Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
443/16.8T8TVD.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: LIQUIDAÇÃO EM EXECUÇÃO DE SENTENÇA
INDEMNIZAÇÃO
CÁLCULO
JUROS DE MORA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/20/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE A APELAÇÃO DA AUTORA E IMPRTOGENNTE APELAÇÃO DA RO
Sumário: I.– A Portaria n.º 11/2010, de 13.01, destina-se ao cálculo do capital de remição de pensões que forem fixadas, nos termos do regime jurídico infortunístico-laboral, a partir da retribuição auferida pelo sinistrado, à data do sinistro, emergente de uma relação jurídica de trabalho subordinado em que aquele seja parte.

II.– A aludida Portaria não é, pois, aplicável a prestações indemnizatórias concedidas à luz do regime geral da responsabilidade civil por factos ilícitos, incluindo as destinadas a ressarcir a perda dos rendimentos auferidos pelo sinistrado a partir da exploração autonomamente efetuada das suas propriedades agrícolas.

III.– É materialmente inconstitucional, por violação do direito à tutela jurisdicional efetiva, na vertente da garantia de um processo equitativo, consagrada no artigo 20.º, n.º 4, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 2, ambos da Constituição, e do direito à justa reparação dos danos, decorrente do artigo 2.º da Constituição, a interpretação normativa extraída do n.º 7 do artigo 64.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto, correspondente ao entendimento segundo a qual, nas ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado, no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao mesmo, o tribunal apenas pode valorar os rendimentos líquidos auferidos à data do acidente, que se encontrem fiscalmente comprovados, após cumprimento das obrigações declarativas legalmente fixadas para tal período.

IV.– A referida interpretação normativa também viola o princípio da igualdade, consagrado no art.º 13.º n.º 1 da CRP, ao impor essa restrição legal tão só a lesados no quadro da responsabilidade civil automóvel e não aos lesados em geral.

V.– Por outro lado, o art.º 1.º do citado Dec.-Lei n.º 153/2008, de 06.8, que aditou ao art.º 64.º do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21.8, o aludido n.º 7, enferma de inconstitucionalidade orgânica por versar, sem a necessária autorização ao Governo, de matéria integrada na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, ou seja, uma restrição a um direito constitucionalmente garantido.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa.


RELATÓRIO:


Em 09.3.2016 Alexandrina intentou ação declarativa de condenação (incidente de liquidação) contra Companhia de Seguros, S.A. (inicialmente,– Companhia de Seguros, S.P.A.).

A A. alegou, em síntese, que por sentença proferida em 09.12.2010 em processo-crime em que era arguido um segurado da ora R., pela prática de homicídio negligente em acidente de viação, tendo a ora A., além de outros interessados, deduzido pedido de indemnização cível contra a seguradora, fora esta condenada, além do mais, a pagar à ora demandante uma quantia que se viesse a apurar em sede de execução de sentença, respeitante aos rendimentos do ofendido (falecido marido da A.) resultantes da sua atividade agrícola, cujo valor anual não fora possível apurar e que integravam uma parcela de bens utilizados no sustento da sua vida familiar. Levando em consideração a perda dos rendimentos resultantes da atividade agrícola anteriormente levada a cabo pelo falecido marido da A., descontando as despesas que essa atividade implicava, e o acréscimo de despesa resultante da necessidade de adquirir os produtos que anteriormente abasteciam o seu agregado familiar, a A. sofre um prejuízo anual de € 22 800,00, valor esse a que deve ser aplicada a tabela geral de remissão [palavra usada pela A.] atendendo à idade da viúva e beneficiária.

A A. terminou formulando o seguinte petitório:
Nestes termos, e nos demais de direito que V. Exa. doutamente suprirá, deve o presente incidente ser julgado procedente por provado, devendo:
- liquidar-se o valor a ser pago pelo Demandando à Demandante, correspondente aos rendimentos do ofendido resultante da sua actividade agrícola, cujo valor anual não foi anteriormente possível apurar, computando-se agora em € 22.080,00 (vinte e dois mil e oitenta euros) desde a morte do de cujus, à qual deve acrescer os juros de mora calculados à taxa legal, desde 21/07/2008 até efectivo e integral pagamento,
- ser aplicado ao montante supra a tabela geral de remissão atendendo à idade da viúva e beneficiária.
- ser o Demandado citado para, querendo, contestar o presente incidente no prazo e sob cominação legal, seguindo-se os ulteriores termos até final.

A R. contestou a ação, impugnando tudo o alegado pela demandante que não tivesse sido dado como provado na sentença dada à liquidação, do que, no seu entender, decorria a sua absolvição do pedido.

Realizou-se audiência prévia, em que foi proferido saneador tabelar, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizou-se audiência final e em 08.3.2017 foi proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo:
Em face do exposto, fixa-se a indemnização a título de danos patrimoniais, na vertente de lucros cessantes decorrentes da actividade agrícola, em 20.400,00 € (vinte mil e quatrocentos euros), condenando-se a Ré no pagamento de tal quantia à Autora, acrescida de juros, à taxa legal de 4% ao ano, desde 9 de Dezembro de 2010 até integral e efectivo pagamento.
Custas por ambas as partes, na proporção dos respectivos decaimentos (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia a Autora.”

