Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
566/18.9PWLSB.L1-9
Relator: CRISTINA BRANCO
Descritores: SOCIEDADE INSOLVENTE
QUEIXA CRIME
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I-O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, mas exclusivamente para estes efeitos, competindo aos titulares dos órgãos sociais da sociedade insolvente (que, como vimos, se mantêm após a declaração de insolvência), a representação da sociedade para todos os efeitos que não sejam, exclusivamente, patrimoniais ;
II-Estando em causa a representação da sociedade insolvente em sede de processo penal, concretamente a apresentação de uma queixa-crime, pela prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo art. 191.º do CP, que tem a natureza de crime contra a reserva da vida privada (Capítulo VII do Código Penal), trata-se de matéria que não poderá ser considerada de todo como matéria de «carácter patrimonial que interesse à insolvência»;
III-Nestes termos a administradora da insolvência não tem legitimidade para apresentar a queixa que deu origem aos presentes autos e que, em consequência, carecia o MP de legitimidade para exercer a acção penal, não tendo com essa decisão incorrido na violação de qualquer norma legal ou preceito constitucional;
IV- São assim os titulares dos órgãos da sociedade insolvente, e não o administrador da insolvência, quem representa aquela pessoa colectiva no processo penal sendo tal posição, uniforme na jurisprudência dos nossos Tribunais superiores.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. No âmbito do Processo Sumário com o n.º 566/18.9PWLSB, o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido AA, melhor identificado nos autos, imputando-lhe a prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo art. 191.º do Código Penal.
2. Remetidos os autos à distribuição para julgamento, pela Senhora Juiz do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local de Pequena Criminalidade de Lisboa – Juiz 5, foi proferido despacho de rejeição da acusação por falta de legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal.
3. A denunciante, Massa Insolvente da Sociedade de Renovação Urbana do Campo Pequeno, não se conformando com tal decisão, interpôs o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões (transcrição):
«1. A decisão em crise decidiu sobre factos e segundo interpretação jurídica das quais as partes não tiveram qualquer possibilidade de dar a sua opinião e colaboração para uma boa decisão de mérito.
2. É uma decisão surpresa e como tal proibida pelo direito, nomeadamente pelo artigo 20 da Constituição e Artigo 3, n. 3 do CPC, ex vi artigo 4 do CPP, implicando a nulidade da decisão.
3. No caso concreto a norma incriminadora eventualmente aplicável à acção penalmente relevante do arguido (artigo 191 do CP (introdução em lugar vedado ao público)) tutela os interesses do titular do espaço comercial vedado e que não é livremente acessível ao público e no qual o arguido entrou e tentou permanecer contra a sua vontade, de modo ilícito e culposo.
4. Após a declaração de insolvência, a empresa que outrora pertenceu à sociedade declarada insolvente mantem-se em actividade e é a Massa Insolvente que a explora com exclusão de qualquer outra pessoa.
5. Esse titular é a Massa Insolvente queixosa, aqui recorrente, com exclusão de qualquer outra pessoa.
6. Por tudo isto, a massa insolvente de sociedade comercial, representada pelo administrador da insolvência, tem legitimidade para apresentar queixa no âmbito de processo penal, em especial em verificar-mos que no caso concreto a queixa diz respeito a factos ocorridos após a declaração de insolvência e que afectam a própria Massa e que os administradores da sociedade insolvente renunciaram todos eles à administração, nem tendo estes – em qualquer caso – qualquer interesse em apresentar e prosseguir a acção penal. Este é a interpretação correcta do Ordenamento Jurídico Português nomeadamente dos artigos 81 e segts do CIRE com as que resultam dos artigos 113 e segts do CP.
7. Outra interpretação seria “despenalizar” de facto um conjunto amplo de situações (todos os casos em que a vítima fosse uma Massa Insolvente), o que nunca poderia ser o desejo de um legislador que consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
8. Nestes termos é nossa firme convicção que o Tribunal a quo fez uma má aplicação das regras de direito penal e processual penal e da conjugação dos mesmos com as regras da Constituição, do Código Civil e do CIRE, nomeadamente do artigo 20 da Constituição e do Artigo 3, n. 3 do CPC, ex vi artigo 4 do CPP e dos artigos 81 e segts do CIRE e artigos 191 e 113 e segts do CP
Termos em que:
Deve o presente recurso ser julgado procedente e a decisão recorrida impugnada revogada e substituída por douto acórdão deste Venerando Tribunal da Relação de Lisboa que ordene a continuação do processo para julgamento.
Mas V.Exªs, Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Lisboa, melhor decidirão fazendo a necessária justiça, como é o Estilo deste Tribunal
4. O recurso foi admitido, por despacho de fls. 70 dos autos.
5. Na sua resposta, o Ministério Público junto do Tribunal recorrido pronunciou-se pela improcedência do recurso
6. Também o arguido apresentou resposta ao recurso, na qual conclui (transcrição):
«1.° A Recorrente vem arguir a nulidade do Douto despacho recorrido, alegando que o mesmo viola o “Princípio da proibição das decisões surpresas.”.
2.° O Douto despacho recorrido e a decisão aí constante não violam qualquer princípio processual de direito, uma vez que dá pleno cumprimento às formalidades previstas nos artigos 311.°, 312.° e 391.°-C do Código de Processo Penal.
3.° Não se encontra legalmente prevista qualquer possibilidade do Queixoso em intervir nos autos no Saneamento do processo, nos termos legais supra indicados.
4.° O Recurso interposto carece assim de fundamento legal, pelo que deverá ser considerado improcedente na arguição de nulidade da decisão recorrida.
5.° A Recorrente argui que a decisão recorrida procede a uma errada interpretação e aplicação da lei processual, ao determinar que o Administrador de Insolvência não tem legitimidade para apresentar a queixa-crime que deu origem aos presentes autos, em virtude de serem apreciados direitos de personalidade da sociedade insolvente.
6.° Entende a Recorrente que a Administradora de Insolvência da Recorrente assume a representação da mesma para todos os efeitos que interessem à insolvência.
7.° Entente também a Recorrente que a Administradora de Insolvência representa a sociedade insolvente no que diz respeito aos poderes de administração e disposição dos bens integrantes da massa insolvente.
8.° Salvo melhor entendimento, a Recorrente arguiu posições incompatíveis em Direito, por contraditórias.
9.° A Administradora de Insolvência da Recorrente não poderá ter as suas capacidades de representação da sociedade insolvente limitadas aos exercício dos poderes de administração e disposição de bens, ou seja aos direitos patrimoniais e, ao mesmo tempo, exercer poderes correspondentes aos direitos de personalidade da sociedade insolvente.
10.° Esteve bem o Douto despacho recorrido ao determinar que os direitos de personalidade da sociedade insolvente são exercidos pelos representantes designados por lei, estatutos ou pacto social, cabendo a estes a capacidade judiciária de apresentação da queixa-crime que deu origem aos presentes autos.
11.° A interpretação das disposições legais aplicáveis à situação em apreço nos presentes autos, que resulta do Douto despacho recorrido acolhe amplo reflexo e defesa na Jurisprudência dos Tribunais Superiores Portugueses.
12.° Salvo melhor entendimento, o Recurso interposto carece também de fundamento legal no que diz respeito à incorreta interpretação e aplicação da lei processual aplicável à situação em apreço, pelo que deverá ser considerado improcedente.
Termos em que se requer a V. Exas. que se dignem considerar o presente Recurso improcedente, por falta de fundamento legal, confirmando a decisão recorrida nos exatos termos em que a mesma foi proferida, com as demais consequências legais.»
7. Nesta Relação, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta teve Vista nos autos, e considerou carecer de legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada, uma vez que o Ministério Público se conformou com a decisão recorrida.
8. Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
De acordo com essas conclusões, as questões que se suscitam são a de saber se a decisão recorrida é nula, por constituir decisão surpresa, em violação dos arts. 20.º da CRP e 3.º, n.º 3, do CPC, ex vi art. 4.º do CPP, e se, contrariamente ao que foi decidido, a administradora da insolvência da “Sociedade de Renovação Urbana Campo Pequeno, S.A.”, em liquidação, tinha legitimidade para a apresentação da queixa-crime que deu origem aos presentes autos.
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2. Da decisão recorrida
É do seguinte teor a decisão recorrida (transcrição):
«Da falta de legitimidade do Ministério Público
Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação imputando ao arguido AA a prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público, cfr. fls. 47.
O crime de introdução em lugar vedado ao público tem natureza semi-pública, como decorre do estatuído nos arts. 191° e 198° do Código Penal.
Compulsados os autos verifica-se que foi apresentada queixa pela administradora de insolvência da sociedade promotora do espectáculo tauromáquico, cfr. fls.4 a 5 e 12 a 19. Vejamos.
A declaração de insolvência da sociedade é um dos casos de dissolução da sociedade - art. 141°, n.° 1, al. e) do Código das Sociedades Comerciais.
A sociedade dissolvida entra imediatamente em liquidação, mantendo a personalidade jurídica, continuando a ser-lhe aplicável, com as necessárias adaptações, as disposições que regem as sociedades não dissolvidas (n.°s 1 e 2 do art. 146° do CSC) e a sociedade só se extingue com o culminar da fase de liquidação e partilha, concretamente, com o registo do encerramento da liquidação (n.° 2 do art. 160°).
Como estabelece o artigo 1°, n.° 1 do Código de Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.
Ainda nos termos do n.° 1 do artigo 81° do CIRE a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.
Acrescentando o n.° 4 que o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência - sublinhado nosso.
Na verdade, como resulta também do artigo 55° do CIRE as funções e exercício do administrador da insolvência (em cumprimento de um dever legal de interesse público) prendem-se, essencialmente, com a liquidação da massa insolvente.
Portanto, após a declaração de insolvência da sociedade e até à sua extinção, existe um período na vida útil da sociedade em que coexistirão duas entidades que validamente a representam, cada uma no seu campo de intervenção específico, que não se sobrepõem.
Assim, a sociedade insolvente é representada no processo penal pelos representantes legais da mesma na data da declaração de insolvência, mantendo-se os mesmos em funções após essa declaração nos termos determinados no disposto no artigo 82°, n.° 1 do CIRE.
O Administrador da insolvência assume a representação do devedor para os efeitos de carácter patrimonial que interessam à insolvência (art. 55° do CIRE). Ou seja, as funções do Administrador da Insolvência direccionam-se para a liquidação da massa insolvente e os seus poderes de representação limitam-se aos efeitos de natureza patrimonial que interessam à insolvência.
Em suma, a representação da pessoa colectiva deve-se fazer por quem a representa e tratando-se de pessoa colectiva insolvente será a mesma representada pelos órgãos sociais com poderes de representação referidos no artigo 82°, n° 1 do CIRE.
Conforme referem Leal Henriques e Simas Santos “Se o ofendido for uma pessoa colectiva há que atender aos seus estatutos e à lei, para determinar se o direito de queixa foi exercido por quem estatutariamente ou legalmente tem poderes para o exercer e se a vontade do ente colectivo foi regularmente formada” (cfr. “Código Penal Anotado” 3ª Edição, 1º Volume, página 1178).
Estatui o art. 21º, nº 1, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 4º do CPP, que “As demais pessoas colectivas e as sociedades são representadas por quem a lei, os estatutos ou o pacto social designarem.”
Assim sendo e dado que a administradora de insolvência não tem legitimidade para apresentar queixa a mesma não se pode considerar validamente apresentada.
Não tendo sido apresentada queixa válida, não dispõe o Ministério Público de legitimidade para exercer a acção penal – arts. 48.º e 49.º do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, rejeito a acusação deduzida por falta de legitimidade do Ministério Público. Consequentemente, determino a extinção do procedimento criminal e o arquivamento dos autos.
Notifique.
Dê baixa.
Oportunamente arquive.»
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3. Da análise dos fundamentos do recurso
De acordo com as regras de precedência lógica importará, em primeiro lugar, apreciar das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão, ou seja, in casu, da invocada nulidade do despacho recorrido.
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A recorrente alega, em primeiro lugar, que a decisão recorrida é nula, por constituir decisão surpresa, em violação dos arts. 20.º da CRP e 3.º, n.º 3, do CPC, ex vi art. 4.º do CPP, uma vez que não podia ser proferida «sem que as partes se pronunciem sobre os factos e o direito, ou seja, o juiz, ante a possibilidade de tomar em consideração sobre factos e direito sobre os quais nunca houve qualquer discussão (o caso concreto estamos perante um nada absoluto), tem que alertar as partes sobre essa sua intenção, operando o exercício do contraditório e dando-lhe a possibilidade de invocar factos, argumentos e provas sobre eles».
Mas não tem razão.
Em matéria de invalidades vigoram no processo penal os princípio da legalidade e da tipicidade, segundo o qual a violação ou a inobservância das respectivas disposições só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, sendo o acto ilegal irregular quando tal cominação não existir – cf. art. 118.º, n.ºs 1 e 2, do CPP.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque[1], «As normas relativas a nulidades insanáveis ou sanáveis são norma excepcionais, dado o seu carácter taxativo e contrário ao princípio constitucional do julgamento no mais curto prazo (artigo 32.º, n.º 2, da CRP), e, portanto, não admitem aplicação analógica (assim também, CONDE CORREIA, 1999 a: 152, e COSTA PIMENTA, 2003: 158, concluindo ambos que fica deste modo vedado o recurso às normas do processo civil).»
De acordo com o disposto no mencionado art. 311.º do CPP [que, com a epígrafe “Saneamento do Processo”, dá início ao Título I (Dos Actos Preliminares) do Livro VII do CPP, relativo à fase do Julgamento, regendo para a paradigmática forma comum do processo], recebidos os autos no tribunal, depois de deduzida a acusação ou, caso tenha havido instrução, após o despacho de pronúncia, «o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que desde logo possa conhecer» (n.º 1).
«Manda a lei que o juiz examine o processo e se certifique da inexistência de motivo impeditivo do conhecimento do seu objecto, para o que deverá pronunciar-se sobre a ocorrência de qualquer nulidade ou outra questão prévia ou incidental que obste à apreciação do mérito da causa.
Deverá verificar, pois, da ocorrência de qualquer circunstância, seja de natureza substantiva, seja de natureza adjectiva, que impeça o conhecimento da questão de fundo. Podem impedir a apreciação do mérito a existência de invalidade processual, excepção dilatória ou peremptória, bem como a ocorrência de causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade criminal que ponha termo ao processo.»[2]
Inexiste norma legal que sujeite à prévia audição de quem quer que seja, designadamente do denunciante, a pronúncia do Tribunal sobre as «nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer» (prescrita no art. 311.º, n.º 1, do CPP e aplicável ao processo sumário ex vi art. 386.º do CPP), quando lhe é submetida uma acusação para efeitos de audiência de julgamento, seja em processo sumário, em conformidade com o preceituado 381.º e 382.º, n.º 2, ambos do CPP, seja até sob a forma de processo comum.
Mas ainda que a impetrada audição se impusesse – o que não sucede –, não vindo a sua omissão sancionada por qualquer concreta disposição legal nem elencada como nulidade, sanável ou insanável, a mesma seria susceptível de configurar apenas uma irregularidade (cf. arts. 119.º, 120.º e 118.º, todos do CPP).
De acordo com o disposto no art. 123.º, n.º 1, do CPP, qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo.
Tal (inexistente) irregularidade não foi suscitada perante o tribunal recorrido, só surgindo invocada (como nulidade) em sede de recurso, quando há muito se encontrava esgotado o prazo legal para a sua arguição, pelo que a mesma sempre se encontraria sanada.
De todo o modo, ainda se dirá que, mesmo no âmbito do processo civil, e tal como se explica no acórdão do STJ de 10-12-2019, proferido no Proc. n.º 1808/03.0TBLLE.E1.S1 - 6[3], «(…) só se justificará a audição prévia das partes quando o enquadramento legal convocado pelo julgador for absolutamente díspar daquele que as partes haviam preconizado ser aplicável de tal forma que não possam razoavelmente contar com a sua aplicação ao caso.
Neste sentido refere Lopes do Rego[17][4], que a audição excepcional e complementar das partes (…) só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado durante o processo (…), entendimento que este Tribunal vem afirmando repetidamente decidindo no sentido de que só há decisão surpresa se o juiz, de forma absolutamente inopinada e sem alicerce na matéria factual ou jurídica, enveredar por uma solução que os sujeitos processuais não tinham a obrigação de prever.[18][5]»
Ora o entendimento do Tribunal recorrido que agora vem questionado não pode ter-se como “inovador” ou destituído de qualquer suporte doutrinal ou jurisprudencial conhecido, com o qual o recorrente não pudesse contar, posto que, como adiante melhor veremos, de há muito tem constituído jurisprudência uniforme (senão mesmo unânime) dos nossos Tribunais superiores, facto que não podia deixar de ser do seu conhecimento, pelo que nunca poderia traduzir-se em decisão surpresa.
Improcede, assim, este segmento do recurso.
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A segunda questão suscitada reconduz-se a saber se a administradora da insolvência da “Sociedade de Renovação Urbana Campo Pequeno, S.A.”, em liquidação, tinha legitimidade para a apresentação da queixa-crime que deu origem aos presentes autos, tendo o Tribunal recorrido, ao concluir pela negativa, interpretado incorrectamente o preceituado nos arts. 81.º e ss. do CIRE[6] e 113.º e ss. e 191.º, todos do CP.
E, tal como já deixamos antever, também nesta matéria não assiste razão à recorrente.
Conforme resulta dos autos e não vem controvertido, a mencionada sociedade foi declarada insolvente, por sentença de 15-07-2015, transitada em julgado em 18-10-2016, sendo sua administradora judicial MM, que nos presentes autos exerceu o direito de queixa, «na qualidade de promotora do espectáculo tauromáquico» (cf. fls 4-5 e 12-19).
É também incontroverso, por resultar directamente do quadro legal aplicável, que, tal como se refere no despacho judicial posto em crise, com a declaração de insolvência a sociedade dissolvida entra em liquidação, mantendo, contudo, a personalidade jurídica e continuando a ser-lhe aplicáveis até à sua extinção (que ocorrerá com o registo do encerramento da liquidação) as normas atinentes às sociedades não dissolvidas (cf. arts. 146º, n.ºs 1 e 2, e 160º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais).
Após a declaração de insolvência, os órgãos sociais mantêm-se em funcionamento (cf. art. 82.º, n.º 1, do CIRE).
Contudo, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência (cf. art. 81.º, n.º 1, do CIRE).
É este que, a partir desse momento, assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, cabendo-lha a exclusiva legitimidade, durante a pendência do processo de insolvência, para propor e fazer seguir as acções a que aludem os n.ºs 3 e ss. do art. 82.º do CIRE (cf. art. 81.º, n.º 4, do CIRE).
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26-10-2017, proferido no Proc. n.º 1023/15.0T9VFR-B.P1[7], «As funções do administrador da insolvência direccionam-se para a liquidação da massa insolvente (para repartir o respectivo produto pelos credores) e os seus poderes de representação limitam-se aos efeitos de natureza patrimonial que interessam à insolvência. E compreende-se essa limitação, pois o processo de falência é “um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente” (artigo 1.º do CIRE).
Quer isto dizer que a actuação do administrador da falência é, toda ela, dirigida à preservação da massa insolvente, à sua liquidação e distribuição do produto pelos credores.
(…)
Por conseguinte, há um período transitório, que decorre entre a declaração de insolvência da sociedade e a sua extinção, em que coexistirão duas entidades que validamente a representam, cada uma no seu campo de intervenção específico, que não se sobrepõem: o administrador da insolvência que representa o devedor, exclusivamente, para efeitos de carácter patrimonial que interessam à insolvência e os titulares dos órgãos sociais da sociedade que a representam para os demais efeitos, nomeadamente no âmbito do processo penal em que esta seja arguida.»
Tal entendimento, de que são os titulares dos órgãos da sociedade insolvente, e não o administrador da insolvência, quem representa aquela pessoa colectiva no processo penal é, de resto, uniforme na jurisprudência dos nossos Tribunais superiores, e dele não se vislumbra motivo para divergir.
Vejam-se, nesse sentido, os acórdãos deste Tribunal da Relação de Lisboa de 13-09-2011, Proc. n.º 142/10.4IDSTB-A.L1-5, de 12-10-2011, Proc. n.º 674/08.4IDLSB-A.L1-3, e de 13-07-2017, Proc. n.º 2808/16.6T8BRR.L2 - 2; da Relação do Porto de 26-01-2011, Proc. n.º 559/07.1TALSD.P1, de 22-06-2011, Proc. n.º 17716/09.9TDPRT.P1, de 04-06-2014, Proc. n.º 16285/09.4IDPRT.P2, e de 26-10-2017, Proc. n.º 1023/15.0T9VFR-B.P1; da Relação de Coimbra de 28-09-2011, Proc. n.º 123/09.0IDSTR.C1, de 25-06-2014, Proc. n.º 2140/06.3TAAVR-A.C1, de 14-10-2015, Proc. n.º 47/13.7IDLRA.C1, e de 24-05-2017, Proc. n.º 108/15.8PCLRA.C1; da Relação de Guimarães de 09-09-2013, Proc. n.º 131/08.9TAFLG-A.G1; e da Relação de Évora de 15-10-2013, Proc. n.º 33/10.9IDEVR.E1[8].
Em suma, o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, mas exclusivamente para estes efeitos, competindo aos titulares dos órgãos sociais da sociedade insolvente (que, como vimos, se mantêm após a declaração de insolvência), a representação da sociedade para todos os efeitos que não sejam, exclusivamente, patrimoniais[9].
No caso vertente, o que está em causa é a representação da sociedade insolvente em sede de processo penal, concretamente a apresentação de uma queixa-crime, pela prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo art. 191.º do CP, que tem a natureza de crime contra a reserva da vida privada (Capítulo VII do Código Penal), pelo que, como é bom de ver, se trata de matéria que não poderá ser considerada de todo como matéria de «carácter patrimonial que interesse à insolvência».
Bem andou, assim, o Tribunal recorrido ao considerar que a administradora da insolvência não tinha legitimidade para apresentar a queixa que deu origem aos presentes autos e que, em consequência, carecia o MP de legitimidade para exercer a acção penal, não tendo com essa decisão incorrido na violação de qualquer norma legal ou preceito constitucional.
Perante tudo o que se deixa exposto, improcedem as pretensões da recorrente, sendo de manter integralmente a decisão recorrida.
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III. Decisão
Em face do exposto, acordam os Juízes da 9.ª Secção Criminal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto por “Massa Insolvente da Sociedade de Renovação Urbana do Campo Pequeno”, confirmando a decisão recorrida.
Fixa-se em 3 (três) UCs a taxa de justiça devida pelo decaimento no recurso.
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(Certifica-se, para os efeitos do disposto no art. 94.º, n.º 2, do CPP, que o presente acórdão foi elaborado e revisto pela relatora, a primeira signatária)
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Lisboa, 13.02.2020
Cristina Branco
Filipa Costa Lourenço
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[1] In Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 3.ª ed., Lisboa 2009, pág. 298.
[2] Cf. o comentário do Senhor Conselheiro Oliveira Mendes em anotação ao art. 311.º no Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 1029.
[3] In www.dgsi.pt.
[4] [17] Comentários ao Código de Processo Civil, volume I, 2.ª edição, Almedina, p. 33.
[5] [18] Cfr. entre outros Acórdãos de 03-05-2018, Incidente n.º 2377/12.6TBABF.E1.S2, acessível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2019/06/civel2018-1.pdf), de 12-07-2018, Revista n.º 177/15.0T8CPV-A.P1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ, de 11-07-2019, Incidente n.º 622/08.1TVPRT.P2.S1, disponível em https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2019/10/sum_acor_civel_julho.pdf).
[6] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo DL n.º 200/2004, de 18-08, e alterado pelo DL n.º 76-A/2006, de 29-03, pelo DL n.º 282/2007, de 07-08, pelo DL n.º 116/2008, de 04-07, pelo DL n.º 185/2009, de 12-08, pela Lei n.º 16/2012, de 20/04, pela Lei n.º 66-B/2012, de 31/12, pelo DL n.º 26/2015, de 06/02, pelo DL n.º 79/2017, de 30/06, rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 21/2017, de 25/08, alterado pela Lei n.º 114/2017, de 29/12, pela Lei n.º 8/2018, de 02/03, e pelo DL n.º 84/2019, de 28/06.
[7] In www.dgsi.pt.
[8] Todos in www.dgsi.pt.
[9] Assim como a pessoa singular declarada insolvente mantém o exercício dos direitos que lhe são conferidos em tudo o que não respeite aos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente.