência, que a enunciação dos temas de prova não constitui despacho que faça caso julgado formal sobre os factos essenciais, instrumentais ou complementares que interessam à decisão de direito segundo as diferentes soluções possíveis e alegados pelas partes de acordo com as regras dos artº 5º, nºs 1 e 2 e 607º, nº 4, NCPC”.
E conforme referem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (Manual de Processo Civil, 2.ª Ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 436), para que um facto se considere provado é necessário que, à luz de critérios de razoabilidade, se crie no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto. A prova “assenta na certeza subjectiva da realidade do facto, ou seja, no (alto) grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida”.
Essa certeza subjectiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica. Se pelo contrário, existir insuficiência, contradição ou incoerência entre os meios de prova produzidos, ou mesmo se o sentido da prova produzida se apresentar como irrazoável ou ilógico, então haverá uma dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade dos factos em causa serem certos, obstando a que se considere o facto provado.
Importa considerar que, em termos substanciais, a impugnação da matéria de facto traduz-se no meio de sindicar a decisão que sobre ela proferiu a primeira instância, procurando-se que a Relação reaprecie e repondere os elementos probatórios produzidos, averiguando se a decisão da primeira instância relativa aos pontos de facto impugnados se mostra conforme às regras e princípios do direito probatório, impondo-se se proceda à apreciação não só da valia intrínseca de cada um dos elementos probatórios, da sua consistência e coerência, à luz das regras da normalidade e da experiência da vida, mas também da sua valia extrínseca, ou seja, da sua consistência e compatibilidade com os demais elementos.
Como refere Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, pág. 127): “Consistindo o processo jurisdicional num conjunto não arbitrário de actos jurídicos ordenados em função de determinados fins, as partes devem deduzir os meios necessários para fazer valer os seus direitos na altura/fase própria, sob pena de sofrerem as consequências da sua inactividade, numa lógica precisamente assente, em larga medida, na autorresponsabilidade das partes e, conexamente, num sistema de ónus, poderes, faculdades, deveres, cominações e preclusões”.
Assim, ressalvadas as modificações que podem ser oficiosamente operadas relativamente a determinados factos cuja decisão esteja eivada de erro de direito, por violação de regras imperativas, à Relação não é exigido que, de motu proprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova sujeitos a livre apreciação e valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova.
Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar, desde logo, o que o recorrente - no exercício do seu direito de impugnação da decisão da matéria de facto - indicou nas respectivas alegações e cujo âmbito tem a função de delimitar o objecto do recurso.
O ordenamento processual probatório português combina o sistema livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva ou legal, dado que, “a partir da prova pessoal obtida e da análise do teor dos documentos existentes nos autos ou doutra fonte probatória relevante, tomando em consideração a análise da motivação da respectiva decisão, importa aferir se os elementos de convicção probatória foram obtidos em conformidade com o princípio da convicção racional, consagrado pelo artigo 607º, nº 5, do Código de Processo Civil” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 06-10-2016, Pº 1306/12.1TBSSB.E1, rel. JOSÉ TOMÉ DE CARVALHO).
A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação, partindo da análise e ponderação da prova disponibilizada (cfr. Antunes Varela, Miguel Varela e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pp. 435-436).
Os meios probatórios têm por função a demonstração da realidade dos factos, sendo que, através da sua produção não se pretende criar no espírito do julgador uma certeza absoluta da realidade dos factos, o que, obviamente implica que a realização da justiça se tenha de bastar com um grau de probabilidade bastante, em face das circunstâncias do caso, das regras da experiência da comum e dos conhecimentos obtidos pela ciência.
A prova não visa “(...) a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente) (...)”, mas tão só, “(...) de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto” (assim, Antunes Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 1984, págs. 419 e 420).
A apreciação das provas resolve-se, assim, na formulação de juízos, que assentam na elaboração de raciocínios que surgem no espírito do julgador “(...) segundo as aquisições que a experiência tenha acumulado na mentalidade do juiz segundo os processos psicológicos que presidem ao exercício da actividade intelectual, e portanto segundo as máximas de experiência e as regras da lógica (...)” (assim, Alberto dos Reis; Código de Processo Civil Anotado, vol. III, pág. 245).
Nessa atividade de livre apreciação da prova deve o tribunal especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção adquirida (art. 653º, nº 2 do CPC), permitindo, dessa forma, que se “possa controlar a razoabilidade da convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado” (cfr. Teixeira de Sousa; Estudos Sobre o Novo Processo Civil, p. 348) e exercer um controle externo e geral do fundamento de facto da decisão.
A “prova testemunhal, tal como acontece com a prova indiciária de qualquer outra natureza, pode e deve ser objecto de formulação de deduções e induções, as quais, partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção de raciocínio, mediante a utilização das regras de experiência [o id quod plerumque accidit] e de conhecimentos científicos.
Na transição de um facto conhecido para a aquisição ou para a prova de um facto desconhecido, têm de intervir as presunções naturais, como juízos de avaliação, através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam, fundadamente, afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não, anteriormente, conhecido, nem, directamente, provado, é a natural consequência ou resulta, com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido” (assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de uniformização de jurisprudência, de 21-06-2016, Pº 2683/12.0TJLSB.L1.S1, rel. HÉLDER ROQUE).
Neste enquadramento, a credibilidade firmada em torno de um específico meio de prova tem subjacente a aplicação de máximas da experiência comum, que devem enformar a opção do julgador e cuja validade se objetiva e se afere em determinado contexto histórico e jurídico, à luz da sua compatibilidade lógica com o sentido comum e com critérios de normalidade social, os quais permitem (ou não) aceitar a certeza subjetiva da sua realidade.
Todas estas circunstâncias deverão ser ponderadas na ocasião em que a Relação procede à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações quando, fazendo atuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados.
Aplicando estas considerações à impugnação de facto em questão, a recorrente pugna no sentido de que a matéria constante dos factos provados 8, 10 e 16 deve transitar para o rol dos factos não provados.
Quanto à matéria constante do facto provado n.º 8, a recorrente convoca os depoimentos de PRS, NS, JC.
Relativamente à matéria de facto constante dos factos provados n.ºs. 10 e 16, a apelante invoca os depoimentos de PRS e JC.
Vejamos:
O Tribunal recorrido evidenciou, na motivação da decisão de facto constante da sentença recorrida, em que assentou o juízo probatório alcançado acerca do vertido nos aludidos factos provados n.ºs. 8, 10 e 16, o que fez do seguinte modo:
“Para a formação da convicção do Tribunal, concorreram desde logo o acordo das partes plasmado nos articulados, a par dos documentos juntos aos autos, a saber, o CMR da 1a Ré à 2a Ré, escrito particular intitulado “relatório de análise ” da 2a Ré e datado de 17 de fevereiro de 2020, escrito particular, print de foto aérea do Google, fotografias várias da mercadoria tombada, cartas da 3a Ré à Autora, de 19 de Março de 2020 e 2 de Julho de 2020, auto de destruição de mercadoria de 26 de Maio de 2020, factura da 2ª Ré com o n.° …/…, de 4 de Junho de 2020, factura n.° …/…, de 19 de Junho de 2020, factura da 1a Ré n.°…/…, de 30 de Junho de 2020, escrito particular intitulado “declaração” datado de 25 de Maio de 2020, apólice de seguro da Fidelidade e condições gerais e condições especiais, carta da Autora à 3aRé de 18 de Fevereiro de 2020, relatório de peritagem de 17 págs. de empresa denominada “Siniscarga” e dois emails datados de 17 de Fevereiro de 2020, das 10:06 e 10:32 horas, respectivamente, em conjugação com o depoimento prestado pelas testemunhas ouvidas, a saber, PRS, NS, JC, AP, CC, AS, MF, PS e ACS, as quais depuseram com credibilidade e revelaram isenção.
A primeira testemunha, funcionário da Autora, motorista e interveniente no sinistro em causa nos autos, com conhecimento de parte dos factos controvertidos, esclareceu o Tribunal como decorreu o transporte em causa, quais as viaturas intervenientes, o carregamento da mercadoria nas instalações da 2a Ré, os procedimentos aí adoptados enquanto o reboque é carregado, por um motorista de um empilhador da 2a Ré, e de que forma vai “acondicionada a carga”, no caso sobre paletes de madeira, revestidas a pelicula/filme transparente, cabendo ao motorista do camião e atrelado, assistir a toda esta operação, partir de uma “zona segura, delimitada no chão”; de relevante, esta testemunha admite que cabe ao motorista organizar a carga dentro do camião, depois de carregada, ou apresentar as reclamações que entenda, nomeadamente fazendo constar do CMR, esses reparos, mas o mais das vezes, não o faz, porque senão não tem mais transportes/trabalho.
Quanto à dinâmica do sinistro propriamente dito, referiu que ao “avistar o animal na estrada, o instinto foi desviar...”, mais referindo que viu que a lona ficou a fazer barriga, pelo que deteve a marcha poucos quilómetros à frente e visionou a carga “tombada”.
Mais referiu que sinistro se deu em estrada, no domingo e de noite, cerca de 60 a 70 Kms depois de arrancar, numa recta entre duas povoações com pouca visibilidade e que viu bem “o animal” era um javali.
(…)
A segunda testemunha, ex-funcionário da Autora, com conhecimento parcial dos factos controvertidos, corroborou o depoimento da anterior testemunha, quanto aos procedimentos da Coca Cola; mais referiu que esteve presente aquando da descarga desta mercadoria, mas não assistiu à carga, ou ao sinistro; diz que visionou a carga tombada para o lado direito, para as réguas do reboque, e as paletes com as caixas envolvidas em pouca pelicula, 2 ou 3 folhas, disse; na sua opinião, dado que não havia líquido derramado, haviam paletes que se podiam abrir e aproveitar a carga; referiu que na descarga se apercebeu que carga foi mal acondicionada, por falta de pelicula, e mal distribuída no reboque, porque devia ser 2,2,2,2 paletes e estavam 1,2,3,3,2,1 paletes.
A terceira testemunha, motorista e funcionário da Autora, seguia imediatamente atrás da primeira testemunha, mas não avistou os “javalis”, apenas se apercebeu que o motorista “pisou o travão e desviou-se ligeiramente para o eixo da via”; mais afirmou que, não assistiu à carga do veículo sinistrado, corroborando no mais, o local, a hora e as condições da via, estrada pouco iluminada, que liga duas povoações, e não chovia, mais referindo “é zona onde normalmente durante a noite, se vêm alguns javalis”.
(…)
De relevante, corroborou ainda o depoimento das duas anteriores testemunhas quanto ao procedimento logístico de colocação da carga nos reboques, da Coca Cola.