A A. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
1.– Vem o presente recurso interposto da douta sentença, pois a ora Recorrente não se pode conformar com a mesma, pelos motivos que infra se discriminam.
2.– Assim, a ora Recorrente não concorda com o montante fixado pelo douto tribunal, a título de danos patrimoniais, na vertente de lucros cessantes decorrentes da actividade agrícola.
3.– Em primeiro lugar, e nos termos da tabela anexa à Portaria nº 11/2000, de 13 de Janeiro, se à data da morte do de cujus, este tinha 62 anos, tem direito a que seja aplicada uma taxa de 10,745.
4.– Assim, os lucros cessantes decorrentes da actividade agrícola deveriam ter sido calculados aplicando-se a taxa de 10,745.
5.– Em segundo lugar, não é racional a previsão sobre o tempo provável que restaria ao de cujus, no que diz respeito ao exercício da actividade agrícola, fixando tal previsão nos 66 anos.
6.– Não é legítimo que o douto tribunal queira fixar o fim da prática da actividade agrícola nos 66 anos, quando, não são raros os casos em que as pessoas continuam a praticar a actividade agrícola, muito depois de atingirem os 66 anos.
7.– Em terceiro lugar, o nível de esperança de vida, em Portugal, tem vindo a aumentar ao longo dos anos, sendo que há estudos que demonstram que a actividade agrícola é benéfica para a saúde dos que a praticam e dos que fazem essa actividade a sua vida.
8.– Mesmo após atingir 66 anos, é possível trabalhar, nomeadamente, na actividade agrícola – sendo essa a prática entre os trabalhadores, nomeadamente, os agricultores em Portugal.
9.– Independentemente da idade da reforma prevista em Portugal, é um facto que o legislador criou uma Portaria, que visa o “cálculo do capital de remição das pensões de acidentes de trabalho e aos valores de caucionamento das pensões de acidentes de trabalho a que as entidades empregadoras tenham sido condenadas ou a que se tenham obrigado por acordo homologado”.
10.– Pelo que, se o de cujus tinha 62 anos quando faleceu, então o douto tribunal deveria ter aplicado, mutatis mutandis, a tabela presente na Portaria 11/2000, de 13 Janeiro.
11.– A Portaria supra referida é de aplicação directa e estipula os montantes correctos a aplicar.
12.– Assim, os lucros cessantes decorrentes da actividade agrícola deveriam ter sido calculados, aplicando-se, directamente, a taxa de 10,745, correspondente à idade que o de cujus tinha aquando do momento em que faleceu, 62 anos.
A apelante terminou pedindo que a sentença recorrida fosse revogada e substituída por outra que condenasse a R. a pagar à A. a quantia devida nos termos da Portaria n.º 11/2000, de 13 de janeiro.

Também a R. apelou da sentença, tendo rematado as suas alegações com as seguintes conclusões:
1)– Apenas os valores fiscalmente comprovados deverão estar na base ou servir para apuramento dos rendimentos auferidos.
2)– Atendendo aos rendimentos fiscalmente comprovados da Autora e às despesas que a mesma reconheceu ter mensalmente, o rendimento mensal que a Autora obtinha da actividade que exercia com o seu falecido marido, era substancialmente inferior ao arbitrado na douta Sentença recorrida.
3)– De qualquer forma, o facto de o valor arbitrado ser recebido numa única prestação indemnizatória e, por isso, ter um potencial gerador de riqueza que não ocorreria caso o valor fosse recebido mensalmente, ou seja, diluído no tempo impunha a sua redução em valor que corresponda a sensivelmente 25%, ou seja, ¼, do valor globalmente considerado.
4)– Os juros são devidos desde a citação para a presente acção, data em que a Recorrida liquidou o seu crédito.
5)– Ao ter decidido como decidiu, violou a douta Sentença recorrida quanto dispõem os artºs 483º, 564º e 805º do Cód. Civil e, bem assim, o artº 64º do Decreto-lei 291/2007 de 21 de Agosto.
6)– Termos em que deve a Sentença recorrido ser alterada, nos moldes expostos supra.

Nenhuma das apelações foi objeto de contra-alegações.

Foram colhidos os vistos legais.

FUNDAMENTAÇÃO.

As questões que se suscitam neste recurso são as seguintes:

Apelação da A.-
Aplicação da Portaria n.º 11/2000, de 13 de janeiro e idade do ofendido a considerar, com reflexo na indemnização a atribuir;
Apelação da R.-
Rendimentos a considerar para o cálculo da indemnização (apenas os fiscalmente comprovados ?) e relevância do pagamento da indemnização numa única prestação, na quantificação da indemnização; data da mora para o efeito dos juros.
Por estarem interligadas, analisaremos em conjunto as questões suscitadas na apelação da A. e as duas primeiras levantadas na apelação da R.; depois, a última indicada pela R. (data de vencimento dos juros de mora).
Apelação da A. e duas primeiras questões suscitadas pela apelante R. (aplicação da Portaria n.º 11/2000, de 13 de janeiro, idade do ofendido a considerar e valor da indemnização; rendimentos a considerar para o cálculo da indemnização (apenas os fiscalmente comprovados ?); relevância do pagamento da indemnização numa única prestação, na quantificação da indemnização).

O tribunal a quo deu como provada, não foi questionada pelas partes e é aceite por esta Relação, a seguinte.

Matéria de facto.
1.–No âmbito do processo-crime que correu sob o n.º 157/08.2GTTVD no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Torres Vedras – Instância Local – Secção Criminal – J1, foi a aqui Ré condenada, por sentença proferida a 9 de Dezembro de 2010, transitada em julgado, junta a fls. 74 verso e seguintes, cujo teor se dá aqui por reproduzido, no pagamento à Autora, a título de danos patrimoniais, na vertente de lucros cessantes, da quantia de 80.000,00 € (oitenta mil euros), “acrescida da quantia que se vier a apurar em sede de execução de sentença, descontando-se a quantia de 62.107,31 €, nos moldes supra indicados”, em virtude de acidente ocorrido em 21 de Julho de 2008.
2.–Da sentença referida em 1. consta, com relevância para estes autos, que: “Posto isto, e tendo em consideração os critérios acima explanados arbitra-se a indemnização por lucros cessantes, à demandante Alexandrina, no valor de €80.000,00 (oitenta mil euros), à qual deverá acrescer a quantia que se vier a apurar em sede de execução de sentença referente à actividade agrícola desenvolvida pelo falecido Celestino, afigurando-se ser equitativo descontar da globalidade da quantia já apurada e que se vier a considerar, o valor de €62.107,31, visto que tais montantes foram pagos pela demandada por conta do mesmo tipo de dano – lucros cessantes/perda de capacidade de ganho, no âmbito das pensões definitivas”.

3.–Na sentença referida em 1. foram considerados provados, com relevância para estes autos, os seguintes factos:
a.- “Na data do seu falecimento, o ofendido tinha 62 anos de idade (…)”
b.- “O ofendido Celestino e a demandante Alexandrina celebraram casamento católico, sem convenção antenupcial, no dia 16-12-1966”.
c.- “À data do embate, o ofendido vivia com a mulher”
d.- “O ofendido explorava algumas propriedades agrícolas”
e.- “Cultivava hortaliças para subsistência da casa e para venda a terceiros”
f.- “O ofendido conduzia o tractor, lavrava os terrenos e era o próprio de transportava os produtos”
g.- “Após o falecimento de Celestino, a demandante Alexandrina deixou de cultivar os terrenos e de vender hortaliças para fora”.

4.– Em 05-06-2015, no processo referido em 1. foi proferido o seguinte despacho: “Nos presentes autos, vieram Alexandrina e outros, instaurar o presente incidente de liquidação de sentença, nesta instância local – Secção Civel, como decorre de fls. 680 e ss. contra -Companhia de Seguros, SPA. (…) da conjugação dos artºs 118º e 129º, nº 2, da Lei 62/2013, de 26/08, (LOST) e 82º, do C.P.Penal decorre que as secções criminais são incompetentes, em razão da matéria, para a liquidação da sentença na qual se decidiu que o pedido de indemnização civil teria que ser liquidado posteriormente. Neste sentido, por exemplo, entre outro, o citado Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa. Ademais, trata-se de um incidente que segue a forma de processo comum declarativo – cfr. artº 360º, nº 3, do C.P.Civil – forma de processo esta cuja competência está arredada das secções criminais. Em suma, as secções criminais são competentes para executar as suas próprias sentenças a menos que as mesmas necessitem de liquidação. Do nosso modesto ponto de vista e bem, o presente incidente foi instaurado na Secção Cível desta instância local. Daí que os autos, nos termos sobreditos, devem ser tramitados pela Secção Cível competente e não por este Juízo Criminal. Notifique e após trânsito, com baixas remeta, à secção competente”.

5.– Perante a impossibilidade de distribuição do incidente à secção cível foi proferido o seguinte despacho em 0810.2015: “Por despacho, já transitado em julgado, foi julgado incompetente para o presente incidente de liquidação de sentença, o tribunal criminal de 1ª instância, de acordo, aliás, com o que vem sendo decidido pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, em dois acórdão muito recentes.
Determinou-se que os autos fossem remetidos à secção competente. Todavia, inexiste espécie que permita distribuir tal incidente, seja ele tramitado por apenso ao processo principal, seja tramitado em separado. Ou seja, não é possível, muito embora todas as tentativas feitas, de remeter os autos e nomeadamente o apenso, à secção competente.
Nestes termos, e estando em causa a incompetência em razão da matéria, mais não resta que declarar a exceção dilatória da incompetência em razão da matéria, absolvendo da instância a demandada “-Companhia de Seguros SPA”, nos termos do disposto nos artºs 96º, al. a), 577º, al. a), 578º e 278º, nº 1, al. a), do CPC.
Notifique e após trânsito arquive.”

6.– Celestino e a Autora produziam batatas, feijões, cebolas, frutas diversas, couves, alfaces, alhos e outros produtos afins.
7.– Criavam e vendiam galinhas, coelhos, patos, gansos, perus, galinhas e porcos e outros animais.
8.– Os produtos cultivados e os animais criados pela Autora e por Celestino eram utilizados em parte para consumo do agregado daqueles.
9.– Parte dos produtos hortícolas eram vendidos para uma cooperativa, outros por venda directa e na feira da Malveira que ocorria todas as quintas-feiras, sem emissão de facturas.
10.– Após o óbito de Celestino a Autora deixou de poder cultivar e vender os referidos produtos hortícolas, uma vez que não sabe conduzir o tractor.
11.– As vendas referidas em 9. rendiam, em média, ao agregado familiar cerca de 750,00 € por mês.
12.– A produção agrícola tinha um custo de cerca de 200,00 € mês.
13.– Em virtude do facto descrito em 10., a Autora deixou de ter produtos hortícolas frescos para o seu consumo, que representavam uma auto-suficiência alimentar para a Autora durante todo o ano, sendo que teve de começar a adquirir tais produtos, tendo um acréscimo de despesas mensais no montante de 150,00 €.
14.– Parte das vendas efectuadas dos produtos hortícolas eram declaradas pela Autora, por ter actividade aberta.
15.– Em 2007, a Autora apresentou de rendimentos da actividade referida em 9. 5942,27 €.

