Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1697/16.5PFAMD.L1-9
Relator: FILIPA COSTA LOURENÇO
Descritores: DOCUMENTO DE IDENTIFICAÇÃO OU DE TRANSPORTE
USO DE DOCUMENTO FALSO
USO DE IDENTIFICAÇÃO ALHEIA
CONTRAORDENAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/06/2017
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEIÇÃO
Sumário:
I - O título de transporte nos transportes colectivos, tipo passe, quando utilizado por outra pessoa que não o titular não integra o tipo legal de crime de uso de documento de identificação ou viagem alheio do nº 1 do artº 261º, do Código Penal, sendo susceptível apenas de ser enquadrado na contra-ordenação prevista no artigo 7º da Lei nº 28/2006 de 4 de Julho.
II - Este cartão de transporte nominativo apenas permite identificar o seu titular, permitindo-lhe, desde que válido, a utilização dos respectivos transportes, mas não se integra no conceito de documento de identificação ou viagem previsto no artº 255º, al. c) do Código Penal, nem em qualquer um dos outros que ali vêm previstos, por não ter as características e finalidade atribuídas aos documentos ali elencados.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Decisão sumária, ao abrigo do artigo 417.º n.º 6 alínea b) do Código de Processo Penal
I.
No processo abreviado n. 1697/16.5PFAMD.L1 do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Local Criminal da Amadora-Juiz 1, o MºPº, veio interpor recurso ( a folhas 55 e seguintes) da decisão Judicial proferida a folhas 46 até 49, através da qual se decidiu rejeitar a acusação de fls. 37, por esta ser manifestamente infundada, por se entender que a conduta da arguida Joana Correia da Silva, devidamente identificada nos autos, não preenche o tipo legal de crime p.p. pelo artº 261º do CP, determinando-se o consequente arquivamento dos autos.

O recurso foi admitido a folhas 64, nos termos legais e devidos.
A arguida, junto da primeira instância, respondeu de forma, concisa e precisa ao recurso interposto pelo assistente, concluindo manifestamente pela sua improcedência, a folhas 68 a 70.
Neste Tribunal, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta, nele apôs o seu “visto”.
II.
Efectuado o exame preliminar foi considerado haver razões para a rejeição do recurso por manifesta improcedência (art.ºs 412.º, 414.º e e 420.º, n.º 1 do Código de Processo Penal) passando-se a proferir decisão sumária, ao abrigo do artigo 417.º n.º 6 alínea b) do Código de Processo Penal (Ac. TRE de 3-03-2015 : I. A manifesta improcedência do recurso (conceito que a lei não define) nada tem a ver com a extensão da matéria submetida a apreciação, nem com a sua intrínseca complexidade, nem com a prolixidade da motivação do recurso (na procura de deixar bem claras as razões de discordância com a decisão recorrida).
II. O que releva é o bem-fundado, a solidez ou o apoio legal, doutrinário ou jurisprudencial, da argumentação usada para atacar a decisão de que se recorre. III. Existirá manifesta improcedência sempre que seja inequívoco que essa argumentação de modo nenhum pode conduzir ao efeito jurídico pretendido pelo recorrente, in
www.dgsi.pt).
A lei adjectiva instituiu a possibilidade de rejeição dos recursos em duas vertentes diversas, admitida que está, no nosso processo penal a cindibilidade do recurso, princípio acolhido nos arts. 403.º nº 1, 410.º n.º 1 e 412.º n.º 2:
1) Rejeição formal que se prende com a insatisfação dos requisitos prescritos no art. 412.º n.º 2;
2) Rejeição substantiva que ocorre quando é manifesta a improcedência do recurso.
A manifesta improcedência verifica-se quando, atendendo à factualidade apurada, à letra da lei e à jurisprudência dos tribunais superiores é patente a sem razão do recorrente.
A figura da rejeição destina-se a potenciar a economia processual, numa óptica de celeridade e de eficiência, com vista a obviar ao reconhecido pendor para o abuso de recursos.
A possibilidade de rejeição liminar, em caso de improcedência manifesta, tem em vista moralizar o uso do recurso (…) (Ac. STJ de 16 de Novembro de 2000, proc. n.º 2353-3; SASTJ, n.º 45, 61).
Em caso de rejeição do recurso, a decisão limita-se a identificar o tribunal recorrido, o processo e os seus sujeitos e a especificar sumariamente os fundamentos da decisão - art. 420.º, n.º 2 do C.P.Penal.

Assim diremos:

Agora a questão a decidir no presente recurso, reconduz-se singelamente em saber se a decisão recorrida de considerar a acusação manifestamente infundada, nos termos do artº 311º nº 2 al. a) do CPP, será legalmente admissível.
Pretende o Mº Pº e ora recorrente, logo, contrariamente ao decidido no despacho recorrido, que se verifica a existência elementos fácticos que permitem a acusação da arguida pela pratica do crime p.p. pelo artº 261º do C.P., por entender que o cartão VIVA está compreendido na noção legal de documento contida no art 255º al. c) do C.P. .
Conforme jurisprudência recente que se segue de perto e concordando inteiramente com o seu conteúdo, premissas e conclusões, vide in AC TRL de 13.04.2016, relatado por Conceição Rodrigues, in www.dgsi.pt, entendemos que: “O título de transporte nos transportes colectivos, tipo passe, quando utilizado por outra pessoa que não o titular não integra o tipo legal de crime de uso de documento de identificação ou viagem alheio do nº 1 do artº 261º, do Código Penal, sendo susceptível apenas de ser enquadrado na contra-ordenação prevista no artigo 7º da Lei nº 28/2006 de 4 de Julho. Este cartão de transporte nominativo apenas permite identificar o seu titular, permitindo-lhe, desde que válido, a utilização dos respectivos transportes, mas não se integra no conceito de documento de identificação ou viagem previsto no artº 255º, al. c) do Código Penal, nem em qualquer um dos outros que ali vêm previstos, por não ter as características e finalidade atribuídas aos documentos ali elencados.
(…)Esta mesma contra-ordenação prevista e punida pelo artigo 7º nº 1 e 4 al. e) da Lei nº 28/2006, de 4 de Julho, gerou semelhante controvérsia mas em relação ao crime de burla na utilização de serviços, previsto e punido pelo artº 220º, nº 1, al. a) do Código Penal.
Na verdade, ainda na vigência do DL nº 108/78, de 24/05 que regulava o transporte sem título válido (revogado expressamente pela Lei nº 28/2006, de 4/07) se discutia se esta situação consubstanciava também a prática de um crime de burla, na utilização de serviços, como bem espelham as diferentes posições que foram sendo acolhidas pela nossa jurisprudência. Esta controvérsia manteve-se, com novo enfoque, com a publicação da Lei nº 28/2006 de 4/07, discutindo-se então se esta Lei teria ou não revogado tacitamente o crime de burla na utilização de serviços, previsto no artº 220º, nº 1, al. c) do CP de 1995. A jurisprudência maioritariamente veio a concluir que a Lei 28/2006 de 4/07 operou a revogação tácita daquele normativo, dada a identidade da tipicidade, englobando a Lei nº 28/2006 um conjunto de condutas que se reconduzem igualmente à prevista no nº 1, al. c) do artº 220º, assim como os elementos tradicionalmente apontados como distintivos do crime de burla estarem previstos nas condutas passíveis de consubstanciar a contra-ordenação por falta de título válido, nos termos do artº 7º da citada lei, e por ao nível dos bens jurídicos protegidos numa e noutra disposição legal não serem substancialmente diferentes.
O Ministério Público vem agora colocar semelhante questão jurídica ( face ao recurso interposto v. decisão recorrida), mas em contraponto com o crime de uso de documento de identificação ou de viagem alheio, p. e p. pelo artigo 261º, nº 1 do Código Penal.
O despacho recorrido, como vimos, considerou que a conduta da arguida ainda que ilícita, consubstancia apenas a prática da contraordenação p. e p. pelo artigo 7º nº 1 e 4 al. e) da Lei nº 28/2006, de 4 de Julho. O facto de a arguida se ter feito transportar com um título de transporte que não lhe pertencia, tal documento não se insere na lista elencada no artº 255º, al. c) do Código Penal, nem tal conduta se subsume na esfera de protecção do artº 261º, nº 1 do CP, que pune a utilização de documento de viagem alheia.
O facto de a arguida se ter feito transportar no autocarro da VIMECA com um título de transporte que não lhe pertencia, tal documento no entanto, não se insere na lista elencada no artº 255º, al. c) do artigo 255º do Código Penal, nem tal conduta se subsume na esfera de protecção do artº 261º, nº 1 do C.P. que pune a utilização de documento de viagem alheia.
Por sua vez, entende o recorrente que a conduta da arguida é igualmente subsumível no crime de uso de documento de identificação ou de viagem alheio.
Na sua perspectiva, a divergência de entendimento assenta na definição de documento de identificação ou de viagem.
Argumenta para tanto que a definição de documento de identificação ou de viagem alheio encontra-se prevista no artº 255º, al c) do Código Penal, considerando-se como tais para além dos indicados, outros certificados ou atestados a que a lei atribui força de identificação das pessoas, ou do seu estado ou situação profissional, donde possam resultar direitos ou vantagens, designadamente no que toca à subsistência, aboletamento, deslocação, assistência, saúde ou meios de ganhar a vida ou de melhorar o seu nível.
Entende assim que o PASSE social “Lisboa Viva” é apto a identificar o cliente de um determinado serviço de transportes e a atestar o seu direito nesse meio de transporte, identificando-o através de fotografia, nome e número de cartão que lhe foi atribuído, pelo que, aquele cartão não pode deixar de integrar a definição de documento de identificação ou de viagem prevista na al. c) do artigo 255º citado, e mostrando-se preenchidos os demais elementos do tipo, defende o MP que a conduta da arguida é subsumível também na previsão do crime previsto e punido pelo artigo 261º, nº 1 do Código Penal.
O artigo 261º do Código Penal na redacção actual, conferida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, sob a epígrafe “Uso de documento de identificação ou de viagem alheio”, estabelece no nº 1, o seguinte:
“Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime, utilizar documento de identificação ou de viagem emitido a favor de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.”
Por seu lado, a disposição preliminar do artº 255º, que contem as “definições legais”, a alínea c) consagra o seguinte:
“Documento de identificação ou de viagem: o cartão de cidadão, o bilhete de identidade, o passaporte, o visto, a autorização ou título de residência, a carta de condução, o boletim de nascimento, a cédula ou outros certificados ou atestados a que a lei atribui força de identificação das pessoas, ou do seu estado ou situação profissional, donde possam resultar direitos ou vantagens, designadamente no que toca a subsistência, aboletamento, deslocação, assistência, saúde ou meios de ganhar a vida ou de melhorar o seu nível”.
A Lei nº 28/2006 de 4 de Julho refere no seu artº 1º o seguinte: “A presente lei estabelece as condições de utilização do título de transporte válido nos transportes colectivos, as regras de fiscalização do seu cumprimento e as sanções aplicáveis aos utilizadores em caso de infracção”.
No mais que ora releva, esta nova Lei estabelece no artº 2º, nº 1, a obrigatoriedade da detenção de título de transporte válido, e no artº 7º, nº 1 sanciona a violação desta norma nos seguintes termos: “A falta de título de transporte válido, a exibição de título de transporte inválido ou a recusa da sua exibição na utilização do sistema de transporte colectivo de passageiros, comboios, autocarros, troleicarros, carros eléctricos, transportes fluviais, ferroviários, metropolitano, metro ligeiro, é punida com coima de valor mínimo correspondente a 100 vezes o montante em vigor para o bilhete de menor valor e de valor máximo correspondente a 150 vezes o referido montante, com respeito pelos limites máximos previstos no atº 17º do regime geral do ilícito de mera ordenação social e respectivo processo…”
O legislador teve o objectivo de estabelecer, de modo abrangente “as condições de utilização do título de transporte válido nos transportes colectivos, as regras de fiscalização do seu cumprimento e as sanções aplicáveis aos utilizadores em caso de infracção” (artº 1º)
Recordando, no caso dos presentes autos, “a arguida viajava no autocarro da empresa VIMECA, que viajava na estrada da Brandoa, munida do cartão Lisboa Viva pertencente a Lourdes Cardoso, sabendo ser a sua conduta proibida por lei, e mediante a utilização deste documento de viagem causou um prejuízo aquela empresa no valor do bilhete e obtinha para si benefício ilegítimo.
Ora,o nº 1 do artº 261º do Código Penal abrange a utilização de documento de identificação ou de viagem alheio, com a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de obter benefício ilegítimo. Este preceito, olhando para os crimes de falsificação de documentos, apenas pretende punir a utilização de documento de identificação ou de viagem alheio verdadeiro, não abarcando as situações de uso abusivo de documento de identificação, mas alterado, como seja pela substituição da fotografia, fazendo-se o agente passar pelo titular, pois neste caso tratar-se-ia já do uso de um documento de identificação falsificado, incorrendo o agente na prática do crime de falsificação de documento previsto no artº 256º do Código Penal.
Daí que se diga que o crime de uso de documento de identificação ou de viagem alheio (artº 261º) tem um restrito campo de aplicação, ocorrendo nas situações de semelhança fisionómica entre o titular do documento de identificação e o agente do crime, em que o documento então usado não tem qualquer alteração, fazendo-se o agente passar pelo titular e causando com isso prejuízo a outrem ou obtendo benefício ilegítimo. O bem jurídico protegido também aqui será a segurança e credibilidade no tráfico jurídico-probatório que serão lesadas no momento em que o agente utiliza o documento.
No caso dos autos, não restam dúvidas de que o documento de identificação era verdadeiro, não foi alterado previamente e foi utilizado por quem lhe não pertencia com o propósito de obter um benefício ilegítimo.
A questão que então vem colocada nos autos é a de saber se este documento de identificação (o passe Lisboa Viva), quando utilizado no transporte por outra pessoa que não o titular, se mostra ou não abrangido pela norma incriminadora do nº 1 do artº 261º do CP.
Entendemos que não.
Importa começar por referir, que a determinação com exatidão do significado do conceito de documento de identificação ou de viagem torna-se aqui ainda mais relevante se tivermos em conta que constitui elemento normativo do tipo de ilícito objectivo em causa.
No conceito de documento de identificação a que se reporta o artº 255º, al. a) do CP estão incluídos todos os documentos que, por lei, sirvam para identificar as pessoas, o seu estado ou a sua situação profissional, desde que do respectivo uso possam resultar quaisquer direitos ou vantagens.
Podemos dizer que o artigo 255º, al. c) dirige-se a documentos que se prendem com o conceito de cidadania, assim como o conceito de documento de viagem tem de definir-se por recurso sobretudo ao direito internacional e ao regime de entrada e saída em território nacional constante da Lei nº 23/2007, de 4 de Julho, aí se enunciando os documentos de viagem que igualmente servem para identificação, sendo o passaporte o documento de viagem normal.
Salienta-se que o artº 255º, al. c) ao mencionar a “situação profissional”, exige expressamente “certificados ou atestados a que a lei atribui força de identificação das pessoas ou do seu estado ou situação profissional, donde possam resultar direitos e vantagens”.
No caso dos autos está em causa como documento de identificação um cartão de transportes públicos (o passe Lisboa Viva).
Este apenas contém um número, data de emissão e validade, uma fotografia e o nome escolhido pelo titular (com o máximo de 21 caracteres) e emitido pela entidade competente, a empresa de transportes.
Não vemos que este documento, à luz do preceituado no artº 255º, al. c) do CP, possa ser considerado um verdadeiro documento de identificação em face das características e finalidade atribuídas aos documentos ali elencados.
Não temos dúvidas de que este cartão pode ser visto como um documento de identificação do seu titular, pessoal e intransmissível, permitindo-lhe, desde que válido, utilizar os transportes em causa, assim como existem muitos outros cartões de identificação, por exemplo, na identificação respeitante ao cartão de utente dos serviços sociais ou de saúde, ou os cartões de identidade profissionais que demonstram o estatuto profissional.
Mas estes documentos de identificação não se integram no conceito de documento de identificação ou de viagem previsto no artº 255º, alínea c) do CP, e neste não se integra, com o devido respeito por opinião contrária, o cartão de transporte (Lisboa Viva) aqui em análise, pois não constitui um documento de viagem, nem se inclui em qualquer um dos outros que ali vêm elencados.
Assim sendo, também a conduta da arguida não preenche o tipo legal do crime de uso de documento de identificação ou viagem previsto no nº 1 do artº 261º do Código Penal, pelo que nada haverá a apontar ao despacho recorrido.
Por último, apenas para referir que não pode, do nosso ponto de vista ser outra a interpretação a fazer destes preceitos, tendo em vista o carácter subsidiário do direito penal.
A arguida ao utilizar aquele título nominativo que não lhe pertencia quis efectivamente obter um benefício ilegítimo, mas nem o cartão “Lisboa Viva” constitui um verdadeiro documento de identificação para os efeitos previstos no artigos 255º, al. c), nem a arguida, ao que parece, quando foi abordada pela fiscalização quis encobrir a sua identidade, até porque bastaria ao funcionário da fiscalização atentar na fotografia aposta no mesmo, que nenhuma semelhança tinha com a do titular.
Trata-se, pois, de uma conduta ilícita mas axiológico-socialmente neutra, em si mesma, divorciada da proibição legal, susceptível de apenas ser enquadrada na contra-ordenação prevista no artº 7º da Lei nº 28/2006 de 4 de Julho a que acima se aludiu.
Também e no mesmo sentido, o esclarecedor acórdão do AC TRL de 31.01.2017 relatado por Cid Geraldes, in www.dgsi.pt, no qual se deixa exarado que:
“Apenas será subsumível no tipo de crime de uso de documento de identificação ou viagem previsto no nº 1 do artº 261º do Código Penal a conduta de quem utiliza, como seu, um documento de identificação ou de viagem emitido a favor de outra pessoa, precedido de um ato de falsificação, ou, sem o falsificar, aproveitando semelhanças fisionómicas, pois, uma coisa, é a validação do título de transporte no validador, outra, bem distinta, o querer fazer-se passar pelo titular do documento onde aquele título de transporte está contido perante o fiscal de exploração de transportes públicos.
“O nº 1 do artº 261º do Código Penal abrange a utilização de documento de identificação ou de viagem alheio, com a intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de obter benefício ilegítimo.
Este preceito, olhando para os crimes de falsificação de documentos, apenas pretende punir a utilização de documento de identificação ou de viagem alheio verdadeiro, não abarcando as situações de uso abusivo de documento de identificação, mas alterado, como seja pela substituição da fotografia, fazendo-se o agente passar pelo titular, pois neste caso tratar-se-ia já do uso de um documento de identificação falsificado, incorrendo o agente na prática do crime de falsificação de documento previsto no artº 256º do Código Penal.
Daí que se diga que o crime de uso de documento de identificação ou de viagem alheio (artº 261º) tem um restrito campo de aplicação, ocorrendo nas situações de semelhança fisionómica entre o titular do documento de identificação e o agente do crime, em que o documento então usado não tem qualquer alteração, fazendo-se o agente passar pelo titular e causando com isso prejuízo a outrem ou obtendo benefício ilegítimo. O bem jurídico protegido também aqui será a segurança e credibilidade no tráfico jurídico-probatório que serão lesadas no momento em que o agente utiliza o documento – neste sentido, anotação ao artº 261º in Código Penal Português Anotado, 18ª edição, 2007, de Maia Gonçalves, pág.897.
No caso dos autos, não restam dúvidas de que o documento de identificação era verdadeiro, não foi alterado previamente e foi utilizado por quem lhe não pertencia com o propósito de obter um benefício ilegítimo( dizemos agora nós caso dos autos)
(…)
A questão que se coloca e repetimos, é saber se o referido cartão de identificação para transportes, neste caso o cartão Lisboa Viva, poderá ser considerado um documento de viagem para efeitos de preenchimento do tipo de crime previsto no art 261° do CP.
Afigura-se-nos que não, porquanto o art. 255° alínea c) do CP define "documento de identificação ou de viagem" como sendo: "o cartão de cidadão, o bilhete de identidade, o passaporte, o visto, a autorização ou título de residência, a carta de condução, o boletim de nascimento, a cédula ou outros certificados ou atestados a que a lei atribui força de identificação das pessoas, ou do seu estado ou situação profissional, donde possam resultar direitos ou vantagens, designadamente no que toca a subsistência, aboletamento, deslocação, assistência, saúde ou meios de ganhar a vida ou de melhorar o seu nível"
Apesar de existirem diversos documentos de identificação, o âmbito de aplicação do tipo de crime previsto no art. 261° do CP "uso de documento de identificação ou de viagem alheio" encontra-se restringido aos documentos de identificação previstos no art. 255° alínea c) do CP.
Como vimos, tal preceito não faz qualquer alusão a cartões de transporte.
Decidindo e concluindo, diremos:
Poderá, a conduta da arguida Joana Correia da Silva, subsumir-se no tipo de crime do art.º 261.º n.º 1 do Código Penal (doravante denominado por CP), com epígrafe “uso de documento de identificação ou de viagem alheio”?
Ora vejamos:
Estabelece, este art.º 261.º do CP, que:
«1 - Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado, de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime, utilizar documento de identificação ou de viagem emitido a favor de outra pessoa, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
2 - Na mesma pena incorre quem, com intenção de tornar possível o facto descrito no número anterior, facultar documento de identificação ou de viagem a pessoa a favor de quem não foi emitido
Mas será que o referido cartão de identificação para transportes (no exemplo fornecido, o cartão Lisboa VIVA) poderá ser considerado um documento de viagem para efeitos de preenchimento do tipo de crime do art.º 261.º do CP? Temos o entendimento que não.
Desde logo, o art.º 255.º al.ª c) do CP define “documento de identificação ou de viagem” como sendo: “o cartão de cidadão, o bilhete de identidade, o passaporte, o visto, a autorização ou título de residência, a carta de condução, o boletim de nascimento, a cédula ou outros certificados ou atestados a que a lei atribui força de identificação das pessoas, ou do seu estado ou situação profissional, donde possam resultar direitos ou vantagens, designadamente no que toca a subsistência, aboletamento, deslocação, assistência, saúde ou meios de ganhar a vida ou de melhorar o seu nível;
Apesar de existirem diversos documentos de identificação (v.g., fiscal, profissional), o âmbito de aplicação do tipo de crime previsto no art.º 261.º do CP (“uso de documento de identificação ou de viagem alheio”) encontra-se restringido aos documentos de identificação previstos no art.º 255.º al.ª c) do CP (directamente relacionados com o conceito elevado de cidadania), a saber:
Cartão de cidadão, Bilhete de identidade, Cartão de cidadão, passaporte, visto autorização ou titulo de residência, carta de condução, boletim de nascimento, cédula;
Outros certificados ou atestados a que a lei atribui força de identificação das pessoas, ou do seu estado ou situação profissional, donde possam resultar direitos ou vantagens;
A alínea c) do art.º 255.º do CP refere, expressamente, “certificados ou atestados”, não fazendo qualquer alusão a cartões.
Sendo assim, e como bem é referido – parece-nos – no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10 de Dezembro de 2013 (consultar aqui), tendo em consideração o princípio da legalidade (art.º 1.º do CP), não se pode, “no campo da delimitação da responsabilidade criminal”, realizar “analogias in malam partem ou interpretações extensivas”, não cabendo, desse modo, o cartão de identificação para transportes (no caso concreto o Lisboa VIVA), na definição legal do art.º 255.º al.ª c) do CP, e, consequentemente, no tipo de crime do art.º 261.º do CP.
No que ao cartão Lisboa VIVA concerne, repare-se que estamos perante um documento que apenas contém um número, datas de emissão e validade, uma fotografia e o nome escolhido pelo titular (com um máximo de 21 caracteres). Como tal, ele nunca poderia servir de identificação nos termos gerais, como v.g., para identificação do suspeito da prática de um crime (nos termos do art.º 250.º n.ºs 3 e 4 do Código de Processo Penal).
Mas ainda que entendêssemos – mal diga-se – que o cartão de identificação para transportes cabe na definição do art.º 255.º al.ª c) do CPP, não seria o simples facto de alguém validar o título de transporte contido nesse cartão de identificação, pertencente a outra pessoa, que o faria incorrer no tipo de crime de “uso de documento de identificação ou de viagem alheio” (art.º 261.º n.º 1 do CP).
Não podemos esquecer que estamos no campo da falsificação de documentos. Sendo assim, uma coisa é a validação do título de transporte no validador, outra, bem distinta, o querer fazer-se passar pelo titular do documento onde aquele título de transporte está contido, perante o fiscal de exploração de transportes públicos.
A propósito deste art.º 261.º do CP (na sua versão originária), referiu, o saudoso professor EDUARDO CORREIA, relativamente ao passaporte, que:
«Pode dizer-se que este tipo será de aplicação pouco frequente uma vez que normalmente o uso ilegal de passaporte é precedido de um acto de falsificação do documento (muitas vezes a falsificação da fotografia constante no passaporte). Há, no entanto, casos em que, devido à grande semelhança entre duas pessoas ou a outros motivos o uso do passaporte de uma pela outra não assenta na prévia falsificação
Sendo assim, apenas será subsumível neste tipo de crime, a conduta de quem utiliza, como seu, um documento de identificação ou de viagem emitido a favor de outra pessoa, sem o falsificar, aproveitando, v.g., semelhanças fisionómicas.
Sendo assim, restaria o regime contra-ordenacional contido na Lei n.º 28/2006, de 04 de Julho (transgressões em transportes colectivos de passageiros).
Estabelece o seu art.º 7.º n.º 1 que: "(…) a exibição de título de transporte inválido (…) na utilização do sistema de transporte colectivo de passageiros, (…) autocarros (…), perante agentes ou no sistema de bilhética sem contacto, é punida com coima de valor mínimo correspondente a 100 vezes o montante em vigor para o bilhete de menor valor e de valor máximo correspondente a 150 vezes o referido montante, com o respeito pelos limites máximos previstos no Regime Geral das Infracções Tributárias."
É considerado título de transporte inválido [nos termos do art.º 7.º n.º 4 al.ª e)]: “o título de transporte nominativo que não pertença ao utente;
Mas também aqui se pode colocar uma questão.
Como já deixámos antever, existe uma diferença clara entre título de transporte e cartão de suporte. O cartão de identificação para transportes (v.g., cartão Lisboa VIVA) é um cartão de suporte ao título de transporte (seja ele o passe ou, no caso em apreço, o zapping). Sendo assim, neste caso, embora o cartão de suporte seja nominativo, o título de transporte (zapping) não o é, caindo, assim, fora do âmbito do anteriormente referido art.º 7.º n.º 4 al.ª e) da Lei n.º 28/2006, de 04 de Julho.
Poderá, contudo, admitir-se, dentro dos limites legítimos da hermenêutica, uma interpretação extensiva do regime contra-ordenacional, de modo a abranger o cartão de suporte, até porque, teleologicamente, ela parece ir ao encontro da vontade real do legislador (art.º 9.º do Código Civil).
(ver também e supra citado, in oportaldodireito.blogspot.pt/2015/07/crime-de-uso-de-documento-de-viagem HTML, por Paulo Soares)
Rejeita-se assim o recurso interposto pelo MºPº, por ser manifestamente improcedente, pelos motivos atrás referidos, concordando-se na integra com o despacho proferido pelo Tribunal “ a quo” e mantendo-se o mesmo nos seus precisos termos.

III.
1.º Pelo exposto rejeita-se em substância o recurso por manifestamente improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
2.º Não é devida tributação.
Lisboa, 6 de Julho de 2017 (elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária nos termos do disposto no artº 94º nº 2 do C.P.P.)


Filipa Costa Lourenço