Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18860/16.1T8LSB.L2-7
Relator: MICAELA SOUSA
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
SUSPENSÃO DE PRAZOS
LEIS COVID 19
FALECIMENTO DE PARTE
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS
NEGLIGÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/22/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - A suspensão excepcional de prazos processuais prevista no n.º 1 do artigo 7º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, alterado pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril, aplica-se ao prazo de deserção da instância.

II - O julgamento da deserção implica a verificação judicial dos respectivos pressupostos: a paragem do processo por seis meses e um dia e a negligência das partes.

III – A conduta negligente conducente à deserção da instância traduz-se numa situação de inércia imputável à parte, em que esteja em causa um acto ou actividade que depende unicamente da sua iniciativa, sendo o caso mais paradigmático o da suspensão da instância por óbito de alguma das partes, a aguardar a habilitação dos sucessores.

IV – Ainda que o reconhecimento da deserção se produza hoje ope judicis, a valoração do comportamento processual das partes, enquanto integrador de negligência reveladora de desinteresse pela prossecução do processo, apenas exigirá a audição prévia das partes em função de cada caso concreto, isto é, face ao nível de cumprimento pelo Tribunal, antes do decurso do prazo de deserção, do princípio da cooperação, do dever de prevenção e do dever de gestão processual.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
A , empresa número …, com morada em  Wessels Street Rivonia intentou contra BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A., pessoa colectiva nº 500 852 367, com sede na Rua Barata Salgueiro nº 28, 6º Piso, 1250-044 em Lisboa; BANCO DE PORTUGAL, pessoa colectiva nº 500 792 771, com sede na Rua do Comércio nº 148, 1100-150 em Lisboa; NOVO BANCO, S.A., pessoa colectiva n.º 513 204 016, com sede na Avenida da Liberdade nº 195, 1250-142 em Lisboa; FUNDO DE RESOLUÇÃO, pessoa colectiva nº 510 338 461, com sede na Avenida da República, 57-2º, 1050-189 Lisboa; CMVM – COMISSÃO DE MERCADO DE VALORES MOBILIÁRIOS, com sede na Rua Laura Alves, nº. 4 Apartado 14258 1064-003 Lisboa e LP, residente Rua …, 9060-289 no Funchal a presente acção declarativa de condenação, com processo comum formulando os seguintes pedidos, com base na responsabilidade civil dos réus, enquanto intermediários financeiros, por violação dos deveres de informação, diligência e lealdade:
a) A condenação solidária dos réus no pagamento à autora da quantia de 142.818,305€ acrescida de:
i. 20.111,95€ a título de juros vencidos à taxa legal em vigor, e calculados desde a data de utilização ilícita pelos réus das quantias monetárias da autora;
ii. juros vincendos calculados desde a data da citação até integral pagamento da sentença condenatória.
Subsidiariamente,
b) A declaração de nulidade do contrato de intermediação financeira por inobservância de forma e a condenação solidária dos réus na restituição à autora da quantia de 142.818,305€, acrescida de:
i. 20.111,95€ a título de juros vencidos à taxa legal em vigor, e calculados desde a data de utilização ilícita pelos réus das quantias monetárias da autora;
ii. juros vincendos calculados desde a data da citação até integral pagamento da sentença condenatória;
c) a condenação solidária dos réus no ressarcimento à autora dos danos não patrimoniais que lhe foram causados, em valor a ser calculado em sede de liquidação de sentença.
O Banco Espírito Santo, S. A. – Em Liquidação contestou suscitando a inutilidade da lide em face da declaração de insolvência do Banco Espírito Santo, S. A., a prescrição da responsabilidade contratual do intermediário financeiro e impugnando o demais alegado pela autora, concluindo pela extinção da instância ou, assim se não entendendo pela sua absolvição do pedido (cf. Ref. Elect. 11969464).
Contestaram também a Comissão de Mercado de Valores Imobiliários, suscitando a incompetência do tribunal em razão da matéria, a inadmissibilidade do litisconsórcio e coligação, a ilegitimidade passiva e activa e impugnando os factos alegados; o Novo Banco, S. A. e LP, suscitando a sua ilegitimidade passiva e impugnando os factos alegados; o Fundo de Resolução, suscitando também a incompetência do tribunal em razão da matéria e pugnando pela improcedência da acção e o Banco de Portugal, suscitando, além da incompetência material do tribunal, a sua ilegitimidade passiva e, concluindo, se assim se não entender, pela improcedência da acção (cf. Ref. Elect. 12598503, 12743031, 12743774 e 12744657).
A autora pronunciou-se sobre as excepções deduzidas pugnando pela sua improcedência (cf. Ref. Elect. 13481236).
Em 20 de Março de 2017 foi proferida decisão que julgou a instância extinta quanto ao Banco Espírito Santo, S. A., por impossibilidade superveniente da lide (cf. Ref. Elect. 364450834).
A autora interpôs recurso desta decisão e em 26 de Setembro de 2017 o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu acórdão que a confirmou.
Por requerimento de 21 de Abril de 2017, a autora requereu a apensação aos presentes autos dos processos com os números 19034/16.7T8LSB, 19165/16.3T8LSB e 19378/16.8T8LSB, cujos pedidos e causas de pedir são similares, ocorrendo, bem assim, identidade de réus, sendo autores, respectivamente, LS, JP e RG (cf. Ref. Elect. 14812667).
Por despacho proferido em 25 de Setembro de 2017 foi ordenada a apensação dos referidos três processos aos presentes autos (cf. Ref. Elect. 369242202).
Em 21 de Novembro de 2017 foi proferida decisão que, relativamente a todas as acções, julgou procedente a excepção de incompetência absoluta do tribunal e absolveu todos os réus das instâncias (cf. Ref. Elect. 370975514 e 373923913).
Por requerimento de 3 de Janeiro de 2018 os autores desta e das demais acções interpuseram recurso de tal decisão (cf. Ref. Elect. 17430482).
Em 11 de Outubro de 2018 foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa que confirmou a decisão de incompetência material do tribunal (cf. Ref. Elect. 13606640).
A autora, por requerimento de 16 de Novembro de 2018, veio interpor recurso excepcional de revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão proferido em 11 de Outubro de 2018, que, posteriormente, não foi admitido como tal, sendo o processo remetido para o Tribunal dos Conflitos (cf. Ref. Elect. 416136 e 8362996).
Em 21 de Novembro de 2019 foi proferido acórdão pelo Tribunal de Conflitos que revogou parcialmente a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa e atribuiu competência material à jurisdição comum para conhecer do objecto da acção relativamente aos réus BES, Novo Banco, Fundo de Resolução e LP (cf. Ref. Elect. 24749877).
Tendo os autos retornado à 1ª Instância, em 15 de Janeiro de 2020 foi proferido o seguinte despacho (cf. Ref. Elect. 393394852):
“Tomei conhecimento do Acórdão do Tribunal de Conflitos.
A presente acção segue agora contra o BES, NB, Fundo de Resolução e LP
É do conhecimento do Tribunal que esta última ré terá falecido.
Notifique a A para juntar assento de óbito.”
As partes foram notificadas deste despacho por ofício elaborado em 16 de Janeiro 2020 e não tendo sido junto qualquer documento comprovativo do óbito, foi ordenada a sua verificação na base de dados.
Em 19 de Fevereiro de 2020 foi proferido o seguinte despacho (cf. Ref. Elect. 394538749):
“Atento o falecimento da ré, suspendo a presente a instância.
Notifique.”
A autora e os réus foram notificados deste despacho por ofício com certificação Citius de 20 de Fevereiro de 2020 (cf. Ref. Elect. 394639345, 394639552, 394639554 e 394639555).
Em 17 de Novembro de 2020 foi dirigido aos autos um requerimento pela CMVM, notificado via Citius a todos os mandatários da autora e dos réus, requerendo que fosse declarada a extinção da instância, com fundamento no facto de a autora não ter, até então, requerido a habilitação de herdeiros da ré LP, estando a instância suspensa há mais de seis meses a aguardar tal impulso processual, tendo decorrido já os seis meses previstos no art.º 281º, n.º 1 do Código de Processo Civil[1] (cf. Ref. Elect. 27734167).
Em 30 de Novembro de 2020, a autora dirigiu aos autos um requerimento, que denominou de articulado superveniente, informando não se conformar com a decisão de extinção da instância relativamente ao Banco Espírito Santo, S. A. por impossibilidade superveniente da lide e dando conta da prolação de um acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito de outro processo (18844/16.0T8LSB.L1.S2), que julgou não existir tal inutilidade superveniente, requerendo que aquele banco seja novamente chamado aos autos (cf. Ref. Elect. 27857609).
A autora nada disse quanto à deserção da instância suscitada no requerimento de 17 de Novembro de 2020.
Em 20 de Dezembro de 2021 foi proferida decisão que, após indeferir o requerimento de 30 de Novembro de 2020, determinou o seguinte (cf. Ref. Elect. 409264009):
“Logo por despacho de fls.1045, o Tribunal chamou a atenção para o falecimento de um das RR. Comprovado o óbito, a instância foi declarada suspensa (fls.1048) a 19.02.2020.
Todas as partes foram notificadas de tal facto.
Por requerimento de fls.1052, a Ré CMVM vem requerer que se determine a extinção da instância por a mesma se encontrar suspensa sem que a A tenha requerido a habilitação dos herdeiros da ré falecida. Deste requerimento foram todas as restantes partes notificadas. Nenhuma se pronunciou.
No requerimento supra referido, que a A apresentou já depois do requerimento da CMVM, a mesma nem sequer aborda a questão, podendo-o fazer.
Foi dada, assim, a oportunidade de as partes se oporem ao requerido pela R CMVM, pelo que a decisão que recair sobre esse pedido não constituirá nunca uma surpresa.
Dispõe o art.º 281º, nº1, do CPC, que “Sem prejuízo do disposto no nº 5, considera-se deserta a instância quando por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.”
E nos termos do nº 3: “Tendo surgido algum incidente com efeito suspensivo, a instância ou o recurso consideram-se desertos quando, por negligência das partes, o incidente se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses”.
Por sua vez dispõe o art.º 270º, nº1, que “Junto ao processo documento que prove o falecimento ou a extinção de qualquer das partes, suspende-se imediatamente a instância, salvo se já tiver começado a audiência de discussão oral ou se o processo já estiver inscrito em tabela para julgamento (…)”, o que não é o caso. Há ainda que atentar que, nos termos do art.º 351º, nº 1, do CPC, “A habilitação de sucessores da parte falecida na pendência da causa, para com eles prosseguirem os termos da demanda, pode ser promovida tanto por qualquer das partes que sobreviverem como por qualquer dos sucessores e deve ser promovida contra as partes sobrevivas e contra os sucessores do falecido que não forem requerentes.”
A Autora nada promoveu e, apesar de ter sido notificada, nada requereu que afastasse a sua postura de total negligência, pelo que temos de concluir que se verifica a previsão do referido art.º 281º e, consequentemente, declara-se a presente instância extinta por deserção.
Custas pela A.”
Inconformada com esta decisão, a autora vem interpor o presente recurso, cujas alegações conclui do seguinte modo (cf. Ref. Elect. 31451077):
A. Vêm as presentes alegações de recurso do despacho-sentença proferido pelo Tribunal a quo que julgou a presente instância extinta por deserção, decisão com a qual a Recorrente não se poderá conformar.
B. O julgador a quo constata que “A Autora nada promoveu e, apesar de ter sido notificada, nada requereu que afastasse a sua postura de total negligência, pelo que temos de concluir que se verifica a previsão do referido art.º 281º e, consequentemente, declara-se a presente instância extinta por deserção”.
C. A suspensão da instância depende da verificação de uma situação de negligência por parte de quem tinha o ónus de impulsionar o processo, sobre a qual tem o juiz que ponderar e se pronunciar na decisão em que decide sobre a eventual deserção, o que não sucedeu in casu.
D. O julgador a quo não se pronunciou porque não estava em condições de o fazer, porquanto omitiu um ato que devia ter praticado, omissão que, com o devido respeito, que é muito, veio a ser determinante para a errada conclusão pela deserção da instância.
E. Antes de proferir qualquer sentença a declarar a deserção da instância, incumbia ao Tribunal a quo o dever de notificar a Recorrente para se pronunciar sobre as eventuais motivações para a falta de impulso processual, ao abrigo do dever de gestão processual (artigo 6.º do CPC) e dos princípios da cooperação (artigo 7.º do CPC) e do contraditório (artigo 3.º, n.º 3, do CPC).
F. O julgador a quo deveria ainda informar expressamente a Recorrente da cominação prevista para a ausência de impulso processual, principalmente atendendo a que essa advertência não foi, de todo, efetuada no despacho de 19.02.2020, que declarou a suspensão da instância.
G. A Recorrente não teve qualquer oportunidade de se pronunciar sobre essa matéria, o que sempre se esperou que fosse possível fazer, antes da prolação da sentença que ora sindicamos.
H. Ao não dar essa oportunidade à Recorrente, o tribunal «a quo» violou o seu dever de gestão processual (artigo 6.º do CPC), o princípio da cooperação (artigo 7.º do CPC) e o princípio do contraditório (artigo 3.º, n.º 3, do CPC).
I. Caso tivesse feito essa averiguação, teria sabido que a Recorrente apenas permaneceu sem deduzir incidente de habilitação, porquanto era sua intenção aguardar pela prolação de sentença de habilitação de herdeiros da mesma Ré noutro processo judicial, para dar entrada do pedido de habilitação no presente processo nos próprios autos, e de forma simplificada, ao abrigo do disposto pelo artigo 353.º, n.º 1, do CPC, assim se poupando a obrigação de pagar mais uma taxa de justiça.
J. Situação que a Recorrente apenas manteria até ao momento em que fosse proferido o despacho a notificá-la para se pronunciar sobre a ausência de impulso processual, despacho esse que a Recorrente não perspetivou – nem deveria ter perspetivado – que fosse omitido.
K. A este respeito, note-se que a Recorrente, precisamente por ter sido lesada pelas Rés, tem enfrentado as maiores dificuldades em sustentar financeiramente este processo, situação que se agrava atendendo à desproporção de meios entre a Recorrente e as Rés, que, com os seus constantes requerimentos com vista a afastar a Recorrente da Justiça, provoca constantemente situações em que a Recorrente se vê obrigada a pagar taxas de justiça ou a requerer apoio judiciário.
L. Nessa ocasião, poderia o tribunal concordar ou não com as motivações da Recorrente, caso em que, não concordando, teria oportunidade de notificar a Recorrente nesse sentido, assim levando a que esta, vendo-se confrontada com esse entendimento, procuraria atuar em conformidade.
M. A falta de pronúncia sobre um requisito do qual depende a deserção da instância, bem como a omissão de notificação da Autora para se pronunciar sobre a falta de dedução do incidente de habilitação e, portanto, de uma formalidade imposta por lei (artigo 3.º, n.º 3, do CPC), geram a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, nos termos do disposto pelos artigos 195.º, n.º 1, e 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC.
33. Além disso, atendendo à forma como foi conduzido o processo pelo tribunal «a quo», considera a Recorrente, com o devido respeito, e que é muito, que não se poderá considerar verificado o pressuposto subjetivo da deserção da instância (negligência da parte) e, portanto, não poderia o tribunal «a quo» ter decidido pela extinção da instância, por deserção.
34. Tal entendimento, consubstancia uma incorreta aplicação do direito aos factos, designadamente do disposto no artigo 281.º do CPC, cuja correta interpretação e aplicação apenas poderia ter conduzido a que o Tribunal a quo diligenciasse, antes de declarar a deserção da instância, pelo apuramento do circunstancialismo factual que permitisse sustentar a afirmação do comportamento negligente que procura sancionar-se com a cominada deserção.
Termina pugnando pela procedência do recurso e revogação da decisão recorrida, devendo a acção seguir os seus trâmites.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. A. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95.
Assim, perante as conclusões da alegação da autora/recorrente há que apreciar as seguintes questões:
a) Nulidade da decisão;
b) Verificação dos pressupostos para a deserção da instância;
c) Violação do princípio do contraditório por falta de audição das partes em momento prévio à prolação do despacho de deserção.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
Com interesse para a decisão relevam as ocorrências processuais que se evidenciam do relatório supra.
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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
A apelante refere que o Tribunal recorrido omitiu a sua notificação para se pronunciar sobre a falta de dedução do incidente de habilitação, o que constituía formalidade imposta por lei e gera a nulidade da sentença, por omissão de pronúncia, nos termos dos art.ºs 195º, n.º 1 e 615º, n.º 1, d) do CPC
As decisões judiciais podem estar feridas na sua eficácia ou validade por duas ordens de razões: por erro de julgamento dos factos e do direito; por violação das regras próprias da sua elaboração e estruturação ou das que delimitam o respectivo conteúdo e limites, que determinam a sua nulidade, nos termos do art.º 615.º do CPC.
Tal normativo legal, no seu n.º 1, estatui o seguinte:
1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
Para a correcta interpretação deste preceito importa distinguir entre nulidades de processo e nulidades de julgamento, sendo que apenas a estas últimas se aplica o normativo em referência.
A nulidade por omissão de pronúncia sobre questões suscitadas ou sobre pretensão deduzida é reconduzida ao dever de decidir, que tem por referência as questões suscitadas e bem assim as de conhecimento oficioso, mas não exige que se apreciem todos os argumentos (que são coisa diversa de “questões”).
O juiz deve conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, nos termos do art.º 608º, n.º 2 do CPC, o que não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias soluções plausíveis de direito para a solução do litígio, tenham sido deduzidos pelas partes ou possam ter sido inicialmente admitidos pelo juiz – cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª edição, pp. 713 e 737.
Mas são coisas diferentes deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Aquilo que releva é que o tribunal decida a questão, sem que esteja obrigado apreciar todos os fundamentos ou razões em que as partes se baseiam para sustentar a sua pretensão.
Só haverá nulidade da sentença por omissão ou por excesso de pronúncia, quando o julgador tiver omitido pronúncia relativamente a alguma das questões que lhe foram colocadas pelas partes ou quando tiver conhecido de questões que aquelas não submeteram à sua apreciação.
Por sua vez, a nulidade processual consiste num desvio ao formalismo processual prescrito na lei.
Além das nulidades típicas previstas nos art.ºs 186º, 187º, 191º, 193º e 194º do CPC, outras irregularidades que se constatem na tramitação processual só constituirão nulidade se a lei assim o determinar ou quando o vício possa influir no exame ou decisão da causa, ou seja, quando se repercutem na sua instrução, discussão ou julgamento ou, em processo executivo, na realização da penhora, venda ou pagamento – cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 235; José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3ª Edição, pág. 381.
O art.º 3º, n.º 3 do CPC consagra de modo amplo o princípio do contraditório, enquanto princípio geral enformador do processo civil, que se impõe em todas as fases processuais, impedindo que sejam tomadas decisões à revelia de algum dos interessados ou que as partes sejam confrontadas com soluções jurídicas inesperadas ou surpreendentes, por não terem sido objecto de qualquer discussão.
A argumentação da recorrente assenta na falta de pronúncia do tribunal a quo sobre um dos requisitos de que depende a deserção da instância (a negligência da parte) e na falta de observância do princípio do contraditório por via da sua não audição prévia.
Quanto à alegada falta de pronúncia sobre a verificação de um dos requisitos da deserção tal não corresponde a uma omissão da decisão quanto à questão que se impunha apreciar, mas a um eventual erro de julgamento, pelo que não corporiza qualquer nulidade da sentença.
Por sua vez, a alegada não audição da parte, a considerar-se que integra uma infracção processual, porque passou a estar coberta pela decisão proferida, ao menos de modo implícito, tal irregularidade deixa de ser regulada pelo regime das nulidades processuais para seguir o regime do erro de julgamento - cf. neste sentido, J. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pp. 384-385.
Significa isto que a reconhecer-se um dever de audição da parte não cumprido pela 1ª instância tal implicará que tal irregularidade se converte, afinal, numa nulidade da própria decisão que veio a ser proferida. Ou seja, a nulidade processual apenas releva enquanto projecta os seus efeitos negativos na decisão que é proferida, pelo que a questão será apreciada em sede de recurso, conforme infra se explanará.
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Constatado nos autos o falecimento da ré LP, o Tribunal a quo, em cumprimento do estatuído nos art.ºs 269º, n.º 1, a) e 270º, n.º 1 do CPC, declarou suspensa a instância, em 19 de Fevereiro de 2020.
Em tal despacho, o Tribunal não consignou que a instância se manteria suspensa, tal como decorre do estatuído no art.º 276º, n.º 1, a) do CPC, até que fossem habilitados os sucessores da ré falecida, sendo, porém, essa a consequência legal da suspensão da instância determinada por óbito de uma das partes.
Decorridos mais de seis meses sobre a data da notificação às partes da suspensão da instância, nada foi requerido nos autos, seja pela autora, seja pelos réus, no contexto do impulso processual necessário para o prosseguimento dos autos.
Com efeito, o requerimento intitulado de «articulado superveniente» apresentado pela autora, em 30 de Novembro de 2020, não tem tal virtualidade e nele sequer esta se pronunciou sobre qualquer inviabilidade de deduzir o competente incidente de habilitação de herdeiros ou sobre a deserção da instância, já apontada no requerimento de 17 de Novembro de 2020.
A deserção da instância é uma das formas de extinção da instância - cf. art.º 277º, c) do CPC.
Sobre a deserção dispõe o art.º 281º do CPC:
“1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 5, considera-se deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.
2 - O recurso considera-se deserto quando, por negligência do recorrente, esteja a aguardar impulso processual por mais de seis meses.
3 - Tendo surgido algum incidente com efeito suspensivo, a instância ou o recurso consideram-se desertos quando, por negligência das partes, o incidente se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.
4 - A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator.
5 - No processo de execução, considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando, por negligência das partes, o processo se encontre a aguardar impulso processual há mais de seis meses.”
A verificação da deserção depende, pois, de dois requisitos: a negligência das partes em promover o andamento do processo e o decurso do prazo de seis meses, a que acresce a necessidade de prolação de despacho judicial que a julgue verificada.
Na vigência do disposto no art.º 291º, n.º 1 do CPC de 1961, aprovado pelo Decreto-Lei nº 44129, de 28 de Dezembro[2], a deserção era de funcionamento automático, isto é, a instância considerava-se deserta, independentemente de qualquer decisão judicial, devendo porém aquele normativo ser compaginado com o art.º 285º, que estatuía: “A instância interrompe-se, quando o processo estiver parado durante mais de um ano por negligência das partes em promover os seus termos ou os de algum incidente do qual dependa o seu andamento”, e com o art.º 286º que dispunha, por sua vez, que “cessa a interrupção se o autor requerer algum acto do processo ou do incidente de que dependa o andamento dele, sem prejuízo do disposto na lei civil quanto à caducidade dos direitos”, normativos que não contêm correspondência no actual CPC de 2013.
Do confronto dos dois regimes destacam-se alterações significativas:
* no anterior regime, a deserção era antecedida da interrupção da instância, que se verificava com a falta de impulso, por negligência das partes, pelo período de um ano, ocorrendo aquela dois anos após a interrupção, de modo automático, por força da lei;
* no regime do actual CPC, a instância considera-se deserta seis meses após a falta de impulso processual, por negligência das partes, sem prévia interrupção da instância e com necessidade de despacho judicial.
O principal fundamento da deserção da instância, como refere Paulo Ramos Faria[3], reside hoje no seu efeito compulsório com vista à tutela da celeridade processual, tido como interesse de ordem pública, pelo que aquela tem natureza oficiosa, estando ainda fora da disponibilidade das partes, conforme se dá conta no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20-11-2017, processo n.º 708/11.5TTMTS-A.P1.[4]
António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, salientam que a “conduta negligente conducente à deserção da instância consubstancia-se numa situação de inércia imputável à parte, ou seja, em que esteja em causa um ato ou actividade unicamente dependente da sua iniciativa, sendo o caso mais flagrante o da suspensão da instância por óbito de alguma das partes, a aguardar a habilitação dos sucessores.” – cf. op. cit., pp. 328-329.
Com efeito, atento o estatuído nos art.ºs 269º, nº 1, a), 270º, nº 1 e 276º, nº 1 do CPC, o falecimento de uma parte determina a suspensão da instância (a não ser que, atento o objecto da acção, seja causa de impossibilidade ou de inutilidade superveniente da lide – cf. n.º 3 do art.º 269º), que se mantém até que seja notificada a decisão que considere habilitado o sucessor da pessoa falecida, nos termos dos art.ºs 351º e seguintes daquele diploma legal.
A ideia base subjacente ao instituto da suspensão da instância por ocorrência do óbito de uma das partes é a aversão da lei à circunstância de que um processo possa prosseguir quando uma das partes que nele intervém faleceu, não podendo assim exercer o direito ao contraditório, tutelando os interesses de quem vai suceder na esfera patrimonial do falecido – cf. Prof. José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 3º, Coimbra 1946, pp. 240-241; acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-03-2009, processo n.º 5478/2008-6.
A suspensão da instância tem como efeito a paralisação da tramitação processual, isto é, implica a inviabilidade de serem praticados os actos processuais que se seguiriam ao evento suspensivo, a não ser quando esteja em causa evitar a ocorrência de dano irreparável – cf. art.º 275º, n.º 1 do CPC.
Daqui decorre que apenas os actos que contendem directamente com a tramitação processual com repercussão na apreciação do objecto do litígio poderão ser cominados com o vício da nulidade - previsto no nº 3 do art.º 270º do CPC - se praticados no decurso do período da suspensão, dado que a lei pretende que todos aqueles que devam ter lugar com observância do princípio do contraditório sejam praticados quando as partes estejam em condições de sobre eles se pronunciarem.
No caso em apreço, está-se perante uma situação em que o processo se encontrava suspenso por óbito da ré LP, conforme despacho proferido em 19 de Fevereiro de 2020, sendo que o impulso processual necessário – dedução do incidente de habilitação -, incumbia, nos termos do art.º 351º, n.º 1 do CPC, à autora ou aos co-réus, partes sobrevivas, ou aos sucessores da parte falecida, não sendo da iniciativa oficiosa do tribunal (cf. art.º 6º do CPC) – cf. neste sentido, A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit., pág. 406; Paulo Ramos de Faria, op. cit., pág. 4 – “Num processo cada vez mais marcado pelo impulso oficioso do juiz (art. 6.º, n.º 1), deverá ser (desejadamente) cada vez mais rara a efetiva ocorrência da deserção da instância, por mais raros serem os atos que só a parte pode (deve) praticar e que importam a paragem do processo. A promoção da habilitação de herdeiros ou a constituição de novo advogado pelo autor, após a renúncia do anterior, são casos emblemáticos de impulso processual que só à parte cabe.”; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-09-2016, processo n.º 1742/09.0TBBNV-H.E1.S1 – “[…] não há oficiosidade em matéria de habilitação dos sucessores. Quem na habilitação tiver interesse (v. art.º 351º nº 1), a começar naturalmente pelo demandante, é que tem o ónus de a promover formalmente.”
Suspensa a instância por falecimento da ré LP e notificadas as partes, entre elas a autora - que é quem tem maior interesse na demanda, como é evidente -, seguro é que lhe incumbia (ou, eventualmente, aos co-réus ou demais herdeiros da falecida) diligenciar pela dedução do incidente de habilitação de herdeiros, sendo claro que, por força do legalmente determinado (e que a autora, regularmente patrocinada por mandatário judicial não podia desconhecer), a instância permaneceria suspensa a aguardar o impulso processual necessário, sem prejuízo do disposto no art.º 281º, n.º 1 do CPC.
Sucede que, decorrido um período superior a seis meses desde a notificação da suspensão da instância, absolutamente nada foi requerido nos autos, por qualquer das partes.
Importa ter em consideração que durante esse período vigoraram as normas excepcionais adoptadas no âmbito das medidas que visavam mitigar os efeitos decorrentes da pandemia causada pela doença Covid-19, com a seguinte sequência, conforme se dá conta no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 1-07-2021, processo n.º 90/21.2T8OER.L1-2:
“I) - A redação originária do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março – […] estabeleceu a aplicação do regime das férias judiciais, aos atos processuais praticados em processos não urgentes e determinou a suspensão dos prazos nos processos urgentes, salvo nas circunstâncias previstas nos n.ºs 8 e 9 do seu artigo 7.º.
II) - A Lei n.º 4-A/2020, de 6 abril veio alterar o artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020 determinando, quanto aos processos não urgentes, a suspensão dos prazos processuais (sem prejuízo da tramitação dos processos e da prática de atos processuais presenciais e não presenciais através das plataformas informáticas que possibilitassem a sua realização por via eletrónica ou através de meios de comunicação à distância adequados, contanto que todas as partes entendessem estar asseguradas as condições a prática dos atos por essas vias) e, quanto aos processos urgentes, a sua tramitação, sem suspensão ou interrupção de prazos, atos ou diligências.
III) - O regime legal do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, na redação dada pela Lei n.º 4-A/2020, vigorou até 03-06-2020, data da entrada em vigor da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, que revogou o referido artigo 7.º, colocando termo à suspensão generalizada dos prazos processuais, retomando-se a contagem dos prazos judiciais.
IV) - A Lei nº 4-B/2021, de 1 de fevereiro, vigorando desde 02-02-2021, mas produzindo efeitos a 22-01-2021 (sem prejuízo das diligências judiciais e atos processuais entretanto realizados e praticados) veio determinar que os processos urgentes continuassem a ser tramitados, sem suspensão ou interrupção de prazos, atos ou diligências e, quanto aos processos não urgentes, a suspensão de prazos. […].
V) - A Lei nº 13-B/2021, de 5 de abril, vigorando desde 06-04-2021, retomou a contagem dos prazos, nos processos não urgentes e, quanto aos processos urgentes prescreve que, salvo nos termos do disposto no n.º 7 do art.º 6.º-E aditado por este diploma à Lei n.º 1-A/2020, não há lugar à suspensão de prazos ou diligências.”
Tem-se por seguro que a suspensão excepcional de prazos processuais inicialmente prevista no n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, depois alterado pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril se aplica ao prazo de deserção da instância, porquanto tais leis não efectuaram qualquer distinção a esse propósito e ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus, sendo que a redacção conferida a tal normativo legal por esta última lei refere expressamente “todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais […] ficam suspensos […]”, não se enquadrando a situação em nenhuma das normas do regime de excepção (cf. n.ºs 2, 5 e 7 do referido art.º 7º) – cf. neste sentido, acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 23-11-2021, processo n.º 2087/18.0T8PVZ.P1 e de 7-03-2022, processo n.º 3334/19.7T8GDM.P1; do Tribunal da Relação de Évora de 25-03-2021, processo n.º 114/19.3T8RMR.E1; do Tribunal da Relação de Lisboa de 5-11-2020, processo n.º 27911/18.4T8LSB.L1-2.
Neste caso, o prazo da suspensão iniciou-se em 24 de Fevereiro de 2020, data em que se consideram as partes notificadas do despacho que declarou a instância suspensa (cf. art.ºs 247º, n.º 1 e 248º, n.º 1 do CPC), tendo corrido até 8 de Março de 2020, ficando suspenso a partir de 9 de Março de 2020 e até 2 de Junho de 2020, retomando a sua contagem a 3 de Junho de 2020, pelo que se deve considerar que o período de seis meses terminou no dia 20 de Novembro de 2020.
Argumenta a apelante que não foi ouvida para efeitos de se pronunciar sobre a alegada negligência em promover o andamento do processo que lhe é imputada e que a decisão não se pronuncia cabalmente sobre os fundamentos pelos quais considerou verificada tal negligência, o que consiste na omissão de um acto que deveria ter sido praticado, pois que em observância do dever de gestão processual e dos princípios da cooperação e do contraditório, o tribunal deveria tê-la notificado para se pronunciar sobre as motivações para a falta de impulso processual, informando-a expressamente da cominação prevista para tal falta, sendo que se o tivesse feito teria sabido que a apelante estava a aguardar a prolação de sentença de habilitação de herdeiros da ré noutro processo judicial para então requerer o incidente de habilitação; mais refere que o juiz deve ser um verdadeiro garante da justiça material, tendo o dever de advertir a parte da consequência para a não verificação de um requisito formal.
Não se vislumbra de que modo terá o tribunal recorrido infringido o dever de gestão processual (cf. art.º 6º do CPC) ou de cooperação (cf. art.º 7º do CPC), porquanto, por um lado, não lhe cabia promover oficiosamente qualquer diligência necessária para a dedução do incidente de habilitação que é da exclusiva iniciativa da parte e, por outro, não estava em causa qualquer situação de impasse ou de complexidade ou sequer de verificação dúbia que justificasse a sua intervenção facilitadora da ultrapassagem de qualquer obstáculo.
Na verdade, a autora/recorrente encontra-se patrocinada por mandatário judicial, pelo que naturalmente tem conhecimento das regras processuais, designadamente, daquela que lhe confere legitimidade para deduzir o incidente de habilitação de herdeiros da contraparte falecida, estando também ciente, porque disso notificada, de que a instância estava suspensa, suspensão que apenas seria obviada com a dedução daquele incidente (cf. art.º 281º, n.º 3 do CPC).
O art.º 7º do CPC estabelece o princípio da cooperação que deve existir entre os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes na condução e intervenção do processo, para que todos concorram para a obtenção, com brevidade e eficácia, da justa composição do litígio, daí que cada parte deve comportar-se no decurso do processo visando alcançar de modo célere a sua resolução, independentemente das divergências naturais, evitando a formulação de pretensões inconsistentes, incidentes sem razoabilidade ou iniciativas com o único objectivo de protelar o desfecho do litígio.
No contexto do dever de cooperação entre os intervenientes processuais figura o dever de qualquer das partes prestar esclarecimentos sobre aspectos da matéria de facto ou de direito que se apresentem como pertinentes para a boa decisão da causa e o dever do juiz providenciar pela remoção dos obstáculos que qualquer das partes encontre quando se trata de obter algum documento ou informação ou exercer algum direito, ónus ou dever processual – cf., n.ºs 2 e 4 do mencionado art.º 7º.
Além disso, as partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação resultantes do art.º 7º - cf. art.º 8º do CPC.
A boa-fé enquanto norma de conduta incide também sobre a relação jurídico-processual, que, podendo ser reportada também ao juiz, é aqui associada às partes e seus mandatários, que devem usar de lisura processual, adequando os seus comportamentos em conformidade – cf. art.º 542º do CPC.
Agir de boa fé significa agir com diligência, zelo e lealdade correspondente aos legítimos interesses da contraparte e ter um comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança e expectativa dos outros.
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “a boa-fé objetiva estabelece as balizas de atuação de todos os que participam na relação jurídica processual, impondo uma conduta proba e leal. A regra da boa-fé constitui um limite imanente da atuação processual, o qual deriva de forma mediata da necessidade de proteger os direitos fundamentais da tutela efetiva, da defesa, da igualdade e de um processo com todas as garantias” – cf. op. cit., pág. 35.
Os autos não fornecem qualquer elemento objectivo que permita identificar um qualquer comportamento imputável seja à parte contrária, seja ao próprio tribunal no qual a autora pudesse ter baseado a sua alegada perspectiva de que não seriam retiradas consequências da manutenção da suspensão da instância por falta de dedução do necessário incidente de habilitação de herdeiros sem que fosse auscultada sobre as razões pelas quais tal incidente não fora ainda deduzido.
Note-se, aliás, que a instância se encontrava suspensa desde 19 de Fevereiro de 2020 sem que até Dezembro de 2021 tenha sido comunicado o que quer que seja aos autos, designadamente, por parte da autora, que desse conta de eventuais dificuldades na identificação dos herdeiros ou, como apenas agora refere, que aguardava a decisão a proferir num outro processo judicial, o que em momento algum foi informado no processo.
A autora/recorrente não dirigiu aos autos qualquer requerimento solicitando a colaboração do Tribunal para afastar os obstáculos com que se deparava para cumprir o seu dever de impulso processual, o que podia e devia ter feito, com base no mencionado princípio da cooperação (cf. art.º 7º, n.º 4 do CPC), especialmente vocacionado para, precisamente, no caso de a habilitação dos sucessores depender do acesso a elementos informativos que a parte interessada não detém e que não consegue reunir com facilidade, permitir-lhe solicitar a intervenção do juiz com vista a notificar as pessoas que possam prestar os esclarecimentos necessários.
Sustenta ainda a apelante que a deserção da instância não opera de forma automática, com o simples decurso do prazo de seis meses, pelo que o Tribunal antes de proferir o despacho a que alude o art.º 281º, n.º 4 do CPC, face ao princípio da cooperação, deveria ouvir previamente as partes para ajuizar se a falta de impulso processual é devida a negligência e acrescenta que o despacho em crise nem indicou os fundamentos da negligência que lhe imputou.
Como resulta do acima expendido, face ao actual regime adjectivo da deserção da instância, esta não é automática pelo simples decurso do prazo, como acontecia na lei anterior, pois que, para além da falta de impulso processual há mais de seis meses, é também necessário que essa falta se fique a dever à negligência das partes em promover o seu andamento – cf. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2-02-2015, processo n.º 4178/12.2TBGDM.P1.
O julgamento da deserção implica, assim, a verificação judicial dos respectivos pressupostos: a paragem do processo por seis meses e um dia e a negligência das partes. A reunião dos pressupostos constitutivos da deserção será, então, objecto de um juízo meramente declarativo formulado pelo juiz.
Dúvidas não se suscitam, pois, nem a apelante tal questiona, que os autos aguardavam impulso processual das partes.
De igual modo, controvertido não vem que os autos aguardavam o impulso processual desde que a recorrente e a parte contrária foram notificadas do despacho que declarou a suspensão da instância, em 19 de Fevereiro de 2020.
É sabido que à luz da doutrina e jurisprudência produzidas na vigência do CPC de 1961 e embora a lei não o exigisse, se consolidou a necessidade de prolação de despacho judicial a declarar a interrupção da instância, a partir da qual se contaria o decurso do prazo para a deserção.
Tendo desaparecido a figura da interrupção da instância e ocorrendo a redução para metade do prazo de um ano para a deserção, há quem admita que o início do prazo há-de agora ter lugar a partir da notificação do despacho que alerte a parte para a necessidade do seu impulso processual.
Assim, referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3ª Edição, pág. 557:
“O prazo de seis meses conta-se, pois, não a partir do dia em que a parte deixou de praticar o ato que condicionava o andamento do processo, isto é, a partir do dia em que se lhe tornou possível praticá-lo ou, se para o efeito tinha um prazo (não perentório), a partir do dia em que ele terminou, mas a partir do dia em que lhe é notificado o despacho que alerte a parte para a necessidade do seu impulso processual. Segue-se assim o regime que anteriormente se aplicava, pelo menos, quando, não obstante a parte não tivesse o ónus de impulso subsequente, o juiz ordenasse que o processo aguardaria o requerimento das partes, sem prejuízo do disposto no art. 29-3-a RegCustas […]”
No sentido de que a contagem do prazo de seis meses é efectuada a partir do dia da notificação do despacho que alerte a parte para a necessidade de impulso processual, veja-se a seguinte jurisprudência: acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 10-11-2019, processo n.º 21927/15.0T8PRT.P1; do Tribunal da Relação de Évora de 21-11-2019, processo n.º 318/05.6TBLLE.E1; do Tribunal da Relação de Guimarães de 9-04-2019, processo n.º 2813/15.0T8BRG.G1; do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-07-2020, processo n.º 6241/17.4T8ALM.L2-7; e do Tribunal Central Administrativo Sul de 13-02-2020, processo n.º 466/15.4BELTB.
Em sentido oposto, sustenta Paulo Ramos Faria, op. cit., pág. 7:
“O prazo conta-se do dia (dies a quo) em que a parte tomou conhecimento do estado do processo (ou que tenha tido obrigação de dele conhecer) que implica a paragem deste e torna necessário o seu impulso, não sendo exigido pela lei, para que o prazo se inicie, que o juiz o declare expressamente ou que o demandante seja notificado do seu início (com a receção dessa notificação).”
A acompanhar este entendimento detectou-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20-11-2017, processo n.º 708/11.5TTMTS-A.P1.
In casu, porém, não constitui questão litigiosa a determinação do dies a quo do prazo de seis meses, que se considerou como sendo o da data da notificação do despacho que declarou suspensa a instância.
Desse modo, não tendo existido a prática de qualquer acto entre essa data e a data da prolação do despacho ora colocado em crise, mostra-se verificado o primeiro pressuposto da deserção, ou seja, o decurso do prazo de seis meses sem que a parte tivesse diligenciado pela dedução do necessário incidente de habilitação dos herdeiros da ré falecida, que se completou, como acima se indicou, em 20 de Novembro de 2020.
Mas, em conformidade com o atrás expendido, a deserção da instância depende não apenas de o processo estar parado há mais de seis meses, mas também da existência de uma omissão negligente da parte em promover o seu andamento, de modo que o comportamento omissivo desta tem de ser apreciado e valorado.
Por essa razão se impõe actualmente a necessidade de despacho do juiz, pois que há que fazer essa avaliação, no sentido de saber se a paragem do processo resulta efectivamente de negligência da parte em promover o seu andamento.
Há que ter presente, como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7-05-2020, processo n.º 3820/17.3T8SNT.L1-6, que “[…] não basta à declaração de deserção a mera constatação de que, desde a suspensão decorreu o prazo assinalado pela lei, antes importa que tenha decorrido sem utilidade, porque a parte foi negligente em promover a acção. Em suma, a deserção da instância deve ser decretada em despacho que aprecie dois pressupostos: o decurso de prazo de suspensão e a negligência da parte em promover os termos da acção.”
No caso, porém, antes de se completarem os seis meses do prazo de deserção não existiu qualquer actividade processual, seja da iniciativa da autora, seja da iniciativa dos co-réus, com vista à possível dedução do incidente de habilitação de sucessores, o que se tem por relevante para configurar uma situação de desinteresse, de inércia ou de negligência, nos termos supra enunciados.
Como refere Paulo Ramos de Faria, op. cit., pág. 6:
“A conduta omissiva e negligente da parte onerada com o impulso processual só cessará com a prática do ato que, utilmente, estimule a instância, ou com a superveniência de uma circunstância que subtraia à vontade da parte a possibilidade da sua prática. No primeiro caso, a deserção é impedida, sem prejuízo de novo fenómeno de deserção poder ter o seu início, iniciando-se novo prazo, perante nova inércia da parte; no segundo caso, o obstáculo desqualifica a conduta (como sendo negligente), devendo, para tanto, ser pronta e diligentemente comunicado aos autos − sem prejuízo do funcionamento do instituto do justo impedimento (art.º 140.º, n.º 1).”
Na verdade, a recorrente alega que permaneceu sem deduzir incidente de habilitação porque estava a aguardar a prolação de sentença de habilitação de herdeiros da ré LP noutro processo judicial, para deduzir incidente de habilitação nos próprios autos, de forma simplificada, nos termos do art.º 353º, n.º 1 do CPC.
Com efeito, tal normativo legal admite que a habilitação tenha por base certidão da sentença que reconheça a qualidade de herdeiro, o que abrange quer a habilitação a título principal (em acção em que é pedida a declaração da qualidade de sucessor ou em processo de inventário), quer a habilitação por incidente (o habilitado foi reconhecido como sucessor da parte em incidente de habilitação ocorrido na dependência de outro processo) ou ainda a habilitação decorrente de legitimação originária da parte processual em acção com outro objecto – cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 686.
No entanto, ciente de que o prosseguimento dos autos dependiam da promoção de tal incidente, em momento algum a recorrente deu conhecimento ao tribunal dessa circunstância, ou seja, que aguardava a prolação de tal decisão, tendo deixado decorrer um ano e dez meses sem qualquer informação nos autos a esse propósito.
Sustenta também a apelante que o tribunal recorrido não poderia declarar a extinção da instância por deserção sem antes proceder à audição das partes para aferir da sua eventual negligência, tendo existido violação o princípio do contraditório, nos termos do art.º 3º, n.º 3 do CPC, para além de a decisão recorrida não aludir à negligência da autora.
Nesta última parte não tem razão a recorrente.
A decisão impugnada consignou expressamente que, na sequência do despacho de suspensão da instância e, bem assim, notificada do teor do requerimento de 17 de Novembro de 2020, em que era já suscitada a verificação da deserção da instância, a autora, tendo até dirigido aos autos um requerimento posterior, não aproveitou para se pronunciar sobre o pedido de declaração da deserção da instância ou para comunicar aos autos qualquer justificação para a falta de dedução do incidente de habilitação, nada tendo promovido ou requerido que afastasse a sua “postura de total negligência”, de onde decorre que a senhora juíza a quo imputou a falta de dedução do necessário incidente de habilitação a uma inércia da demandante.
A última questão que importa aferir é a de saber se estava o tribunal recorrido obrigado a auscultar as partes sobre a eventual verificação de negligência que lhes fosse imputável antes de proferir a decisão de extinção da instância.
António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa referem que a apreciação da negligência ou do grau de diligência revelado pela parte deve ser feita em face dos dados conferidos pelo processo, de modo que “sempre que o impulso processual dependa da parte, esta tem o ónus e o interesse em informar o tribunal acerca da existência de algum obstáculo e, se for o caso, solicitar a concessão de alguma dilação. Não cabe ao tribunal promover a audição da parte sobre a negligência, tendo em vista a formulação de um juízo sobre as razões da inércia; esta será avaliada em função do que resultar objectivamente do processo” – cf. op. cit., pág. 330.
A recorrente convoca o princípio da gestão processual para fazer recair sobre o juiz o ónus de auscultar as partes antes de apreciar se a paragem do processo lhes é imputável.
A propósito do dever de prevenção refere Paulo Ramos Faria, op. cit., pp. 16-17:
“Sendo correto dizer-se que o novo Código veio responsabilizar mais o demandante pela sua inércia, não menos seguro é reconhecer-se que veio também, em maior grau, agravar os deveres do juiz na condução do processo. Decorre com meridiana clareza da norma contida no n.º 1 do art.º 6.º que o juiz deve gerir o processo – desde logo, promovendo o seu andamento célere – em colaboração com as partes (art. 7.º).
Não se concebe que a demanda possa estar parada durante largos meses, aguardando o impulso das partes, sem que esta circunstância processual seja claramente declarada nos autos. Quando o juiz gere o processo fazendo-o aguardar um ato da parte, por entender que se está perante um caso em que o impulso apenas a esta cabe, tem a obrigação de o proclamar nos autos, ficando os contendores notificados plenamente conscientes de que a demanda aguarda o seu impulso pelo prazo de deserção.
Mesmo nos casos que aparentam ser mais evidentes, não representa qualquer esforço relevante para o juiz esclarecer os restantes sujeitos processuais sobre o estado dos autos, despachando no sentido de os informar que: a) o processo aguarda o impulso do demandante; b) a inércia deste determinará a extinção da instância (em data que indicar, ou decorridos seis meses sobre a data que indicar); c) não haverá novo convite à prática do ato, sendo declarada deserta a instância, logo que decorrer o prazo apontado (art.º 281.º, n.º 1); d) qualquer circunstância que impeça o autor de praticar o ato deverá ser imediatamente comunicada ao tribunal. A advertência deve surgir logo que o juiz constate que os autos carecem do impulso da parte.”
O Professor José Lebre de Freitas, in Da Nulidade da Declaração de Deserção da Instância sem Precedência de Advertência à Parte, pp. 197-198[5] parece exigir a observância do dever de prevenção mediante a prolação de despacho que advirta para a possibilidade de deserção referindo: “o despacho judicial que advirta a parte para a possibilidade da deserção da instância não é, pois, dispensável, quer se entenda que só a partir dele correm os seis meses do art.º 281.º-1, CPC, quer se entenda que basta que o juiz o profira, no decurso desse prazo ou depois dele concluído, desde que a parte tenha a possibilidade de praticar seguidamente o ato omitido”.
E identifica na norma do art.º 281.º-1, CPC sete requisitos, dos quais seis evidenciados na letra do seu texto e o último decorrente da sua interpretação à luz dos princípios gerais:
1. que lei especial, ou o tribunal por despacho de adequação formal do processo, imponha à parte um ónus de impulso processual subsequente;
2. que o ato que a parte deva praticar seja por ela omitido;
3. que o processo fique parado em consequência dessa omissão;
4. que a omissão se prolongue durante mais de seis meses;
5. que o processo se mantenha, por isso, parado durante este período de tempo;
6. que a omissão seja imputável à parte, por dolo ou negligência;
7. que o juiz alerte a parte onerada para a deserção da instância que ocorrerá se o ato não for praticado (segundo a corrente mais exigente, só a partir da notificação deste despacho de advertência se contando os seis meses).
Discordando do sétimo requisito identificado por J. Lebre de Freitas, quando entendido que este se deve verificar sempre e independentemente das circunstâncias do caso concreto, referindo que nas situações em que há um específico ónus processual imposto pela lei às partes, de que a parte foi notificada e não podia deixar de ter conhecimento, o dever de prevenção não exige tal advertência, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 5-11-2020, processo n.º 2791/18.4T8LSB.L1-2.
In casu, certo é que a senhora juíza a quo não alertou explicitamente as partes para o facto de a instância se manter suspensa até que os sucessores da ré falecida fossem habilitados por decisão transitada em julgado, mas seguro é também que, estando as partes representadas por mandatário judicial e sendo caso de decorrência expressa da lei que o andamento dos autos dependia da dedução do incidente de habilitação, não há como alijar a responsabilidade da autora na falta da respectiva dedução e como fundamentar um – aliás, não invocado – desconhecimento das consequências dessa inacção.
Todavia, é conhecida a divergência da jurisprudência dos Tribunais da Relação quanto à necessidade de audição das partes antes da prolação do despacho que julga deserta a instância.
No sentido de que a declaração de deserção da instância não pode ser automática, logo que decorridos os seis meses de paragem do processo, impondo-se, previamente à prolação do despacho, que o tribunal aprecie e valore o comportamento processual das partes, de modo a aferir se a paragem de processo, por falta de impulso processual, se ficou ou não a dever à negligência daquelas, em observância do princípio do contraditório vertido no artº. 3º, n.º 3 do CPC, e que ouça as partes a esse respeito, identificam-se, a título de exemplo, os seguintes arestos, a propósito da acção declarativa:
* Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 7-01-2015, processo n.º 368/12.6TBVIS.C1; de 20-09-2016, processo n.º 125/14.0TBPBL-B.C1 (admitindo a não audição prévia apenas se esta for manifestamente desnecessária e devidamente justificada); de 27-06-2017, processo n.º 522/05.7TBAGN.C1;
* Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 12-10-2017, processo n.º 329/13.8TJVNF.G1; de 6-10-2016, processo n.º 1128/08.4TBBC-B.G1; e de 7-05-2015, processo n.º 243/14.0TBFAF.G1.
Reconhecendo que a lei não impõe a audição prévia, mas considerando que esta se justifica quando as partes não tenham sido advertidas para as consequências da omissão:
* Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 7-05-2020, processo n.º 3820/17.3T8SNT.L1-6 (reconhecendo a necessidade de audição prévia se as partes não foram advertidas, aquando da suspensão, da possibilidade de deserção) e de 5-11-2020, processo n.º 27911/18.4T8LSB.L1.2;
* Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 7-11-2019, processo n.º 3958/15.1T8VNG.P1 (a necessidade de audição prévia depende de saber se a parte teve conhecimento claro das consequências da sua inércia); e de 11-04-2019, processo n.º 10135/05.8TBMAI.P1;
* Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-01-2022, processo n.º 1585/18.0T8CVL.C1 (o princípio do contraditório não impõe, necessariamente, a audição das partes antes da prolação do despacho de deserção);
* Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 11-02-2021, processo n.º 573/16.6T8STC-E1 (considerando, num caso em que as partes foram advertidas da possível consequência de deserção, a desnecessidade de prévia audição das partes por ser suficiente para caracterizar a negligência prevista no art.º 281º do CPC a conduta omissiva da parte quanto a um acto que depende apenas da sua vontade).
No entanto, a jurisprudência mais recente ao nível do Supremo Tribunal de Justiça tem enveredado por entendimento contrário, considerando não existir exigência legal de audição prévia das partes, nem a sua falta constituindo violação do princípio do contraditório, entendimento mitigado pela necessidade de se aferir, em cada caso concreto, se se mostram observados os princípios do dever de prevenção e de igualdade das partes, de que são exemplo os seguintes arestos:
* Acórdão de 14-12-2016, processo n.º 105/14.0TVLSB.G1.S1;
* Acórdão de 20-09-2016, processo n.º 1742/09.0TBBNV-H.E1.S1;
* Acórdão de 5-07-2018, processo n.º 5314/05.0TVLSB.L1.S2;
* Acórdão de 18-09-2018, processo n.º 2096/14.9T8LOU-D.P1.S1 (numa situação em que as partes foram advertidas da consequência da sua inacção);
* Acórdão de 2-05-2019, processo n.º 1598/15.4T8GMR.G1.S2;
* Acórdão de 14-05-2019, processo n.º 3422/15.9T8LSB.L1.S2;
* Acórdão de 4-02-2020, processo n.º 21005/15.1T8PRT.P1.S1;
* Acórdão de 2-06-2020, processo n.º 139.15.8T8FAF.A.G1.S1, acessível em https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:139.15.8T8FAF.A.G1.S1/, que dispensa a audição das partes prévia à prolação do despacho de deserção, mesmo sem ter existido advertência quanto à consequência da inércia, referindo que, constituindo a habilitação de sucessores um ónus que, além destes, recai sobre a parte, em face da clareza do início do prazo de seis meses e das respectivas consequências, a declaração de extinção da instância por deserção não tinha que ser precedida de despacho a indicar tal cominação, inexistindo fundamento legal, nomeadamente à luz do princípio do contraditório, para prévia audição das partes com vista a aquilatar da sua negligência[6].
* Acórdão de 12-02-2021, processo n.º 3820/17.3T8SNT.L1.S1, que revogou o acórdão proferido pela Relação de Lisboa nesse mesmo processo em 7-05-2020, acima referido, e onde se considerou, numa situação idêntica de falta de dedução do incidente de habilitação de herdeiros na sequência do falecimento de uma das partes, que a negligência a que se refere o art.º 281º, n.º 1 do CPC, é a negligência retratada objectivamente no processo (negligência processual ou aparente), pelo que a assunção pela parte de uma conduta omissiva que, necessariamente, não permite o andamento do processo, estando a prática do acto omitido apenas dependente da sua vontade, é suficiente para a caracterizar, aduzindo: “uma vez decretada a suspensão da instância, com fundamento no falecimento de uma das partes, o prosseguimento dos autos estava dependente da respetiva habilitação de herdeiros – habilitação essa que tinha que ser promovida, não pelo tribunal, mas por qualquer das partes, e particularmente pelo autor, com interesse no prosseguimento da acção por si intentada (conforme este, na pessoa do seu mandatário, não podia deixar de saber). O tribunal, que nada tinha a ordenar, apenas tinha que aguardar que a habilitação fosse requerida. E, ainda que os restantes réus também o pudessem fazer, era especialmente sobre o autor que, enquanto interessado direto, recaía o ónus de promover a habilitação de herdeiros, sendo que, caso se deparasse com algum obstáculo, lhe competia disso vir a dar conhecimento ao tribunal, requerendo o que se mostrasse necessário, designadamente a concessão de novo prazo (o que, in casu, não ocorreu)”.
* Acórdão de 5-05-2022, processo n.º 1652/16.5T8PNF.P1.S1, onde se afirma que a assunção pela parte de uma conduta omissiva que, necessariamente, não permite o andamento do processo, estando a prática do acto omitido apenas dependente da sua vontade, é suficiente para caracterizar a sua negligência, não existindo o dever de expressa advertência quando as partes estão representadas por advogado: “A conduta negligente conducente à deserção da instância consubstancia-se numa situação de inércia imputável à parte, ou seja, em que esteja em causa um ato ou atividade unicamente dependente da sua iniciativa. A decisão que julgue deserta a instância tem de conter um juízo que aponte para a negligência da parte em termos de impulso processual. A lei não determina que a decisão a proferir seja precedida da audição prévia das partes. A negligência de que fala a lei é necessariamente a negligência retratada ou espelhada objetivamente no processo (negligência processual ou aparente). Se a parte não promove o andamento do processo e nenhuma justificação apresenta, e se nada existe no processo que inculque a ideia de que a inação se deve a causas estranhas à vontade da parte, está constituída uma situação de desinteresse, logo de negligência. Na situação concreta, em que surgiu um incidente com efeito suspensivo, motivado pelo óbito de uma das partes, o impulso processual está a cargo da parte. Mostra-se evidente que o impulso processual está a cargo da parte, pois decorre da lei, sendo certo que a lei não determina a prévia audição da parte sobre quem recai o ónus de impulso processual (art.º 276º/1 a) e art.º 351º CPC e ainda, art.º 3º/1 e art. 5º CPC).”
No sentido da desnecessidade de audição das partes após o decurso do prazo de deserção quando antes foram advertidas para as consequências da sua inércia, pronuncia-se também Paulo Ramos Faria, op. cit., pp. 18-19:
“Não se poderá perder de vista que estamos perante o mero decurso de um prazo processual, sem que a parte pratique o ato necessário a evitar a concretização do efeito da insatisfação de um ónus previsto na lei. Se o demandante tiver sido previamente alertado para as consequências da sua inércia, e sendo adotado o conceito de negligência acima referido, exigir a sua audição após o decurso do prazo de deserção para discutir a negligência, significa exigir a sua audição para discutir se alguma circunstância estranha à sua vontade o impediu de praticar o ato em tempo útil. Um tal benefício concedido ao autor não encontra paralelo, por exemplo, em semelhante prerrogativa atribuída ao réu, quando não conteste: o tribunal, antes de proferir um despacho julgando confessados os factos articulados, ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 567.º – um efeito bem mais atentatório dos direitos subjetivos substantivos, do que a mera extinção da instância -, não convida o réu a esclarecer se a sua inércia se deveu a facto estranho à sua vontade; o despacho é proferido e, havendo justo impedimento, será ele alegado ulteriormente pelo modo próprio.
Se as partes já tiverem sido alertadas para a consequência da omissão do impulso pelo prazo de deserção, afigura-se ser redundante e não reclamada “por defeito” pela lei a sua audição após o decurso do prazo de deserção.”
Não se pode deixar de concordar com o entendimento que vem sendo seguido pelo Supremo Tribunal de Justiça, por se afigurar o mais consonante com o equilíbrio da posição das partes, o princípio da utilidade e aproveitamento dos actos processuais e do dever de cooperação e prevenção a que o Tribunal está cingido, de tal modo que, não sendo de afirmar a dispensa da audição das partes previamente à extinção da instância em todas as situações, aquela poderá revelar-se, as mais das vezes, desnecessária, sobretudo quando, como é o caso dos autos, o prosseguimento do processo depende de um acto processual que apenas à parte cabe praticar, o que esta omitiu durante mais de seis meses.
Mesmo considerando que o reconhecimento da deserção se produz hoje ope judicis, e não ope legis, a valoração do comportamento processual das partes, enquanto elemento integrador de negligência reveladora de desinteresse pela prossecução do processo, exigirá a audição prévia das partes em função de cada caso concreto, isto é, do nível de cumprimento pelo tribunal, antes do decurso do prazo de deserção, do princípio da cooperação, do dever de prevenção e do dever de gestão processual.
Se o demandante está representado por mandatário judicial, se aquando da decisão de suspensão as partes foram advertidas para as consequências da sua inércia processual e se no decurso do período de seis meses nada foi transmitido aos autos que aponte para uma qualquer dificuldade por banda daquelas para promoverem o acto de que depende o prosseguimento do processo, devem ter-se por satisfeitos tais princípios e deveres, resultando pleonástica uma nova audição das partes sobre a verificação de negligência.
Parece ser, esta, aliás, a jurisprudência maioritária do Supremo Tribunal de Justiça, como se retira, designadamente, do acórdão desse Tribunal Superior de 20-04-2021, processo n.º 27911/18.4T8LSB.L1.S1:
“Para apurar da ocorrência de negligência das partes, ao juiz compete analisar o comportamento processual das partes no âmbito do processo, isto é, se a parte (ou partes) demonstraram no processo as dificuldades em impulsionar os autos, as diligências necessárias para remover os eventuais obstáculos com que se tem deparado para afastar a causa que levou à suspensão, e, inclusive, solicitar o contributo do tribunal para que as razões impossibilitadoras do prosseguimento normal dos autos sejam afastadas ou se a parte (ou partes) se manteve numa inação total, desinteressando-se do prosseguimento normal dos autos.
No que respeita à audição antes de ser proferida a decisão a julgar extinta a instância por deserção, não se encontra qualquer disposição legal que determina essa audição, nem a mesma decorre do princípio do contraditório ou do princípio da cooperação e do dever de gestão processual.
Ora, quanto ao disposto no nº 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil, como se refere no Acórdão do STJ, de 14 de dezembro de 2016, “o princípio do contraditório tem em vista questões de facto ou de direito que sejam suscitadas no processo, impondo-se ao Tribunal decidi-las, não tem em vista, o que é completamente diferente, impor ao Tribunal, no âmbito de um incidente inominado que não está previsto na lei, convidar os interessados que, no aludido período de seis meses optaram por não juntar aos autos nenhum documento nem suscitar qualquer questão, explicar o seu comportamento ou apresentar os documentos ou suscitar as questões que podiam ter suscitado e não suscitaram” […] nem, por outro lado, a decisão pode configurar uma decisão surpresa, porquanto desde o momento em que tem conhecimento do despacho que determinou a suspensão da instância as partes sabem que, se ocorrer a sua inércia durante 6 meses, a instância será extinta por deserção, não podendo ficar surpreendidos com uma tal decisão do Tribunal.
Por outro lado, a não intervenção do Tribunal desde o despacho que suspende a instância por óbito de um interessado até à decisão que julga extinta a instância por deserção, não viola o princípio da cooperação previsto no artigo 7º do Código de Processo Civil ou o dever de gestão processual previsto no artigo 6º deste diploma legal, porquanto não cabe ao Tribunal terminar com a inércia das partes, impondo-lhes a prática de atos que as mesmas não pretendam praticar (devendo sofrer as consequências legais da sua omissão), pois a maior intervenção que o Código de Processo Civil confere ao Juiz para providenciar pelo andamento célere do processo e com vista à prevalência da justiça material em detrimento da justiça adjetiva, não afasta o princípio da autorresponsabilização das partes.”
Na situação sub judice, aquando da prolação do despacho que suspendeu a instância não ficou consignada uma advertência expressa para a circunstância de o decurso do prazo a que alude o art.º 281º, n.º 1 do CPC continuar a correr, não obstante tal suspensão. Todavia, essa consequência, como acima se referiu, não poderia deixar de ser conhecida da autora, patrocinada por mandatário judicial e, como tal, cabalmente esclarecida para as consequências da sua inércia.
Acresce que, se não nesse momento, posteriormente, com o atravessamento nos autos do requerimento de 17 de Novembro de 2020, onde é claramente suscitada a deserção da instância por falta de dedução do incidente de habilitação, seria expectável que a autora, notificada da sua junção, se aprestasse a rejeitar a verificação dos pressupostos da deserção e a carrear para os autos qualquer informação que afastasse a sua responsabilidade pela não dedução do incidente.
Ora, a autora nada disse a esse propósito, nem sequer quando resolveu apresentar um denominado “articulado superveniente”, em 30 de Novembro de 2020, onde, retomando questões já esgotadas nos autos (a intervenção do BES, S. A. relativamente a quem a instância estava já extinta por decisão transitada em julgado), ignorou a questão da suspensão da instância por falecimento da parte, que então se mantinha, desprezou o decurso do prazo de seis meses para que se havia alertado no requerimento de 17 de Novembro de 2020 e nada trouxe aos autos no sentido de identificar qualquer circunstância impeditiva da possibilidade de prática do acto de que o prosseguimento da instância estava dependente e susceptível de desqualificar a sua conduta como negligente.
Como se referiu, competia às partes, e em especial à autora, sem necessidade de intervenção do Tribunal, dar conhecimento no processo (atenta a não dedução do incidente de habilitação de herdeiros) de todos os seus eventuais impedimentos para deduzir o incidente.
Não o tendo feito, não pode agora a recorrente sustentar que era necessária a intervenção do tribunal, face aos seus manifestos desinteresse e omissões, a fim de a indagar quanto às razões do seu silêncio ou de a incentivar à prática do acto que sabia (ou devia saber) que lhe incumbia praticar.
Não tendo o Tribunal, no caso concreto, de ouvir as partes, em especial a autora/apelante, sobre as razões da sua manifesta inacção, nem de determinar a prática de qualquer acto, a falta de impulso é imputável a negligência das partes, designadamente da apelante, porquanto não deduziram o incidente nos seis meses subsequentes à declaração de suspensão da instância, nem justificaram essa omissão, o que é suficiente para caracterizar uma situação de negligência para efeitos de deserção da instância.
A decisão do Tribunal recorrido deve, assim, ser confirmada, improcedendo a apelação.
*
Das Custas
De acordo com o disposto no art.º 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art.º 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
A recorrente decai integralmente quanto à pretensão que trouxe a juízo, pelo que as custas (na vertente de custas de parte) ficam a seu cargo.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
As custas ficam a cargo da apelante.
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Lisboa, 22 de Novembro de 2022
Micaela Marisa da Silva Sousa
Cristina Silva Maximiano
Alexandra Castro Rocha
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[1] Adiante designado pela sigla CPC.
[2] “1. Considera-se deserta a instância, independentemente de qualquer decisão judicial, quando esteja interrompida durante dois anos.
2 - Os recursos consideram-se desertos quando o recorrente não tenha apresentado a alegação, nos termos do n.º 2 do artigo 684.º-B, ou quando, por inércia sua, estejam parados durante mais de um ano.
3. Tendo surgido algum incidente com efeito suspensivo, o recurso é julgado deserto se decorrer mais de um ano sem que se promovam os termos do incidente.
4. A deserção é julgada no tribunal onde se verifique a falta, por simples despacho do juiz ou do relator.”
[3] In O julgamento da deserção da instância declarativa, JULGAR online, 2015,
http://julgar.pt/o-julgamento-da-desercao-da-instancia-declarativa/.
[4] Acessível na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
[5] Revista Ordem dos Advogados I-II 2018 acessível em https://portal.oa.pt/media/130214/jose-lebre-de-freitas_roa_i_ii-2018-revista-da-ordem-dos-advogados.pdf.
[6] Esta decisão mereceu uma crítica negativa do Prof. Miguel Teixeira de Sousa, no Blog do IPPC, que considera que a negligência que consta do art.º 281.º, n.º 1, CPC pressupõe um juízo valorativo do tribunal sobre a omissão da parte, pressupondo tal juízo o conhecimento de uma determinada factualidade, porque em direito não há juízos valorativos nem automáticos, nem em abstracto: qualquer juízo valorativo é feito tomando em consideração certos factos, daí que uma mesma ausência de impulso processual depois do falecimento de uma das partes pode ser negligente no caso X e não ser negligente no caso Y, cf. Blog do IPPC Jurisprudência 2020 (79), entrada de 23-10-2020, acessível em https://blogippc.blogspot.com/search?q=deser%C3%A7%C3%A3o+contradit%C3%B3rio.