Por relevarem para a apreciação desta apelação, reproduzem-se ainda os seguintes factos dados como provados na sentença supra referida em 1, extraindo-se os trechos relevantes:
16.– No dia 21 de Julho de 2008 o arguido circulava pela autoestrada n.º 8 (designada A8), ao Km 40,933, no sentido Sul-Norte, conduzindo o veículo pesado de mercadorias com a matrícula ...8-...0-...J.
17.– No mesmo sentido daquele a que seguia o arguido circulava o veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula ...8-...F-...1, na respetiva berma, devidamente sinalizado com os sinais A23 (trabalhos na via) e ET13 (seta luminosa) colocados na traseira do veículo, conduzido por Celestino [o falecido marido da ora apelante], o qual estava a ser utilizado como carro de apoio no transporte dos utensílios para a manutenção dos taludes da via, nos trabalhos que estavam a decorrer na A8, que ia circulando e parando na berma, conforme os trabalhos iam decorrendo.
18.– O arguido, porque conduzia distraído e de forma pouco cuidada entrou em derrapagem e saiu da faixa de rodagem, embatendo com a parte frontal do seu veículo no que era conduzido por Celestino.
19.– Em consequência da colisão Celestino sofreu ferimentos muito graves, dos quais resultou a sua morte, naquela data.
20.– Na ocasião dos factos Celestino exercia funções como chefe de equipa, sob autoridade, direção e fiscalização da entidade patronal “Empresa de Agricultura e Jardinagem, S.A.
21.– Na data dos factos, a entidade patronal do ofendido havia transferido a sua responsabilidade por infortúnio laboral para a companhia de seguros “R S.A.”.
22.– Auferia a quantia mensal de cerca de € 800,00.
23.– Foi realizada tentativa de conciliação entre a “R, S.A.”, e a ora A., tendo aquelas sido conciliadas, tendo a demandante a receber daquela seguradora os montantes, a título de pensão anual e vitalícia no valor de € 3 737,52, até perfazer a idade da reforma por velhice e a partir daquela data ou por doença física e mental que afete sensivelmente a sua capacidade de trabalho, a pensão anual e vitalícia de € 4 480,00; a quantia de € 5 112,00 respeitante ao subsídio por morte e a quantia de € 4 983,36 referente ao subsídio de funeral.
24.– Por conta do evento em causa, e no âmbito do protocolo, existente entre companhias de seguro, de acidentes que são simultaneamente acidentes de viação e acidentes de trabalho, bem como por conta da reserva matemática atinente ao pagamento das pensões decorrentes do acidente de trabalho, a “Companhia de Seguros S.P.A.” pagou à companhia de Seguros “R, S.A.”, a quantia de € 62 107,31 (sessenta e dois mil cento e sete euros e trinta e um cêntimos).

O Direito.
Está provado que o marido da apelante faleceu num acidente de viação. No âmbito do processo criminal que foi instaurado contra o condutor responsável pelo acidente, veio a ora R. a ser condenada no ressarcimento dos danos emergentes desse acidente, à luz das regras da responsabilidade civil por facto ilícito, previstas nos artigos 483.º e seguintes do Código Civil. Porém, a quantificação da indemnização, no que concerne aos rendimentos auferidos pelo falecido na atividade agrícola, foi relegada para execução de sentença, ao abrigo do art.º 661.º n.º 2 do CPC. Isto porque, escreveu-se na sentença (do processo-crime), não fora possível apurar o valor anual dos referidos rendimentos, por nenhuma prova ter sido a esse respeito produzida.
Realizada a tramitação processual destinada a proporcionar a liquidação da indemnização, o tribunal a quo fixou-a em € 20 400,00.

Para tal, aduziu a seguinte fundamentação:
Quanto à liquidação propriamente dita, em face da factualidade apurada, temos que a actividade agrícola em causa era desenvolvida conjuntamente pela aqui Autora e por Celestino e que por força do óbito deste deixou de ser desenvolvida pela Autora. Por outro lado, resulta da mencionada factualidade que as vendas resultantes da actividade agrícola geravam um rendimento, em média, de cerca de 750,00 € por mês e que para o exercício de tal actividade suportavam de despesas cerca de 200,00 € mensais. Mais se provou que parte da produção agrícola se destinava a consumo do casal, passando a Autora, após o óbito, a gastar cerca de 150,00 € mensais em produtos agrícolas, de que antes dispunha por força da actividade desenvolvida pelo casal.
Ora, considerando tais elementos e bem assim que parte de tais rendimentos seriam também gastos em despesas pessoais de Celestino, temos como correcto fixar os lucros cessantes decorrentes da actividade agrícola em 425,00 € mensais.
Por outro lado, estando em causa nestes autos a actividade agrícola que Celestino deixou de desenvolver por força do óbito, julga-se que dever-se-á considerar a idade daquele à data do óbito e o tempo provável que lhe restaria, em face da idade, para desempenhar tal actividade agrícola e não fixar tal montante em função da idade da Autora, já que se assume que esta não desenvolveria qualquer actividade sem a colaboração daquele, como se veio a verificar. Deste modo, tendo Celestino 62 anos de idade aquando do óbito e levando em linha de conta o raciocínio que foi feito na sentença quanto ao número de anos que provavelmente conseguiria desenvolver tal actividade, julgando razoável fixar nos 66 anos de idade, fixa-se os lucros cessantes decorrentes da actividade agrícola em 20.400,00 € (425,00 €X12X4).

A apelante insurge-se contra o assim decidido, por um lado quanto à idade tida em consideração na sentença como limite até ao qual o falecido exerceria a sua atividade agrícola (66 anos), e, por outro lado, por o tribunal a quo não ter aplicado, na quantificação da indemnização, a Portaria n.º 11/2000, de 13.01.

Quanto à idade ativa do falecido marido da A., a apelante, embora afirme que a previsão do tribunal “não é racional” (n.º 14 das alegações), e que “não é legítimo que o douto tribunal queira fixar o fim da prática da actividade agrícola aos 66 anos, quando, não são raros os casos em que as pessoas continuam a praticar a actividade agrícola, muito depois de atingirem os 66 anos” (n.º 15 das alegações), acaba por não indicar qualquer idade em alternativa. E isto porque tal aspeto, na perspetiva da apelante, é irrelevante, pois o que importa, para o efeito da pretendida aplicação da Portaria n.º 11/2000, é a idade do sinistrado à data do acidente.

Vejamos, então, se a aludida Portaria é aplicável ao caso destes autos.

A Portaria n.º 11/2000, de 13.01, visava, conforme nela consta, permitir a concretização de aspetos da legislação então em vigor em matéria de acidentes de trabalho e doenças profissionais (Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, que estabelecia as bases do regime jurídico de acidentes de trabalho e doenças profissionais, regulamentada, no âmbito dos acidentes de trabalho, pelo Decreto-Lei n.º 143/99, de 30 de Abril). Assim, a Portaria aprova, entre outras, as bases técnicas, bem como as respetivas tabelas práticas, aplicáveis ao cálculo do capital de remição das pensões de acidentes de trabalho. A Lei n.º 100/97 e o Dec.-Lei n.º 143/99 foram revogados e substituídos pela Lei n.º 98/2009, de 04.9, que contém a regulamentação do regime de reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais. Embora no art.º 76.º da Lei n.º 98/2009 se preveja a publicação de decreto-lei do Governo contendo as bases técnicas e as tabelas práticas destinadas ao cálculo de indemnização em capital (capital da remição), tal diploma não foi ainda publicado, continuando, pois, em vigor a aludida Portaria n.º 11/2000.

A Lei n.º 98/2009 regula a responsabilidade do empregador adveniente de acidente sofrido por trabalhadores ao seu serviço (cfr. artigos 281.º a 284.º do Código de Trabalho). Ou seja, estão em causa acidentes sofridos por alguém na qualidade de trabalhador por conta de outrem (cfr. art.º 3.º n.º 1 da Lei n.º 98/2009). A Lei n.º 98/2009 não é aplicável a trabalhadores independentes: estes regem-se por diploma próprio (art.º 184.º da Lei n.º 98/2009). Tal diploma é o Dec.-Lei n.º 159/99, de 11.5. Este estabelece a obrigatoriedade, a cargo dos trabalhadores independentes, de efetuação de um seguro de acidentes de trabalho “que garanta, com as devidas adaptações, as prestações definidas na Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, para os trabalhadores por conta de outrem e seus familiares” (art.º 1.º do Dec.-Lei). A referência à Lei n.º 100/97 terá de ser, evidentemente, redirecionada para a Lei n.º 98/2009.

Nos termos do n.º 1 do art.º 7.º do Dec.-Lei n.º 159/99, “quando o sinistrado de acidente de trabalho for, simultaneamente, trabalhador independente e trabalhador por conta de outrem e havendo dúvida sobre o regime aplicável ao acidente, presumir-se-á, até prova em contrário, que o acidente ocorreu ao serviço da entidade empregadora.” O n.º 2 do mesmo artigo preceitua que “provando-se que o acidente de trabalho ocorreu quando o sinistrado exercia funções de trabalhador independente, a entidade presumida como responsável nos termos do número anterior adquire direito de regresso contra a empresa de seguros do trabalhador independente ou contra o próprio trabalhador.”

Ignora-se se o falecido marido da apelante havia celebrado algum seguro tendo em vista proteger-se, e à sua família, do risco emergente da sua atividade enquanto agricultor independente. O certo é que o acidente destes autos não ocorreu no decurso do exercício dessa atividade, mas sim na sua qualidade de trabalhador por conta de outrem. Daí que, no que respeita à aplicação do regime jurídico infortunístico-laboral, em que se insere a Portaria n.º 11/2000, apenas haverá que atentar no que concerne à qualidade do falecido Celestino L... enquanto trabalhador dependente, ou seja, às prestações calculadas a partir da remuneração que auferia ao serviço do seu empregador (vide art.º 71.º da Lei n.º 98/2009). A Portaria em causa destina-se ao cálculo do capital de remição de pensões que foram fixadas, nos termos do regime jurídico infortunístico-laboral, a partir da retribuição auferida pelo sinistrado, à data do sinistro, emergente de uma relação jurídica de trabalho subordinado em que seja parte (cfr. artigos 59.º, 60.º, 61.º, 75.º, da Lei n.º 98/2009). Aqui não se incluem, por conseguinte, os ganhos auferidos pelo falecido marido da apelante a partir da exploração autonomamente efetuada das suas propriedades agrícolas.

Ou seja, a Portaria n.º 100/97 não é aplicável a prestações indemnizatórias concedidas à luz do regime geral da responsabilidade civil por factos ilícitos. De todo o modo, diga-se que essa Portaria se reporta ao pagamento antecipado de prestações que perdurariam por toda a vida do respetivo beneficiário, pelo que, in casu, não relevaria a idade do falecido Celestino L..., mas sim a da ora apelante.
Assim, nesta parte improcede a apelação da A..