(…)
A sexta testemunha, funcionário da 2a Ré e responsável da área logística, depôs com conhecimento directo dos procedimentos logísticos, quanto ao prestador de serviços de transporte, a LS, que por sua vez os camiões chegam com a identificação, um número atribuído pelo transportador, o motorista estaciona, abre as lonas e retira as travessas do camião, que é carregado lateralmente, e a operação seguinte é o carregamento por um operador da 2a Ré manobrando um empilhador, razão porque o motorista tem uma “zona” onde aguardar, corroborando os depoimentos anteriores; foi peremptório em afirmar que tal carregamento é feito por um funcionário da Coca Cola, mas é feito de acordo com as indicações do motorista (como corrigir e distribuir a carga), por causa da estabilidade na condução, tanto mais que o motorista assina um documento, quando sai das instalações da Coca Cola.
Igualmente depôs esta testemunha, sobre o “embalamento” que é feito numa linha de montagem, ficando as paletes prontas à espera do carregamento; só em situações pontuais, se o motorista alertar, a 2a Ré rectifica. (…).
A nona testemunha, funcionário de empresa colaboradora com a 3a Ré, depôs com conhecimento de parte dos factos controvertidos, pois foi quem levou a cabo a peritagem na presença de representantes da transportadora e motorista, representantes da Coca Cola e outras pessoas que não soube identificar; (…).
Quanto à versão dos factos do motorista, diz que este identificou o local exacto onde avistou um javali, tratando-se de recta de boa visibilidade.
A décima testemunha, funcionária da 3a Ré, depôs com relevância sobre a participação do sinistro pela Autora, e subsequente averiguação, sendo que recebido o relatório de peritagem “declinou a responsabilidade na sua reparação”, com fundamento no “mau acondicionamento da carga no veiculo de transporte”, exclusão das cláusulas gerais contratuais (art.° 4°, n.° 1, al. q), para além da existência de 10% de franquia contratual, caso houvesse responsabilização.
Relevaram ainda as declarações tomadas ao legal representante da Autora que esclareceu de que forma tomou conhecimento do sucedido, no próprio dia à noite, cerca das 9.30 horas, e versão do motorista e os contactos que estabeleceu, mais referindo que no dia seguinte, visionou a carga, nas instalações da Coca Cola, estando presente um perito da sua Companhia de Seguros, duas Sras. da empresa LS e um Sr. da Coca Cola, bem como o que visionaram, referindo que a Coca Cola demorou 5 dias a tomar decisão quanto à carga.
Mais referiu o legal representante da Autora, que não mais viu a carga e que a 1a Ré debitou a referida quantia à Autora, directamente, sem pergunta alguma, apenas lhe tendo transmitido que ou a empresa LS ou a Coca Cola, haviam debitado à 1a Ré, o mesmo montante.(…)”.
Ora, ouvidos que foram todos os depoimentos prestados nas duas sessões de audiência de discussão e julgamento e concatenados com todos os elementos documentais constantes dos autos, certo é que, não se encontra fundamento para edificar a conclusão pugnada pela recorrente.
Efetivamente, quanto ao facto provado n.º 8, que o veículo em questão foi carregado na sexta-feira dia 14-02-2020 não constitui alguma matéria controvertida, resultando, desde logo, do depoimento de PRS e das declarações de parte do legal representante da autora.
E, no mais que consta expresso em tal facto – que foi a carga carregada nas instalações da 2.ª ré, por um funcionário desta, conduzindo um empilhador, “mediante a colaboração, supervisão e observação de um funcionário da Autora, o motorista do veículo” e que esse motorista era a 1.ª testemunha inquirida – concorreram, convergentemente, os depoimentos que se debruçaram sobre a forma como ocorrem as operações de carga de produtos “Coca-Cola” nas instalações desta: o referido depoimento do motorista do veículo interveniente no evento dos autos, PRS; mas também, NS, JC; e, ainda, o depoimento de CC.
Ora, apreciados criticamente os aludidos meios de prova, ao invés do pugnado pela recorrente não é possível, de facto, afirmar que o motorista PRS não tenha colaborado, supervisionado e observado o carregamento que era efetuado pelo operador de empilhador da 2.ª ré.
Se é certo que o motorista da carga a carregar estará, durante a operação do empilhador, circunscrito a uma área delimitada, na traseira do veículo a carregar, observando a operação do empilhador, também não é menos certo que, conforme referiu, objetiva e inequivocamente, CC constitui procedimento normal perguntar ao motorista como o mesmo pretende que o carregamento seja efetuado, cabendo-lhe colaborar nos procedimentos prévios ao carregamento das paletes de produtos a transportar (colocando o veículo em condições para tal carregamento ser efetuado) e, bem assim, observando o que se encontra a ser realizado, naqueles que decorrem enquanto o carregamento é efetuado, podendo, nomeadamente, assinalar que o carregamento não se encontra a ser efetuado em condições, quer verbalmente, quer por observação que inclua no “CMR” – conforme admitiu PRS, muito embora tenha dito que nunca fez menção de tal no “CMR” com a 2.ª ré, procurando justificar – sem alguma concretização – que se assim procedesse: “…porque se eu fizesse uma declaração no CMR, descarregavam-me o carro e não me deixavam levar a carga…Se você fizer, hoje em dia, uma menção na CMR, em como a carga está mal estivada ou está mal acondicionada, das duas, uma: ou nunca mais vai lá carregar, ou então, nem aquela carga leva (…)”, admitindo que “a carga estava mal carregada”.
Sendo o mesmo PRS o motorista do veículo onde a mercadoria seria transportada, o mesmo poderia, sem dúvida, fazer observações ou reservas ao transporte, em razão da má “estiva” da carga, podendo, no limite, não proceder à movimentação do veículo com a carga nesse estado, o que, contudo, não efetuou no caso em apreço.
Mas, se dúvidas existissem, sobre a verificação de tais “poderes” do motorista, as mesmas seriam dissipadas em face do depoimento de NS, colega de trabalho do referido PRS, que admitiu, com clareza, que se fosse efetuado um carregamento incorreto, não aceitaria um carregamento nessas condições.
Igualmente, JC, referiu que, enquanto o empilhador manobra, o motorista tem de estar na referida área delimitada, mas que “…depois é que podemos ir ver se há alguma anomalia…”, referindo, concludentemente, “se estiver mal carregada a carga, não arranco”, opinando no sentido de que o camião em questão tinha sido mal carregado.
CC, de modo compatível e coerente, referiu que “no momento da carga, se não é dada qualquer reclamação, a carga é dada como carga bem carregada e bem estivada…quando o motorista aceita a carga sem qualquer anotação ou reclamação, a carga é dada como validada”.
A análise crítica dos meios de prova produzidos e em questão inculca, pois, na compatibilidade integral do juízo probatório alcançado pelo Tribunal recorrido a respeito do facto que ficou provado no n.º 8 e, inversamente, daquela factualidade que resultou não provada nas alíneas a) – salvo num aspeto a que se aludirá adiante - b) e c) dos factos não provados.
De facto, não se apurou – para além do que se consignou no facto n.º 8 – que a 2.ª ré tenha sido exclusivamente – e sem alguma participação da autora - quem carregou, através dos seus funcionários a mercadoria no reboque, muito embora tenha participado nas operações correspondentes.
Sucede que, neste ponto particular, a manutenção integral do consignado na alínea a) dos factos não provados encontra-se em franca contradição com o que resulta do mencionado facto provado n.º 8, o que, em conformidade com o disposto no artigo 662.º, n.º 1, do CPC, determina a alteração da redação vertida na mencionada alínea a), dela suprimindo as palavras “carregou e”.
Mas, para além deste particular ponto, inexiste algum motivo para considerar como provada a factualidade vertida nos mencionados factos não provados, constantes das alíneas a), b) e c).
Conforme resulta dos depoimentos prestados acerca de tais operações, nenhum funcionário da 2.ª ré se deslocou “para cima” do camião, não tendo a 2.ª ré -de algum modo – arrumado a mercadoria no reboque, operação que não lhe cabia. Também não foi a 2.ª ré que fechou e selou o reboque (operações que, aliás, são, em geral, caraterísticas e atinentes a quem detém o poder de facto sobre o veículo em questão, ou seja, o motorista respetivo).
Inexiste motivo, em face do exposto, para considerar não provada a matéria que ficou vertida no facto provado n.º 8 e para incluir no rol dos factos provados, o que se encontra vertido nas alíneas a), b) e c) dos factos não provados da decisão recorrida, muito embora seja, em conformidade com o exposto, de suprimir desta alínea a) a expressão “carregou e”.
Quanto à matéria de facto constante do facto provado n.º 10 não se vislumbra existir motivo que justifique que a mesma transite para o rol dos factos não provados.
A contestação da apelante a respeito deste facto provado incide, em particular, sobre a inclusão factual que ali consta no seguinte segmento - prova que a apelante considera não ter ocorrido: “(…) subitamente por causa não concretamente apurada, mas atinente a sonolência ou distração do condutor, o referido condutor efectuou uma travagem brusca e guinou o veículo, em direcção ao eixo da via, provando a deslocação da carga para o seu lado direito, contra a lona, e para trás, sem que o veículo saísse da sua faixa de rodagem”.
Entende a apelante que o Tribunal recorrido “não possuía elementos para dar como provado que a causa do acidente descrito não foi apurada mas que poderia ter sido devido a sonolência ou distracção do condutor” e que tinha elementos de prova suficientes “para fixar a causa do acidente dos autos – o surgimento inesperado de um animal, javali, na estrada” e, quanto à matéria de facto não provada na alínea d), que “…não se percebe porque o tribunal “a quo” preferiu atender a depoimentos indirectos, de “ouvi dizer”, em vez de atender aos depoimentos directos e com conhecimento presencial dos factos que determinaram a produção do acidente (…)”.
Vejamos:
Liminarmente, considera a apelante que não se percebe porque razão o Tribunal deu preferência a depoimentos que revelam um conhecimento “indirecto”, em detrimento das que mencionou terem direto conhecimento.
Vejamos:
Refere Luís Filipe de Sousa (Prova testemunhal; Almedina, 2013, p. 177) que, “o depoimento é directo quando a testemunha percepciona os factos pelos próprios sentidos e o relata com base em tal fonte de conhecimento. É indirecto quando a testemunha tem conhecimento de um facto através do que lhe transmitiu um terceiro (através de uma representação oral, escrita ou mecânica), não provindo o conhecimento da testemunha sobre o facto da sua percepção sensorial imediata. Comummente a testemunha que presta depoimento indirecto é designada de testemunha de ouvir-dizer”.
Conforme salienta este Autor (ob. e loc. cits.), existem “factos com relevância processual que são, pela sua própria natureza e condicionalismo, insusceptíveis de prova testemunhal directa, de prova documental, inspecção judicial e mesmo de prova pericial. Neste tipo de condicionalismos, os únicos meios probatórios admissíveis são as decla­rações de parte (art 466º do actual CPC) e as testemunhas indirectas” e, citando Remédio Marques – a propósito da admissibilidade da declarações de parte com factos favoráveis ao declarante em situações insusceptíveis de outros meios de prova – refere o mesmo Autor (ob. cit., p. 198), que “(…) a recusa, nestas raras eventualidades, em admitir e valorar livremente ou apenas como base de presunções judiciais as declarações favoráveis ao autor, volve-se, desde logo, numa concreta e intolerável ofensa do direito à prova, no quadro do direito de acesso aos tribunais e ao direito e de uma tutela jurisdicional efectiva (art. 20º, n.º1, da Constituição)”, salientando que tal argumentação, “abrange também a relevância e a atendibilidade do depoimento indirecto na precisa medida em que, nas situações insusceptíveis de outros meios de prova, o julgador apenas se poderá socorrer das declara­ções de parte e das testemunhas indirectas”, concluindo admitir “no limite, (…) que o juiz possa fundar a sua convicção quanto a tal tipo de factualidade apenas nas declarações de parte e/ou nos depoimentos indirectos. Necessário é que a valoração dos mesmos, feita segundo as singularidades do caso concreto e as máximas da experiência convocáveis, permita ao julgador atingir o patamar da convicção suficiente”.
De facto, se é certo que, em processo penal, em face do disposto no artigo 129.º do CPP, o depoimento indirecto não pode atendido como meio de prova, fora das estritas condições previstas nesse preceito legal, já em processo civil, não há qualquer norma que se lhe refira especificamente, pelo que, estando em causa, de todo o modo, prova por testemunhas, vale a seu respeito o que resulta da norma do art 396º CC - a força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal.
Conforme se concluiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-01-2018 (Pº 1758/13.2TBMTA.L1-2, rel. TERESA ALBUQUERQUE), “[e]m processo civil é admissível a prova por depoimento indirecto, que será valorada, como a demais prova testemunhal, em função da livre convicção do juiz”.
Por outro lado, importa referir que, em sede de apreciação do recurso pelo Tribunal da Relação, a função deste Tribunal não é a de realizar um novo e integral julgamento de facto, mas aquilatar se ocorreu um erro de julgamento que deva ser corrigido: “Quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos ou estando em causa a análise de meios prova reduzidos a escrito e constantes do processo, deve o mesmo considerar os meios de prova indicados pela partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido, seja no sentido de decidir em sentido oposto ou, num plano intermédio, alterar a decisão no sentido restritivo ou explicativo; Importa, porém, não esquecer que se mantêm-se em vigor os princípios de imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, pelo que o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser usado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Assim, em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 30-11-2017, Pº 1426/15.0T8BGC-A.G1, rel. ANTÓNIO JOSÉ SAÚDE BARROCA PENHA e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 05-03-2020 (Pº 848/18.0T8CHV.G1, rel. ANTÓNIO BARROCA PENHA).
Conforme se concluiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-06-2021 (Pº 2479/18.5T8VLG.P1, rel. PEDRO DAMIÃO E CUNHA), “[m]antendo-se em vigor, em sede de Recurso, os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova, e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto só deve ser efectuado quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados. Assim, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação, quando este Tribunal, depois de proceder à audição efectiva da prova gravada, conclua, com a necessária segurança, no sentido de que os depoimentos prestados em audiência final, conjugados com a restante prova produzida, apontam em direcção diversa, e delimitaram uma conclusão diferente daquela que vingou na primeira Instância”.
Neste sentido, “o uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão da 1.ª instância da matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos impugnados. Não se verifica essa desconformidade quando as testemunhas apresentam uma versão dos factos que não permite confirmar a versão apresentada pelo autor” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05-11-2018, Pº 4534/17.0T8MTS.P1, rel. ANA PAULA AMORIM).
É que, conforme bem se sublinhou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27-04-2020 (Pº 1740/18.3T8VNG.P1, rel. JERÓNIMO FREITAS): “A questão da credibilidade ou não da testemunha insere-se no âmbito da livre apreciação das provas pelo julgador, caindo a sua sindicabilidade fora das competências do tribunal de recurso, excepto se existirem outras provas que imponham decisão diversa. (…) A menos que existissem fundamentos sérios, devidamente sustentados em dados concretos, que tornassem evidente que a valoração da prova foi incorrecta, não pode a recorrente pretender sobrepor a sua “convicção” à do julgador, no pressuposto que é mais acertada, pretendendo, no rigor das coisas, um segundo julgamento da causa por este Tribunal ad quem, no essencial sustentado naquela sua convicção. (…) Para por em causa a convicção formada pelo Tribunal recorrido, é necessário demonstrar que a mesma assenta em pressupostos que são logicamente inaceitáveis ou impossíveis, designadamente, por contrariarem regras de experiência comum”.
Neste sentido, “não estando em causa formalidades especiais de prova legalmente exigidas para a demonstração de quaisquer factos e assentando a decisão da matéria de facto na convicção criada no espírito do juiz e baseada na livre apreciação das provas testemunhal e documental e pericial que lhe foram apresentadas, a sindicância de tal decisão não pode deixar de respeitar a liberdade da 1ª instância na apreciação dessas provas. O erro na apreciação das provas consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto quando a conclusão deveria ter sido manifestamente contrária, seja por força de uma incongruência lógica, seja por ofender princípios e leis científicas, nomeadamente, das ciências da natureza e das ciências físicas ou contrariar princípios gerais da experiência comum (sendo em todos os casos o erro mesmo notório e evidente), seja também quando a valoração das provas produzidas apontarem num sentido diverso do acolhido pela decisão judicial mas, note-se, excluindo este. Em caso de dúvida sobre o sentido da decisão, face às provas que lhe são apresentadas, a 2ª instância deve fazer prevalecer a decisão da 1ª instância, em homenagem à livre convicção e liberdade de julgamento. A garantia do duplo grau de jurisdição em caso algum pode subverter o princípio da livre apreciação da prova, de acordo com a prudente convicção do juiz acerca de cada facto e, por isso, o objecto do recurso não pode ser nem a liberdade de apreciação das provas, nem a convicção que presidiu à matéria de facto, mas esta própria decisão” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05-05-2011, Pº 334/07.3TBASL.E1, rel. MARIA ALEXANDRA A. MOURA SANTOS).
É que, na verdade, como escreve Abrantes Geraldes (Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, p. 234): “… existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador. O sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1ª instância a percepção do entusiamo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo. Além do mais, todos sabemos que, por muito esforço que possa ser feito na racionalização da motivação da decisão da matéria de facto, sempre existirão factores difíceis ou impossíveis de concretizar ou de verbalizar, mas que são importantes para fixar ou repelir a convicção acerca do grau de isenção que preside a determinados depoimentos”.
Em suma: Para se considerarem provados ou não provados determinados factos, não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre os factos num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão.
O julgamento dos factos, na sua valoração, mormente quando se reporta a meios de prova produzidos oralmente, não se reconduz a uma operação aritmética de número ou de adição de depoimentos, antes tem de atender a uma multiplicidade de factores, não se bastando com a palavra pronunciada, mas nele confluindo aspetos tão variados como, as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sócio-cultural, a linguagem gestual (como por exemplo os olhares) e até interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber quem estará a falar com verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a verdade estar a ser distorcida.
Ora, no caso em apreço, existem duas “versões”, de sentido contrário, relativamente à causa que terá determinado o “guinar” do volante e a travagem do veículo por PRS (determinando a consequente “avaria” – por tombamento – da mercadoria transportada):
- Uma “versão” factual apresentada em audiência de discussão e julgamento por PRS, motorista do camião em questão, dizendo que tais actos de condução tiveram por causa a presença de um animal (javali) na faixa de rodagem (versão que, sem êxito, JC e legal representante da autora procuraram credibilizar). Essa alusão consta, igualmente, da participação de sinistro efetuada junto da 3.ª ré, em 18-02-2020, pela autora (cfr. documento n.º 4 junto com a contestação da ré Fidelidade, a fls. 55 dos autos); e
- Uma outra “versão” factual, referenciada por CC, AS e LE, no sentido de que a causa dos referidos actos de condução de PRS tiveram como causa a sonolência ou distracção do condutor. Esta versão mostra-se compatível com o que se lê nas comunicações sedimentadas nos documentos constantes de fls. 83 a 85 dos autos.
Efetivamente, esta segunda “versão”, encontra-se ancorada, de forma objetiva, espontânea, segura e clara, merecendo a credibilidade do Tribunal, nos depoimentos das testemunhas CC (que transmitiu que a primeira versão apresentada pelo motorista da autora foi que “tinha adormecido” enquanto conduzia), AS (que referenciou que “o motorista disse que se tinha deixado dormir e que travou”) e Leonor Esteves (funcionária da empresa LS, que disse ter recebido no dia 17-02-2020 a informação de que o motorista “teria fechado os olhos por momentos e quando reagiu deu uma guinada no volante”, mencionando que tal informação foi fornecida pela assistente de meios dessa empresa, que terá recebido uma chamada da Socicargo nesse sentido).
Ora, o Tribunal recorrido, na análise de apreciação da prova – sujeita ao princípio da livre apreciação – concluiu que se mostrou mais credível esta segunda versão.
E, na reponderação que se efetuou por parte deste Tribunal, perante os meios de prova produzidos, certo é que, não se patenteia que tal conclusão se mostre eivada de algum erro, não merecendo o juízo alcançado, por parte deste Tribunal de recurso, alguma censura.
Desde logo, importa atentar que, “considerando alguma margem de prudente aleatoriedade que a lei concede ao julgador me sede de apreciação probatória e a relevância dos princípios da imediação e da oralidade direta para aferir da veracidade/eticidade do verbalizado, a censura da convicção do julgador apenas é possível – máxime nos casos em que esta é determinantemente alicerçada em prova pessoal – quando os elementos probatórios esgrimidos pelo recorrente não apenas a sugiram, mas antes a imponham” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-09-2022, Pº 1222/20.3T8LRA.C1, rel. CARLOS MOREIRA).
Esta imposição, no sentido de dever ser outra a conclusão probatória, não se comprova na situação em apreço.
Por outro lado, se é certo que, PRS e JC foram diretos intervenientes na situação que originou o evento sobre a mercadoria (o primeiro, por conduzir o veículo na ocasião onde a mercadoria se encontrava e, o segundo, por conduzir outro veículo atrás do primeiro, tendo percecionado a manobra que aquele veículo descreveu), não é menos certo que, outos factores permitem colocar reservas ou reticências à “versão” apresentada em face de tais depoimentos, mostrando-se, em concreto, mais credível, aquela outra versão do sucedido, que foi referida por CC, AS e LE.
Desde logo, importa salientar que a fonte da “versão” da autora assenta, exclusivamente, nesta (ou seja, em pessoas, ligadas diretamente à autora, sendo patente o seu interesse no desfecho dos presentes autos, aliás, assinalado no desfecho das declarações de parte prestadas pelo legal representante da autora), enquanto que, a fonte da segunda versão, acima mencionada, compatibiliza meios de prova oriundos de várias proveniências, sem se ter patenteado algum interesse ou concertação nos depoimentos prestados e na produção dos documentos acima mencionados (com proveniência e/ou participação estranha às partes dos presentes autos), tornando mais credível, objetiva e plausível, atenta a espontaneidade que revela, a ocorrência da respetiva factualidade: Confluem no mesmo sentido, os testemunhos de funcionários da 2.ª ré, mas também, de uma funcionária da empresa LS.
