Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
419/15.2TNLSB.L2-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: TRANSPORTE MARÍTIMO
CONTRATO DE SEGURO MARÍTIMO
NULIDADE DO SEGURO
RISCOS PUTATIVOS
CLÁUSULA DE BOAS OU MÁS NOTÍCIAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/11/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.Dando o juiz como provada uma versão afirmativa dos factos, desnecessário se tornava repetir que a oposta não ficou provada, pois considerar-se não provado que um contrato foi celebrado em 16 de dezembro de 2005, mais não é do que uma consequência lógica de se considerar provado que esse mesmo contrato foi celebrado em 21 de dezembro do mesmo ano.

2.Contrato de seguro marítimo é aquele pelo qual o segurador se compromete, mediante o pagamento de um prémio, a indemnizar o segurado do prejuízo sofrido por bens determinados expostos aos perigos de uma expedição marítima, pelo facto da superveniência de certos riscos, ou seja, trata-se de uma operação pela qual uma parte, o segurador, promete a outra parte, o segurado, fornecer-lhe, a ela ou a terceiro, mediante uma remuneração denominada prémio, uma prestação no caso de verificação, quanto a certas coisas convencionadas, de riscos relativamente aos quais as operações de navegação ou de transporte marítimo sejam a causa, a ocasião ou o teatro.

3.A nulidade do seguro cujo risco não existia à data da celebração do contrato, por ter cessado ou por já se ter verificado, encontra uma exceção importada do seguro marítimo, em que frequentemente o seguro se impõe em termos comerciais sem que, face às distâncias e às dificuldades de comunicação, os interessados tenham conhecimento do estado das coisas a garantir: os riscos putativos.

4.–Nesta espécie de contratos de seguro, o risco já não existe realmente, mas existe para os contraentes e é por isso que se que a «alea» é putativa, não repugnando à natureza do contrato que a incerteza do evento só exista na mente dos outorgantes e que se tenha assim, por verificada a existência desse elemento essencial do contrato.

5.– Os riscos putativos, admitidos pela generalidade das legislações, encontra hoje a sua justificação fortemente mitigada pela facilidade de comunicações, sendo de limitar a sua aplicação na medida em que ou já não existe o risco, e o segurado fica inutilmente onerado com o prémio, ou o sinistro já se verificou, e o segurador tem de indemnizar sem o benefício da lei das probabilidades; e o seguro fica sendo assim uma espécie de jogo de azar.

6.Com os riscos putativos não devem confundir-se os seguros com cláusula de boas ou más notícias (lost or not lost), mediante a qual o contrato cobre os prejuízos que ocorram antes da conclusão do contrato, quando aqueles não fossem conhecidos do segurado.

7.Aquilo a que a lei chama «conhecimento» não é senão o resultado de um juízo probabilístico que os sujeitos poderão ou não formular, com base na informação ao seu dispor.

8.Em rigor, deve entender-se que o contrato será nulo quando o segurador, o tomador ou o segurado tenham avaliado o risco como inexistente, aquando da sua celebração, por se encontrarem na posse de informação que, se partilhada, levaria os demais sujeitos a chegar à mesma conclusão, justificando-se esta última precisão porque, apesar de tudo, a lei coloca esta questão no plano do conhecimento, afastando, por esse motivo, a relevância de juízos de risco não suportados em moldes que pudéssemos de algum modo qualificar como objetivos, com as limitações que este adjetivo comporta.

9.O seguro de boas ou más notícias tem em comum com o risco putativo a possível inexistência ou incerteza do risco, mas apenas neste último existe uma representação mental dos contratantes sobre a possibilidade de o objeto seguro já não existir ou já ter chegado ao seu destino, aceitando essa possibilidade e, verificando-se um sinistro, criando a ficção de que ocorreu na vigência da apólice.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


IRELATÓRIO[1]:


A [.... - Investimentos Imobiliários, S.A.[2]], intentou a presente ação declarativa de condenação contra B [Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A.[3]], alegando, em suma, que no dia 16 de dezembro de 2005 celebrou com a ré um contrato de seguro de transporte de mercadorias destinado a cobrir o risco de perda de um carregamento de madeira que, naquela data, seria expedido por via marítima, tendo pago o respetivo prémio.
Nesse mesmo dia, a ré emitiu o respetivo certificado de seguro, que entregou à autora, aceitando tal data como sendo a do início da vigência do contrato de seguro.
O transporte marítimo, no navio First Carrier[4], deveria ser realizado entre o porto de Pemba, em Moçambique. e o porto de Leixões, em Portugal, com transbordo no porto de Dar es Salaam, na Tanzânia.
A mercadoria transportada foi comprada pela autora à sociedade Macaloe, Lda., e destinava-se a ser vendida à sociedade Castro & Filhos, S.A..
Sucede que, no dia 21.12.2005, o navio afundou-se a cerca de 3 milhas náuticas do porto de Dar es Salaam e com ele os onze contentores que acondicionavam a mercadoria objeto do contrato de seguro em causa, o que impossibilitou a sua utilização para o fim a que se destinava.
Em consequência da perda da mercadoria, a autora sofreu um prejuízo superior ao valor garantido pela apólice, que é de € 132.000,00.
Só no dia 30 de dezembro de 2005 é que a autora teve conhecimento do naufrágio do navio, tendo, nessa mesma data, comunicado à ré a ocorrência do sinistro e solicitado que fosse informada das diligências necessárias ao acionamento dos mecanismos conducentes à compensação dos prejuízos por si sofridos, nos termos do contrato de seguro entre ambas outorgado.
A ré não indemnizou a autora pelos prejuízos sofridos em consequência da perda da mercadoria segurada.
A autora conclui pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 132.000,00 (cento e trinta e dois mil euros), acrescida de juros legais para operações comerciais, contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.

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A ré contestou, alegando, também em síntese, que a autora se apresentou, perante si ou um seu parceiro comercial, no dia 21 de dezembro de 2005, data prevista para a chegada do navio que alegadamente transportava a carga da autora, ao porto de Dar-es-Salaam, onde se procederia ao transbordo da mesma para outro navio com destino ao porto de Leixões, a fim de celebrar o contrato de seguro, numa altura em que já tinha conhecimento da ocorrência do sinistro.
Por conseguinte, é nulo o contrato de seguro entre ambas celebrado.
A ré conclui pedindo que a ação seja julgada improcedente, por não provada, com a sua consequente absolvição do pedido.

***

Na sequência da regular tramitação dos autos realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, com a consequente absolvição da ré do pedido.