Quanto à idade tida em consideração pelo tribunal a quo, como sendo aquela em que o falecido marido cessaria a sua atividade (66 anos), a apelante não indica nenhuma em alternativa. Aliás, a apelante também não indicou expressamente qual seria, em seu entender, o valor indemnizatório adequado ao dano sub judice, que deveria ser fixado em substituição do apurado pelo tribunal a quo. De todo o modo, admite-se que o falecido marido da apelante poderia prosseguir a sua atividade de agricultor por mais anos do que aqueles que o tribunal a quo reputou razoáveis, na medida em que, conforme resulta da matéria de facto provada, era um homem ativo e nada se provou que pudesse levar a suspeitar que lhe seria impossível continuar a atividade de agricultor antes de atingir os 70 anos de idade. Note-se que, além do mais, o A. era auxiliado por sua mulher nessas tarefas.

Mantendo-se o critério adotado na sentença recorrida, com base na prossecução de atividade pelo falecido Celestino até aos 70 anos de idade obter-se-ia o montante de € 40 800,00 (€ 425,00 x 12 x 8). Trata-se de valor mais consentâneo com os € 80 000,00 que na sentença referida em 1 foram concedidos à ora apelante com referência aos € 800,00 mensais que o falecido Celestino auferia enquanto trabalhador por conta de outrem. Ainda assim, sabendo-se das vicissitudes e incertezas próprias da atividade agrícola e atendendo mesmo ao natural fenecer da capacidade de produção emergente do avançar na idade do falecido marido da A. (e dela própria), afigura-se-nos mais razoável fixar a indemnização, a este título, não no dobro do fixado pelo tribunal a quo (a que equivaleria a verba de € 40 800,00, face aos € 20 400,00 fixados pelo tribunal a quo), mas no montante de € 37 000,00. Este valor contém-se quer no inicialmente peticionado pela A. nesta ação, como no pretendido com esta apelação. Na petição inicial a A. reclamava a aplicação da tabela de remição sobre um valor anual de € 22 800,00, calculado a partir da idade da A., que indicou ser, à data do acidente, 56 anos (art.º 34.º da petição inicial). Ou seja, pretendia um valor que, segundo a tabela prevista na Portaria 11/2000, era de € 314 913,00 (!) (€ 22 800,00 x 13,812). À luz do reclamado nesta apelação, a aplicação da tabela, agora atendendo à idade do sinistrado à data da sua morte (62 anos), ao valor anual apurado pelo tribunal a quo (€ 425,00 x 12 = € 5 100,00) corresponderia o montante de € 54 799,50 (€ 5 100,00 x 10,745). Note-se, ainda, que se se aplicasse a tabela prevista no anexo III da Portaria n.º 377/2008, de 26.5, alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 25.6, aplicável em situações de procedimento amigável de fixação extrajudicial de indemnização pelo dano corporal resultante de acidente automóvel, se atingiria o valor de € 36 945,00 (€ 425,00 x 12 x 7,244118).

Cabe agora aqui analisar a questão, suscitada pela seguradora no seu recurso, de apenas se poder levar em consideração o rendimento do ofendido fiscalmente comprovado.

Isto porque, tendo-se provado que as vendas da atividade agrícola da A. e do seu falecido marido atingiam cerca de € 750,00 por mês (n.º 11 da matéria de facto), ou seja, € 9 000,00 por ano, em 2007, ano anterior ao do acidente, a A. apresentou, para efeitos fiscais, rendimentos da atividade no valor de € 5 942,27 (n.º 15 da matéria de facto).

Ora, lembra a apelante seguradora, o n.º 7 do art.º 64.º do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21.8 (diploma que aprova o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel) estipula o seguinte (este número foi introduzido no art.º 64.º pelo Dec.-Lei n.º 153/2008, de 06.8):
Para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao lesado, o tribunal deve basear-se nos rendimentos líquidos auferidos à data do acidente que se encontrem fiscalmente comprovados, uma vez cumpridas as obrigações declarativas relativas àquele período, constantes de legislação fiscal.”

Assim, quereria a apelante que o tribunal não atendesse, na fixação da indemnização, aos valores efetivamente auferidos pelo ofendido à data do acidente, mas apenas àqueles que estivessem fiscalmente comprovados.

O preâmbulo do Dec.-Lei n.º 153/2008, que introduziu na ordem jurídica o referido preceito, justifica-o pela seguinte forma:
Uma das medidas previstas na Resolução do Conselho de Ministros n.º 172/2007, de 6 de novembro, diz respeito à “revisão do regime jurídico aplicável aos processos de indemnização por acidente de viação, estabelecendo regras para a fixação do valor dos rendimentos auferidos pelos lesados para servir de base à definição do montante da indemnização, de forma que os rendimentos declarados para efeitos fiscais sejam o elemento mais relevante.”
Com efeito, hoje sucede que a determinação do valor dos rendimentos auferidos pelos lesados em processos de indemnização por acidente de viação, na medida em que contribuem para a definição do quantum indemnizatório por danos patrimoniais, gera litígios evitáveis, uma vez que as seguradoras, em regra, baseiam o respetivo cálculo nos rendimentos declarados pelos lesados à administração tributária, ao passo que os sinistrados, não raras vezes, invocam em juízo rendimentos superiores, sem qualquer correspondência com as respetivas declarações fiscais.
Trata-se, portanto, de uma área que, em razão da potencial litigiosidade que lhe está associada, requer a aprovação de regras mais objetivas, que baseiem o cálculo da indemnização, quanto aos rendimentos do lesado, na declaração apresentada para efeitos fiscais.
Assim, não obstante o avanço trazido pela Portaria n.º 377/2008, de 26 de maio, que veio fixar os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente automóvel de proposta razoável para indemnização do dano corporal, torna-se imperioso pôr cobro ao potencial de litigiosidade que aquela situação encerra, procurando, por um lado, contribuir para acentuar a tendencial correspondência entre a remuneração inscrita nas declarações fiscais e a remuneração efetivamente auferida – sinalizando-se também aqui, o reforço de uma ética de cumprimento fiscal – e, por outro, aumentar as margens de possibilidades de acordo entre seguradoras e segurados, evitando o foco de litigância que surge associado à dissemelhança de valores que estas situações comportam. A introdução desta regra contribui igualmente para que nestas matérias exista mais objetividade e previsibilidade nas decisões dos tribunais, criando também condições para que a produção de prova seja mais fácil e célere e a decisão mais justa.”