Por outro lado, também sintomático da conclusão alcançada pelo Tribunal recorrido, é a circunstância – que se patenteia objetivamente – de que a “versão” da autora, não foi aquela que, em primeiro lugar, foi apresentada, ao menos perante o que resulta dos documentos pertinentes: A troca de comunicações de fls. 83 a 85 dos autos, onde se menciona como causa que o “Motorista sentiu-se mal, pensa que na sequencia de quebra de tencao e quando reagiu, deu guinada no volante e a carga moveu-se”, respeita à data de 17-02-2020 (logo o dia a seguir ao evento), enquanto que a aludida versão da autora consta sedimentada na participação de sinistro, que se mostra datada de 18-02-2020.
Este aspeto torna mais credível a ocorrência dos factos conforme descrito nas referidas comunicações de fls. 83 a 85 – por causa imputável ao condutor – do que em face do que veio a ser, unilateral e posteriormente, indicado em sede de participação de sinistro, pela autora.
Depois, o legal representante da autora, que aludiu nas suas declarações, singelamente, a que o motorista telefonou “a explicar que por causa de um animal, a carga cedeu…”, não soube explicar e fornecer detalhes do sucedido na ocasião que determinou a cedência da carga, detalhes que, contudo, já foi concludente em fornecer acerca da permanência da carga no camião enquanto se aguardavam as operações de peritagem e que permitem colocar reservas sobre a ocorrência do atravessamento na faixa de rodagem em que a autora estruturou a sua pretensão.
Essa ausência de perceção sobre o que, de facto, ocorreu foi também foi evidenciada no depoimento de JC - que, sendo preciso e concreto sobre ter registado o “guinar” e o “travar” do camião conduzido pelo seu colega PRS e sobre a “barriga” que tal manobra originou no camião, não concretizou algum aspeto sobre a invocada presença de animais na via, que disse não ter visto.
Compreende-se, pois, que o Tribunal recorrido não se tenha louvado nestes meios de prova, assinalando, ao invés, que a travagem e a guinada no veículo conduzido por PRS decorreram da circunstância que, primeiramente, foi comunicada às entidades intervenientes no transporte: causa humana/facto imputável ao motorista, muito embora, na concretização que efetuou, tenha restringido a alternativa a “sonolência” ou “distração” do motorista.
Do exposto, e atentas as provas produzidas e ora referenciadas, decorre que não se valida a conclusão da apelante no sentido de que o Tribunal recorrido “não possuía elementos para dar como provado que a causa do acidente descrito não foi apurada mas que poderia ter sido devido a sonolência ou distracção do condutor”, em detrimento da versão que invocou.
É certo que, o que deriva da aludida comunicação escrita, de fls. 83 a 85 dos autos, não se enquadra em qualquer dessas alternativas, mas sim, num mal-estar ou má disposição do motorista.
Assim, em face dos meios de prova produzidos, considera-se que é de alterar o facto provado n.º 10, no sentido de nele fazer incluir a possibilidade de o evento se ter originado, igualmente, por “má disposição”.
Contudo, no mais, inexiste motivo algum para alteração da factualidade vertida no facto provado n.º 10.
O mesmo se diga, por identidade de razões, quanto à impugnação deduzida quanto ao facto não provado constante da alínea d), não tendo o Tribunal validado a “versão” factual apresentada pela autora, para a dinâmica do acidente ocorrido.
Assim, a impugnação procederá, neste ponto, parcialmente, devendo proceder-se a alteração da redação do facto provado n.º 10, que passará a ser a seguinte: “10. carga essa, que seguia no veiculo automóvel da Autora, com a matricula …-…-… e reboque …-…, tripulado por PRS, na EN 251 Paiva, quando, subitamente por causa não concretamente apurada, mas atinente a sonolência, má disposição, ou distração do condutor, o referido condutor efectuou uma travagem brusca e guinou o veículo, em direcção ao eixo da via, provocando a deslocação da carga para o seu lado direito, contra a lona, e para trás, sem que o veículo saísse da sua faixa de rodagem;”.
No mais, a impugnação deduzida quanto ao facto provado n.º 10, improcederá.
Finalmente, no facto provado n.º 16, ficou consignado na decisão recorrida que: “A 3.ª ré declinou toda e qualquer responsabilidade na reparação do sinistro e comunicou-o à autora porquanto entendeu que os danos reclamados, não estão a coberto da Apólice contratada, ie, deveram-se a uma deficiente arrumação e travamento da mercadoria (…)”.
Entende a recorrente que o Tribunal recorrido “não possuía elementos para dar como provado que a 3.a ré podia declinar toda e qualquer responsabilidade na reparação do acidente, porque o mesmo se deveu a uma deficiente arrumação e travamento da mercadoria, pois, a causa do acidente foi o surgimento inesperado e imprevisível de um animal, javali, na estrada, que deu origem ao acidente, e por sua vez aos danos na mercadoria, sendo este um risco inerente à circulação automóvel e também um caso fortuito”.
Ora, o que consta enunciado no facto n.º 16 é, tão só, a posição da 3.ª ré sobre o sinistro – em termos do facto objetivo de ter declinado responsabilidade pela sua ocorrência – e o facto de ter comunicado – também objetivo e documentalmente comprovado (cfr. cartas da 3.ª ré à autora, constantes de fls. 65 e 66 dos autos) – tal posição à autora.
Conforme resulta deste elemento documental, a prova da factualidade vertida no facto n.º 16 torna-se evidente e inequívoca.
E, com ela não contendem, os aludidos depoimentos de PRS e de JC, pretendidos convocar para o efeito pela autora.
Assim, inexiste motivo para concluir que a matéria de facto vertida no facto n.º 16 deva transitar para o rol dos factos não provados.
Mostra-se, pois, em consequência de tudo o exposto, de:
- Julgar improcedente a impugnação de facto deduzida quanto aos factos provados n.ºs. 8) e 16) e quanto aos factos não provados constantes das alíneas a), b), c) e d) da decisão recorrida;
- Suprimir da redação do facto não provado constante da alínea a) a expressão “carregou e”; e
- Alterar a redação do facto provado n.º 10) para a seguinte: “10. carga essa, que seguia no veiculo automóvel da Autora, com a matricula …-…-… e reboque …-…, tripulado por PRS, na EN 251 Paiva, quando, subitamente por causa não concretamente apurada, mas atinente a sonolência, má disposição, ou distração do condutor, o referido condutor efectuou uma travagem brusca e guinou o veículo, em direcção ao eixo da via, provocando a deslocação da carga para o seu lado direito, contra a lona, e para trás, sem que o veículo saísse da sua faixa de rodagem;”, improcedendo, quanto ao mais, a impugnação deduzida relativamente a tal factualidade.
*
NA DECORRÊNCIA DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO OPERADA PELO CONHECIMENTO DO RECURSO, A MATÉRIA PROVADA A CONSIDERAR É A SEGUINTE:
1. A Autora dedica-se, além do mais, ao transporte rodoviário nacional e internacional de mercadorias, conforme certidão permanente;
2. A 1.ª Ré dedica-se, além do mais, a transportes rodoviários de mercadorias conforme certidão permanente;
3. A 3ª Ré dedica-se, além do mais, devidamente autorizada, à atividade de seguro e de resseguro, em todos os ramos e operações de seguros não vida, conforme certidão permanente;
4. No exercício dessa actividade da 3ª Ré, a Autora celebrou com aquela, contrato de seguro, titulado pela Apólice n.° CR50024861, transferindo para aquela, a responsabilidade infortunística emergente da sua actividade profissional, com existência de uma franquia contratual de 10% dos prejuízos indemnizáveis, tudo conforme doc. 1 junto com a Contestação de fls. 49 e ss. dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais;
5. Na qualidade referida em 1), a Autora foi subcontratada pela 1a Ré, como em muitos outros serviços, para a realização de um transporte rodoviário de mercadorias;
6. A ia Ré, por sua vez, fora subcontratada pela LS, S.A., para a realização de tal transporte, que lhe foi adjudicado pela 2ª Ré;
7. O transporte rodoviário internacional de mercadorias consistia em carregar 28 paletes, de produtos da Coca-cola, na sede da 2ª Ré, sita em QS, ..., …, para transportar e ser entregue em Leganes, Espanha, num cliente da 2a Ré, tudo conforme doc. 1 junto com a PI de fls. 13, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, para todos os efeitos legais;
8. No dia 14 de fevereiro de 2020, sexta-feira, a referida carga foi carregada nas instalações da 2ª Ré, por um funcionário da 2ª Ré, conduzindo um empilhador, mediante a colaboração, supervisão e observação de um funcionário da Autora, o motorista do veículo, PRS;
9. Sucede que, no dia 16 de fevereiro de 2020, domingo, cerca das 21.20 horas, a Autora efectuava o referido transporte, a pedido da 1a Ré, quando sofreu um sinistro, causando danos na carga transportada, pertença da 2a Ré,
10. carga essa, que seguia no veículo automóvel da Autora, com a matricula …-…-… e reboque …, tripulado por PRS, na EN 251 Paiva, quando, subitamente por causa não concretamente apurada, mas atinente a sonolência, má disposição, ou distração do condutor, o referido condutor efectuou uma travagem brusca e guinou o veículo, em direcção ao eixo da via, provocando a deslocação da carga para o seu lado direito, contra a lona, e para trás, sem que o veículo saísse da sua faixa de rodagem.
11. Após isto, o tripulante do ZE conduziu-o até ao Vimeiro, cerca de 4 a 5 kms, local onde estacionou e verificou a carga;
12. Tendo então visionado, que parte da carga se deslocou e se inclinou como supra referido;
13. Na sequência disto, a Autora tomou conhecimento do sucedido, através do seu motorista, e participou a ocorrência às 1a e 2a Rés, tendo esta última determinado o retorno do veículo supra referido, às suas instalações (da 2a Ré);
14. A Autora participou o sinistro à 3a Ré, em 18 de fevereiro;
15. A 3a Ré ordenou a realização de peritagem à carga danificada, dando início ao processo de sinistro n.° 20CR000025, com a colaboração de um averiguador da empresa “Siniscarga, Lda”, em 20 de fevereiro, tudo conforme relatório junto como doc. 5 da Contestação da 3a Ré, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
16. A 3ª Ré declinou toda e qualquer responsabilidade na reparação do sinistro, e comunicou-o à Autora, porquanto entendeu que os danos reclamados, não estão a coberto da Apólice contratada, ie deveram-se a uma deficiente arrumação e travamento da mercadoria, conforme documentos 25 e 26 juntos com a PI e 6 e 7 juntos com a Contestação da 3a Ré, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos;
17. A carga/mercadoria foi destruída nas instalações da 2a Ré, em 26 de maio de 2020;
18. Após, a 2ª Ré debitou o valor integral da carga à LS e esta debitou tal valor à ia Ré, que, por sua vez, debitou tal valor à Autora, amortizando-o nas facturas por si devidas à Autora, pelos transportes efectuados, e reflectidos em conta corrente, fazendo a Autora suportar o valor de € 21.798,72 (vinte e um mil, setecentos e noventa e oito euros e setenta e dois cêntimos);
19. O referido em 18), resultou do acordado entre todos, quer verbalmente, quer por escrito;
20. A Autora emitiu e assinou um escrito intitulado “declaração”, datado de 25 de maio, conforme doc. 31 junto com a PI, de fls. 35 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
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NA DECORRÊNCIA DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO OPERADA PELO CONHECIMENTO DO RECURSO, A MATÉRIA NÃO PROVADA A CONSIDERAR É A SEGUINTE:
a. Foi a 2ª Ré, através de seus funcionários, quem arrumou a mercadoria supra referida, no reboque,
b. e quem fechou e selou o reboque,
c. a Autora não teve qualquer intervenção no referido em a) e b);
d. O referido em 9) e 10), deveu-se ao surgimento súbito na estrada, de alguns animais (javalis), que atravessaram a via, e à necessidade do tripulante do veiculo supra identificado, evitar o embate de frente, nos animais, travando;
e. O referido em 12), deveu-se ao facto das paletes de caixas de produtos coca-cola, estarem envolvidos por uma fina película de plástico, insuficiente para o fim a que se destinava;
f. Nas circunstâncias referidas em 15), um funcionário da 2a Ré, na presença de um funcionário da Autora, colocou mais película de plástico, à volta da mercadoria, para proteger a mesma e poder retirá-la do reboque para o chão;
g. E nessa ocasião, verificou-se que apenas uma parte da carga, se tinha deslocado no reboque, e não toda a carga;
h. A Autora só pagou à 1a Ré, porque esta a pressionou, “ameaçando” que não pagaria à Autora qualquer outro serviço por esta já prestado e devido, serviços esses que à data ascendiam a cerca de € 40.000,00 (quarenta mil euros);
i. Devido à situação de pandemia que se instalou no País e no Mundo, a partir de Março de 2020, a Autora passou a encontrar-se numa situação de carência económica e por essa razão, acedeu à ”chantagem” da 1ª Ré, e pagou-lhe para que a Ré lhe pagasse o que devia;
j. Além disso, a 1ª Ré exerceu “coacção moral” sobre a Autora, fazendo-a assinar a declaração referida em 20), contra a sua vontade.
*
III) Impugnação da matéria de direito:
*
E) Se a ação deverá ser julgada procedente, com condenação da ré FIDELIDADE no pedido?
A decisão recorrida – depois de enquadrar juridicamente a pretensão com alusão ao sub-contrato de transporte internacional de mercadorias celebrado entre a 1.ª ré e a autora - concluiu pela improcedência da ação, juízo que se estruturou, em suma, na seguinte ordem de considerações:
- O transportador é presuntivamente responsável, salvo se se provar caso fortuito ou de força maior, pelos prejuízos causados (cfr. artigos 428.º e 1208.º do CC, 17.º, n.ºs. 1 e 4, als. b) e c), 18.º, n.º 2 e 23 a 25.º da Convenção CMR);
- Não logrou a autora comprovar que a perda/avaria resultou de caso fortuito ou de força maior ou de riscos particulares atinentes a “falta ou defeito da embalagem, quanto às mercadorias que, pela sua natureza, estão sujeitas a perdas ou avarias quando não estão embaladas ou são mal embaladas” e “a manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria pelo expedidor (…) ou por pessoas que actuem por conta do expedidor”.
Em função destas conclusões, a decisão recorrida conclui que a autora é responsável pela reparação do sinistro ocorrido, “inexistindo qualquer causa de responsabilização das 1a e 2a Rés, aquela que apenas contratualmente “vendeu” o transporte que “comprou” à LS”.
Depois, a decisão recorrida, considerando que a “responsabilidade infortunística decorrente do exercício da sua actividade profissional (de transportador), estava, à data do sinistro, validamente transferida para Seguradora, mediante contrato de seguro, titulado por Apólice válida”, curou de apurar da responsabilização da 3.ª ré relativamente ao peticionado pela autora, considerando, em suma:
- Que a 3.ª ré logrou provar, como alegara, que “a cláusula geral do Contrato, cláusula 4.ª n.° 1 al. q) se mostra verificada, que estabelece “O presente Contrato nunca garante os danos, perdas ou despesas que decorram, directa ou indirectamente, de: (...) q) Deficiente arrumação e/ou tratamento das mercadorias transportadas (...) ””;
- Que a “Autora não entregou a mercadoria ao destinatário, pelas razões supra apuradas, e a mercadoria sofreu uma perda total, pela falta de qualidade do produto em causa, que já não poderia ser comercializado (…), pelo que passou a recair sobre o transportador no caso a Autora o dever de indemnizar com os limites previstos no art.° 23° da CMR (factualidade que não foi impugnada, vg o valor de indemnização), o expedidor”;
- Que “[p]rovou-se que a Autora pagou, à 1.ª Ré e esta à 2a Ré, e cliente da transportadora LS, certa quantia pecuniária atinente à carga totalmente danificada (…)”;
- Que “podia a 3a Ré opor ao segurado, aqui Autora, provando que a causa de destruição da carga, se deveu à deficiente arrumação e tratamento, no ato de carregamento, declinando o dever de indemnizar, por verificação de uma causa de exclusão da sua responsabilidade contratualmente aceite”; e
- Que “A Autora, confrontada com esta matéria de excepção, não logrou provar como alegara, aliás de forma pouco verosimel, que o seu motorista, ne[s]ta e noutras cargas, se limita a esperar e visionar, todo o ato de carregamento e inclusive (vg como alegado) o fecho das lonas e traves do camião por funcionários da 2a Ré, resultando antes provado que estes apenas conduzem empilhadores que sobem e descem o reboque, deixando as paletes, nada mais fazem, cabe ao transportador e mais concretamente, ao motorista zelar pelo correcto acondicionamento da carga que vai transportar, sob pena de responsabilidade pela sua perda ou avaria.”.
A apelante contesta a conclusão alcançada pelo Tribunal recorrido, concluindo nas alegações de recurso, que:
“42. Ao contrário do que podemos ler na sentença ora trazida a lume, a apelante fez prova quanto a quem carregou a carga no camião – foi a 2.ª ré Coca- Cola, e fez prova quanto à dinâmica do acidente – deveu-se ao surgimento inesperado de um javali na estrada, que obrigou o motorista da apelante a travar e desviar o veículo da sua faixa de rodagem para evitar embater no animal, e tal travagem e guinada brusca levou a que a carga transportada se deslocasse e se danificasse.
43. A manobra de emergência, efectuada pelo condutor para se desviar do animal que se atravessou de repente na sua frente, da qual resultou a travagem brusca e guinada para fora da sua faixa de rodagem, constitui um risco inerente à circulação automóvel.
44. A travessia de vias por animais, como é do conhecimento geral, implica reacções instintivas dos condutores, manobras defensivas, que não permitem um controle eficaz das viaturas, mesmo rodando nos limites de velocidade legalmente permitidos.
45. Razão pela qual a travagem e a guinada do camião, sendo consequências reflexas de manobras de emergência, são inerentes ao risco de funcionamento e circulação do veículo.
46. Não tendo havido culpa do condutor do veículo na produção do acidente aqui em causa, há que concluir pela existência de responsabilidade objectiva, fundada no risco da circulação, que tem de ser assumida pela seguradora aqui demandada.
47. Responsabilidade essa que obriga ao pagamento de uma indemnização pelos danos patrimoniais aqui reclamados.
48. A apelante tinha um contrato de seguro válido celebrado com a 3.ª ré Fidelidade Seguros, e a apelante logrou provar que o acidente se deveu, se não a um caso fortuito, certamente a um risco inerente à circulação automóvel, risco esse que está coberto pela apólice de seguro a apólice n.º CR50024861, com a 3.ª ré, Fidelidade, e participou-lhe o sinistro ocorrido em 16/02/2020.
49. A 3.ª ré Fidelidade não conseguiu provar a causa de exclusão por si invocada – que os danos da carga se deveram a uma deficiente arrumação e travamento da mercadoria – e tal foi declarado como não provado no ponto E da sentença aqui trazida a lume, logo, tem que ser declarada responsável pelos danos patrimoniais aqui em causa, e pagar à apelante o valor de € 21.798,72.
50. O atravessamento de animais na estrada onde circulava o veículo automóvel da autora pode classificarse como um caso fortuito e/ou um caso de força maior, pois configura a situação descrita na parte final do n.º 2, do artigo 17.º da CMR – “(…), circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar.”
51. O comportamento do motorista da apelante foi prudente, evitando o embate com os animais que se atravessaram na estrada, tal como o faria um profissional experiente, de acordo com o padrão de diligência exigível ao bónus pater-familias – artigo 487.º, n.º 2 do Código Civil.
52. O motorista da apelante não podia prever que os animais iam atravessar a estrada no momento em que circulava, nem o reflexo que ele teve de travar e desviar o veículo dos animais para evitar embater nos mesmos, obstando assim à produção de um acidente rodoviário, que poderia colocar em causa a sua vida e/ou integridade física e bem assim de outros eventuais condutores que ali circulassem, pelo que nenhuma responsabilidade lhe pode ser assacada.
53. Mais, ainda que não se entenda que estamos perante um caso fortuito, sempre subiste que estamos certamente e sem margem para dúvidas perante um risco inerente à própria circulação automóvel, e há responsabilidade objectiva que tem de ser assumida pela 3.ª ré Fidelidade Seguros perante a apelante.
54. Assim, sempre teria de proceder o pedido formulado pela apelante de condenação da 3.ª ré Fidelidade a pagar à autora a quantia de € 21.798,72, porquanto entre a apelante e a 3.ª ré existe um contrato de seguro denominado de responsabilidade do transportado (apólice CR50024861) e como a própria seguradora afirma na sua missiva de 02/07/2020, as travagens bruscas ou outras, são vicissitudes normais do trânsito rodoviário, pelo que o sinistro ocorrido inclui-se no risco do próprio transporte.
55. Ou seja, a travagem brusca realizada pelo motorista da apelante no dia 16/02/2020, cerca das 21h20m, no local EN 215, Pavia, quando seguia das instalações da Coca-Cola, sitas na QS,  ..., ..., com o veículo automóvel e mercadorias - 28 paletes contendo produtos “Coca-Cola” -, para o local da descarga, em Leganes, Espanha, foi um acto normal do trânsito rodoviário que ocorreu porque animais se atravessaram na estrada e foi também um acto necessário para evitar a colisão de veículo com os animais, obviando assim à produção de um acidente rodoviário de maior gravidade do que a que ocorreu – danos em mercadorias – e não ferimentos ou mesmo morte de pessoas, incluindo o próprio motorista da apelante, ou outros eventuais condutores naquela estrada.
