Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7154/22.3T8LSB.L1-4
Relator: SÉRGIO ALMEIDA
Descritores: DIREITO DE REUNIÃO
LOCAL DE TRABALHO
SERVIÇOS ESSENCIAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/01/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: 1. Nos termos do disposto no art.º 420.º, do Código do Trabalho os trabalhadores, incluindo motoristas e guarda freios, de uma  transportadora podem reunir-se em plenário durante o seu horário de trabalho, cumprida a comunicação prevista nesse artigo, e ainda que a referida atividade seja essencial, de harmonia com o disposto no art.º 1º, n.º 2, alínea h), da Lei n.º 23/96, de 26 de julho.
2. Essencialidade não se confunde com urgência, pelo que só os trabalhadores cuja atividade, na altura prevista para o plenário, seja concomitantemente essencial e urgente não poderão participar.
(Elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO
Autores (AA.): AAA 
e
BBB
Ré (R.). e recorrente: CCC
Os AA. alegaram que foi convocada uma reunião geral de trabalhadores que decorreu entre as 10h e as 15h. Porém a R. considerou como falta injustificada a comparência dos trabalhadores que considerou essenciais à prestação do serviço público, tendo informado isso antecipadamente. Referem os AA que a generalidade dos trabalhadores começa a trabalhar entre as 5h e as 22h e os tripulantes constituem cerca de 85% do efetivo de trabalhadores, pelo que não seria possível realizar reuniões fora do horário de trabalho. Os pressupostos de convocação de uma greve são distintos do de uma reunião geral, e que o legislador não entendeu que os requisitos fossem os mesmos pelo que não pode a R. fazê-lo. Mesmo no caso de greve e de serviços mínimos alguns dos trabalhadores podem aderir à mesma, pelo que refere que a interpretação que a R. faz é ainda mais abrangente do que a do legislador e impeditiva do direito dos trabalhadores, além de discriminatória de determinadas categorias. Mais refere que a R. concedeu permissão a alguns trabalhadores para poderem assistir e participar na reunião sem descontar qualquer valor, e a outros da mesma categoria não o fez. E conclui nos moldes peticionados.
Pediram a final a condenação da R. a reconhecer o direito de todos os trabalhadores participarem no Plenário convocado para dia 27.01.2022, entre as 10.00 e as 15.00 horas, independentemente da categoria profissional destes. Formulou ainda pedidos, quanto aos quais a R. veio a ser absolvida por falta de legitimidade activa, para a R. proceder à anulação de todos os recibos de vencimento de todos os trabalhadores presentes no Plenário, em que refere “faltas/frações” e substituí-los por outros de onde resulte que os mesmos estiveram em Plenário, indicando a expressão “Plenário” e bem assim repor os valores ilegalmente descontados a todos os trabalhadores que participaram no Plenário.
Não havendo acordo, a Ré contestou, alegando que presta um serviço público de transporte de passageiros, de natureza urgente e essencial e nessa medida os motoristas e guarda freios são essenciais à prestação desse serviço. Nessa medida, admite que os plenários podem ser realizados em diversos horários mas nunca colocando em causa o serviço urgente e essencial que a R. presta, pois os plenários são reuniões gerais para esclarecimentos dos trabalhadores. Nega que tenha agido de modo distinto para a mesma categoria de trabalhadores, e esclarece que os motoristas a quem não foi descontado o tempo de trabalho em que estiveram no plenário eram motoristas que detêm ainda essa categoria mas que estão em processo de reconversão profissional. Conclui pedindo a improcedência da ação.
Efetuado o julgamento, o Tribunal julgou a ação parcialmente procedente e reconheceu o direito a todos os trabalhadores participarem no plenário convocado para o dia 27/1/2022, entre as 10h e as 15h, independentemente da categoria e desde que não estejam a assegurar o funcionamento de um serviço urgente e essencial o qual não pode ser entendido como toda e qualquer atividade de condução.
Inconformada, a R. apelou, concluindo desta sorte:
1. A Recorrente tem como objeto social a exploração, em regime de concessão, do serviço público de transporte coletivo de passageiros à superfície de âmbito municipal, que se desenvolve maioritariamente na cidade de Lisboa (Artigo 3.º, n.º 1, dos respetivos Estatutos e do Decreto-Lei n.º 86-D/2016, de 30 de dezembro).
2. A atividade da Recorrente implica, pois, a prestação de um serviço público essencial (Artigo 1.º, n.º 2 alínea h) da Lei n.º 23/96, de 26 de julho).
3. Com o volume de passageiros/viagens, o serviço público de transporte prestado pela Recorrente tem um forte impacto social na cidade de Lisboa, favorecendo a mobilidade dos cidadãos da cidade de Lisboa e dos concelhos limítrofes através de uma rede de transportes inclusiva e com fortes preocupações ambientais, sendo por isso a Recorrente uma empresa de transporte público essencial no âmbito da mobilidade dos cidadãos na Área Metropolitana de Lisboa.
4. A Recorrente é uma Empresa que presta serviço público de transporte de passageiros, cujos serviços revestem natureza urgente e essencial e correspondem aos serviços operacionais da rede do transporte público, autocarros e elétricos, por serem estes os serviços essenciais à prestação do serviço público, e não os serviços relativos ao Posto Médico, Pronto-Socorro e transporte de Deficientes.
5. Logo na Recorrente, os motoristas e guarda freios e apenas estes prestam diretamente um serviço público de natureza urgente e essencial.
6. Sendo o serviço que a Recorrente presta de natureza urgente e essencial, tal corresponde ao serviço público de transporte de passageiros e não o posto médico, o pronto-socorro e o serviço de deficientes, mas sim o que está previsto nas suas carreiras e nos seus horários.
7. A realização do Plenário, nos moldes em que ocorreu no dia 27.01.2022, colocou em causa o serviço público de transporte de passageiros, para a realização de uma reunião de esclarecimento de trabalhadores.
8. Os Recorridos não apresentaram, como lhes competia por imposição legal, atento o disposto no art.º 420º do CT, proposta de quais os serviços de natureza urgente e essencial que importava assegurar e como tal seria efetuado.
9. Não competindo à Recorrente a fixação dos serviços de natureza urgente e essencial, mas sim aos Recorridos, bem como a proposta para assegurar o respetivo funcionamento.
10. Mal andou a douta Sentença recorrida que, não obstante reconhecer a existência na Recorrente de serviços de natureza urgente e essencial, tal como consta da correspondente parte decisória, veio reconhecer “o direito a todos os trabalhadores participarem no plenário convocado para o dia 27/1/2022, entre as 10h e as 15h, independentemente da categoria e desde que não estejam a assegurar o funcionamento de um serviço urgente e essencial o qual não pode ser entendido como toda e qualquer atividade de condução”, já que, atento ao modo como foi efetuada a marcação do referido plenário em desrespeito pelo disposto no art.º 420º do CT, não foi apresentada proposta de quais os serviços de natureza urgente e essencial que importava assegurar e o modo como seria assegurado o respetivo funcionamento, não competindo à Recorrente tal fixação.
11.O direito à participação dos trabalhadores no Plenário de 27.01.2022, entre as 10:00h e as 15:00h, só poderia ser reconhecido com a exceção dos trabalhadores que prestassem serviço de natureza urgente e essencial nesse horário e dia, o que não foi, como se disse, proposto e assegurado pelos Recorridos.
12. Assim sendo, é merecedora de censura a sentença proferida pelo Tribunal a quo, já que errou na interpretação e aplicação do disposto no art.º 420º, nº 2, do Código do Trabalho, uma vez que a sentença deveria ter entendido, tendo presente a matéria de facto, não reconhecer o direito a todos os trabalhadores participarem no plenário convocado para o dia 27/1/2022, entre as 10h e as 15h, por não estar assegurado o funcionamento do serviço de natureza urgente e essencial que a Recorrente presta.
Pediu a final que a ação seja julgada totalmente improcedente.
Não há contra-alegações.
O Ministério Público emitiu parecer no sentido da confirmação da sentença.
Não houve resposta ao parecer.
Houve dispensa de vistos, atenta a natureza da questão.
II. FUNDAMENTAÇÃO
Cumpre apreciar neste recurso – considerando que o seu objeto é definido pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, e excetuando aquelas cuja decisão fique prejudicada pela decisão dada a outras -, se existe o direito de todos os trabalhadores participarem no plenário em causa, nos termos cominados na sentença.
Factos relevantes apurados nos autos:
1. No dia 27 de janeiro de 2022 foi convocada uma reunião geral de trabalhadores, a decorrer entre as 10.00 e as 15.00 horas;
2. Pelo que os Autores deram conhecimento à R. da convocação da reunião de trabalhadores para o dia 27 de janeiro de 2022, no dia 21 de janeiro, ou seja, com 6 dias de antecedência;
3. Contudo, na véspera da reunião, veio a R., através de comunicado emitido e enviado exclusivamente aos seus trabalhadores via email (às 12h25m do dia 26 de janeiro de 2022) pronunciar-se, dando conta de que respeitava integralmente o direito à reunião de trabalhadores, mas informando-os de seguida que esse direito estaria vedado a todos os trabalhadores considerados como essenciais à prestação do serviço público, em termos e condições que constam de fls. 24 verso dos autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido;
4. A generalidade dos trabalhadores da R. começam a trabalhar entre as 5 horas e as 22 horas;
5. E os tripulantes (Motoristas e Guarda-freios) compõem cerca de 85% do seu efetivo de trabalhadores;
6. No dia em apreço, entre as 10:00 e as 15:00h, a R. teve a funcionar 1043 serviços, tendo participado no plenário 133 trabalhadores;
7. Para o dia e horas em causa, a R. tinha 1043 serviços. Dos trabalhadores escalados para estes serviços, 133 participaram no plenário, tendo sido descontada fração pela participação no plenário a 124 desses 133 trabalhadores, por se tratar de tripulantes, logo operam diretamente no serviço público essencial de transporte prestado pela R;
8. Os tripulantes que não iniciem o serviço no horário previsto, ficam ou não impedidos de prestar atividade laboral no restante tempo de trabalho consoante as situações. Assim, caso o seu serviço ainda esteja disponível ou se existir um outro serviço idêntico disponível, será autorizado que o tripulante retome o serviço. Caso já tenha sido substituído e não haja trabalho disponível para ele, não será autorizado a retomar o serviço;
9. Para o exercício da sua atividade a R. dispõe de uma frota composta por cerca de 48 elétricos e cerca de 750 autocarros, operando ainda 3 ascensores e 1 elevador, e tem um efetivo de cerca de 2600 colaboradores, conforme decorre da informação disponível através de – https://www.carris.pt/a-carris/empresa/os-nossos-numeros/
10. No exercício da sua atividade a R. transporta diariamente cerca de 400.000 passageiros, tendo transportado no ano de 2021, um total de 91.207.000 passageiros.
11. Nesta medida, aconteceu que dos 124 tripulantes, 40 retomaram o serviço após o Plenário, tendo sido descontado no vencimento a fração correspondente à ausência;
12. Dos restantes 9 (nove) trabalhadores que participaram no plenário e a quem não foi considerado como falta injustificada, nem descontado o vencimento, 3 (três) ainda detêm a categoria de Motorista de Serviço Público, mas encontram-se inaptos em termos definitivos para a atividade de motorista e em processo de reconvenção profissional, e os outros 6 (seis) não têm categoria nem de motorista nem de guarda-freio, não sendo tripulantes.
De Direito
Cumpre averiguar, como se vê, se a sentença recorrida merece censura por, na ótica da ré, dever ter excluído do direito de participar no plenário no tempo de trabalho alguns dos trabalhadores “por não estar assegurado o funcionamento do serviço de natureza urgente e essencial que recorrente para esta”.
Entendeu a sentença recorrida que a Lei n.º 23/96, de 26 de julho, não refere que “os serviços que sejam prestados têm de ser de uma atividade de serviço público essencial (…). O que é norma diz é que tem de ser assegurado o funcionamento dos serviços de natureza urgente essencial”.
Dispõe o art.º 420, n.º 2, do Código do Trabalho, relativamente aos procedimentos para reunião de trabalhadores no local de trabalho, que “no caso da reunião a realizar durante o horário de trabalho, a comissão de trabalhadores deve apresentar proposta que vise assegurar o funcionamento de serviços de natureza urgente e essencial”.
Sobre esta norma escreve Gonçalves da Silva, in Código do Trabalho Anotado, 13ª ed., nota ao preceito, que " o procedimento instituído visa permitir ao empregador que adote os atos necessários à realização da reunião, seja durante ou fora do horário de trabalho”.
O serviço prestado pela CCC é de natureza essencial, como dispõe o art.º 1º, n.º 1 e 2, al. h), da Lei 23/96, de 26 de julho: 1 - A presente lei consagra regras a que deve obedecer a prestação de serviços públicos essenciais em ordem à protecção do utente.
2 - São os seguintes os serviços públicos abrangidos:
(…)
h) Serviço de transporte de passageiros.
Importa apurar - assente que se trata de serviço essencial - o que é que reveste urgência.
Neste ponto, como nota Vaz Marecos (Código do Trabalho Comentado, 4ª ed., nota ao preceito), este não é o normal funcionamento da empresa. “Tratar-se-á sobretudo dos serviços que, por exemplo, evitam a ocorrência de danos nas máquinas utilizadas para laborar (…), matéria que deve ser concretizada caso a caso e sempre com a aplicação do princípio da boa-fé”.
A ré defende, de forma abrangente, que “o serviço de natureza urgente e essencial na recorrente é o serviço público de transporte de passageiros e não o posto médico, o pronto-socorro e o serviço de deficientes, mas sim o que está previsto nas suas carreiras e nos seus horários”. Este entendimento implica, naturalmente, que nenhum trabalhador em exercício de atividade possa participar, como aliás a ré assume, ao considerar que “existe uma flexibilidade de horários que permite que qualquer trabalhador possa ser esclarecido não envolvendo recolha de material circulante ou não início de serviço”.
A verdade, porém, é que deste modo a recorrente faz equivaler essencial a urgente, as quais, porém, de acordo com o disposto no art.º 420.º do CT, correspondem a noções distintas. Na realidade não se vislumbra a existência de qualquer urgência nas atividades em causa, não obstante a sua essencialidade, que resulta da lei e é bem diferente.
Ao pôr a discussão nestes termos a recorrente delimita-a nos seguintes termos: pode um trabalhador (ainda que sejam apenas motoristas e guarda-freios) participar num plenário durante o seu horário de trabalho?
A resposta, inequivocamente, é que pode, como o n.º 2 do art.º 420.º do Código do Trabalho o afirma expressamente, apenas não o podendo fazer quando razões pertinentes de essencialidade e urgência a tal obstem.
Para tal, nos termos do disposto no referido art.º 420.º, a comissão de trabalhadores apresenta proposta que visa assegurar o funcionamento dos serviços de natureza urgente e essencial, sendo certo que se, em são critério, face às regras da boa-fé, entender que não existem serviços urgentes e essenciais nada fará constar na proposta (cfr., convergindo, o ac. da RC de 17.10.2013).
Deste modo, nada obsta a que os trabalhadores se reúnam nos termos e conforme reconheceu a sentença recorrida.
Assim, o recurso improcede.

III. DECISÃO
Pelo exposto o Tribunal julga o recurso improcedente e confirma a sentença recorrida.
Custas do recurso pela recorrente.

Lisboa, 1 de março de 2023
Sérgio Almeida
Francisca Mendes
Celina Nóbrega