O legislador justifica, assim, a referida solução, com o intuito de imprimir maior celeridade e previsibilidade na resolução de litígios emergentes da sinistralidade rodoviária, reduzindo-se a litigiosidade inerente, para além de se sinalizar “o reforço de uma ética de cumprimento fiscal.”

Ora, pesem embora as razões anunciadas, a referida limitação à prova dos rendimentos efetivamente afetados com o sinistro suscita sérias dúvidas quanto à sua conformidade com valores constitucionalmente protegidos, nomeadamente o direito a uma tutela jurisdicional efetiva, potenciando a privação da utilização, por parte de vítimas de acidente de viação, de meios de prova que, não fora aquele preceito, seriam perfeitamente aptos a demonstrar a realidade de rendimentos por aquelas auferidos e, assim, conduzir à fixação de uma indemnização justa e adequada aos danos efetivamente sofridos. Indicia-se, assim, a violação da garantia de tutela jurisdicional efetiva, prevista no art.º 20.º da CRP.

Ora, precisamente, esse foi o veredito do Tribunal Constitucional no acórdão n.º 383/2012, de 12.7.2012, da 2.ª Secção.
Aí se ponderou o seguinte:
Ora, apesar de se reconhecer a importância da proteção do bem jurídico constitucional da celeridade processual, enunciado pelo legislador como fundamento da introdução da norma em sindicância, no regime da fixação da indemnização devida por acidente de viação, e da adequação da medida para o realizar, aquele desígnio não pode comprometer, de forma desproporcionada, a funcionalidade ou sentido útil do direito à tutela jurisdicional efetiva.
Sucede que a solução legislativa em causa, dando prevalência à celeridade na resolução do conflito, prejudica, precisamente, os lesados em acidente de viação que, sendo, embora, os principais interessados na celeridade da obtenção do ressarcimento, são, ao mesmo tempo, os prejudicados pela exclusão de outros meios de prova que coadjuvassem a fixação da indemnização do efetivo dano sofrido. É por esta razão que os lesados estão dispostos a abdicar da celeridade, sempre que discordam da fixação do montante indemnizatório, atacando-a em juízo. Com a solução normativa em apreciação, a parte mais fragilizada vê cerceada, sem justificação bastante, a possibilidade de, em juízo, fazer corresponder o valor da indemnização à realidade dos danos sofridos, por impossibilidade de valoração judicial dos rendimentos realmente auferidos, o que, nalguns casos, pode ter consequências de extrema gravidade.
Também não se vê que o facto de ter sido apresentada pelo próprio lesado, para fins fiscais, a declaração que servirá como único comprovativo do rendimento a atender para efeitos de cálculo da indemnização – declaração que pode não corresponder à verdade - deva pesar decisivamente no sentido de vedar a valoração, pelo tribunal, de outros meios de prova mediante os quais fosse possível chegar aos rendimentos efetivamente auferidos e, com isso, ao montante indemnizatório justo.
Afastar a ponderação de outros meios de prova, pelo tribunal, com o intuito de fomentar a coincidência entre a remuneração inscrita nas declarações fiscais e a remuneração efetivamente auferida – no “reforço de uma ética de cumprimento fiscal” -, é uma opção que pode prejudicar de forma irrazoável e excessiva o direito ao justo ressarcimento, em momento de particular fragilidade da vítima de acidente de viação.
Isto dito, verifica-se que a pesada desvantagem para o lesado em acidente de viação, acarretada pela solução de afastar outros meios de prova, não encontra justificação bastante nas finalidades pretendidas. O prejuízo sentido pelos lesados excede, de forma desmesurada, os benefícios perseguidos pela solução legal em análise.
Assim sendo, no caso, a limitação probatória imposta no regime de fixação da indemnização devida por acidente de viação, impedindo, em absoluto, a valoração de meios de prova que poderiam demonstrar factos relevantes e imprescindíveis para apurar o valor indemnizatório justo a atribuir aos lesados, não se mostra equilibrada em face do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva. Tal limitação, associada à especial fragilidade da vítima de acidente de viação, pode pôr em causa, de forma intolerável, o justo ressarcimento dos danos sofridos, sendo desconforme com a justiça e equidade que devem ser apanágio do processo.
A restrição probatória ínsita na interpretação normativa em análise, na medida em que constitui um obstáculo a que o julgador apure o dano efetivo do lesado, numa componente tão importante, anulando a margem de liberdade de decisão, quanto à pertinência de valoração e utilidade de produção de outros meios de prova, comporta uma significativa afetação do direito à tutela jurisdicional efetiva, na vertente da garantia de um processo equitativo, conducente ao justo ressarcimento do lesado, vítima de acidente de viação.
Exposto isto, o TC terminou julgando “materialmente inconstitucional, por violação do direito à tutela jurisdicional efetiva, na vertente da garantia de um processo equitativo, consagrada no artigo 20.º, n.º 4, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 2, ambos da Constituição, e do direito à justa reparação dos danos, decorrente do artigo 2.º da Constituição, a interpretação normativa extraída do n.º 7 do artigo 64.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, na redação introduzida pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto, correspondente ao entendimento segundo a qual, nas ações destinadas à efetivação da responsabilidade civil decorrente de acidente de viação, para efeitos de apuramento do rendimento mensal do lesado, no âmbito da determinação do montante da indemnização por danos patrimoniais a atribuir ao mesmo, o tribunal apenas pode valorar os rendimentos líquidos auferidos à data do acidente, que se encontrem fiscalmente comprovados, após cumprimento das obrigações declarativas legalmente fixadas para tal período.