56. Pelo que o sinistro ocorrido se inclui na apólice subscrita pela apelante junto da 3.ª ré Fidelidade.
57. Uma das principais, senão a principal obrigação de uma seguradora é o pagamento das indemnizações que sejam devidas nos termos do contrato ou da lei. Ao fazê-lo, a seguradora está a assumir perante terceiros uma responsabilidade que seria do segurado mas que este transferiu para ela mediante o pagamento do prémio.
58. No caso em apreço, o sinistro ocorreu na vigência do contrato de seguro celebrado pela apelante com a 3.ª ré, pelo que deve ser condenada a pagar à autora o valor de € 21.798,72, correspondente ao preço das mercadorias destruídas pela 2.ª ré Coca-Cola.
(…)”.
Vejamos:
Não merece controvérsia o enquadramento realizado na decisão recorrida, acerca da relação jurídica estabelecida entre as partes, no âmbito do contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, de harmonia com o consignado nos factos provados n.ºs. 5, 6 e 7: A autora foi subcontratada pela 1.ª ré, como em muitos outros serviços, para a realização de um transporte rodoviário de mercadorias, consistente em carregar 28 paletes, de produtos da Coca-Cola, na sede desta, para transportar e serem entregues em Espanha, num cliente da 2.ª ré, sendo que, a 1.ª ré, por sua vez tinha sido subcontratada pela empresa LS, S.A., para a realização de tal transporte, que lhe fora adjudicado pela 2.ª ré.
De facto, sem problematizar sobre a natureza jurídica do contrato de transporte (como contrato a favor de terceiro ou como contrato com uma estrutura triangular, em que são sujeitos contratuais o transportador, o expedidor e o destinatário) e sobre a posição jurídica do destinatário, não há contrato de transporte sem expedidor/carregador sendo, precisamente, por este ser parte do contrato que tem que fazer a entrega da mercadoria ao transportador.
Em regra, este contrato supõe três entidades: o expedidor (o que incumbe o transporte), o transportador (o que se obriga ao transporte) e o destinatário (a pessoa a quem a mercadoria deve ser entregue).
Pode concluir-se que o contrato de transporte de mercadorias é “o contrato pelo qual uma das partes - o carregador - encarrega outra - o transportador - que a tal se obriga, de deslocar determinada mercadoria de um local para outro e de a entregar pontualmente ao destinatário, mediante retribuição” (assim, Francisco Costeira da Rocha; O Contrato de Transporte de Mercadorias - Contributo para o estudo da posição jurídica do destinatário no contrato de transporte de mercadorias; Almedina, Coimbra, 2000, p. 55).
Dito de outro modo: O contrato de transporte “é a convenção pela qual um transportador profissional se compromete perante outrem – o interessado ou expedidor – a garantir a deslocação de pessoas ou de mercadorias de um ponto a outro, conforme um meio de locomoção e mediante um preço determinado, denominado frete” (assim, Adriano Marteleto Godinho; “A responsabilidade do transportador rodoviário de mercadorias”, in Temas de Direito dos Transportes, Vol. I, Coord. M. Januário da Costa Gomes; Almedina, 2010, p. 89).
Ao se comprometer a realizar a deslocação de mercadorias de um ponto para outro, o transportador assume uma obrigação de resultado, sendo fundamental o dever de custódia dos bens transportados (cfr., relativamente a este dever de custódia, Adriano Marteleto Godinho; “A responsabilidade do transportador rodoviário de mercadorias”, in Temas de Direito dos Transportes, vol. I, Coord. de M. Januário Gomes; Almedina, 2010, p. 92; e Alfredo Proença; Transporte de Mercadorias por Estrada; Almedina, 1998, p. 22).
Dado que estava em questão a deslocação da mercadoria entre Portugal e Espanha, ao contrato de transporte em causa é aplicável a Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, assinada em Genebra, de 19/05/1956, aprovada para adesão por Portugal pelo D.L. nº 46235, de 18 de Março de 1965, (vulgarmente conhecida por Convenção CMR), convenção que se aplica a todos os transportes de mercadorias por estrada, a título oneroso, que tenham como ponto de partida e de entrega países diferentes, sendo um deles pelo menos país contratante (cfr. art. 1.º da Convenção).
Ao aceitar executar o transporte, o subcontratado, a autora, assume uma obrigação alheia e fica obrigado a cumpri-la nos mesmos termos que a entidade que contratou o transporte, designadamente a entregar a mercadoria no local do destino nos mesmos termos em que a recebeu.
A autora, como transportadora, estava obrigada à chamada “obrigação de deslocação”, que é comummente qualificada como sendo uma obrigação de resultado e não meramente de meios, porquanto, o transportador obriga-se a colocar no local do destino a mercadoria objeto do contrato, sendo da sua responsabilidade, a dotação dos meios humanos e materiais necessários para a sua execução, assim como, é da sua responsabilidade a boa execução da deslocação.
“No âmbito da Convenção CMR, o transportador, é presuntivamente, e salvo se provar caso fortuito ou força maior, responsável pelos prejuízos causados nos termos e com os limites previstos no art.º 23.º” (assim, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27-05-2014, Pº 1168/13.1TBGRD.C1, rel. CARLOS MOREIRA).
Em suma: “o transportador é presuntivamente responsável pelos danos ocorridos entre o momento de recepção e o de entrega das mercadorias. Se não for capaz de defender-se por meio das causas e dos fatos liberatórios expressa e taxativamente previstos na CMR (…), arcará com o pagamento das indenizações cabíveis” (cfr., Adriano Marteleto Godinho; “A responsabilidade do transportador rodoviário de mercadorias”, in Temas de Direito dos Transportes, Vol. I, Coord. M. Januário da Costa Gomes; Almedina, 2010, p. 95).
O regime de exoneração de responsabilidade do transportador resulta dos artigos 17.º e 18.º da Convenção CMR, onde se estabelece o seguinte:
“Artigo 17º
1. O transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora na entrega.
2. O transportador fica desobrigado desta responsabilidade se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar.
3. O transportador não pode alegar, para se desobrigar da sua responsabilidade, nem defeitos do veículo de que se serve para efectuar o transporte, nem faltas da pessoa a quem alugou o veículo ou dos agentes desta.
4. Tendo em conta o artigo 18º, parágrafos 2 a 5, o transportador fica isento da sua responsabilidade quando a perda ou avaria resultar dos riscos particulares inerentes a um ou mais dos factos seguintes:
a) Uso de veículos abertos e não cobertos com encerado, quando este uso foi ajustado de maneira expressa e mencionado na declaração de expedição;
b) Falta ou defeito da embalagem quanto às mercadorias que, pela sua natureza, estão sujeitas a perdas ou avarias quando não estão embaladas ou são mal embaladas;
c) Manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria pelo expedidor ou pelo destinatário ou por pessoas que actuem por conta do expedidor ou do destinatário;
d) Natureza de certas mercadorias, sujeitas, por causas inerentes a essa própria natureza, quer a perda total ou parcial, quer a avaria, especialmente por fractura, ferrugem, deterioração interna e espontânea, secagem, derramamento, quebra normal ou acção de bicharia e dos roedores;
e) Insuficiência ou imperfeição das marcas ou dos números dos volumes;
f) Transporte de animais vivos.
5. Se o transportador, por virtude do presente artigo, não responder por alguns dos factores que originaram o estrago, a sua responsabilidade só fica envolvida na proporção em que tiverem contribuído para o estrago os factores pelos quais responde em virtude do presente artigo.
Artigo 18º
1. Compete ao transportador fazer prova de que a perda, avaria ou demora teve por causa um dos factos previstos no artigo 17º, parágrafo 2.
2. Quando o transportador provar que a perda ou avaria, tendo em conta as circunstâncias de facto, pode ter resultado de um ou mais dos riscos particulares previstos no artigo 17, parágrafo 4, haverá presunção de que aquela resultou destes. O interessado poderá, no entanto, provar que o prejuízo não teve por causa total ou parcial um desses riscos (…)”.
Conforme deriva dos aludidos preceitos da Convenção, “o transportador poderá reverter aquela presunção e, findo o processo probatório, exonerar-se da responsabilidade que lhe havia sido presuntivamente assacada. Esta exoneração, ou o mero afastamento da presunção de responsabilidade, poderá fazer-se, seja provando as causas liberatórias do n.º 2 do artigo 17.º, seja recorrendo aos designados factos liberatórios, ou causas privilegiadas de liberação (n.º 4 do artigo 17.º)” (cfr., Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-01-2019, Pº 3573/09.9TBLRA.C1, rel. MARIA JOÃO AREIAS).
O ónus da prova da verificação de alguma destas causas, que permitem a exclusão de responsabilidade do transportador, incumbe ao transportador, a quem incumbe demonstrar o cumprimento não culposo do contrato de transporte – cfr. artigo 18.º, n.º 1, da Convenção CMR e artigo 342.º, n.º 2, do CC (cfr., entre muitos outros, exemplificativamente, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14-06-2011, Pº 437/05.9TBANG.C1.S1, rel. HÉLDER ROQUE, e de 06-04-2021, Pº 21305/18.9T8PRT.G1.S1, rel. FÁTIMA GOMES; o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-06-2010, Pº 7298/05.6TCLRS.L1-2, rel. ONDINA CARMO ALVES; o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27-05-2015, Pº 587/11.2TBPMS.C1, rel. FERNANDO MONTEIRO; o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29-01-2013, Pº 5066/07.0TBVFR.P1, rel. M. PINTO DOS SANTOS; e os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 24-09-2020, Pº 21305/18.9TBPRT.G1, rel. JORGE TEIXEIRA e de 10-03-2022, Pº 692/20.4T8VCT.G1, rel. ALCIDES RODRIGUES).
A exoneração de responsabilidade do transportador ou, “em primeira linha na ordem probatória, o mero afastamento da presunção de responsabilidade, poderá fazer-se, seja provando as causas liberatórias do n.º 2 do art. 17.º, seja recorrendo aos designados factos liberatórios (faits libératoires), ou causas privilegiadas de liberação, do n.º 4 da mesma disposição” (assim, Nuno Manuel Castello-Branco Bastos; Direito dos Transportes; Almedina, 2004, p. 95).
De acordo com o n.º 2 do artigo 17.º e do n.º 1 do artigo 18.º da Convenção CMR, o transportador liberar-se-á (causas liberatórias) de responsabilidade se provar o nexo causal concreto entre o dano e qualquer dos factos ali enunciados: falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta sua, um vício próprio da mercadoria ou circunstâncias que não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar – caso fortuito e de força maior (“o caso fortuito assenta na ideia de imprevisibilidade: não se pode prever o fato, mas este seria evitável caso tivesse sido previsto. Já a força maior tem subjacente a ideia de inevitabilidade, sendo todo acontecimento, natural ou humano que, embora previsível e mesmo eventualmente prevenido, não se pode evitar, nem em si mesmo nem nas suas consequências” – assim, Adriano Marteleto Godinho; “A responsabilidade do transportador rodoviário de mercadorias”, in Temas de Direito dos Transportes, vol. I, Coord. de M. Januário Gomes; Almedina, 2010, p. 108).
Relativamente a estas causas liberatórias, Nuno Manuel Castello-Branco Bastos (Direito dos Transportes; Almedina, 2004, p. 95) entende que o transportador se liberará de responsabilidade se provar o nexo causal concreto entre o dano e qualquer dos factos aí previstos, só se isentando inteiramente de responsabilidade “se conseguir provar que os danos provieram desses factos e só desses factos, sem embargo de se poder acolher presunções de experiência (presumptiones hominum), a fim de concluir tal prova”, restando ao interessado na carga a faculdade de contraprova.
De acordo com o n.º 4 do artigo 17.º e dos n.ºs. 2 a 5 do artigo 18.º da Convenção CMR, o transportador ficará igualmente liberado de responsabilidade se a perda ou avaria resultar dos riscos particulares enunciados no n.º 4 do artigo 17.º - causas de exclusão de responsabilidade ou factos liberatórios -, entre os quais, se encontra, na al. c), a atinente a manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria pelo expedidor ou pelo destinatário (ou por pessoas que actuem por conta do expedidor ou do destinatário).
Ao transportador compete a prova da ocorrência, no caso concreto, de um ou mais dos referidos riscos particulares (por ex., falta ou defeito da embalagem) e terá de estabelecer uma forte probabilidade de um nexo de causalidade entre o risco invocado e a perda ou avaria, ou seja, que, perante as circunstâncias do caso concreto, a perda ou avaria podia ter resultado desse risco.
Nuno Manuel Castello-Branco Bastos (ob. cit., p. 96), considera que o n.º 4 do artigo 17.º da Convenção CMR consagra um regime de prova mais favorável ao transportador: “Provando tais factos e a mera relação abstracta de causalidade entre os danos verificados (isto é, entre aquele tipo de danos) e aqueles tipos abstratos de factos, o transportador gozará de uma presunção de causalidade, revertendo-se igualmente a presunção de responsabilidade, pois que, ictu oculi, é perceptível que tais factos geram, habitualmente, os danos em causa”.
Ao interessado na causa restará provar a ausência de um nexo de causalidade concreta, isto é, ou existindo este, a concorrência da negligência do transportador. Só refutando esta prova, a existir, é que, por fim, o transportador ficará exonerado da sua responsabilidade.
Conforme se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07-04-2022 (Pº 31298/20.7YIPRT.L1-2, relatado pelo ora relator), “porque cabe ao transportador demonstrar que a responsabilidade não lhe pode ser assacada, é dele a responsabilidade por danos derivados de causas desconhecidas” (em, semelhante sentido, vd. Adriano Marteleto Godinho; “A responsabilidade do transportador rodoviário de mercadorias”, in Temas de Direito dos Transportes, vol. I, Coord. de M. Januário Gomes; Almedina, 2010, p. 96).
Como primeira operação e pressuposto do transporte, a autora tinha o direito de exigir da expedidora, que a mesma lhe fizesse a entrega da mercadoria.
Conforme salienta Francisco Costeira da Rocha (O Contrato de Transporte de Mercadorias – Contributo para o estudo da posição jurídica do destinatário no contrato de transporte de mercadorias; Almedina, 2000, p. 64), “[o] carregador tem aqui uma evidente obrigação de cooperação, pois deve entregar a mercadoria para que esta possa ser transportada. Por sua vez, o transportador deve receber a mercadoria se esta estiver de acordo com o estabelecido (…).
A recepção é o acto pelo qual o transportador passa a deter materialmente a mercadoria e aceita transportá-la nas condições em que se apresenta. A partir deste momento incide sobre o transportador o dever de guarda da mercadoria a transportar”.
Assim, ao rececioná-la e ao tomar conta da mercadoria, tinha a autora o direito e o dever de fazer o seu reconhecimento (verificando a exatidão indicações constantes da declaração de expedição em termos de número de volumes, marcas e outros sinais e apurando do estado aparente da mercadoria e da sua embalagem) em função das menções constantes do CMR, sendo que, se o não pudesse fazer, deveria inscrever reservas fundamentadas no CMR e pedir à 2.ª ré que, enquanto expedidora, as assinasse (cfr. artigo 8.º da Convenção CMR), sendo que, “a declaração de expedição, até prova em contrário, faz fé das condições do contrato e da receção da mercadoria pelo transportador” (cfr. artigo 9.º, n.º 1, da Convenção CMR).
“Na falta de indicação de reservas motivadas do transportador na declaração de expedição, presume-se que a mercadoria e embalagem estavam em bom estado aparente no momento em que o transportador as tomou a seu cargo, e que o número de volumes, as marcas e os números estavam em conformidade com as indicações da declaração de expedição” (cfr. artigo 9.º, nº 2, da Convenção CMR).
Após essa operação, seguia-se a segunda operação material, consistente no transporte, a deslocação da mercadoria e, efetuada que fosse esta, seria a mesma objeto de entrega ao destinatário da mesma.
Sucede que, em termos de execução contratual, depois de carregada a carga e iniciado efetivamente o transporte (tendo a carga sido carregada no dia 14-02-2022, nas instalações da 2.ª ré, por um funcionário desta, conduzindo um empilhador, ocorrendo tal operação com a colaboração, supervisão e observação do motorista da autora), no dia 16-02-2022, pelas 21.20 horas, ocorreu um sinistro que causou danos na mercadoria transportada.
Efetivamente, neste dia, circulando pela EN 251, o motorista do veículo automóvel da autora, com a matrícula …-…-… e reboque …-…, PRS, efetuou uma travagem brusca e guinou o veículo, em direção ao eixo da via, provocando a deslocação da carga para o seu lado direito, contra a lona, e para trás.
Tal manobra ocorreu por causa não concretamente apurada, mas atinente a sonolência, má disposição ou distração do motorista que conduzia o veículo da autora.
Não se apurou que a referida manobra tenha tido como causa o atravessamento de animal na via.
Em virtude da referida manobra, a mercadoria deslocou-se determinando a sua avaria (sendo que, “o conceito de “avaria” utilizado na CMR, corresponde a “deterioração”, implicando qualquer desgaste ou estrago que a coisa sofra por algum facto exterior: calor, frio, chuva, atrito, trepidação, choque, etc., de modo que ela já não possa servir ou ter menor utilidade para o fim a que é destinada” – assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-07-2020, Pº 4237/18.8T8PBL.C1, rel. MARIA TERESA ALBUQUERQUE) e inutilização, tendo a viagem cessado, uma vez que, de acordo com instruções da 2.ª ré, foi determinado que o veículo retornasse às instalações desta ré (cfr. facto provado n.º 13).
Em face desta factualidade, e na falta de outra demonstração, a responsabilidade pelo sucedido e pelos prejuízos que assim foram causados, incidiria na falta de demonstração de alguma causa de exoneração de responsabilidade, sobre o transportador/autora.
A autora participou à 3.ª ré o sinistro em 18-02-2020.
A 3.ª ré, seguradora, após peritagem, declinou responsabilidade, dizendo que, os danos reclamados pela autora não se encontravam cobertos pela garantia do seguro, referindo que, “[a]pós análise à documentação do processo de sinistro, bem como ao relatório de peritagem (…), os danos verificados na carga se deveram a uma deficiente arrumação e travamento da mercadoria” e que, a “mercadoria viajou depositada sobre estrados de madeira e revestidos com plástico transparente formando paletes sem qualquer tipo de travamento ou preenchimento dos espaços vazios entre elas (paletes), completamente vulnerável às oscilações próprias do transito rodoviário e sem qualquer impedimento de contacto entre si (…)” (cfr. documento constante a fls. 65 dos autos).
A autora, insurgindo-se contra este entendimento, instaurou a presente ação e em sede de petição inicial, argumentou que as mercadorias foram deficientemente acondicionadas pelas 1.ª e 2.ª rés, razão pela qual, as mesmas se deslocaram com a travagem súbita, o que não aconteceria se estivessem bem acondicionadas, tendo concluído - invocando que existiu caso fortuito - que ocorreram circunstâncias que a autora não podia prever (o atravessamento de animais na via) e consequências que a mesma não podia evitar – a travagem brusca e consequente deslocação e danificação das mercadorias transportadas e, que, nessa medida, “fica assim afastada a presunção de culpa pela perda total das mercadorias contida no artigo 17.º, n.º 1, da CMR, pois essa perda ocorreu por culpa das expedidoras, as 1.ª e 2.ª rés, que arrumaram de forma deficiente as mercadorias e não travaram as mesmas, e também porque existiram circunstâncias que a autora não podia prever (…) e evitar (…)” (cfr. artigos 32.º a 45.º da p.i.).
Não nos parece líquido que o atravessamento de um animal possa configurar, inelutavelmente, um caso fortuito, no sentido de que, tal situação, configure sempre um acontecimento previsível mas inevitável (por exemplo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-05-1993, Pº 0064571, rel. HUGO BARATA, concluiu-se que caberá a demonstração no sentido de que o surgimento do animal seja súbito e imprevisto e a curtos metros, sendo que, “o trânsito de um animal sem dono ou extraviado numa artéria de circulação automóvel, é uma realidade da vida, pelo que todo o condutor pode e deve contar sempre com essa possibilidade, tanto mais que é constante obrigação do condutor do veículo, para além de destreza no domínio da máquina, estar atento às circunstâncias da artéria (…)”). Tudo dependerá, claro está, da configuração concretamente apurada no caso respetivo.
Sucede que, conforme decorre do já referido, a invocação de tal situação – o atravessamento de javalis invocada pela autora - não resultou sequer comprovada após o julgamento dos presentes autos, estando, pois, afastada a causa liberatória a que se reporta o n.º 2 do artigo 17.º da Convenção CMR, com fundamento na realização de uma manobra de recurso ou de emergência, com base na invocação de que surgiu na via tal obstáculo.
Vejamos, ainda assim, se se comprovou o facto liberatório a que se reporta a alínea c) do n.º 4 do artigo 17.º da Convenção CMR.
No caso, em razão da manobra de guinar e de travagem brusca, em direção ao eixo da via, desencadeada pelo motorista no decurso da condução que efetuava (por causa não concretamente apurada, mas atinente à sua pessoa, por distração, sonolência ou má disposição), a carga que era transportada no veículo que conduzia, deslocou-se para o seu lado direito, contra a lona, e para trás, vindo assim a ocorrer o sinistro na carga transportada.
De facto, apurou-se, cabalmente, o nexo entre a referida manobra e a consequência que, para a carga que seguia no interior do veículo, veio a ocorrer, em termos da sua deslocação, inclinação e consequente prejuízo.
Conforme se deu nota no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-01-2019 (Pº 3573/09.9TBLRA.C1, rel. MARIA JOÃO AREIAS), onde esteve em questão a deslocação de uma grua que se soltou para a via pública, “em princípio, não é suposto que a mercadoria transportada dentro de um camião vá acondicionada de modo a poder soltar-se (…) em caso de uma paragem brusca (…)
Ou seja, se, face a uma travagem brusca – travagem que pode sempre vir a ocorrer no decorrer da circulação automóvel –, a Grua transportada se solta, na falta de outra explicação, teremos de afirmar que tal se terá devido a deficiente acondicionamento (…) da mercadoria dentro do camião (…)”.
No caso, a operação de carregamento foi desenvolvida pela 2.ª ré (não se tendo apurado qualquer participação da 1.ª ré nessa operação), que, com o auxílio de um empilhador e por intermédio de um operador deste veículo, colocou a mercadoria no interior do veículo que a veio a transportar.
Conforme se veio a constatar em sede da peritagem realizada após o sinistro, “os volumes não estavam travados, (…) a estiva não era uniforme” (cfr. fls. 59 dos autos), concluindo-se em tal peritagem que a carga se deslocou porque estava mal estivada e sem travamento.
Ora, se é certo que, quanto à 2.ª ré, o carregamento da mercadoria foi efetuado por um funcionário desta - que, com o auxílio de um empilhador a colocou no camião da autora -, não é menos certo que, não se provou que, tenha sido essa 2.ª ré a responsável pela arrumação da carga no veículo, nem pelo fechamento e selagem do camião, sem alguma intervenção da autora nessas operações.
De facto, não obstante o carregamento a que a 2.ª ré procedeu, não ficava a autora isenta ou dispensada de verificar, nem a correção de uma tal operação de carga, relativamente à qual poderia ter registado alguma observação ou, mesmo, consignado reservas no CMR, o que não sucedeu, nem de proceder à verificação, confirmação, reconhecimento, arrumação e acondicionamento da carga entregue.
Efetivamente, conforme se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-10-2020 (Pº 60328/19.3YIPRT.C1, rel. BARATEIRO MARTINS), “num contrato de transporte internacional de mercadorias, as operações de carga e de descarga são, salvo se outra coisa tiver sido combinada, da responsabilidade do transportador. Ainda que na operação de carga tenham que ser utilizados (e tivessem sido utilizados na parte carregada) meios do expedidor, o transportador não fica dispensado do dever de verificar a mercadoria, de confirmar e de fazer o reconhecimento da carga”.
É que, como bem salienta Adriano Marteleto Godinho; “A responsabilidade do transportador rodoviário de mercadorias”, in Temas de Direito dos Transportes, vol. I, Coord. de M. Januário Gomes; Almedina, 2010, pp. 122-123), “o transportador tem o dever de averiguar a forma como o expedidor, sobretudo, procede em relação à carga e arrumação das mercadorias. Sendo certo que o transportador assume o dever de deslocar as mercadorias e de entregá-las incólumes no local do destino, constitui também sua obrigação tomar todas as medidas para que o veículo esteja pronto para suportar todas as condições da jornada, até que ela alcance o seu fim”.
Pode dizer-se, pois, que o dever de verificação da carga e de acondicionamento ou de arrumação da mesma constitui, salvo estipulação em contrário, uma obrigação elementar a cargo do transportador (dever que, por exemplo, é reforçado pelas prescrições contidas no artigo 56.º do Código da Estrada), que deverá zelar pelo adequado acondicionamento ou arrumação da carga que vai transportar.
Tal dever mantém-se, pois, ainda que, na operação de carga tenham que ser utilizados meios do expedidor, não ficando o transportador dispensado do dever de verificar a mercadoria, de confirmar e de fazer o reconhecimento da carga e de a dispôr da forma que entenda por mais adequada ao transporte que vai realizar, cabendo-lhe supervisionar, aliás, as operações de carga a que se procedeu.
Em concreto, conforme se refere no relatório da peritagem efetuada, seriam adequados a evitar o dano verificado, as operações de travamento da mercadoria ou de colocação de almofadas de ar ou de outros mecanismos que prevenissem o tombamento da mercadoria transportada, podendo concluir-se que ocorreu, de facto, deficiente arrumação da mercadoria (uma vez que tais operações de segurança não foram concretizadas).
Ora, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, al. q) das Condições Gerais da apólice dos autos, o contrato de seguro celebrado entre a autora e a 3.ª ré não garantia os danos, perdas ou despesas que decorressem, direta ou indiretamente, de deficiente arrumação e/ou travamento das mercadorias transportadas, independentemente de tais danos terem tido por causa primária, uma circunstância assente nos riscos normais de circulação ou de trânsito de uma viatura (como sucede com as manobras usuais de guinar o volante e de travar, ainda que bruscamente).
A 3.ª ré poderia, como o fez, opôr à autora a verificação desta causa de exclusão da cobertura das garantias do seguro contratado, o que determina a improcedência da pretensão deduzida pela autora, também no que se reporta à 3.ª ré (sendo que, quanto à 1.ª e 2.ª rés, a recorrente não formula alguma pretensão recursória).
Pode sintetizar-se o que se vem referindo, nas seguintes proposições conclusivas:
1ª) O contrato de transporte é a convenção pela qual um transportador profissional se compromete perante outrem – o interessado ou expedidor – a garantir a deslocação de pessoas ou de mercadorias de um ponto a outro, conforme um meio de locomoção e mediante um preço determinado, denominado frete;
2ª) Ao se comprometer a realizar a deslocação de mercadorias de um ponto para outro, o transportador assume uma obrigação de resultado, sendo fundamental o dever de custódia dos bens transportados e dado que o ponto de partida e de entrega se situavam em países diferentes (Portugal e Espanha, respetivamente), ao contrato de transporte em causa é aplicável a Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada, assinada em Genebra, de 19/05/1956, aprovada para adesão por Portugal pelo D.L. nº 46235, de 18 de Março de 1965 (vulgarmente conhecida por Convenção CMR);
3ª) Nos termos do artigo 17.º, n.º 1, da Convenção CMR, o transportador, é presuntivamente responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora na entrega, ficando desobrigado desta responsabilidade se demonstrar alguma “causa liberatória”, prevista no n.º 2 do artigo 17.º da Convenção - que a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar –, ou se, demonstrar a ocorrência de “factos liberatórios”, ou causas privilegiadas de liberação, constantes do n.º 4 do artigo 17.º da Convenção - entre os quais se encontra a circunstância, prevista na alínea c), atinente à “Manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria pelo expedidor ou pelo destinatário ou por pessoas que actuem por conta do expedidor ou do destinatário”;
4ª) Porque cabe ao transportador demonstrar que a responsabilidade não lhe pode ser assacada, é dele a responsabilidade por danos derivados de causas desconhecidas;
5ª) O dever de verificação da carga e de acondicionamento ou de arrumação da mesma constitui, salvo estipulação em contrário, uma obrigação elementar a cargo do transportador (dever que, por exemplo, é reforçado pelas prescrições contidas no artigo 56.º do Código da Estrada), que deverá zelar pelo adequado acondicionamento ou arrumação da carga que vai transportar;
6ª) Tal dever mantém-se, ainda que, na operação de carga tenham que ser utilizados meios do expedidor, não ficando o transportador dispensado do dever de verificar a mercadoria, de confirmar e de fazer o reconhecimento da carga e de a dispôr da forma que entenda por mais adequada ao transporte que vai realizar;
7ª) Tendo o motorista da autora, na execução do transporte, guinado o veículo que conduzia, em direção ao eixo da via, e efetuado um travagem brusca (por causas não concretamente apuradas, mas atinentes à sua pessoa, por distração, sonolência ou má disposição), em razão do que a carga se deslocou para o lado direito do camião onde seguia, contra a lona e para trás, danificando-a, foi causa eficiente do sinistro ocorrido, a deficiente arrumação ou travamento da mercadoria transportada;
8ª) Não obstante a operação de carregamento ter sido desenvolvida pela 2.ª ré - que com o auxílio de um empilhador e por intermédio de um operador deste veículo, colocou a mercadoria no interior do veículo da autora – tinha a autora (enquanto transportadora), que colaborou nessa operação, o dever de averiguar a forma como a carga era colocada, supervisionando tal operação e procedendo à correta arrumação das mercadorias, tendo a obrigação de tomar todas as medidas para que o veículo estivesse pronto para suportar todas as condições do transporte (aqui se incluindo a tomada das medidas adequadas - como o travamento da mercadoria ou a colocação de almofadas de ar - a evitar o tombamento da mercadoria);
9ª) Tendo o sinistro derivado da deficiente arrumação ou travamento da mercadoria, não se mostra exonerada a responsabilidade do transportador pelas suas consequências; e
10ª) Mostra-se excluída a reparação do sinistro pela seguradora, na medida em que, nas condições gerais do contrato de seguro, se excluem da garantia de tal contrato, “os danos, perdas ou despesas que decorram, direta ou indiretamente, de (…) deficiente arrumação e/ou travamento das mercadorias transportadas”.
A decisão recorrida que julgou improcedente a pretensão da autora não merece, neste conspecto, alguma censura.
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A apelação improcederá em conformidade com o exposto, com manutenção da decisão recorrida.
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De acordo com o estatuído no n.º 2 do artigo 527.º do CPC, o critério de distribuição da responsabilidade pelas custas assenta no princípio da causalidade e, apenas subsidiariamente, no da vantagem ou proveito processual.
Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. “Vencidos” são todos os que não obtenham na causa satisfação total ou parcial dos seus interesses.
Conforme se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2017 (Pº 1509/13.1TVLSB.L1.S1, rel. TOMÉ GOMES), cujo entendimento se subscreve: “O juízo de procedência ou improcedência da pretensão recursória não é aferível em função do decaimento ou vencimento parcelar respeitante a cada um dos seus fundamentos, mas da respetiva repercussão na solução jurídica dada em sede do dispositivo final sobre essa pretensão”.
Em conformidade com o exposto, a responsabilidade tributária inerente incidirá, in totum, sobre a autora/apelante, que decaiu, para este efeito, integralmente – cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC.
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5. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem o coletivo desta 2.ª Secção Cível, em:
I) Não julgar verificadas as nulidades arguidas;
II) Relativamente à impugnação referente à matéria de facto:
- Julgar improcedente a impugnação de facto deduzida quanto aos factos provados n.ºs. 8) e 16) e quanto aos factos não provados constantes das alíneas a), b), c) e d) da decisão recorrida;
- Suprimir da redação do facto não provado constante da alínea a) a expressão “carregou e”; e
- Alterar a redação do facto provado n.º 10) para a seguinte: “10. carga essa, que seguia no veiculo automóvel da Autora, com a matricula …-…-… e reboque …-…, tripulado por PRS, na EN 251 Paiva, quando, subitamente por causa não concretamente apurada, mas atinente a sonolência, má disposição, ou distração do condutor, o referido condutor efectuou uma travagem brusca e guinou o veículo, em direcção ao eixo da via, provocando a deslocação da carga para o seu lado direito, contra a lona, e para trás, sem que o veículo saísse da sua faixa de rodagem;”, improcedendo, quanto ao mais, a impugnação deduzida relativamente a tal factualidade; e
III) Julgar improcedente a apelação, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas da apelação pela autora/apelante.
Notifique e registe.
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Lisboa, 16 de março de 2023.
Carlos Castelo Branco
Orlando dos Santos Nascimento
João Miguel Mourão Vaz Gomes