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Inconformada, a autora interpôs o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
«I-Recorre o Autor da sentença proferida pelo tribunal Marítimo de Lisboa proferido nos presentes autos discordando da douta sentença tanto no domínio do Direito, como no domínio de facto, pretendendo-se designadamente a reapreciação da prova gravada em relação às razões de discordância com a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo. Na verdade, a A./apelante pretende também impugnar a decisão relativa a parte da matéria de facto, uma vez que considera que a matéria de facto foi incorretamente julgada pelo Tribunal a quo.
II-A sentença não faz uma correta interpretação dos factos, nem uma adequada aplicação do direito.
III- Dos factos não provados o ponto 1, 2,3,4,5,6,7,8 deveriam ter sido dados como provados conforme documentos e testemunhos de Amadeu ..... e Paulo ..... .
IV- No dia 16 de Dezembro de 2005, Autora e Ré celebraram um contrato de seguro de transporte de mercadorias, titulado pela Apólice nº 000......4, com início nessa mesma data, sendo o objecto seguro a mercadoria conforme factura nº 2005/000019 e o capital seguro de € 132.000,00, correspondente ao valor da factura - € 103.218,45 - acrescido de 27% de lucros esperados. Ou seja desde 16 de Dezembro que a aqui Autora tinha seguro de mercadoria e é neste sentido que os documentos juntos aos autos nos revelam tais como certificado, proposta, recibo assim como as testemunhas intervenientes nos documentos - facto provado por testemunha António ..... e Paulo ..... .
V- A referida proposta de seguro foi subscrita pela Autora em 16 de Dezembro de 2005 e, nessa mesma ocasião, também foi subscrita pelo mediador da Ré, o dito Paulo ....., e ainda nessa ocasião, a Autora emitiu e entregou o cheque nº 4........1 sacado sobre o Banco Millennium bcp, no valor de € 1.145,00, datado de 16/12/2005, para pagamento do respectivo prémio que foi recebida e aceite pela Ré. O certificado de seguro cuja cópia foi junta a fls. 21 foi emitido pela Ré em 16 de Dezembro de 2005. Sendo que na nossa modesta opinião e analisando todos os documentos e os depoimento de Amadeu ..... e Paulo ..... poder-se-à afirmar perentoriamente que a contratação do seguro de transporte ocorreu no dia 16 de Dezembro de 2005.
VI- Se a mercadoria se destinava a ser vendida e o navio afundou com a mercadoria, facto este provado, obviamente que a recorrente não procedeu à entrega da mercadoria não pode cumprir o contrato de compra e venda e ficou com um prejuízo de 132.000,00€ - Este facto deveria ter sido dado como provado atento à prova documental e das testemunhas Amadeu ..... e de Carlos S..
VII-Só no dia 30 de Dezembro de 2005 a Autora teve conhecimento que o referido navio "First Carrier" se tinha afundado, a cerca de 3 milhas náuticas do porte de Dar es Salaam, no dia 21 de Dezembro de 2005, cerca das 05:30 horas. Este facto deveria ter sido dado como provado com base no depoimento de Amadeu ..... sendo que é irreal e inimaginável pensar que em 21 de Dezembro de 2005 um navio afunda-se em Africa e ato continuo informam um comprador detentor de alguns contentores que seguiam no navio.
VIII-Efetivamente nem hoje, mesmo com os avanços da tecnologia, aconteceria tal facto e o tribunal a quo não teve qualquer documento para sustentar que a recorrente teve efectivo conhecimento sendo que a única prova alegada é o testemunho de um funcionário da Re que não deveria ser credível.
IX-O conjunto dos factos provados e dos demais aspetos perscrutáveis no teor dos depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento, eram suficientes para permitir que o Tribunal a quo pudesse ter concluído que aos factos na nossa modesta opinião e atenta a toda a prova produzida pela Ré deveriam ter sido dado como não provado o seguintes, factos 15º, 26º, 28º, 29º, 30º, 31º, 32º, 33º, 36º, 38º, 39º, 40º, 42º, 43º, 44º, 45º, 49º, 50º, 51º, 52º, 53º com base nos documentos e testemunhos de Paulo ..... e Amadeu ..... .
X-A mercadoria que infelizmente afundou no navio não foi vendida, foi emitida uma factura com pagamento a 30 dias.
XI-Não existiu qualquer transmissão, recepção ou entrega por isso este facto que foi dado como provado não o deveria ter sido mas ao invés deveria constar Esta mercadoria iria ser vendida á empresa Castro e Filhos Lda SA conforme documentos factura junto aos autos.
XII-De facto o recorrente e o mediador já tinham um certificado desde o dia 16 de Dezembro e nessa mesma data o recorrente entregou o cheque para pagamento do premio de seguro e se o mediador só procedeu á entrega a 21 de Dezembro NUNCA PODERA O SEGURADO SER RESPONSAVEL sendo uma questão de relações internas da recorrida.
XIII-O recorrente, representado pelo seu administrador Amadeu Oliveira efetivamente celebrou um contrato de seguro com a Ré e este deve cumprido devendo a Ré pagar os prejuízos efetivamente sofridos pelo seu segurado.
XIV-Estes factos dados como provados estão erroneamente relatados uma vez que a recorrente é completamente alheia a tais factos e relatos.
De referir que destes factos provados se extrai a conclusão obvia de que a recorrente nada, absolutamente nada, teve a ver com a entrega "tardia" dos documentos que assinou em 16 de Dezembro de 2005.
XV-Refira-se apenas que relativamente á declaração a declaração cuja cópia foi junta a fls. 94 impugnada na sua letra, assinatura, carimbo e timbre pela recorrente, a mesma não exibe qualquer indicação sequer a quem é dirigida e é uma copia.
XVI-O facto provado 54º que refere:
"54. Em 02.01.2006 a Ré remeteu à Autora a comunicação cuja cópia foi junta a fls. 95 e que aqui se dá por reproduzida, nos termos da qual se recusava a aceitação do risco proposto, com efeitos a contar da data do seu início."
Ora neste documento junto aos autos a Ré não aceita o risco proposto porque transcreve-se "... de acordo com as regras de subscrição atualmente em vigor não nos é possível aceitar o risco em causa pelo que a presente proposta devera ser considerada sem efeito..."
Em primeiro lugar devemos desde logo referir que esta carta consubstancia uma desonestidade clara e evidente e devera ser efetivamente analisada.
XVII-A aqui Ré já tinha aceite o risco proposto, já tinha emitido um certificado, uma apólice e rececionado o pagamento.
Mas como a embarcação afundou e tal facto foi-lhes comunicado a 30 de Dezembro acto continuo declinam o risco que já tinha sido aceite.
Mas como o recorrente não aceitou esta recusa a aqui Ré sem qualquer fundamento ou motivo tenta "fugir" as suas responsabilidades com uma questão do âmbito interno pois efetivamente nem o recorrente nem os seus representantes tiveram qualquer intervenção com a entrada a dia 16 ou 21 da apólice de seguro.
XVIII-Qualquer contrato de seguro marítimo de transporte de mercadorias, realizado entre o segurado e segurador, tem como objetivo proteger o primeiro, no caso de ocorrência de perdas, danos ou roubos durante o trânsito.
XIX-Tendo a vendedora segurado em nome próprio o transporte das mercadorias até à entrega nos armazéns da compradora, é de presumir que aceitou correr ela própria o risco do seu perecimento até esse momento.
XX-A aqui recorrente e recorrido tinham para todos efeitos legais contratado um seguro de transporte de mercadorias e ao contrario do referido na sentença ora em crise:
- Não existia qualquer conhecimento de afundamento da embarcação não tendo a recorrente conhecimento do sinistro;
- O certificado, o contrato de seguro e o cheque de pagamento tem data de 16 de Dezembro de 2005;
- Não existia qualquer conluio entre autora e o agente.
XXI-Desta forma o contrato entre recorrente e recorrido era perfeitamente valido e eficaz devendo a recorrida efetuar o pagamento.
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser declarado procedente e em consequência ser a decisão proferida pelo tribunal da primeira instância ser revogada com as demais consequências legais.»

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A ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da sentença recorrida.

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No dia 10 de novembro de 2020 foi proferido o acórdão que se encontra a fls. 366-381, com a Ref.ª 16223962, de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«No caso concreto, uma vez que a decisão sobre a matéria de facto não se encontra devidamente fundamentada, esta Relação vai, mesmo oficiosamente, pelas razões que adiante se explanarão, determinar o reenvio do processo ao tribunal de 1.ª instância, para devida fundamentação, nos termos do art. 662.º, n.º 2, al. d), do C.P.C.»

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Devolvidos os autos à 1.ª instância, o senhor juiz a quo proferiu nova sentença, na qual, além de motivar a decisão sobre a matéria de facto nos termos que lhe haviam sido ordenados, fez um exercício de correção e aperfeiçoamento quanto à enunciação dos factos provados, em conformidade com os reparos que à mesma haviam sido feitos naquele acórdão.

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Notificada da nova sentença, a apelante veio apresentar novo recurso, produzindo novas alegações e conclusões, com as quais, injustificadamente, extravasa o âmbito do recurso primitivamente interposto.
Consigna-se, por isso, que neste acórdão apenas será considerado aquilo que não extravase o âmbito das alegações e das conclusões primitivamente produzidas.

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IIÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil[5]) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.é., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3, do CPC) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, ex vi do art. 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir se à data do sinistrado vigorava entre as partes, válida e eficazmente, o contrato de seguro em causa nestes autos e, consequentemente, se a ré deve ser condenada a pagar à autora a quantia por esta peticionada.

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IIIFUNDAMENTOS:

3.1-Fundamentação de facto:

3.1.1-O tribunal de 1.ª instância considerou provado que:
«1.–A Autora é uma sociedade comercial, matriculada na 3ª Secção da Conservatória do Registo Comercial do Porto sob o número 5.......0, anteriormente denominada "..... - Investimentos Imobiliários, SA".
2.–Em Dezembro de 2005, a Autora, através do seu representante legal, solicitou ao mediador de seguros da Ré, de seu nome Paulo ....., a obtenção de um seguro destinado a cobrir o risco de perda de um carregamento de madeira que em 16 de Dezembro desse mesmo ano foi expedido por via marítima.
3.–Na sequência deste pedido, o mencionado mediador Paulo ..... contactou a Ré através dos responsáveis da Delegação desta em Vila Nova de Famalicão, os quais têm poderes conferidos pela Ré para aceitar propostas e contratos, bem como para emitir os respectivos Certificados de Seguro.
4.–Durante a tarde do dia 21.12.2005, o Sr. Amadeu ..... dirigiu-se às instalações da GNC – Sociedade de Mediação de Seguros, onde falou com o Sr. Paulo ....., então mediador da Ré.
5.–Na tarde de 21.12.2005, a Autora propôs-se celebrar o contrato de seguro aqui em causa, preenchendo, e assinando, a proposta respectiva de seguro.
6.–A Autora solicitou que o contrato fosse celebrado com efeitos retroactivos a 16.12.2005, data que consta na proposta de seguro como a data do início do mesmo, tendo o mediador aposto, igualmente, tal data na última página.
7.–A Autora, através do seu então administrador, justificou a necessidade de contratação do seguro reportado a 16.12.2005 alegando que, só assim, seria validado o contrato com o seu cliente, comprador da mercadoria.
8.–Aquando do preenchimento e assinatura da proposta de seguro, a Autora fê-la acompanhar da declaração “Exmos. Senhores: Vimos pela presente, declarar que até à presente data desconhecemos que haja qualquer incidente com a mercadoria assegurada pela vossa companhia. V. N. Famalicão, 21 de Dezembro de 2005”.
9.– No fim da tarde do dia 21.12.2005, na sequência da intenção da Autora de celebrar o seguro nessa ocasião e de ter preenchido a proposta de seguro nos termos acima expostos, Paulo ....., mediador, apresentou-se na Delegação de Famalicão da Ré.
10.–Tal delegação tem como horário de funcionamento entre as 08h45 e as 12h45 e as 13h45 e as 16h45.
11.–Ainda que os escritórios encerrem ao público às 16h45, a caixa encerra trinta minutos antes, para permitir o fecho das contas do dia.
12.–Quando o Paulo ..... chegou às instalações da Delegação da Ré em Famalicão, já passava das 16h45, pelo que as mesmas se encontravam encerradas.
13.–Alguns funcionários ainda se encontravam no edifício, nomeadamente o gerente da delegação e a técnica comercial, os quais providenciaram pelo seu atendimento.
14.–Nesta ocasião, o mediador da Ré solicitou, em nome da Autora, que fosse imediatamente celebrado o contrato de seguro de transporte sobre a mercadoria indicada pela Autora, requerendo que tal contrato tivesse como data de início de validade, não aquele dia em que se encontrava a ser celebrado (21.12.2005), mas sim o dia 16.12.2005.
15.–Para justificar o pedido de efeitos retroactivos ao dia 16.12.2005, o mediador da Autora invocou motivos de índole comercial, acabando por convencer os funcionários da Delegação da Ré.
16.–A Ré aceitou a declaração referida no ponto 8. como correspondendo à verdade.
17.–A Ré emitiu o certificado de seguro de transportes com o nº 5....5, no qual apôs que: "Certificamos que o SEGURADO acima indicado segura na COMPANHIA DE SEGUROS TRANQUILIDADE segundo as Condições Gerais e Particulares da Apólice, as mercadorias abaixo mencionadas. O presente certificado substitui para todos os efeitos a apólice original do seguro (…)".
18.–Os funcionários da Ré entregaram o certificado de seguro ao mediador da Autora.
19.–Para o pagamento do prémio relativo a este contrato de seguro, a Autora entregou um cheque datado de 16.12.2005.
20.–O cheque foi entregue à Ré no fim do dia de 21.12.2005, quando a caixa já se encontrava fechada aquando de tal entrega pelo Paulo ..... .
21.–Por este motivo, o registo do mesmo só pôde ser formalizado no dia 22.12.2005, dia seguinte àquele em que foi entregue à Ré.
22.–O cheque foi descontado pela Ré.
23.–O contrato de seguro tinha por objecto seguro a mercadoria constante da factura nº 2005/000019.
24.–Por este contrato foi coberto o risco de perda total, material ou absoluta, dos objectos seguros quando ocorrida conjuntamente com a perda total, pela fortuna do mar, do navio ou embarcação em que são transportados.
25.–O meio de transporte era o navio "First Carrier" e a viagem seria do porto de Pemba-Moçambique para o porto de Leixões-Portugal, com transbordo em Dar es Salaam-Tanzânia.
26.–A factura cuja cópia foi junta a fls. 23 foi emitida pela Autora em 16.12.2005, com vencimento em 15.01.2006, no valor total de € 103.218,45, em nome da empresa "Castro & Filhos, S.A.", com instalações na Rua ... ... ..., nº ...., freguesia e concelho de Guimarães.
27.–A mercadoria segura consistia em madeira Chanfuta serrada 60x12 e 78x18, madeira Chanfuta serrada 100x18, madeira Jambirre serrada 60x12, 60x23 e 78x18, madeira Jambirre serrada 100x18, madeira Muanga serrada 60x12 e 78x18, madeira Umbila serrada 60x12, 60x23 e 78x18 e madeira Umbila serrada 100x18.
28.–Esta mercadoria foi comprada pela Autora à empresa "Macaloe, Lda.", com sede no Bairro da Muxara, da cidade de Pemba, Moçambique, por contrato de compra e venda celebrado, por documento escrito, em 30.09.2005.
29.–Esta mesma mercadoria foi vendida pela Autora à empresa "Castro & Filhos, S.A.".
30.–A mercadoria foi acondicionada em 11 contentores voy 05246, a saber: CLHU284001/1, CLHU288732/3, CLHU273580/3, CLOU248939/7,
HMKU295156/4, CRXU201732/0, CLHU200138/0, CLHU302331/5,
CLHU202122/0, CLHU215841/9 e CLHU230070/8, os quais foram carregados e embarcados no navio "First Carrier".
31.–No dia 21 de Dezembro de 2005, cerca das 05:30 horas, o Navio "First Carrier" afundou-se a cerca de 3 milhas náuticas do porto de Dar es Salaam.
32.–Com o afundamento do navio afundaram-se 11 (onze) contentores em que ia acondicionada a mercadoria objecto do contrato de seguro em causa.
33.–Por força do afundamento, a mercadoria não pode mais ser recuperada e é absolutamente insusceptível de ser utilizada para o fim a que se destina.
34.–A Ré recebeu da Autora, em 30.12.2005, uma comunicação com o seguinte teor: “Por telefonema de hoje da Ibero Linhas, Transportes, Lda, agentes em Portugal da Western European Container Lines, fomos informados do afundamento do navio First Carrier, a 3 milhas náuticas do porto de Dar es Salaam. Esse navio transportava, acondicionada em 11 contentores de 20', a mercadoria a que se refere a apólice de seguro n.º 1306014, de 16 do corrente. Agradecemos o favor de nos informarem, no mais curto espaço de tempo possível, das diligências necessárias para serem accionados os mecanismos que conduzam à compensação dos prejuízos sofridos por esta empresa, ao abrigo da supra-mencionada apólice de seguro”.
35.–A Autora não facultou qualquer outra informação à Ré sobre as circunstâncias do sinistro, nomeadamente data, hora e outros elementos relevantes necessários para que aquela se pudesse inteirar do que sucedera.
36.–A Ré não procedeu a qualquer pagamento à Autora.
37.–A Autora intentou no dia 29 de Junho de 2006, no então Tribunal Judicial da Comarca de V.N. de Famalicão, uma acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário, pedindo a condenação da aqui Ré a pagar lhe os prejuízos pela mesma sofridos, como consequência directa e necessária do afundamento do navio "First Carrier", no valor de € 132.000.
38.–Na actividade de transporte marítimo, qualquer sinistro ocorrido junto a um porto com as características do porto de Dar-es-Salaam é imediatamente reportado ao armador, fretador, agentes, seguradores e demais interessados, nomeadamente através do Lloyds e outras entidades congéneres.
39.–O conhecimento de ocorrências desta natureza chega ao conhecimento dos interessados poucas horas após a sua verificação, sendo difundido entre eles.
40.–Na data da celebração do contrato de seguro a Autora tinha conhecimento do naufrágio do navio First Carrier.
41.–A Ré só aceitou o contrato de seguro com efeitos retroactivos porque estava convicta de corresponder à verdade o declarado pela Autora acerca do desconhecimento de avarias com da mercadoria.
42.–Em 02.01.2006 a Ré remeteu à Autora uma comunicação cuja nos termos da qual, por referência à proposta apresentada pela Autora, se recusava a aceitação do risco proposto, com efeitos a contar da data do seu início, referindo expressamente nessa comunicação “(…) não sendo consequentemente da responsabilidade desta Seguradora o pagamento de qualquer sinistro susceptível de ficar garantido ao abrigo de um contrato de seguro desta natureza. Nesta conformidade, os documentos que eventualmente tenham sido emitidos por esta Companhia deverão ser considerados sem efeito a contar da data de início do risco proposto”.

3.1.2(...) e não provado que:
«a.-No dia 16 de Dezembro de 2005, Autora e Ré celebraram um contrato de seguro de transporte de mercadorias, titulado pela Apólice nº 000......4, com início nessa mesma data, sendo o objecto seguro a mercadoria conforme factura nº 2005/000019 e o capital seguro de € 132.000,00, correspondente ao valor da factura - € 103.218,45 - acrescido de 27% de lucros esperados, conforme adiante melhor se verá.
b.-A referida proposta foi subscrita pela Autora em 16 de Dezembro de 2005 e, nessa mesma ocasião, também foi subscrita pelo mediador da Ré, o dito Paulo ....., e ainda nessa ocasião, a Autora emitiu e entregou o cheque nº 4037890821 sacado sobre o Banco Millennium bcp, no valor de € 1.145,00, datado de 16/12/2005, para pagamento do respectivo prémio.
c.-O certificado de seguro cuja cópia foi junta a fls. 21 foi emitido pela Ré em 16 de Dezembro de 2005.
d.-Esta mesma mercadoria destinava-se a ser vendida à identificada empresa "Castro & Filhos, S.A.".
e.-Durante uma tempestade, o identificado navio sofreu um rombo e começou subitamente a ser invadido por água, na zona do porão.
f.-Perdeu estabilidade e virou, afundando-se logo de seguida.
g.-A Autora não pode mais cumprir o contrato de compra e venda celebrado com empresa a "Castro & Filhos, S.A.".
h.-A Autora, com a perda da mercadoria, sofreu um prejuízo de € 132.000,00, valor correspondente ao preço de aquisição da mercadoria acrescido de 27% de margem de lucro mas a Autora tinha já assegurado a venda da mercadoria perdida por preço superior ao valor da apólice.
i.-Só no dia 30 de Dezembro de 2005 a Autora teve conhecimento que o referido navio "First Carrier" se tinha afundado, a cerca de 3 milhas náuticas do porte de Dar es Salaam, no dia 21 de Dezembro de 2005, cerca das 05:30 horas.
j.-O mediador da Ré revelou-se bastante nervoso e agitado.
k.-A apresentação da declaração cuja cópia foi junta a fls. 94 não foi solicitada pela Ré, tendo sido espontaneamente apresentada pelo administrador da Autora.
l.-A Autora, por intermédio do seu então administrador, e o mediador da Ré actuaram concertadamente, pressionando a Ré à aceitação de um cheque com data de 16.12.2005.»

***

3.2MÉRITO DO RECURSO:

3.2.1-Impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
O ponto i. dos factos não provados («i. Só no dia 30 de Dezembro de 2005 a Autora teve conhecimento que o referido navio "First Carrier" se tinha afundado, a cerca de 3 milhas náuticas do porte de Dar es Salaam, no dia 21 de Dezembro de 2005, cerca das 05:30 horas») não foi objeto de impugnação no recurso primitivamente apresentado.
Por isso, não será objeto de decisão no presente recurso.
Sempre se dirá, no entanto, que a prova produzida nos autos, nomeadamente o depoimento da testemunha António ..... (é irmão de Amadeu ....., adiante melhor identificado; foi o gerente de uma sucursal da sociedade ....s Investimentos, S.A., em Moçambique, entre 1997 e 2009; enquanto esteve em Moçambique, todos os anos vinha passar a quadra natalícia a Portugal, aqui chegando entre 21 e 23 de dezembro e regressando a Moçambique a 6 ou 7 de janeiro; na altura do afundamento do navio ainda se encontrava em Moçambique; só soube do acontecimento quando chegou a Portugal, por tal lhe ter sido transmitido pelo irmão, Amadeu ....., no escritório da Reticências, onde sempre se deslocava assim que chegava a Portugal; essa informação, segundo se recorda, foi-lhe dada antes do Natal), nunca deixaria margem para dúvidas quanto ao acerto da decisão acerca daquele ponto de facto não provado.
Impõe-se desde já afirmar que ouvida integralmente a gravação dos depoimentos testemunhais produzidos na audiência final, muitas das questões colocadas às testemunhas o foram de forma imprecisa, repetitiva, sem objetividade e sem qualquer finalidade útil para a decisão da causa.
No tocante concretamente ao depoimento da testemunha Amadeu ....., à qual, foram colocadas várias questões de cariz sugestivo e concludente, cumpre afirmar de forma clara e objetiva, para que dúvidas não subsistam, que o mesmo não foi, efetivamente, merecedor de qualquer credibilidade.
A testemunha Amadeu ..... era, em dezembro de 2005, administrador e legal representante da sociedade Reticências Investimentos, S.A.[6], atualmente denominada, como já referido, A; era também o legal representante da empresa exportadora da mercadoria objeto do contrato de seguro em causa nestes autos.

O seu depoimento:
-não foi natural, autêntico ou sincero: a testemunha não reproduziu fielmente a verdade dos factos;
-foi inseguro: a testemunha depôs sem convicção, com reservas e hesitações, proferiu afirmações inverosímeis e carecidas de objetividade;
-não foi isento ou imparcial: tal como se afirma na sentença em crise, foi clara a sua falta de isenção, pois, «pese embora a testemunha não seja já formalmente o representante legal da Autora, foi-se assumindo como o verdadeiro dono da empresa, cuja representação formal transferiu por razões legais -, sendo evidente o interesse desta testemunha no desfecho da acção favorável à Autora»;
-foi, não raras vezes, impercetível: a testemunha não depôs de forma escorreita, clara e sem ambiguidades, mas de modo confuso, amiúde baralhando factos e questões;
-foi incoerente: foi manifesta a falta de credibilidade das suas afirmações, confrontadas com os demais meios de prova produzidos nos autos;
-foi inverosímil: este tribunal de recurso, tal como, aliás, o tribunal de 1.ª instância, ficou plenamente convencido de que, no essencial, o afirmado pela testemunha, no confronto com outros meios de prova, e de acordo com a regras da experiência, da lógica, da normalidade social, daquilo que faz sentido, não relatou a verdade daquilo que realmente aconteceu;
-não foi razoável: de acordo com padrões comuns de comportamento humano, segundo as regras da natureza, da lógica, da experiência da vida, é, de todo, improvável que as coisas se tenham passado tal como a testemunha as descreveu;
- não foi rigoroso: a testemunha não depôs de modo preciso, mas, antes, de forma ambígua.

Por outro lado, tal como igualmente se afirma, e bem, na sentença em crise o depoimento da testemunha Paulo .... (é sócio-gerente de uma sociedade de mediação de seguros denominada GNC - Sociedade de Mediação de Seguros, Lda.[7], sedeada em Vila Nova de Famalicão, a poucos metros de distância da agência da ré nesta localidade, parceira comercial desta à data dos factos, tal como, aliás, ainda hoje sucede; foi a GNC que, através do referido Paulo ....., fez a mediação entre a ré e a Reticências com vista à celebração do contrato de seguro dos autos) revelou-se, amiúde, confuso e hesitante, acrescentado nós que primou, em grande parte, pela ambiguidade e falta de rigor.

Uma nota para referir que considerados provados os enunciados descritos em 4., 5., 6., 7., 8., 9., 14. e 15. dos factos provados, não havia sequer necessidade de o tribunal descrever como não provados os enunciados descritos em a., b. e c. dos factos não provados.

É certo que o art. 607.º, n.º 4, estatui que «na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados (...).»
No entanto, aquilo que efetivamente se impõe ao juiz é que não deixe sem pronúncia qualquer facto que possa ser considerado relevante para a integração jurídica do caso, cabendo nessa enunciação, necessariamente, uma pronúncia (positiva, negativa, restritiva ou explicativa) sobre os factos essenciais nucleares oportunamente alegados para sustentar a causa de pedir da ação ou para fundar as exceções, assim como de outros factos, também essenciais, que sejam complementares ou concretizadores daqueles, da norma jurídica aplicável ao caso concreto, e que se tornem necessários à procedência da ação ou da exceção.
Na elaboração da sentença deve o juiz relatar os factos que considerou provados (e não provados), numa enunciação adequada às circunstâncias e exigência do caso concreto a decidir, tendo em conta nomeadamente as virtualidades que decorram de uma maior concentração da factualidade apurada ou de uma maior discriminação ou pormenorização que, além de antecipar a resolução de problemas de integração jurídica[8].

Ora, alegando-se na petição inicial que o contrato de seguro dos autos foi celebrado em 16 de dezembro de 2015 e na contestação que o foi em 21 de dezembro de 2005, se depois de apreciadas todas as provas carreadas para os autos, o juiz considera provado que o contrato foi celebrado nesta última data, desnecessário se torna repetir não ter ficado provado que o mesmo contrato foi outorgado naquela primeira data; ou seja, dando o juiz como provada uma versão afirmativa dos factos, desnecessário se tornava repetir que a oposta não ficou provada.

Por outras palavras, considerar-se não provado que um contrato de seguro foi celebrado em 16 de dezembro de 2005, mais não é do que uma consequência lógica de se considerar provado que esse mesmo contrato foi celebrado em 21 de dezembro de 2005.

Se de um lado se afirma que “aconteceu” em 16 de dezembro de 2005 e de outro se afirma que “aconteceu” em 21 de dezembro de 2005, dando-se como provado que “aconteceu” em 21 de dezembro de 2005, é desnecessário, por meramente repetitivo, acrescentar que “não aconteceu” em 16 de dezembro de 2005.
A este propósito já Alberto Reis salientava que «é frequente o mesmo facto ser articulado pelo autor na forma positiva e pelo réu na forma contrária. Então basta quesitá-lo sob uma das formas, para que as testemunhas de ambas as partes sejam inquiridas sobre ele.»[9].

Ou seja, na “época dos quesitos”, bastaria quesitar «O contrato de seguro foi realizado entre as partes no dia 16 de dezembro de 2005?», conforme alegado na petição inicial não também «O contrato de seguro foi realizado entre as partes no dia 21 de dezembro de 2005?», conforme alegado na contestação.
Resultando da prova produzida que o contrato foi celebrado nesta segunda data, o tribunal responderia explicativamente que «O contrato de seguro foi realizado entre as partes no dia 21 de dezembro de 2005.»

Postos estes considerandos, e entrando agora concretamente na análise do recurso da decisão sobre a matéria de facto, a prova produzida nos autos, analisada conjugada e criticamente, à luz das regras da experiência comum e da normalidade social, permite, efetivamente, concluir com segurança pela veracidade dos enunciados descritos sob os pontos 4., 5., 6., 7., 8., 9., 14. e 15. dos factos provados.

Na verdade, não obstante terem a data de 16 de dezembro de 2005:
- a proposta de seguro que constitui o documento de fls. 17-20;
-o certificado de seguro de transporte de mercadorias que constitui o documento de fls. 21;
- a fatura emitida pela Reticências à sociedade “Castro & Filhos, Lda.”, discriminativa da mercadoria objeto da cobertura conferida pelo contrato de seguro em causa nos presente autos e que constitui o documento de fls. 23;
-o manifesto de carga da mercadoria referida emitido pela empresa transportadora “W.E.C. Lines - West Europeen Container Lines Cargo & Freight Manifest”, dando nota do transporte marítimo da mesma mercadoria e que constitui o documento de fls. 24, a análise conjugada e crítica desses elementos probatórios, com outros meios de prova produzidos nos autos permite concluir que, ao contrário do que a autora pretende fazer crer, e do que, de forma ilógica, incongruente e inconsequente, foi afirmado pela testemunha Amadeu ....., o contrato de seguro a que se reportam os presentes autos foi, efetivamente, celebrado no dia 21 de dezembro de 2005.
Os depoimentos das testemunhas Lúcia ..... (é funcionária da ré desde 2000; em dezembro de 2005 trabalhava na delegação da ré em Vila Nova de Famalicão, fazendo o acompanhamento da sua rede de mediadores, entre os quais se encontrava a referida GNC) e Jorge ..... (é profissional de seguros e funcionário da ré há 30 anos; era, em dezembro de 2005, o gerente da delegação da ré naquela localidade), foram esclarecedores quanto ao modo como as coisas efetivamente se passaram.

Resultou do depoimento da testemunha Lúcia ..... que:
-no dia 21 de dezembro de 2005, por volta das 16 horas, foi contactada telefonicamente pelo sócio-gerente da GNC, Paulo ....., com vista à celebração do contrato de seguro em causa nos autos;
-nesse contacto telefónico, Paulo ..... vincou que a data do início do risco devia retroagir a 16 de dezembro de 2005, ao que a testemunha retorquiu que, nesse caso, o assunto teria de ser tratado diretamente com o gerente da delegação; 
-é do seu conhecimento pessoal, em virtude do exercício das suas funções, que quando o seguro é solicitado com o início do risco retroagido a momento anterior, a seguradora exige sempre uma declaração assinada pelo respetivo tomador, a atestar a ausência de sinistro em data anterior à da celebração do contrato;
-nesse contacto telefónico advertiu Paulo ..... da necessidade de tal declaração, assinada pelo cliente;
-mais tarde, ainda nesse dia 21 de dezembro de 2005, Paulo ..... dirigiu-se à delegação da ré, já depois do seu encerramento ao público, e do fecho do Caixa, na companhia de outra pessoa, ligada à empresa que pretendia celebrar o contrato de seguro, a fim de reunirem com o respetivo gerente;
-na sequência daquela reunião, e uma vez que o gerente da delegação aceitou celebrar o contrato de seguro com efeitos retroagidos a 16 de dezembro de 2005, a testemunha tratou da documentação necessária à sua formalização;
-toda a informação constante da proposta de seguro e dos certificados juntos aos autos foi fornecida pela tomadora do seguro, a sociedade então denominada Reticências;
-a declaração que constitui o documento de fls. 94, datada de 21 de dezembro de 2005, não foi feita na delegação, mas, antes na empresa segurada;
-a referida declaração foi entregue na delegação, no próprio dia 21 de dezembro de 2005 ou no dia seguinte;
-o cheque destinado ao pagamento do prémio de seguro foi entregue no dia 22 de dezembro de 2005; é que, quando no dia 21 de dezembro de 2005, Paulo ..... e a pessoa que o acompanhava, se dirigiram à delegação, além de esta já não estar aberta ao público em geral, também já se encontrava fechado o respetivo Caixa; não era permitido aos funcionários da ré manterem qualquer meio de pagamento de prémios de seguro em loja sem o mesmo ter dado entrada em Caixa e no sistema interno da ré; por isso, só no dia seguinte, 22 de dezembro de 2005, é que, efetivamente, o cheque destinado ao pagamento do prémio de seguro foi entregue na delegação, entrando imediatamente em caixa e no respetivo sistema; em suma, o pagamento do seguro não feito a 22 e não a 21 de dezembro de 2005;
-por essa razão, quando no dia 21 de dezembro de 2005, Paulo ..... e a pessoa que o acompanhava, deixaram a delegação, após a reunião com o gerente, não levaram consigo qualquer documento, o que apenas sucedeu no dia seguinte, depois de o cheque ter sido entregue no Caixa e ter dado entrada no sistema; só depois disto, foi emitido, com data de 22 de dezembro de 2005, o certificado-recibo que constitui o documento de fls. 93, no qual, sobre o carimbo com os dizeres “CAIXA - 11 DEZ. 2005 - V.N. FAMALICÃO”, a testemunha apôs a sua rúbrica;
Este depoimento está em sintonia com o depoimento da testemunha Jorge ....., que igualmente descreveu com rigor e objetividade o modo como as coisas se passaram:

Resultou do seu depoimento que:
-conhece a GNC (e o seu sócio-gerente, Paulo .....) por ser parceira comercial da ré;
-a única relação comercial estabelecida com a A foi aquela a que se reportam os presentes autos;
-no dia 21 de dezembro de 2005, na parte da tarde, Paulo ..... e outra pessoa, “dona” da empresa interessada no seguro, dirigiram-se à delegação da ré em Vila Nova de Famalicão, já depois do horário de expediente, ou seja, já depois do encerramento ao público (16:15) e do fecho do Caixa (16:45);
-a A pretendia celebrar um contrato de seguro de transporte de mercadorias por mar, com data de 21 de dezembro de 2005, mas retroagindo a produção dos seus efeitos, ou seja, a data do início do risco, a 16 de dezembro de 2005;
-a razão invocada pelo dono da Reticências para a necessidade da retroatividade do início do risco tinha a ver com uma “carta bancária” na qual era interessado o então Banco Espírito Santo, a cujo universo empresarial pertencia a ré;
-enquanto gerente da delegação da ré, aceitou excecionalmente a celebração de um tal seguro, com início do risco retroagido a 16 de dezembro de 2005, tendo em conta a mediação da GNC, parceira comercial da ré, representada por Paulo ..... pessoa sua conhecida, e a invocação de uma carta de crédito, na qual o BES seria parte interessada;
-no entanto, como era prática da ré, foi exigida, como condição “sine qua non”,uma declaração à tomadora do seguro, a Reticências, de que à data da celebração do contrato de seguro, 21 de dezembro de 2005, não existia qualquer sinistro relacionado com a mercadoria a segurar, confirmando tratar-se da declaração que constitui o documento de fls. 94;
-não se recorda se tal declaração foi entregue pela A a 21 ou a 22 de dezembro de 2005, sabendo, porém, que não foi elaborada na delegação, mas pré-elabora em local que desconhece;
-no dia 21 de dezembro de 2005, quando se dirigiram à delegação, Paulo ..... e a pessoa que o acompanhava, já traziam consigo a proposta de seguro preenchida;
-é normal as propostas de seguro serem a apresentadas nas delegações previamente preenchidas com os dizeres respeitantes ao segurado e ao objeto seguro;
-não foi possível efetuar o pagamento do prémio de seguro a 21 de dezembro de 2005, por o Caixa já se encontrar encerrado e não poder, por isso, rececionar o cheque e introduzi-lo no sistema;
-os funcionários da ré não podiam aceitar valores correspondentes a pagamentos de seguros sem que os mesmos entrassem imediatamente em caixa e fossem registados no sistema;
-consequentemente, o certificado-recibo de seguro que constitui o documento de fls. 93, datado de 22 de dezembro de 2005, só foi efetivamente emitido nesta data, depois de o cheque ter sido entregue no caixa e ter sido registado no sistema;
-por isso, todos os outros documentos relacionados com o seguro, não obstante apresentarem a data de 16 de dezembro de 2005, apenas foram emitidos e entregues no referido dia 22 de dezembro de 2005, após a entrega do cheque no caixa e do seu registo no sistema, assim como da emissão do certificado-recibo que constitui o documento de fls. 93;
-se o contrato de seguro tivesse sido celebrado em 16 de dezembro de 2005, não faria nenhum sentido a declaração de desconhecimento de qualquer sinistro com a mercadoria objeto do contrato de seguro, datada de 21 de dezembro de 2005, e que constitui o documento de fls. 94;
-o certificado que constitui o documento de fls. 93 foi emitido pela delegação da ré, sita em Vila Nova de Famalicão, por se tratar de um seguro temporário de transporte:
-assim, foi ali emitido na própria data em que foi efetuado o pagamento do prémio.
Sendo certo que ambas as testemunhas, Lúcia ..... e Jorge ....., são funcionários da ré, a verdade é que, ouvidas as gravações dos seus depoimentos, não subsistem dúvidas de que, ao contrário do depoimento prestado pela testemunha Amadeu ....., eles se revelaram autênticos e honestos, espontâneos, fluentes, naturais, seguros, verosímeis à luz das regras da experiência da vida e da normalidade social, perfeitamente inteligíveis, escorreitos, claros, rigorosos, sem ambiguidades, coerentes com a documentação junta aos autos (cujo conteúdo que igualmente esclareceram, nomeadamente no que respeita às respetivas datas), razoáveis (no sentido de que permitem a emissão de um juízo seguro de que, muito provavelmente, as coisas se passaram do modo como as descreveram), e perfeitamente fundamentados (é evidente a sua razão de ciência acerca dos factos sobre que depuseram).
Os depoimentos destas testemunhas fazem todo o sentido, analisados conjugada e criticamente com a documentação junta aos autos, relativa ao contrato de seguro celebrado entre a A e ré, esclarecendo, nomeadamente, porque é que nuns documentos surge aposta a data de 16 de dezembro de 2005, noutros a data de 21 de dezembro de 2005 e noutros, ainda, a data de 22 de dezembro 2022.

Quanto ao certificado-recibo que constitui o documento de fls. 93 foi emitido pela ré no dia 22 de dezembro de 2005:
A lógica das coisas, as regras da experiência, aquilo que é normal ocorrer no caso de celebração de contratos de seguro é o respetivo certificado-recibo ser processado imediatamente após o pagamento do respetivo prémio pelo tomador do seguro.
Não faria sentido, não seria normal, escaparia às regras da lógica e da experiência da vida, do que é normal ocorrer em situações idênticas, que tendo o contrato de seguro sido celebrado em 16 de dezembro de 2005, e sido pago, no mesmo dia, o respetivo prémio, como alega a apelante, e como, persistentemente, mas de modo incoerente e inverosímil, afirma a testemunha Amadeu ..... no seu depoimento, aquele certificado apenas tivesse sido processado e emitido em 22 de dezembro de 2005.

O único sentido lógico das coisas é o que resulta dos depoimentos das testemunhas Lúcia ..... e Jorge ....., ou seja:
-que o acordo de seguro foi celebrado no dia 21 de dezembro de 2005, ao final da tarde, já depois do encerramento do caixa da delegação da ré sita em Vila Nova de Famalicão;
-que, por essa razão, o cheque destinado ao pagamento do prémio de seguro apenas foi entregue na delegação no dia seguinte, 22 de dezembro de 2005, tendo, imediatamente a seguir, sido emitido o certificado-recibo que constitui o documento de fls. 93.
E o mesmo se diga do documento de fls. 94, uma declaração escrita, contendo um cabeçalho e um carimbo com os dizeres da firma da A, datada de 21.12.2005, com indicação da testemunha Amadeu ....., então seu legal representante, como a pessoa que a assinou, e que se traduz na afirmação de que, àquela data, a autora desconhecia qualquer incidente com a mercadoria objeto do contrato de seguro celebrado com a ré.
Mais uma vez, relativamente a este documento, faz todo o sentido o afirmado pelas testemunhas Lúcia ..... e Jorge ....., ao invés do afirmado pela testemunha Amadeu ..... .
É altura de afirmar que não é, efetivamente, merecedor de qualquer credibilidade, o depoimento prestado pela testemunha Amadeu ...., legal representante da Reticências à data dos factos, desde logo, no confronto com o depoimento da testemunha Paulo ....., acerca do modo como abordou a GNC, com vista à celebração do contrato de seguro dos autos.
Por outro lado, não faz qualquer sentido a reiterada e “atabalhoada” afirmação de que celebrou o contrato de seguro no dia 16 de dezembro de 2005, na altura em que o navio estava para sair com a mercadoria carregada, do porto de Pemba, em Moçambique.
Referiu que ao longo de 30 anos sempre celebrou contratos de seguros de transporte de madeiras por via marítima, não conhecendo «seguros feitos já com o navio a navegar», acrescentando, no entanto, logo em seguida, que «se for fazer seguros com o navio já em alto mar, vai fazer o seguro mais barato porque o risco é menor e a viagem são menos dias», não sabendo, no entanto, se existe essa possibilidade.
Afirmou ainda que o cheque destinado ao pagamento do prémio de seguro foi entregue à ré a 16 de dezembro de 2005, tendo sido extraído de um livro de cheques que tem uma ordem sequencial comprovativa, segundo ele, de que o cheque foi emitido naquela data; no entanto, curiosamente, não foram apresentados nos autos os respetivos “canhotos” desse livro de cheques.
Nada do assim afirmado faz qualquer sentido ou se afigura verdadeiro.
Pergunta-se: que sentido faria a emissão, pela autora, através da pessoa que na altura era o seu legal representante, Amadeu ..... (que entretanto deixou de o ser, razão pela qual prestou depoimento na audiência final na qualidade de testemunha), de uma declaração como a que consta de fls. 94, data de 21 de dezembro de 2005, se o contrato de seguro tivesse sido efetivamente celebrado em 16 de dezembro de 2005?
A resposta é, tal como referido pelas testemunhas Lúcia ..... e Jorge .....: nenhum! Não faria nenhum sentido!
É evidente que uma tal declaração, exigida pela ré nos termos explicados por Lúcia ..... e Jorge ....., apenas faz sentido tendo o contrato de seguro sido celebrado a 21 de dezembro de 2005, com início do risco a 16 de dezembro de 2005, data em que o navio efetivamente largou do porto de Pemba, em Moçambique, com destino ao porto de Dar-es-Salaam.
Não merece qualquer crédito, como é evidente, roçando o irreal, o afirmado pela testemunha Amadeu ..... de que não conhece a dita declaração de fls. 94, que «isto não é o papel timbrado da Reticências», que «o papel timbrado da Reticências tem umas coisas por baixo», que «isto é um documento de word», que «se eu não conheço o documento não o assinei», que «eu nunca ouvi falar nesse documento», que «este tipo de letra não é da empresa», que «trata-se de uma montagem».
No entanto, após lhe ter sido perguntado se a GNC alguma vez lhe pediu algum documento com aquele teor, foi hesitantemente que respondeu: «A mim? Nunca».
Por outro lado, é também evidente a ausência de verdade no depoimento da testemunha Amadeu ..... quando afirma que o cheque destinado ao pagamento do prémio de seguro foi emitido e entregue à ré em 16 de dezembro de 2005.
As testemunhas Lúcia ..... e Jorge ..... explicaram, lógica e coerentemente, o modo e o momento da entrega do cheque destinado ao pagamento do prémio de seguro.
Os seus depoimentos, analisados conjugada e criticamente com o certificado-recibo de fls. 93, mostra, à evidência, que o cheque foi entregue a 22 de dezembro de 2005 e não a 16 de dezembro de 2005.
A lógica das coisas, as regras da experiência, aquilo que é normal ocorrer no caso de celebração de contratos de seguro, é o respetivo certificado ser processado imediatamente após o pagamento do respetivo prémio pelo tomador do seguro.
Não faz sentido, não é normal, escapa às ditas regras da experiência, que tendo o contrato de seguro sido celebrado em 16 de dezembro de 2005, e no mesmo dia pago o respetivo prémio, como alega a apelante e, de forma incoerente, inverosímil e irrealista, afirma a testemunha Amadeu ....., o certificado-recibo apenas tivesse sido processado e emitido em 22 de dezembro de 2005.
É evidente que esse certificado foi emitido no dia 22 de dezembro de 2005, depois da entrega no caixa da delegação da ré, sita em Vila Nova de Famalicão, no mesmo dia, do cheque destinado ao pagamento do prémio de seguro, cheque esse que só naquela data foi entregue pelas razões que ficaram expostas.
A testemunha Paulo ....., sócio-gerente da GNC revelou-se, nesta parte, algo ambíguo, por pouco rigoroso e esclarecedor.
Afirmou recordar-se de um dia ter sido chamado ao escritório da Reticências «a uma hora pouco habitual», «depois do seu expediente», por volta das «7 e tal da tarde», «19 e qualquer coisa da tarde», pois aquela pretendia celebrar um contrato de seguro de transporte de mercadorias por via marítima, «num barco que já tinha saído ou ia sair» e que nessa altura lhe foi dito pelo representante da Reticências que o seguro era preciso por causa de uma questão relacionada com «uma carta de crédito que tinham num banco».
Mais afirmou que quando foi contactado pela Reticências, lhe foi manifestada a urgência na celebração do seguro, alegadamente por razões relacionada com «cartas de crédito».

Afirmou, no entanto, não se recordar:
-quando é que foi liquidado o prémio de seguro;
-se quando se deslocou ao escritório da Reticências já levava a proposta de seguro preenchida, salientando, no entanto, que não é normal tal acontecer;
-se voltou ao escritório da Reticências num outro dia para formalização da proposta de seguro, estando, no entanto, convicto que assim sucedeu, pois «um seguro desta natura não se faz de um momento para o outro»;

Afirmou, contudo, que:
-o cliente é que assina a proposta de seguro com a respetiva data;
-só após o pagamento do prémio é que a apólice é considerada válida e emitido o respetivo certificado-recibo;
-uma proposta de seguro com as características daquele a que se reportam os presentes autos contém, além do mais: o tipo de carga acondicionada no navio; a menção da fatura de carga, com a identificação do navio; o local da partida e da chegada do navio ao porto de destino.
Não corresponde, assim, à verdade, o afirmado pela testemunha Amadeu ..... de que não sabia «como se chamava o navio», até porque a embarcação se mostra perfeitamente identificada na proposta de seguro por si assinada e que constitui o documento de fls. 17-20 dos autos.
O depoimento de Paulo ..... foi, no entanto, esclarecedor quando afirmou que «não é nada normal» a celebração de contratos de seguro numa data, com a retroação dos efeitos do risco a uma data anterior, havendo, no entanto, « situações de transportes marítimos com data anterior», mas quando isso acontece há a «sujeição a uma declaração de que na data da formalização não há sinistro», sendo tal declaração necessária «para aceitação do seguro».
Foi ainda categórico na afirmação de que não se lembra de alguma vez ter sido celebrado um seguro de transporte marítimo com a carga já em alto mar sem o tomador do seguro ter subscrito uma declaração como aquela que consta de fls. 94, de inexistência de sinistros; trata-se, segundo crê, de uma exigência das seguradoras.
Perante insistências, reforçou o entendimento de que a «data da proposta pode ser uma e a data da cobertura do risco pode ser anterior», havendo, nesse caso, lugar a uma «declaração assinada pelo tomador a declarar que não havia qualquer tipo de sinistro».
Afirmou não se lembrar de ter pedido à A uma declaração dessa natureza.
No entanto, uma vez confrontado com a declaração que constitui o documento de fls. 94, afirmou que, em seu entender, a mesma indica que o contrato de seguro foi efetivamente celebrado a 21 de dezembro de 2005 e que a ré apenas é responsável por sinistros ocorridos a partir daquela data, acabando por confirmar que essa declaração, assim como os demais elementos necessários à formalização do seguro, foram entregues pela A à GNC, que, por sua vez os «terá» entregue na delegação da ré sita em Vila Nova de Famalicão naquela data.
Referiu que o caixa da delegação fecha às 16 horas e que um cheque ali entregue depois dessa hora só entra no sistema no dia seguinte, pelo que o certificado-recibo só é emitido neste dia, acabando por concluir que a documentação necessária à formalização do seguro deu entrada na delegação, após o fecho do caixa.

Afirmou ainda que é da sua experiência pessoal que quando ocorrem avarias em mercadorias objeto de contratos de seguro, transportadas em navios:
-tratando-se de pequenas avarias, os interessados na carga só têm conhecimento da respetiva ocorrência quando o navio chega ao porto de destino;
-tratando-se de avarias graves, a informação chega aos interessados na carga através dos agentes de navegação, os quais têm representantes em todos os países.
Não merece, pois, analisada conjugada e criticamente toda a prova produzida nos autos, qualquer censura a decisão do tribunal de 1.ª instância em sede de matéria de facto.
A madeira discriminada na fatura que constitui o documento de fls. 23 foi embarcada no navio «First Carrier», no porto de Pemba, Moçambique, no dia 16 de dezembro de 2005, com destino ao porto de Leixões e com transbordo em Dar-es-Salaam, Tanzânia.
Nessa data, aquela mercadoria não foi objeto de qualquer contrato de seguro.
No dia 21 de dezembro de 2005, por volta das 5 horas e 30 minutos, o navio afundou-se a cerca de 3 milhas náuticas do porto de Dar es Salaam, e com ele os 11 contentores em que ia acondicionada a mercadoria objeto do contrato de seguro em causa.
Não é minimamente verosímil o alegado pela apelante e afirmado pela testemunha Amadeu ..... de que a A só no dia 30 de dezembro de 2005, quando enviou à ré a comunicação referida em 34. dos factos provados, teve conhecimento do afundamento do navio.
O estado de desenvolvimento das comunicações a nível mundial e a velocidade da transmissão de notícias e informações em 2005, torna, salvo o devido respeito, pueril, para dizer o mínimo, a afirmação de que a A apenas em 30 de dezembro, nove dias depois do afundamento do navio, teve conhecimento do sinistro, sendo certo, tal como referiu a testemunha ....., que tratando-se de avarias graves, a informação chega aos interessados na carga através dos agentes de navegação, os quais têm representantes em todos os países.
A versão da autora, de que só teve conhecimento do sinistro no dia 30 de dezembro é, aliás, como já se viu, desmentida pelo depoimento da testemunha António ....., irmão de Amadeu ..... .
Tendo o afundamento do navio ocorrido cerca das 5 horas e 30 minutos do dia 21 de dezembro de 2005, considerando a extrema facilidade que, já então, alguém, “num lado do mundo”, tinha em comunicar com outrem, “no outro lado mundo”, não é crível, não é razoável, escapa à lógica da coisa, às regras da experiência da vida, que a notícia do afundamento do navio não tivesse chegado ao conhecimento da Reticências, no máximo, escassas horas depois de ter ocorrido.
E isto, quer que se considerasse que as 5 horas e 30 minutos eram horas locais da Tanzânia, caso em que seriam 8 horas e 30 minutos em Portugal, pois é de 3 horas a diferença horária entre ambos os países, quer se considerasse que eram 5 horas e 30 minutos em Portugal.
O exposto permite concluir, à luz das referidas regras da lógica, da experiência da vida, da normalidade social, nos mesmos termos em que concluiu o tribunal a quo no ponto 40. dos factos provados, ou seja, que na data da celebração do contrato de seguro a autora, então denominada Reticências, tinha conhecimento do naufrágio do navio First Carrier.
Só isto, de acordo com as referidas regras da lógica, da experiência da vida, da normalidade social, explica o circunstancialismo em que o contrato de seguro foi celebrado, acima exaustivamente descrito, numa altura que a delegação da ré já se encontrava encerrada ao público, a pressa da Reticências na sua celebração, seis dias depois do embarque da mercadoria, e com a justificação, nunca comprovada e que se tem por falaciosa, de que a retroatividade do inicio do risco se impunha por razões relacionadas com «cartas de crédito» ou «cartas bancárias».
Obviamente se conclui também que a ré só aceitou o contrato de seguro com efeitos retroativos porque estava convicta de corresponder à verdade o declarado pela autora acerca do desconhecimento de avarias com da mercadoria.
Termos em que improcede, na sua totalidade, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

***

3.2.2ENQUADRAMENTO JURÍDICO:

A autora pede a condenação da ré seguradora a pagar-lhe a quantia de € 132.000,00, a título de capital, acrescida de juros legais para operações comerciais, contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento, com fundamento no incumprimento, por esta, do contrato de seguro marítimo de transporte de mercadorias, titulado pela apólice n.º 0001.....4, entre ambas celebrado no dia 16 de dezembro de 2005, tendo por objeto a cobertura do risco de perda total, material ou absoluta, da mercadoria que era transportada por via marítima no âmbito da atividade comercial da autora, identificada na fatura nº 2005/000019, quando ocorrida conjuntamente com a perda total, pela fortuna do mar, do navio em que era transportada, denominado First Carrier.
Sucede que no dia 21 de dezembro de 2005, cerca das 5 h e 30 m, o navio afundou-se a cerca de 3 milhas náuticas do porto de Dar es Salaam.
Nesse local, durante uma tempestade, o navio sofreu um rombo e começou subitamente a ser invadido por água, na zona do porão.
Perdeu estabilidade e virou, afundando-se logo de seguida.
Com o afundamento do navio afundaram-se os 11 (onze) contentores em que ia acondicionada a mercadoria objeto do contrato de seguro em causa.
Por força do afundamento, a mercadoria não pode mais ser recuperada e é absolutamente insuscetível de ser utilizada para o fim a que se destinava.
A autora comunicou o sinistro à ré na data em que dele teve conhecimento, a 30 de dezembro de 2005, sucedendo que esta se recusa a indemnizá-la no valor correspondente ao da mercadoria segurada e perecida em consequência do sinistro.
Considerando a data em que a autora afirma ter celebrado com a ré o contrato de seguro em causa nestes autos, é no disposto nos arts. 425.º e ss. do Código Comercial[10], que havemos de encontrar a sua fonte reguladora, enquanto tipo contratual autónomo.
Acontece que, diversamente do que ocorre quanto a outros tipos contratuais, o CCom não define contrato de seguro, deixando essa tarefa para a doutrina e jurisprudência.
Para José Vasques «seguro é o contrato pelo qual a seguradora, mediante retribuição pelo tomador do seguro, se obriga, a favor do segurado ou de terceiro, à indemnização dos prejuízos resultantes, ou ao pagamento de valor pré-definido, no caso de se realizar um determinado evento futuro e incerto»[11].
Menezes Cordeiro refere-se-lhe como o contrato pelo qual «uma pessoa transfere para outra o risco da verificação de um dano, na esfera própria ou alheia, mediante o pagamento de uma determinada remuneração.»[12].
E mais adiante afirma que «o contrato de seguro pode ser definido como o negócio pelo qual uma entidade - o segurador - assume, perante outra - o tomador - mediante uma contrapartida - o prémio - o risco de um determinado evento futuro e incerto - o sinistro - efectuando, caso ele ocorra, a favor de determinada pessoa - o beneficiário ou segurado - a prestação ou prestações acordadas.»[13].
Atualmente, o art. 1.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Dec. Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, com as alterações que lhe foram sendo introduzidas, indica o conteúdo típico do contrato de seguro: «Por efeito do contrato de seguro, o segurador cobre um risco determinado do tomador do seguro ou de outrem, obrigando-se a realizar a prestação convencionada em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato, e o tomador do seguro obriga-se a pagar o prémio correspondente.»
O sinistro exprime, na linguagem própria dos seguros, segundo Alves de Brito, «a realização do evento contra o qual o tomador de seguro, por conta própria ou por conta de outrem, se pretende precaver. A distinção relativamente ao risco, facto futuro e incerto, afigura-se difícil; contudo, enquanto o risco traduz uma única realidade, a sua verificação (o sinistro) pode revelar-se nas mais variadas formas, não se esgotando numa única manifestação»[14].
A propósito do risco, escreve José Vasques que ele «pode ser definido como o evento futuro e incerto cuja materialização constitui o sinistro.
(...)
A existência do risco é essencial ao tipo legal: o seguro é nulo, se, quando se concluiu o contrato, o segurador tinha conhecimento de haver sessado o risco, ou se o segurado, ou a pessoa que fez o seguro, o tinha da existência do sinistro (artigo 436, proémio, do Código Comercial).»[15].

Quanto ao seguro marítimo,trata-se, na definição de René Rodière, do «contrato pelo qual o segurador se compromete, mediante o pagamento de um prémio a indemnizar o segurado do prejuízo sofrido por bens determinados expostos aos perigos de uma expedição marítima, pelo facto da superveniência de certos riscos»[16]e na definição de Robert de Smet,«de uma operação pela qual uma parte, o segurador, promete a outra parte, o segurado, fornecer-lhe, a  ela ou a terceiro, mediante uma remuneração denominada prémio, uma prestação no caso de verificação, quanto a certas coisas convencionadas, de riscos relativamente aos quais as operações de navegação ou de transporte marítimo sejam a causa, a ocasião ou o teatro.»[17].

Relativamente aos seguros marítimos, escreve José Vasques que eles se referem «aos riscos relacionados com a navegação marítima, compreendendo basicamente os ramos: embarcações marítimas, lacustres e fluviais, que abrange os danos sofridos por toda e qualquer embarcação marítima, lacustre e fluvial; mercadorias transportadas, que abrange os danos sofridos por mercadorias, bagagens ou outros bens, qualquer que seja o meio de transporte utilizado, e responsabilidade civil de embarcações marítimas, lacustres e fluviais, que abrange a responsabilidade pela utilização de embarcações marítimas, lacustres e fluviais, incluindo a responsabilidade do transportador.
A classificação legal dos seguros englobou a modalidade Pessoas transportadas do ramo Acidentes e os ramos Veículos ferroviários, que abrange os danos sofridos por veículos ferroviários; Embarcações marítimas, lacustres e fluviais, que abrange os danos sofridos por toda e qualquer embarcação marítima, lacustre e fluvial, Mercadorias transportadas, que abrange os danos sofridos por mercadorias, bagagens ou outros bens, qualquer que seja o meio de transporte utilizado e Responsabilidade civil de embarcações marítimas, lacustres e fluviais, que abrange a responsabilidade pela utilização de embarcações marítimas, lacustres e fluviais, incluindo a responsabilidade do transportador, sob a denominação “Seguro marítimo e transportes”».[18].

Dispõe o art. 604.º do CCom que «são a cargo do segurador, salvo estipulação contrária, todas as perdas e danos que aconteceram durante o tempo dos riscos aos objectos segurados por borrasca, naufrágio, varação, abalroação, mudança forçada de rota, de viagem ou de navio, por alijamento, incêndio, violência injusta, explosão, inundação, pilhagem, quarentena superveniente, e, em geral, por todas as demais fortunas de mar, salvo os casos em que por natureza da cousa, pela lei ou por cláusula expressa na apólice o segurador deixa de ser responsável.»
Por sua vez, o art. 595.º do mesmo código que «ao contrato de seguro contra riscos do mar são aplicáveis as regras estabelecidas no capítulo I e na secção I do capítulo II do título XV do livro II, que não forem incompatíveis com a natureza especial dos seguros marítimos ou alteradas pelas disposições deste título.»
Nos termos do art. 436.º ainda do CCom, «o seguro é nulo, se, quando se concluiu o contrato, o segurador tinha conhecimento de haver cessado o risco, ou se o segurado, ou a pessoa que fez o seguro, o tinha da existência do sinistro.
§ único. No primeiro caso deste artigo o segurador não tem direito ao prémio; no segundo não é obrigado a indemnizar o segurado, mas tem direito ao prémio».

A propósito deste artigo, que consagra o chamado «seguro de riscos putativos», escreveu Cunha Gonçalves:
«A nulidade do seguro por falta de risco verifica-se de pleno direito, no interesse de ambas as partes; e pode ser alegada por acção ou excepção.
Pode suceder, porém, que, ao tempo da celebração do contrato, os contraentes estejam convencidos da existência do risco, e contudo este não exista: haverá então um risco fictício. Por outras palavras, embora o risco seja um facto incerto, não é preciso que esta incerteza seja absoluta e real; basta que haja uma incerteza mental, resultante da ignorância das partes. (...).
Esta ficção jurídica, derivada dos seguros marítimos, nos quais se justifica pela dificuldade de provar o momento preciso em que o navio se perdeu ou sofreu avaria, ou chegou a bom porto, não tem igual justificação nos seguros terrestres, aos quais foi, contudo, tornada extensiva pela maioria das legislações. Deste modo, ou não existe já o risco, e o segurado fica inutilmente onerado com o prémio; ou o sinistro já se verificou, e o segurador tem de o indemnizar sem o benefício da lei das probabilidades; e o seguro fica sendo assim uma espécie de jogo de azar.
Resulta daqui que se presume sempre que as partes acreditavam na existência do risco quando contrataram; e, portanto, quem pretender anular o seguro pelo fundamento da falta ou cessação do risco, terá que provar que a parte adversa tinha conhecimento de tal facto, prova que tem que ser completa, não bastando vagas presunções, pois que, apezar da publicidade dos jornais, apezar da publicidade do avizo directo, o segurador ou o segurado podem ignorar que o risco cessara ou que o sinistro se déra, não sendo raro o caso de os interessados serem os últimos a saber dos seus desastres.
Provando-se que o segurador tinha conhecimento da cessação do risco, terá ele de restituir ao segurado o prémio; e provando-se que o segurado conhecia a existência do sinistro, não terá direito à indemnização e perderá o prémio.»[19].

Mais tarde, Moitinho de Almeida, em comentário às transcritas afirmações de Cunha Gonçalves, escreveu:
«Tinha razão o ilustre civilista, podendo dizer-se que que hoje o seguro de risco putativo se encontra limitado aos seguros marítimos nos países latinos da Europa. (...). Na verdade, o seguro de riscos putativos só se justifica, não na medida em que as partes, ao tempo da conclusão do contrato, desconhecem o estado das coisas expostas ao risco, mas pelas necessidades imperiosas de um ramo se seguro, o marítimo, em que frequentemente o seguro se impõe em termos comerciais sem que, face às distâncias e às dificuldades de comunicação, os interessados tenham conhecimento da dificuldade das coisas a garantir.»[20].
A este propósito escreve José Vasques que «a nulidade do seguro cujo risco não existia à data da celebração do contrato (por ter cessado ou por se ter verificado já o sinistro) encontra uma excepção importada do seguro marítimo, em que frequentemente o seguro se impõe em termos comerciais sem que, face às distâncias e às dificuldades de comunicação, os interessados tenham conhecimento do estado das coisas a garantir: os riscos putativos.
Este tipo de riscos, admitidos pela generalidade das legislações, encontra hoje a sua justificação fortemente mitigada pela facilidade de comunicações[21], sendo de limitar a sua aplicação na medida em que ou já não existe o risco, e o segurado fica inutilmente onerado com o prémio, ou o sinistro já se verificou, e o segurador tem de indemnizar sem o benefício da lei das probabilidades; e o seguro fica sendo assim uma espécie de jogo de azar.
(...).
Com os riscos putativos não devem confundir-se os seguros com cláusula de boas ou más notícias (lost or not lost), mediante a qual o contrato cobre os prejuízos que ocorram antes da conclusão do contrato, quando aqueles não fossem conhecidos do segurado. O seguro de boas ou más notícias tem em comum com o risco putativo a possível inexistência ou incerteza do risco, mas apenas neste último existe uma representação mental dos contratantes sobre a possibilidade de o objecto seguro já não existir ou já ter chegado ao seu destino, aceitando essa possibilidade e, verificando-se um sinistro, criando a ficção de que ocorreu na vigência da apólice.»[22].

No Ac. do TRL de 26.05.1987 (Santos Monteiro), C.J. XII, 1987, 3, 92, após se exarar que o art. 436.º do nosso CCom foi elaborado a exemplo do que se dispunha no art. 430.º do antigo Código Comercial italiano, sendo nítida a influência que este Código exerceu sobre o nosso, nessa matéria, afirma-se que, «portanto, o nosso direito positivo admite e consagra, em termos gerais, o contrato de seguros de riscos putativos.
Nesta espécie de contratos de seguro, o risco já não existe realmente, mas existe para os contraentes e é por isso que a “alea” é putativa. Mas não repugna à natureza do contrato que a incerteza do evento só exista na mente dos outorgantes e que se tenha assim, por verificada a existência desse elemento essencial do contrato.»

No entanto, e como bem esclarece Margarida Lima Rego, «aquilo a que a lei chama «conhecimento» não é senão o resultado de um juízo probabilístico que os sujeitos poderão ou não formular, com base na informação ao seu dispor. Em rigor, deve entender-se que o contrato será nulo quando o segurador, o tomador ou o segurado tenham avaliado o risco como inexistente, aquando da sua celebração, por se encontrarem na posse de informação que, se partilhada, levaria os demais sujeitos a chegar à mesma conclusão. Esta última precisão justifica-se porque, apesar de tudo, a lei coloca esta questão no plano do conhecimento, afastando, por esse motivo, a relevância de juízos de risco não suportados em moldes que pudéssemos de algum modo qualificar como objectivos, com as limitações que este adjectivo comporta. No mesmo sentido, a doutrina e jurisprudência, quando designam o risco relativo a um facto passado como um «risco putativo.»[23].

Retornando ao caso concreto, está provado que:
-o contrato de seguro de transporte marítimo a que se reportam os presentes autos foi celebrado ao fim da tarde do dia 21 de dezembro de 2015, e não no dia 16 de dezembro de 2015;
-o contrato de seguro tinha por objeto seguro a mercadoria constante da factura nº 2005/000019, e por ele foi coberto o risco de perda total, material ou absoluta, dessa mercadoria, quando ocorrida conjuntamente com a perda total, pela fortuna do mar, do navio onde era transportada, o "First Carrier";
-naquele mesmo dia 21 de Dezembro de 2005, cerca das 5 hora e 30 minutos o navio afundou-se a cerca de 3 milhas náuticas do porto de Dar es Salaam;
-com o afundamento do navio afundaram-se os 11 contentores em que ia acondicionada a mercadoria objeto do contrato de seguro em causa;
-por força do afundamento, a mercadoria não pode mais ser recuperada e é absolutamente insuscetível de ser utilizada para o fim a que se destinava;
-a ré não procedeu a qualquer pagamento à autora, apesar de esta lhe ter comunicado o sinistro no dia 30 de dezembro de 2005, data em que afirmou ter tido conhecimento do mesmo;
-na atividade de transporte marítimo, qualquer sinistro ocorrido junto a um porto com as características do porto de Dar-es-Salaam é imediatamente reportado ao armador, fretador, agentes, seguradores e demais interessados, nomeadamente através do Lloyds e outras entidades congéneres;
-o conhecimento de ocorrências desta natureza chega ao conhecimento dos interessados poucas horas após a sua verificação, sendo difundido entre eles;
-na data da celebração do contrato de seguro a autora tinha conhecimento do naufrágio do navio “First Carrier”;
-a ré só aceitou o contrato de seguro com efeitos retroativos porque estava convicta de corresponder à verdade o declarado pela autora acerca do desconhecimento de avarias com da mercadoria.
Perante isto, e à luz dos considerandos anteriormente expendidos conclui-se pela nulidade do contrato de seguro marítimo de transporte de mercadorias, titulado pela apólice n.º 0001306014, celebrado entre autora e ré, tendo por objeto a mercadoria identificada na fatura 2005/000019.
Sendo nulo, nos termos do art. 436.º do CCom, o referido contrato de seguro, não tem a autora direito à peticionada indemnização.

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IVDECISÃO:

Por todo o exposto, acordam os juízes desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar a apelação improcedente, por não provada, confirmando, em consequência, a sentença recorrida.
Custas pela apelante - arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6, e 663.º, n.º 2, do C.P.C.



Lisboa, 11 de janeiro de 2022



José Capacete
Carlos Oliveira
Diogo Ravara



[1]Neste acórdão utilizar-se-á a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
[2]Anteriormente denominada Reticências - Investimentos Imobiliários, S.A.
[3]Atualmente denominada Seguradoras Unidas, S.A.
[4]Doravante referido apenas por “navio”.
[5]Diploma a que pertencem todos os preceitos legais citados sem indicação da respetiva fonte.
[6]Doravante referida apenas por “Reticências”.
[7]Doravante referida apenas por “GNC”.
[8]Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pp. 718 e 720.
[9]Código de Processo Civil Anotado, 3.ª Edição, Vol. III, Coimbra Editora, p. 217.
[10]Doravante referido apenas por “CCom”
[11]Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, p. 94.
[12]Manual de Direito Comercial, I. Vol., Almedina, 2001, p. 544.
[13]Manual cit., p. 576.
[14]Seguro Marítimo de Mercadorias, Almedina, 2006, pp. 11-12.
[15]Contrato cit., p. 127
[16]Droit Maritime, Ed. Dalloz, 1971, p. 429, e Traité Théorique et Pratique des Assurances Maritimes, Imprenta: Paris, Libr. générale de droit et de jurisprudence, 1959, p. 42, citados por Abílio Neto, Código Comercial / Código das Sociedades / Legislação Complementar Anotados, 12.ª Edição, Ediforum, 1996, p. 408.
[17]Traité Théorique et Pratique des Assurances Meritimes, 1959. p. 42, igualmente citado por Abílio Neto, ob. e loc. cit.
[18]Contratos cit., p. 42.
[19]Comentário ao Código Comercial Português, Editora “Empresa Editora José Bastos, 1914, pp. 529-530.
[20]O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Livraria Sá da Costa, 1971, p. 83.
[21]Estudios de Seguro Maritimo, Barcelona, 1992, p. 135, «embora reconhecendo a extraordinária influência das comunicações actuais, admite que, por vezes, o segurado desconhece efectivamente a situação e o estado do objecto seguro.»
[22]Contrato cit., pp. 129-130.
[23]O Contrato de Seguro e Terceiros, Coimbra Editora, 2010, p.119.