Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
165/14.4T8PTS.L1-8
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: DISPOSIÇÃO TESTAMENTÁRIA
PATRIMÓNIO COMUM DO CASAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/06/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: -O regime do art. 1685º, nº3, do C.Civil aplica-se havendo disposição testamentária que, por exceder a meação do testador, ofenda o património comum do casal.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:        Acordam os Juizes, no Tribunal da Relação de Lisboa.


I-Relatório:


1.C... propôs, contra M... e marido, M..., acção com processo comum, distribuída à comarca da Madeira - Instância Local de Ponta do Sol, pedindo se declare a pertença de prédio urbano, sito na freguesia da Ribeira Brava, ao acervo da herança do falecido R..., marido da A., e esta como sua única herdeira, ordenando-se o cancelamento do respectivo registo, a favor dos RR.

Contestaram os RR., sustentando a validade do registo efectuado - concluindo pela improcedência da acção.
No despacho saneador, foi proferida sentença, na qual, considerando-se a acção parcialmente procedente, se declarou integrar o identificado prédio a herança em causa, reconhecendo-se à A. a qualidade de herdeira do falecido - absolvendo-se os RR. do restante pedido.

Inconformada, veio a A. interpor o presente recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões :
-O Tribunal a quo, na sentença que proferiu, decidiu nos seguintes termos: "(...) - Declara-se que o prédio urbano identificado nos autos (...) integra a herança aberta pelo óbito de R...; - Declara-se que a Autora C... é a única herdeira legitima e legitimária do falecido R..., e que os Réus M... e M... são legatários de tal herança, por via da deixa testamentária feita a favor destes últimos, que teve o identificado prédio urbano como objeto; - Condenam-se os Réus (...) a reconhecerem a Autora como única herdeira legitima e legitimária do falecido R... - Absolvem-se os Réus M... e M... de todo o demais peticionado pela Autora na petição inicial (nomeadamente são os Réus absolvidos do pedido de cancelamento do registo referente à inscrição Ap 1172 que vigora na descrição n.º 3153 - Ribeira Brava que entretanto foi efetuado na Conservatória do Registo Predial da Ribeira Brava (...)".
-Para tanto ponderou no seguinte: "E, no caso concreto, os beneficiários de tal deixa testamentária (ora Réus) gozam até do direito de exigir a coisa legada em espécie por se encontrarem verificados os pressupostos legais contidos na alinea b), do nº3 do artigo 1685º do Código Civil. (...). Por isso conclui-se que, no caso concreto, a deixa testamentária feita pelo cônjuge falecido a favor dos Réus é válida independentemente de ofender ou não a legitima da Autora, não havendo necessidade de apurar, antes do registo da coisa legada, o valor total da herança e da respetiva legitima. (...). E isto desde logo porque tal deixa testamentária foi autorizada pela Autora no próprio testamento. No caso concreto, com especial enfoque nesta parte da fundamentação, a Autora peticionava o cancelamento do registo do mencionado prédio urbano inscrito a favor dos Réus. Mas este pedido não pode proceder. Exatamente porque a deixa testamentária feita a favor dos Réus é válida (...)".

-Porém, assim não poderá ser na medida em que a recorrente foi casada no regime da comunhão geral de bens com R..., sendo que, neste regime de bens, o património comum do casal é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges que não sejam exceptuados por lei.