Acresce que essa restrição legal, aplicável tão só a lesados no quadro da responsabilidade civil automóvel, e não aos lesados em geral, ofende também o princípio da igualdade, consagrado no art.º 13.º n.º 1 da CRP. Esse foi o juízo de Pedro Machete, na declaração de voto emitida num outro acórdão do TC (acórdão n.º 273/2015, de 19.5.2015).

Por outro lado, representando a solução legal ora sub judice uma restrição a um direito constitucionalmente garantido, careceria, não sendo aprovada por lei da Assembleia da República, de autorização desta (artigos 165.º n.º 1 alínea b) e 198.º n.º 1 alínea b) da CRP). Ora, o Dec.-Lei n.º 153/2008 foi aprovado ao abrigo da competência legislativa genérica do Governo (art.º 198.º, n.º 1, alínea a), da CRP). Assim, o art.º 1.º do citado Dec.-Lei n.º 153/2008, de 06.8, que aditou ao art.º 64.º do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21.8, o aludido n.º 7, enferma de inconstitucionalidade orgânica por versar matéria integrada na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República. Isto mesmo foi declarado pelo Tribunal Constitucional no supra referido acórdão n.º 273/2015, de 19.5.2015, emitido pela 2.ª Secção.

Por todas estas razões se decide arredar de aplicação, ao caso sub judice, o aludido preceito contido no n.º 7 do art.º 64.º do Dec.-Lei n.º 291/2007.

Quanto à terceira questão supra enunciada, a da relevância, na quantificação da indemnização, do facto de o pagamento da indemnização ser efetuado numa única prestação, alega a seguradora que a sentença recorrida deveria “ter tido em consideração o facto de o valor arbitrado ser recebido numa única prestação indemnizatória e, por isso, ter um potencial gerador de riqueza que não ocorreria caso o valor fosse recebido mensalmente, ou seja, diluído no tempo.” Pelo que, segundo a apelante, impunha-se a respetiva redução em valor que corresponda “a sensivelmente 25%, ou seja, ¼ do valor globalmente considerado.

O reparo da seguradora faria sentido se houvesse que considerar o ganho (para a lesada) correspondente ao recebimento imediato, antecipado, de uma verba que, não fosse o acidente, seria obtida em parcelas futuras, diluídas no tempo. Porém, tendo a indemnização sido calculada a partir daquilo que o sinistrado auferiria até atingir 70 anos de idade, constata-se que esse momento temporal já passou: atualmente o sinistrado, se fosse vivo, contaria 71 anos de idade. O dano futuro é, pois, in casu, um dano presente, não havendo que deduzir qualquer ganho por pagamento antecipado de capital indemnizatório.

Última questão (juros de mora)
Na sentença recorrida o tribunal a quo condenou a seguradora a pagar, sobre a indemnização ora liquidada, juros de mora, à taxa legal, a contar da data da sentença liquidanda (09.12.2010). A seguradora ora apelante defende que tais juros devem contar-se desde a data da citação para a presente ação (que ocorreu em 12.7.2016). Isto porque, segundo a apelante, tem aqui plena aplicação o disposto no n.º 3 do art.º 805.º do Código Civil. Segundo a apelante, o crédito só foi liquidado nesta ação, para a qual foi citada, sendo certo que a A. não logrou liquidar esse crédito anteriormente.

Vejamos.

Na sentença recorrida considerou-se, e bem, que ao caso seria aplicável o disposto na segunda parte do n.º 3 do art.º 805.º do Código Civil. Isto é, uma vez que se tratava de ação (referimo-nos ao pedido cível deduzido no processo-crime) respeitante a responsabilidade civil por facto ilícito, o devedor constituiu-se em mora desde a citação (no processo-crime) – atendendo a que não se vislumbrava mora anterior.

Porém, notou o tribunal a quo, na sentença proferida pelo tribunal criminal a seguradora foi condenada a pagar juros de mora contados desde a data dessa sentença. Nessa condenação não foi excluída a parcela ainda a liquidar posteriormente.

Assim, e sendo certo que a sentença de 09.12.2010 transitou, quanto à condenação cível, em julgado, nada mais cabia ao tribunal a quo do que respeitar o anteriormente decidido.

Pelo que a apelação da seguradora também improcede, nesta parte.

DECISÃO.

Pelo exposto:
1.º– Julga-se a apelação da A. parcialmente procedente e consequentemente altera-se a sentença recorrida, fixando-se em € 37 000,00 (trinta e sete mil euros) a indemnização que a R. vai condenada a pagar à A., a título de lucros cessantes decorrentes da atividade agrícola, referidos na sentença que fora proferida em 09.12.2010, no mais se mantendo a sentença recorrida, inclusive quanto aos juros de mora;
2.º– Julga-se improcedente a apelação deduzida pela R..
As custas da apelação da A. são a cargo da R., na proporção do respetivo decaimento, sendo certo que a A., que seria responsável na medida do seu decaimento, beneficia de apoio judiciário; as custas da apelação da R. são a seu cargo, por nela ter decaído totalmente (art.º 527.º n.ºs 1 e 2 do CPC).



Lisboa, 20.12.2017



Jorge Leal
Ondina Carmo Alves
Pedro Martins