Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4794/18.9T8OER.L1-7
Relator: MICAELA SOUSA
Descritores: NULIDADES PROCESSUAIS
NULIDADES DA SENTENÇA
ARGUIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – O processo contém um procedimento, isto é, um conjunto de actos do tribunal e das partes, podendo cada um destes actos ser visto por duas perspectivas distintas: 1) como trâmite, ou seja, como acto pertencente a uma tramitação processual; 2) como acto do tribunal ou da parte, ou seja, como expressão de uma decisão do tribunal ou de uma posição da parte. No primeiro, considera-se não só a pertença do acto a uma certa tramitação processual, como o momento em que o acto deve ou pode ser praticado nesta tramitação; no segundo, o que se considera é o conteúdo que o acto tem de ter ou não pode ter.
II – Nos termos do disposto no artigo 195º, n.º 1 do Código de Processo Civil verifica-se uma nulidade processual quando seja praticado um acto não previsto na tramitação legal ou judicialmente definida ou quando seja omitido um acto que é imposto por essa tramitação, ou seja, aquela reporta-se ao acto como trâmite.
III – Por sua vez, as nulidades da sentença e dos acórdãos decorrem do conteúdo destes actos do tribunal, quando tais decisões não têm o conteúdo que deviam ter ou têm um conteúdo que não podem ter, nos termos do vertido nos artigos 615º, 666º, n.º 1 e 685º do Código de Processo Civil.
IV - A arguição da nulidade, nos termos dos artigos 199º, n.º 1 e 149º, n.º 1 do Código de Processo Civil, só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por um qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso.
V – Quando, verificada a omissão indevida de um acto, o juiz conhecer na decisão de algo de que não podia conhecer sem a realização do acto omitido ou conhecer de algo de que só podia conhecer na sequência da realização do acto, essa decisão é nula por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615º, n.º 1, alínea d) do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
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I – RELATÓRIO
A. e B. intentaram contra C. e D. a presente acção declarativa de condenação, com processo comum pedindo que seja declarada a cessação, por resolução, do contrato de arrendamento relativo à fracção autónoma designada pela letra “B”, inscrita na matriz predial da União das Freguesias de Oeiras e S. Julião da Barra, Paço de Arcos e Caxias sob o número 2..., sita na Rua ..., n.º ..., 1º andar, Laveiras, Caxias, nos termos do artigo 1083º, n.ºs 1 e 4 do Código Civil e a condenação dos réus a despejar o locado e a entregá-lo aos autores, livre de pessoas e bens e no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de montante não inferior a € 50,00 por cada dia de atraso na entrega do imóvel.
Os réus foram citados em 30 de Novembro de 2018, tendo os respectivos avisos de recepção sido assinados pela ré D. (cf. Ref. Elect. 13654110 e 13654116).
Por requerimento de 5 de Dezembro de 2018, a ré D. comunicou nos autos o óbito do réu C., ocorrido no dia 26 de Novembro de 2018 (Ref. Elect. 13675861).
Em 7 de Dezembro de 2018 foi proferido despacho que declarou a suspensão da instância, nos termos do art. 269º, n.º 1, a) do Código de Processo Civil, despacho que foi notificado aos autores e à ré por carta de 10 de Dezembro de 2018 (Ref. Elect. 116553187 e 116615397).
Por requerimento de 17 de Dezembro de 2018, os autores vieram requerer a extinção da instância relativamente ao réu C. por não haver interesse no prosseguimento da acção quanto aos seus herdeiros, dado o contrato de arrendamento se ter transmitido para o cônjuge sobrevivo, que já figura na acção (cf. fls. 13 verso).
Este requerimento não foi notificado à ré D..
Em 18 de Dezembro de 2018 foi proferido despacho a determinar a notificação dos autores para virem aos autos “esclarecer se desistem da instância ou dos pedidos relativamente ao 1º réu(Ref. Elect. 116757393)
Este despacho foi apenas notificado aos autores (Ref. Elect. 116807046).
Por requerimento de 14 de Janeiro de 2019, os autores reiteraram que o óbito do réu determina a impossibilidade da lide mas, assim se não entendendo, declararam desistir da instância em relação ao réu C. (cf. fls. 15 verso e 16).
Este requerimento não foi notificado à ré D..
Em 16 de Janeiro de 2019 foi proferida decisão que homologou a desistência da instância relativamente ao primeiro réu (cf. fls. 20).
Nessa mesma data foram considerados confessados os factos articulados pelos autores, relativamente à segunda ré, nos termos do art. 567º, n.º 1 do CPC e ordenado o cumprimento do disposto no n.º 2 dessa norma legal.
A ré foi notificada de tal decisão por carta de 17 de Janeiro de 2019 (Ref. Elect. 117201281).
Em 7 de Fevereiro de 2019 a ré juntou aos autos procuração forense a favor de ilustre mandatário judicial (Ref. Elect. 14084549).
Em 8 de Fevereiro de 2019, a ré interpôs recurso incidente sobre a decisão proferida em 16 de Janeiro de 2019 que considerou confessados os factos articulados pelos autores (cf. fls. 21 a 27).
Em 11 de Fevereiro de 2019 foi proferida sentença que declarou resolvido o contrato de arrendamento e condenou a segunda ré a entregar a fracção acima identificada aos autores, livre de pessoas e bens e julgou improcedente o pedido relativo à fixação de sanção pecuniária compulsória (cf. fls. 28).
Em 12 de Fevereiro de 2019 foi proferido despacho de não admissão do recurso interposto pela ré em 8 de Fevereiro de 2019 (cf. fls. 29).
Em 18 de Fevereiro de 2019, a ré apresentou requerimento de reclamação relativo ao despacho de não admissão do recurso (Ref. Elect. 14151281).
Em 27 de Março de 2019 foi proferida decisão pelo Tribunal da Relação de Lisboa que desatendeu a reclamação mantendo o despacho reclamado de não admissão do recurso (cf. fls. 58 a 63).
Inconformada com a sentença de 11 de Fevereiro de 2019 que declarou a resolução do contrato de arrendamento, em 18 de Março de 2019 a ré apresentou o presente recurso de apelação, concluindo as respectivas alegações do seguinte modo:
a) Vem o presente Recurso interposto da sentença que decidiu declarar resolvido o contrato de arrendamento e que condenou a 2ª Ré, ora Recorrente, a entregar a fracção aos AA., ora Recorridos, livre de pessoas e bens.
b) Para fundamentar a decisão proferida o Tribunal “a quo” deu como provados, por confessados, por não terem sido contestados, os factos articulados pelos Recorridos nos termos do disposto no artigo 567º do C.P.C..
c) Na sentença ora impugnada o Tribunal “a quo” não fez constar que no decurso do prazo da Contestação, foi proferido e notificado à Recorrente despacho de suspensão da instância decorrente do óbito do 1º R..
d) Após o despacho que declarou a suspensão da instância a Recorrente não recebeu qualquer outra notificação à excepção da notificação da decisão proferida no dia 16-01-2019 e notificada à Recorrente em 21-01-2019 que declarou considerar confessados os factos articulados pelos AA. relativamente à 2ª R., CPC 567º/1.
e) O artigo 567º/1 do CPC determina que “se o Réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da Contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor”.
f) A Recorrente foi validamente citada no dia 30 de Novembro de 2018, tendo sido concedido o prazo de 30 dias para deduzir a Contestação sendo o seu termo no dia 14/01/2019.
g) Foi a Recorrente que na mesma data, 30-11-2018, também recebeu a carta de citação dirigida ao seu marido C. desconhecendo o conteúdo das mesmas quando as recebeu.
i) Logo que verificou o conteúdo das cartas a Recorrente dirigiu-se ao Tribunal no dia 5 de dezembro de 2018, onde apresentou uma declaração escrita a informar sobre o óbito do marido tendo junto cópia do Assento de Óbito.
j) A Recorrente não foi notificada do pedido de desistência da instância relativamente ao 1º Réu, tendo tomado conhecimento da mesma apenas com a notificação da decisão que considerou confessados os factos articulados pelos Recorridos relativamente à Recorrente.
k) Não foi fixado prazo relativamente à suspensão da instância e tendo sido a Recorrente notificada do despacho de suspensão, à qual não foi fixado qualquer prazo, o Tribunal deveria ter dado conhecimento à Recorrente do pedido formulado pelos Recorridos de desistência da instância relativamente ao 1º Réu, o que não foi feito com manifesta violação do disposto no artigo 3º, nº 3 do CPC, ou, ter notificado a Recorrente da cessação da suspensão da instância, para que esta tomasse conhecimento do momento a partir do qual foi retomado o decurso do prazo para apresentação da Contestação.
l) O artigo 276º nº 1 al a), determina que a suspensão por uma das causas previstas no nº 1 do artº 269º cessa no caso da alínea a), quando for notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida.
m) Nos presentes autos não foi requerida a habilitação dos sucessores do 1º Réu.
n) Os Recorridos ao tomarem conhecimento do falecimento do 1º Réu desistiram da instância relativamente a este, não tendo havido qualquer notificação à Recorrente relativamente a esse pedido de desistência da instância.
o) A Recorrente deveria ter sido notificada da desistência pelos Recorridos da instância relativamente ao 1º Réu ou ser notificada da cessação da suspensão da instância, decorrente dessa desistência.
p) Não tendo sido feita qualquer notificação à Recorrente relativamente à desistência pelos Recorridos da instância quanto ao 1º R., nem tendo sido feita qualquer notificação relativamente à cessação da suspensão, houve violação manifesta do disposto no artigo 3º, nº 3, e no artigo 276º nº 1 al. a) do CPC, pelo que é nula a decisão proferida que declarou confessados relativamente à Recorrente os factos articulados pelos Recorridos, por falta de contestação, tudo conforme o disposto no artº 270º e designadamente no seu nº 3 do CPC, cuja declaração de nulidade desde já se requer, com todas as consequências legais, e designadamente ser declarada nula a sentença ora impugnada.
Termos em que […] deve ser determinada a nulidade da decisão que considerou confessados os factos articulados pelos Recorridos, relativamente à Recorrente, com todas as consequências legais e declarada nula a sentença impugnada, determinando-se que seja ordenada a notificação à Recorrente da cessação da suspensão da instância ou, a notificação da desistência dos Recorridos da instância relativamente ao 1º Réu, retomando-se assim a contagem do prazo em curso à data da suspensão, para a Recorrente poder apresentar em tempo a sua Contestação, com todas as consequências legais.
Os recorridos contra-alegaram concluindo pela improcedência do recurso com os seguintes fundamentos:
· A recorrente indicou expressamente que recorre da sentença que declarou resolvido o contrato de arrendamento, que foi proferida em 11-02-2019 e não do despacho interlocutório de 16-01-2019 que julgou confessados os factos alegados pelos autores, pelo que este não pode ser apreciado nesta apelação;
· Ainda que assim se não entendesse, a arguição de nulidade do despacho de 16-01-2019 é extemporânea por ter sido suscitada depois de transcorrido o prazo de 10 dias previsto nos art.ºs 199º, n.º 1 e 149º, n.º 1 do CPC;
· A ré não tinha que ser notificada do pedido de desistência da instância em relação ao outro réu, nem da cessação da suspensão da instância, pois a lei não impõe a notificação do co-réu da desistência apresentada em relação ao outro.
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II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95.
Na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635º, n.º 3, do CPC), contudo o respectivo objecto, assim delimitado, pode ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (cf. n.º 4 do mencionado art. 635º). Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não podendo o tribunal ad quem pronunciar-se sobre questões novas - cf. A. Abrantes Geraldes, op. cit., 2016, 3ª edição, pág. 97.
Nas suas contra-alegações os recorridos pretendem afastar do âmbito do objecto do presente recurso a decisão proferida pelo Tribunal a quo em 16 de Janeiro de 2019, que julgou confessados os factos da petição inicial, por entenderem que a recorrente, ao afirmar expressamente no seu requerimento de interposição do recurso que vem recorrer da sentença que declarou a resolução do contrato de arrendamento, restringiu o seu objecto a tal decisão.
Não obstante a expressa referência que consta do requerimento de interposição de recurso à impugnação da sentença proferida em 11 de Fevereiro de 2019, não se pode deixar de ter presente que quer na motivação quer nas conclusões das suas alegações, a recorrente dirigiu o seu inconformismo contra a sentença proferida e, como pressuposto daquele, a nulidade que imputa ao despacho proferido em 16 de Janeiro de 2019 que, sem que tivesse sido notificada da cessação da suspensão da instância, considerou os factos alegados pelos autores confessados, atenta a não dedução de contestação.
Importa ter presente na interpretação que se haja de efectuar da motivação e conclusões do recurso, que previamente à sua interposição, a ré/apelante havia já interposto recurso do despacho proferido em 16 de Janeiro de 2019, que não veio a ser admitido por se ter entendido, precisamente, que se trata de “um despacho intercalar ordenatório inserido na marcha do processo e que de modo algum lhe deu fim” (cf. decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa a fls. 61), pelo que não era susceptível de apelação autónoma, devendo ser impugnado em sede de recurso a interpor da decisão final, nos termos do art. 644º, n.º 3 do CPC.
As razões aduzidas pela recorrente para impugnar a sentença colocada em crise radicam na impugnação do despacho que julgou confessados os factos e que a precedeu, despacho que, manifestamente, pretende atingir por esta via, obtendo a sua revogação, o que, aliás, decorre do teor das suas conclusões e do modo como as remata, pedindo que seja declarada a nulidade do despacho que considerou confessados os factos articulados pelos autores e, por consequência, seja retomada a contagem do prazo para a apresentação da contestação.
Ainda que a delimitação objectiva do recurso possa e deva até ser expressamente indicada no requerimento de interposição do recurso, nos termos do art. 635º, n.ºs 2 e 3 do CPC, certo é que não deixa de poder ser expressa ou tácita, em função daquilo que for vertido nas respectivas conclusões, ou seja, a restrição do objecto do recurso pode decorrer das questões que são identificadas nas conclusões - cf. n.º 4 do art. 635º do CPC.
E se as conclusões exercem, tal como refere A. Abrantes Geraldes, “uma função semelhante à do pedido, na petição inicial, ou à das excepções, na contestação”, deve também aceitar-se que o âmbito do recurso que decorre do seu conteúdo seja mais abrangente do que aquele que foi expressamente afirmado no respectivo requerimento de interposição, pois, tal como menciona aquele autor, a vontade de obter a reapreciação de uma determinada questão pode ser aferida, ainda que de modo implícito, “através da ligação intrínseca entre diversas questões abordadas na decisão recorrida ou nas alegações” e da enunciação de alguma ou algumas delas nas conclusões – cf. op. cit., pág. 95.
Assim, perante as conclusões da alegação da ré/apelante, o objecto do presente recurso consiste na apreciação das seguintes questões:
· Da nulidade do despacho proferido em 16 de Janeiro de 2019;
· Da repercussão da eventual nulidade desse despacho na sentença proferida em 7 de Fevereiro de 2019;
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
A sentença sob recurso, considerando que a ré/recorrente não deduziu contestação e que em 16 de Janeiro de 2019 foi proferido despacho em que foram julgados confessados os factos articulados pelos autores, deu como provados os seguintes factos:
· Encontra-se registada a favor do 1º A. desde 10-IX-99 a aquisição da fracção “B” do prédio descrito na 1ª C.R.P. de Oeiras com o nº 2... (fls. 7).
· Em 30 de Setembro de 2013, AA. e RR. assinaram o “Contrato de Arrendamento para Habitação por Período Limitado” junto a fls. 9-10, relativo ao 1º andar do n.º 19 da Rua ..., e com a renda mensal de 110,00€, e onde se lê que “A renda será paga mensalmente ao senhorio ou ao seu representante legal, na respectiva residência até ao terceiro dia do mês a que respeitar.”
· A renda relativa ao mês de Novembro de 2017 foi paga em 15-XI-17; a renda relativa ao mês de Maio de 2018 foi paga em 12-V-18; a renda relativa ao mês de Julho de 2018 foi paga em 16-VII-18; a renda relativa ao mês de Agosto de 2018 foi paga em 16-VIII-18; a renda relativa ao mês de Setembro de 2018 foi paga em 12-IX-18.
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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Da nulidade do despacho proferido em 16 de Janeiro de 2019
A ré/recorrente sustenta que o despacho proferido em 19 de Janeiro de 2019, que considerou confessados os factos alegados na petição inicial pelos autores/recorridos está ferido de vício que inquina a sua validade, porquanto foi proferido depois de ter sido notificada da suspensão da instância decorrente do óbito do seu marido, o então co-réu, C., sem que, entretanto, tivesse sido notificada da desistência da instância apresentada pelos autores relativamente a este réu ou de qualquer decisão que declarasse cessada aquela suspensão, vindo a tomar conhecimento apenas da homologação da desistência proferida em 16 de Janeiro de 2019 e, simultaneamente, do aludido despacho ora colocado em crise, o que viola o princípio do contraditório vertido no art. 3º, n.º 3 do CPC.
Os autores/recorridos invocam nas suas contra-alegações a extemporaneidade da arguição do despacho nas alegações do recurso interposto da sentença proferida em 11 de Fevereiro de 2019, entendendo que a recorrente dispunha do prazo de 10 dias para a suscitar, nos termos dos art.ºs 199º, n.º 1 e 149º, n.º 1 do CPC, para além de considerarem que não houve preterição de qualquer formalidade essencial, dado que a ré não tinha de ser notificada do requerimento de desistência da instância em relação ao co-réu, incumbindo a si estar atenta quanto ao prazo que tinha para se defender.
É sabido que como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, ou seja, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo, sem prejuízo do conhecimento oficioso que se imponha relativamente a alguma questão (cfr. os art.ºs 627.º, n.º 1, 631, n.º 1 e 639.º, do CPC) – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7-07-2016, relator Gonçalves Rocha, processo n.º 156/12.0TTCSC.L1.S1 – “[…] não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação, podendo ver-se neste sentido os acórdãos do S.T.J. de 1.12.1998, in BMJ n.º 482/150; 12.12.1995, CJSTJ, Tomo III, pág. 156; e os acórdãos de 24/2/2015, processo nº 1866/11.4TTPRT.P1.S1, e de 14/5/2015, 2428/09.1TTLSB.L1.S1”.
Como tal, visando os recursos possibilitar que o tribunal superior reaprecie questões de facto e/ou de direito que no entender do recorrente foram mal decididas/julgadas pelo Tribunal a quo, não podem ter objecto questões que não tenham sido, nem tivessem de o ser, objecto da decisão recorrida.
Assim, “a interposição do recurso apenas vai desencadear a reapreciação do decidido [o tribunal de recurso vai reponderar a decisão tal como foi proferida], não comportando ele o ius novarum, ou seja, a criação de decisão sobre matéria que não tenha sido submetida (no momento e lugar adequado) à apreciação do tribunal a quo (nova, portanto)”, dado que o modelo adoptado pela legislação processual civil relativamente à função do recurso ordinário é o da reponderação e não o de reexame – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-05-2018, relator António Santos, processo n.º 1905/13.4TYLSB-F.L1-6 disponível na Base de dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I. P. em www.dgsi.pt.
Os recorridos entendem que a arguição de falta de notificação do requerimento de desistência de instância que apresentaram relativamente ao réu falecido, C., ora suscitada pela ré/apelante em sede de recurso da sentença é extemporânea, porquanto deveria ter sido colocada no prazo de dez dias, para além de não poder ser considerada uma nulidade da sentença recorrida, mas antes uma nulidade processual de que o tribunal não poderia conhecer oficiosamente.
É sabido que a nulidade processual consiste num desvio ao formalismo processual prescrito na lei.
Além das nulidades típicas previstas nos art.ºs 186º, 187º, 191º, 193º e 194º do CPC, outras irregularidades que se constatem na tramitação processual só constituirão nulidade se a lei assim o determinar ou quando o vício possa influir no exame ou decisão da causa, ou seja, quando se repercutem na sua instrução, discussão ou julgamento ou, em processo executivo, na realização da penhora, venda ou pagamento – cf. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 235; José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3ª Edição, pág. 381.
Trata-se das nulidades secundárias, inominadas ou atípicas que podem emergir da prática de um acto que a lei não admita, da omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva ou da prática de um acto admitido ou a sua omissão em violação da sequência processual fixada pelo juiz ao abrigo do disposto no art. 547º do CPC – cf. art. 195º, n.º 1 do CPC.
A nulidade do acto processual repercute-se nos actos subsequentes da sequência que dele dependam absolutamente. “Assim, sempre que a prática de um ato da sequência pressuponha a prática de um ato anterior, a invalidade deste tem como efeito, indirecto mas necessário, a invalidade do primeiro, se entretanto tiver sido praticado, pelo que a invalidade do ato processual é mais uma invalidade do ato enquanto elemento da sequência do que do ato em si mesmo considerado” – cf. J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 381.
Por sua vez, as decisões judiciais podem estar feridas na sua eficácia ou validade por duas ordens de razões: por erro de julgamento dos factos e do direito; por violação das regras próprias da sua elaboração e estruturação ou das que delimitam o respectivo conteúdo e limites, que determinam a sua nulidade, nos termos do art. 615.º do CPC.
O Prof. Miguel Teixeira de Sousa explica em que consiste uma nulidade processual para a distinguir das nulidades da sentença, o que faz nos seguintes termos e de modo cristalino:
“Todo o processo comporta um procedimento, ou seja, um conjunto de actos do tribunal e das partes. Cada um destes actos pode ser visto por duas ópticas distintas:
-- Como trâmite, isto é, como acto pertencente a uma tramitação processual;
-- Como acto do tribunal ou da parte, ou seja, como expressão de uma decisão do tribunal ou de uma posição da parte.
No acto perspectivado como trâmite, considera-se não só a pertença do acto a uma certa tramitação processual, como o momento em que o acto deve ou pode ser praticado nesta tramitação. Em contrapartida, no acto perspectivado como expressão de uma decisão do tribunal ou de uma posição da parte, o que se considera é o conteúdo que o acto tem de ter ou não pode ter.
Do disposto no art. 195.º, n.º 1, CPC decorre que se verifica uma nulidade processual quando seja praticado um acto não previsto na tramitação legal ou judicialmente definida ou quando seja omitido um acto que é imposto por essa tramitação.
Isto demonstra que a nulidade processual se refere ao acto como trâmite, e não ao acto como expressão da decisão do tribunal ou da posição da parte. O acto até pode ter um conteúdo totalmente legal, mas se for praticado pelo tribunal ou pela parte numa tramitação que o não comporta ou fora do momento fixado nesta tramitação, o tribunal ou a parte comete uma nulidade processual. Em suma: a nulidade processual tem a ver com o acto como trâmite de uma tramitação processual, não com o conteúdo do acto praticado pelo tribunal ou pela parte.
É, aliás, fácil comprovar, em função do direito positivo, o que acaba de se afirmar:
-- A única nulidade processual nominada que decorre do conteúdo do acto é a ineptidão da petição inicial (cf. art. 186.º); mas não é certamente por acaso que esta nulidade é também a única que constitui uma excepção dilatória (cf. art. 186.º, n.º 1, 278.º, n.º 1, al. b), e 577.º, al, b), CPC);
-- As nulidades da sentença e dos acórdãos decorrem do conteúdo destes actos do tribunal, dado que estas decisões não têm o conteúdo que deviam ter ou têm um conteúdo que não podem ter (cf. art. 615.º, 666.º, n.º 1, e 685.º CPC); também não é por acaso que estas nulidades não são reconduzidas às nulidades processuais reguladas nos art.ºs 186.º a 202.º CPC.” - O que é uma nulidade processual? in Blog do IPPC, 18-04-2018, disponível em https://blogippc.blogspot.com/search?q=nulidade+processual.
A arguição da nulidade processual deve ter lugar na própria instância em que é cometida e no prazo geral do art. 149º, n.º 1 do CPC.
É sabido que “a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou a autorizar a prática ou a omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente.” – cf. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2º, Coimbra 1945, pág. 507.
Em idêntico sentido pronuncia-se Artur Anselmo de Castro:
“Tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por um qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso, conforme a máxima tradicional – das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. A reacção contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora, o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso […]” – cf. Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, 1982, pág. 134.
No caso em apreço, a recorrente insurge-se contra a decisão proferida em 16 de Janeiro de 2019 que julgou confessados os factos alegados pelos autores considerando que não foi deduzida contestação no prazo legal, por entender que não foi observado o princípio do contraditório, dado que não lhe foi notificado o requerimento de desistência da instância apresentado pelos demandantes e tão-pouco lhe foi comunicada a cessação da suspensão da instância, pelo que não tinha como saber que o prazo para deduzir contestação já se tinha reiniciado.
Ainda que o conteúdo da alegação da recorrente possa não primar pela clareza, não deixa de ser possível constatar que esta dirige a sua impugnação ao conteúdo do despacho que julgou confessados os factos, considerando-o ilegal porque foi proferido sem que lhe tivesse sido dada a oportunidade de se pronunciar sobre a desistência da instância apresentada pelos autores/recorridos relativamente ao co-réu falecido ou lhe tenha sido comunicada a cessação da suspensão da instância.
Não se pode deixar de relevar que o art. 3º, n.º 3 do CPC consagra de modo amplo o princípio do contraditório, enquanto princípio geral enformador do processo civil, que se impõe em todas as fases processuais, impedindo que sejam tomadas decisões à revelia de algum dos interessados ou que as partes sejam confrontadas com soluções jurídicas inesperadas ou surpreendentes, por não terem sido objecto de qualquer discussão.
Assim, “antes de decidir, o juiz deve facultar às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre a matéria, o que poderá evitar decisões precipitadas ou, no mínimo, decisões que surjam contra a corrente do processo ou contra as expectativas que legitimamente foram criadas pelas partes quanto à sua evolução no sentido da prolação de uma decisão de mérito […] Confrontado com uma decisão que tenha sido proferida com desrespeito pelo princípio do contraditório (v. g. quando se trate de uma verdadeira decisão-surpresa), a sua impugnação deve ser feita através da interposição de recurso, se e quando este for admissível, ou mediante a arguição da nulidade da decisão, nos demais casos]” – cf. A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit., pp. 20-21.
A consagração do princípio do contraditório implica, assim, a necessidade da prática de actos que a lei só genericamente prescreve e que, como tal, integram ainda a previsão do n.º 1 do art. 195º do CPC – cf. neste sentido, J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 382.
Na situação em apreço, a ré insurge-se não directamente contra a omissão de uma formalidade mas antes contra o conteúdo do despacho proferido em 16 de Janeiro de 2019 que, sem que lhe tenha sido dada a oportunidade de se pronunciar ou tomar conhecimento da desistência da instância, considerou transcorrido o prazo da contestação e retirou da falta de apresentação desta as consequências previstas no art. 567º, n.º 1 do CPC.
Os recorridos defendem que se está perante a arguição de uma nulidade processual que deveria ter sido suscitada no prazo de 10 dias (perante o tribunal a quo, ao que se depreende, embora nada digam a esse respeito) e, além disso, que nem se verifica qualquer irregularidade porque a lei não impõe a notificação ao co-réu da desistência da instância apresentada relativamente a outro réu.
A questão não pode ser colocada sob esta perspectiva.
Na verdade, o que está em causa nos autos é saber se o despacho proferido em 16 de Janeiro de 2019 está de acordo com as consequências processuais a retirar da tramitação ocorrida até ao momento e em conformidade com as normas aplicáveis.
Não se pode olvidar que por força do despacho proferido em 7 de Dezembro de 2018, foi declarada a suspensão da instância com fundamento no óbito do réu C., nos termos do art. 269º, n.º 1, a) do CPC.
A ré/recorrente foi notificada desse despacho por carta com data de 10 de Dezembro de 2018, presumindo-se notificada em 13 de Dezembro de 2018.
Posteriormente, em 17 de Dezembro de 2018, os autores apresentam um requerimento em que entendem verificar-se a inutilidade da lide relativamente ao réu C. e pugnam pela extinção da instância quanto a este e pelo levantamento da suspensão da instância.
A convite do tribunal, conforme despacho proferido em 18 de Dezembro de 2018, os autores apresentam novo requerimento, em 14 de Janeiro de 2019, em que entendem verificar-se impossibilidade da lide mas declaram desistir da instância quanto ao réu C..
Os requerimentos em referência não foram notificados à ré/recorrente e tão-pouco o foi o despacho de 18 de Dezembro de 2018.
É nesta sequência processual que o tribunal a quo vem a proferir a decisão de homologação da desistência da instância quanto ao réu C. e, simultaneamente, considera confessados os factos alegados pelos autores na petição inicial, louvando-se no disposto no art. 567º, n.º 1 do CPC.
Ora, com a instância suspensa não se podem praticar os actos processuais que, por regra, se seguiriam ao evento suspensivo, excepto os actos urgentes que se destinem a evitar dano irreparável – cf. art. 275º, n.º 1 do CPC.
Em consonância, durante a suspensão da instância não se dá a contagem dos prazos que estiverem em curso, que será retomada depois do reinício da instância. No caso em que a suspensão é determinada pelo falecimento de alguma das partes, inutiliza-se o prazo já transcorrido – cf. n.º 2 do referido art. 275º.
Assim, a partir de 7 de Dezembro de 2018 a presente instância esteve suspensa, pelo que o prazo de que a ré/recorrente dispunha para contestar deixou de correr e inutilizou-se a parte do prazo que já tinha decorrido anteriormente.
Não obstante isso, com a notificação de 17 de Janeiro de 2019 a ré/recorrente é surpreendida com o conteúdo do despacho proferido em 16 de Janeiro desse ano, considerando confessados os factos por não ter sido apresentada contestação, quando, de modo algum, a tramitação processual precedente poderia tornar expectável para aquela que estivesse a decorrer o seu prazo para contestar e que pudesse ser proferida tal decisão.
Na verdade, face à interrupção do prazo ocorrida em 7 de Dezembro de 2018, de que foi notificada a ré, como poderia esta e quando ter tomado conhecimento do seu reinício?
Suspensa a instância nos termos do art. 269º, n.º 1, a) do CPC, a respectiva cessação ocorre com a notificação da decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida, nos termos do art. 276º, n.º 1, a) do CPC.
Efectivamente, como alegam os recorridos, nesse caso, não se torna necessária a prolação de um despacho a declarar cessada a suspensão da instância e a sua notificação às partes, pois que tal cessação decorre de modo imediato com a notificação da decisão de habilitação.
Sucede, contudo, que essa decisão nunca chegou a ter lugar nestes autos, pois que não chegou a ser deduzido um qualquer incidente de habilitação de herdeiros.
Com efeito, é necessário ter em atenção que o reinício da instância suspensa varia em função do fenómeno suspensivo.
Quando haja lugar a habilitação de herdeiros, o reinício dá-se com a notificação da decisão do incidente (com o trânsito em julgado dessa decisão); quando decorre do falecimento ou incapacitação do mandatário judicial, logo que tal situação esteja solucionada; e tratando-se de uma suspensão autorizada pelo juiz, quando se mostre decorrido o prazo fixado para o efeito, situações estas em que não há, de facto, necessidade de prolação de despacho a declarar cessada a suspensão – cf. quanto à suspensão determinada pelo juiz, acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 16-04-2015, relator António Sobrinho, processo n.º 2476/12.4TBBCL-A.G1.
Nos demais casos, a suspensão cessa quando cessar a circunstância que legalmente a determinou.
Neste caso, ainda que a suspensão da instância tenha sido determinada pelo óbito de um dos réus, certo é que não chegou a ser deduzido qualquer incidente de habilitação, porquanto os autores/recorridos vieram desistir da instância relativamente ao réu falecido.
Note-se que comprovado o falecimento do réu em 26 de Novembro de 2018, ou seja, ainda antes de ter sido assinado o aviso de recepção relativo à carta expedida para a sua citação (o que se verificou em 30 de Novembro de 2018), era evidente que o réu não havia sido citado para a causa – cf. art. 188º, n.º 1, d) do CPC.
Em consonância, quando os autores/recorridos apresentaram o requerimento desistindo da instância relativamente ao réu falecido, impunha-se, nos termos do art. 569º, n.º 3 do CPC, que a co-ré, que ainda não contestara, fosse notificada da desistência, contando-se a partir da data da notificação o prazo para a sua contestação.
Com efeito, a lei assim o determina porque “a garantia do direito de defesa exige, no mínimo, que o prazo perentório para a contestação dos restantes réus seja prorrogado, nessa data, por igual período, não obstante todos eles tenham sido já citados em data anterior: estando eles a contar com o prazo do réu ainda não citado, a sua expectativa não poderia ser iludida com o ato de desistência […]” – cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª Edição, pág. 549.
Não se tendo verificado essa notificação, não podia o Tribunal a quo, depois de homologar a desistência da instância, considerar confessados os factos, porquanto até então a co-ré, ora apelante, não tinha tomado conhecimento do reinício do prazo.
Na verdade, não se vislumbra como poderia a ré controlar o decurso do prazo para contestar sem que tivesse sido notificada da desistência da instância, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 569º, n.º 3 do CPC, ou da cessação da suspensão da instância ou do evento a que o tribunal conferia relevo para esse efeito.
Dado que o Tribunal a quo considerou confessados os factos alegados na petição inicial na mesma data em que homologou a desistência da instância, fê-lo, como é evidente, sem ter concedido à parte a oportunidade de tomar conhecimento da extinção da instância relativamente ao co-réu e do inerente recomeço da contagem do prazo e, mais do que isso, sem sequer permitir o decurso de um eventual prazo que, relativamente à ré, se tivesse reiniciado, sendo certo que o requerimento de desistência da instância foi apresentado apenas em 14 de Janeiro de 2019.
Quando o juiz profere o despacho a considerar confessados os factos alegados pelo autor por ausência de contestação deve verificar oficiosamente os requisitos para a prolação de tal despacho, quais sejam: a omissão de contestação do réu no prazo legal e a citação regular do réu na sua própria pessoa ou o réu ter juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação – cf. neste sentido, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 2018, pág. 53.
E dado que assim é, não se pode argumentar que se estava perante uma irregularidade insusceptível de apreciação oficiosa pelo tribunal e que devesse ser perante este arguida.
Com efeito, embora o juiz deva proferir os despachos que se imponham para o prosseguimento do processo, estando-lhe vedado conhecer de nulidades decorrentes de irregularidades abarcadas pelo n.º 1 do art. 195º do CPC, não é esse o caso dos autos, porquanto o despacho proferido em 16 de Janeiro de 2019 pressupunha que o juiz verificasse oficiosamente o decurso do prazo para a contestação, a sua ausência e a citação regular da ré.
Estando em causa um despacho que pressupõe o conhecimento do vício – falta de notificação à ré da desistência da instância com o consequente reinício do prazo para contestação -, dado que o tribunal deveria ter verificado o decurso do prazo da contestação, a questão suscitada pela ré/recorrente deixa de ser regulada pelo regime das nulidades processuais para seguir o regime do erro de julgamento, por a infracção praticada passar a estar coberta pela decisão, ao menos de modo implícito – cf. neste sentido, J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pp. 384-385.
Nesta matéria, importa atentar na distinção que o Prof. Miguel Teixeira de Sousa efectua quanto às situações que se podem configurar no contexto das nulidades:
“Efectivamente, são possíveis três situações bastante distintas:
-- Aquela em que a prática do acto proibido ou a omissão do acto obrigatório é admitida por uma decisão judicial; nesta situação, só há uma decisão judicial;
-- Aquela em que o acto proibido é praticado ou o acto obrigatório é omitido e, depois dessa prática, é proferida uma decisão; nesta situação, há uma nulidade processual e uma decisão judicial;
-- Aquela em que uma decisão dispensa ou impõe a realização de um acto obrigatório ou proibido e em que uma outra decisão decide uma outra matéria; nesta situação, há duas decisões judiciais.
No primeiro caso […] o meio de reacção adequado é a impugnação da decisão através de recurso. […]
No segundo caso, o que importa considerar é a consequência da nulidade processual na decisão posterior. Quer dizer: já não se está a tratar apenas da nulidade processual, mas também das consequências da nulidade processual para a decisão que é posteriormente proferida.
Finalmente, no terceiro caso, há que considerar a forma de impugnação das duas decisões.
[…] Se, apesar da omissão indevida de um acto, o juiz conhecer na decisão de algo de que não podia conhecer sem a realização do acto omitido (ou, pela positiva, conhecer de algo de que só podia conhecer na sequência da realização do acto), essa decisão é nula por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC) […].
O objecto do recurso é sempre uma decisão impugnada. Portanto, ou há vícios da própria decisão recorrida -- hipótese em que o recurso é procedente -- ou não há vícios da decisão impugnada -- situação em que o recurso é improcedente. O tribunal de recurso não pode conhecer isoladamente de nulidades processuais, mas apenas de decisões que dispensam actos obrigatórios ou que impõem a realização de actos proibidos e das consequências noutras decisões da eventual ilegalidade da dispensa ou da realização do acto.
É, aliás, porque o objecto do recurso é sempre a decisão impugnada e porque o tribunal ad quem só pode conhecer desse objecto que se deve entender que uma decisão-surpresa é nula por excesso de pronúncia. A opção é a seguinte: ou se entende que a decisão-surpresa é nula -- isto é, padece de um vício que se integra no objecto do recurso e de que o tribunal ad quem pode conhecer -- ou se entende que não há uma nulidade da decisão, mas apenas uma nulidade processual -- situação em que o tribunal ad quem de nada pode conhecer, porque, então, tudo o que conheça extravasa do objecto do recurso.” - cf. Blog do IPPC, 28/01/2019 Jurisprudência 2018 (163) disponível em https://blogippc.blogspot.com/2019/01/jurisprudencia-2018-163.html.
Tendo existido uma omissão na tramitação processual – ausência de comunicação à ré/recorrente da desistência da instância ou da cessação da suspensão -, vindo a ser proferida a decisão que julgou confessados os factos articulados pelos autores por ausência de contestação, o que se impõe verificar é a legalidade desta decisão e das consequências da respectiva eventual ilegalidade para a sentença que veio a ser proferida.
Com efeito, ainda que na generalidade das nulidades processuais a sua verificação deva ser objecto de arguição, reservando-se o recurso para o despacho que sobre esta incidir, tal solução é inadequada quando estão em causa situações em que o próprio juiz, ao proferir a decisão, omite uma formalidade de cumprimento obrigatório ou implicitamente dá cobertura a essa omissão.
Nesses casos, a nulidade processual traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve comunica-se ao despacho ou decisão proferidos, pelo que a reacção da parte vencida passa pela interposição de recurso dessa decisão em cujos fundamentos se integre a arguição da nulidade da decisão por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, n.º 1, al. d), in fine, do CPC – cf. neste sentido, Prof. Miguel Teixeira de Sousa, Blog do IPPC, 29-11-2016, Jurisprudência (496) Decisão-surpresa; nulidade; investigação da paternidade; caducidade, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2016/11/jurisprudencia-496_29.html; acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23-06-2016, relator Abrantes Geraldes, processo n.º 1937/15.8T8BCL.S1; de 6-12-2016, Fonseca Ramos, processo n.º 1129/09.5TBVRL-H.G1.S2 e de 22-02-2017, relator Chambel Mourisco, processo n.º 5384/15.3T8GMR.G1.S1; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 30-11-1995, relator Luís Fonseca, CJ 1995, V, 129 – “se a nulidade está coberta por um despacho judicial que a tenha sancionado, ainda que de modo implícito, o meio próprio para a arguir não é a reclamação mas o recurso, não sendo mesmo necessário qualquer indicação mais ou menos concludente no sentido de o juiz ter considerado o ponto a que se refere a nulidade.”
Assim, ao contrário do defendido pelos recorridos era no recurso da decisão final e, integrado neste, no recurso do despacho proferido em 16 de Janeiro de 2019, que deveria a ré/recorrente suscitar a violação das regras processuais e, designadamente, como se depreende do conteúdo da sua alegação, a prolação de decisão em violação do princípio do contraditório, ou seja, a prolação de uma decisão-surpresa, tal como fez, sendo certo que, conforme decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa na reclamação apresentada quanto ao despacho de não admissão do recurso, a decisão de 16 de Janeiro de 2019 não encontra acolhimento nas alíneas quer do n.º 1 quer do n.º 2 do art. 644º do CPC, pelo que a sua impugnação só poderia ter lugar no presente recurso interposto da decisão que pôs termo à causa (cf. n.º 3 do art. 644º do CPC).
Como tal, ainda que a falta de notificação da desistência da instância e, mais do que isso, da não concessão do prazo para deduzir contestação constitua uma nulidade processual, por violação do princípio do contraditório, esta nulidade processual foi consumida por uma nulidade do despacho que considerou não confessados os factos, pois que tal despacho não poderia conter tal conteúdo sem a prévia comunicação à co-ré da desistência da instância ou comunicação do reinício do prazo da contestação, o que o torna nulo – cf. art.ºs 613º, n.º 3 e 615º, n.º 1, d) do CPC.
A decisão de considerar confessados os factos surge perante a ré/recorrente como uma decisão-surpresa sendo este um vício que afecta a decisão (e não um vício de procedimento e, portanto, no sentido mais comum da expressão, uma nulidade processual). Com efeito, até esse momento não existia nenhum vício processual contra o qual a parte pudesse reagir. Tal decisão só é surpreendente porque se pronuncia sobre algo – o efeito cominatório da não apresentação de contestação - de que não podia conhecer antes de notificar a ré da desistência da instância e do reinício do prazo da contestação.
Nas circunstâncias descritas, a ré foi confrontada com uma decisão sem que lhe tenha sido proporcionada a oportunidade de exercer o contraditório e sem que tenha disposto da possibilidade de arguir qualquer nulidade processual por omissão de um acto legalmente devido, sendo a interposição de recurso o mecanismo apropriado para a sua impugnação.
Verificado o vício intrínseco da decisão proferida em 16 de Janeiro de 2019, que se mostra ilegal por ter sido proferida sem a ré ter sido notificada do evento que determinava o reinício do prazo para contestar, está demonstrada a sua nulidade e, por consequência, a nulidade da sentença que veio a ser proferida na sequência de um despacho nulo que dela constitui pressuposto.
Impõe-se, como tal, anular o despacho proferido em 16 de Janeiro de 2019 e, consequentemente, a sentença proferida em 11 de Fevereiro de 2019, determinando que os autos baixem à 1ª instância para que aí seja concedido à ré/recorrente o prazo de que dispõe para contestar, prosseguindo depois o processo a tramitação processual subsequente que se imponha.
Procede, na íntegra, a apelação.
*
Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do RCP, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
Uma vez que a pretensão recursória da recorrente merece provimento, as custas (na vertente de custas de parte) ficam cargo dos autores/recorridos, parte vencida no recurso.
*
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em
· julgar procedente a apelação e, consequentemente, anular a decisão proferida em 16 de Janeiro de 2019 e a sentença posteriormente prolatada, devendo ser concedido à ré/apelante o prazo para dedução de contestação, com o inerente prosseguimento dos autos de acordo com a tramitação que se impuser.
As custas ficam a cargo dos autores/recorridos.
*
Lisboa, 11 de Julho de 2019

Micaela Sousa
Maria Amélia Ribeiro
Dina Maria Monteiro