-Integrava o património comum do casal R... e C... o prédio urbano melhor identificado no art. 4º da petição inicial, correspondendo este aliás à casa de morada da família da recorrente.
-Os bens comuns do casal integram uma propriedade colectiva onde, conforme diz o art. 1730º  do C.Civil, cada um dos cônjuges tem uma posição jurídica em face do património comum, no qual participam por metade no activo e no passivo da comunhão, tendo direito à meação.
- Ainda assim, é certo que cada um dos cônjuges tem liberdade de dispor, para depois da morte, quer dos bens próprios, quer da sua meação nos bens comuns, isto desde que não ofenda os direitos dos seus herdeiros legitimários.
-Daí que, em princípio, as disposições mortis causa não podem, em princípio, recair sobre bens comuns determinados, porque nenhum dos cônjuges saberá, à partida, quais os bens que concretamente vão compor a sua meação.
-O regime especial do legado de coisa certa e determinada do património comum do casal rege-se pelo disposto no art. 1685º do C.Civil.
-Esta norma dispõe que, em principio, tendo algum dos cônjuges disposto de coisa certa e determinada do património comum tal disposição, em regra, não vale em espécie tendo o respetivo beneficiário apenas o direito de exigir o valor da coisa em dinheiro, excepto se se verificar alguma das três situações excepcionais do nº3 do referido art. 1685º do C.Civil, casos em que o beneficiário poderá então exigir a coisa legada em espécie.
-O falecido R... legou, por testamento, aos recorridos o identificado prédio urbano como também é certo que a recorrente, nesse mesmo testamento, declarou consentir no mesmo.
-Todavia, conferindo a lei - como confere - a cada um dos cônjuges o direito de dispor para depois da morte dos seus bens próprios e da sua meação no património comum e existindo autorização do cônjuge no testamento que valida aquela respectiva disposição em espécie nos termos do disposto no nº3 do art. 1685º do C.Civil, cumpre então questionar se tal significa o afastamento da regra de que cada cônjuge só pode dispor do que é seu.
-A resposta é negativa.
-Nesse sentido, vide o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 18/5/2010, no Proc. nº 551103.5TBTND.Cl, disponível em http://www.dgsi.pt, que diz que a lei confere a cada um dos cônjuges o direito de dispor para depois da morte dos seus próprios bens e da sua meação no património comum e a autorização concedida pelo outro cônjuge no testamento valida a disposição em espécie (art 1685º n° 3, al. b), CC), mas tal não significa uma excepcão ao princípio geral de que cada cônjuge só pode dispor do que é seu. Concretizando, mais adiante, que por conseguinte, a autorização concedida pelo outro cônjuge valida a disposição em espécie, na medida em que o nº3 b) é uma exceção ao nº2, mas tal não significa também uma exceção ao princípio geral do nº1 de que cada cônjuge só pode dispor do que é seu, ou que esteja legitimado a fazer disposições por conta da meação do outro. Pelo que comprovando-se que a disposição feita (...) extravasou a sua meação, incidindo sobre bens que caberiam na meação da esposa (...), ou seja, dispôs de bens da meação desta (...), estamos perante disposição testamentária nula (art.280 do CC), por violação da lei, do art.1730 nº2 CC, a contrario.
-É exatamente nesta parte que o Tribunal a quo decidiu mal, na medida em que, sendo a recorrente e o seu falecido marido casados no regime da comunhão geral, então a primeira, relativamente ao segundo, é, para além de herdeira legitimária, meeira e, por isso, proprietária exclusiva da sua meação dos bens comuns.
-O mencionado prédio integra o património comum dos cônjuges, pelo que a cada um deles cabe o direito à respetiva meação, isto porque, no regime da comunhão geral de bens, a participação dos cônjuges no património comum é segundo a regra da metade.
-Se é verdade que é possível, nos termos do art. 1685º do C.Civil, cada um dos cônjuges dispor para depois da morte dos seus bens próprios e da sua meação no património comum, o certo é que cada cônjuge só pode dispor do que é seu.
-A autorização então concedida pela recorrente poderá até permitir a disposição em espécie feita pelo seu falecido marido mas não determina que esta seja legítima ou válida na medida em que a disposição feita por R... a favor dos recorrentes ofende o património comum que é seu (da recorrente), consubstanciando uma disposição por conta da sua meação.
-Tal disposição testamentária feita por R... é assim nula nos termos do art. 280º do C.Civil porque viola o art. 1730º nº2 CC, a contrario.
-Não tem aqui aplicação o disposto no art. 2309º do C.Civil.
-A recorrente, na relação de bens que apresentou por morte de R..., relaciona o imóvel ora em causa na proporção de metade, constando que só uma quarta parte do mesmo foi objecto de legado por testamento (doc. 6 aí junto).
-O Tribunal a quo, ao ter decidido de imediato conhecer o mérito da causa nos termos e para os efeitos do disposto no art. 595º, nº1 c), do C.P.Civil, andou também mal porquanto, designadamente para estes efeitos, não ponderou a demais matéria alegada nomeadamente o referenciado doc. 6, nem se permitiu ouvir demais prova testemunhal ou depoimento de parte que viessem a ser requeridos.
-O Tribunal a quo, ao proferir a sentença que determina a manutenção da referida inscrição predial a favor dos recorridos, violou a lei nos termos do disposto no art. 1730º nº2 CC, a contrario.
-Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a referida sentença na parte em que decide absolver os recorridos de todo o demais peticionado pela recorrente.

Em contra-alegações, pronunciaram-se os apelados pela confirmação do julgado.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2.Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual :
1)M... foi casada com R..., em primeiras e únicas núpcias de ambos, no regime da comunhão geral de bens.
2)R... faleceu em 31/12/2013, sem descendentes, e no estado de casado com M....
3)Da escritura de habilitação de herdeiros outorgada em 28/1/2014, celebrada no Cartório Notarial da Ribeira Brava, consta que R... “faleceu, com testamento outorgado em 03.09.1998, no qual deixou como legatários a sua irmã e cunhado, M... e Manuel de Faria, casados sob o regime da camunhão geral (...), tendo ainda deixado como única herdeira por sucessão legítima o seu cônjuge sobrevivo, M..., e que segundo a lei não existem outras pessoas que com eles possam concorrer ou preferir à aludida sucessão”.
4)Por testamento outorgado em 3/9/98, R... legou à sua irmã e cunhado, M... e M..., um prédio urbano situado no Moreno, freguesia e concelho da Ribeira Brava, com área total de 156 m², sendo a área coberta de 100 m², a confinar pelo norte com vereda e levada, a sul com J..., a leste com Estrada Municipal e a oeste com vereda, inscrito na matriz predial urbana sob o art. 3846 (teve origem nos artigos matriciais 3646 e 3845) do concelho e freguesia da Ribeira Brava.
5)Tal prédio urbano encontra-se actualmente inscrito a favor dos RR. na Conservatória do Registo Predial da Ribeira Brava sob o nº 3153/19971215, pela Ap. 1172, de 5/8/2014, constando como causa da inscrição "legado".
6)De tal testamento consta que "compareceu também neste acto M... (...) que declarou consentir no legado feito por seu marido".  
3.Nos termos dos arts. 635º, nº4, e 639º, nº1, do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente. 
A questão a decidir centra-se, pois, na apreciação da validade do registo do imóvel, efectuado a favor dos RR., ora apelados.
Dispõe o art. 1685º, nº1, do C.Civil que cada um dos cônjuges tem a faculdade de dispor, para depois da morte, dos bens próprios e da sua meação nos bens comuns, sem prejuízo das restrições impostas por lei em favor dos herdeiros  legitimários.
E o nº2 desse preceito que a disposição que tenha por objecto coisa certa e determinada do património comum apenas dá ao contemplado o direito de exigir o respectivo valor em dinheiro.
Permitindo, todavia, o seu nº3 a exigência da coisa em espécie, nomeadamente (al. b), se a disposição tiver sido previamente autorizada pelo outro cônjuge por forma autêntica ou no próprio testamento. 
Com efeito, “tendo a conversão sistemática da disposição, consagrada na lei, como fundamento principal a ideia de não prejudicar os direitos ou simples expectativas do outro cônjuge sobre o património comum, é perfeitamente compreensível que a lei reconheça a validade da disposição em espécie, no caso de o contitular dos bens comuns ter aprovado a liberalidade, tal como ela foi concebida pelo seu autor“ (P. Lima - A. Varela, Código Civil Anotado, vol. IV, pág. 314).
Tem, assim, de entender-se que, ao invés do que sustenta a A., ora apelante, tal regime se aplica havendo disposição testamentária que, por exceder a meação do testador, ofenda o património comum do casal.
No caso concreto, tendo o falecido R... legado aos apelados um prédio urbano que constituía bem comum do casal, consta do testamento que, no próprio acto, a apelante declarou consentir no legado feito por seu marido.
Nesses termos, deve considerar-se integrada a situação referida no nº3, al. b), do citado art. 1685º - e, como tal, plenamente eficaz a disposição do testador, relativamente ao prédio em causa.
Como decidido, no tocante ao cancelamento do respectivo registo a favor dos apelados, haveria, pois, a acção necessariamente de improceder.

4.Pelo acima exposto, se acorda em negar provimento ao recurso, confirmando-se, em consequência, a decisão recorrida.
Custas pela apelante.



Lisboa, 06.10.2016



Ferreira de Almeida - relator
Catarina Manso - 1ª adjunta
Alexandrina Branquinho - 2ª adjunta
Decisão Texto Integral: