Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2168/10.9IDLSB.L1-5
Relator: VIEIRA LAMIM
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
IVA
CONSUMAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: O tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, quando estejam em causa prestações tributárias referentes a IVA, apenas se preenche - e uma vez verificadas as condições objectivas de punibilidade - com a falta de entrega do IVA efectivamente recebido pelo sujeito passivo no prazo relevante para a consumação do crime - até ao termo do prazo legal para a entrega das respectivas declarações periódicas à Autoridade Tributária.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

I° 1. No Processo Comum (Tribunal Singular) n°2168/10.9IDLSB, da Comarca de Lisboa Norte, Loures- Inst. Local - Secção Criminal- J4, o Ministério Público acusou PC... e "S...,Lda. - em liquidação'', imputando, à arguida PC..., a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. nos termos do art. 105.°, n.°s 1, 2, 4 e 5 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei   15/2001, de 5 de Junho, e à sociedade arguida, idêntica infracção, atento o disposto no art. 7.°, 11%1 e 3 do mesmo diploma legal.

O tribunal, após julgamento, por sentença de 9Set.14, decidiu:

A) Condena a arguida PC... pela prática, em autoria material, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pela interpretação conjugada dos arts. 6.°, n°1, 7, n°3 e 105, n.3s 1, 2, 4 e 5 do R.G.I.T. (Regime Geral das Infracções Tributárias), aprovado pela Lei n°15/2001, de 5 de Junho, na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão:

B) Suspende a execução da pena de prisão, cominaria à arguida PC..., a que é feita referência em A), pelo período de 5 anos, sob condição de a arguida, nesse lapso de tempo, proceder ao pagamento à administração fiscal da prestação tributária em dívida (no montante global de € 174.300,00 (cento e setenta e quatro mil e trezentos euros) e acréscimos legais;

C) Condena a arguida "S...,Lda. - em liquidação" pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pela interpretação conjugada dos arts. 6.°, n.° 1, 7.°, ns.° 1 e 3 e 105.°, n.'s 1, 2,4 e 5 do R.G.I.T. (Regime Geral das Infracções Tributárias), aprovado pela Lei n.° 15/2001, de 5 de Junho, na pena de 600 dias de multa, à taxa diária de € 15,00 (quinze euros), o que perfaz o montante global de € 9.000,00 (nove mil euros).

D) …

…". 

2. Desta decisão recorre a arguida PC..., tendo apresentado motivações das quais extraiu as seguintes conclusões:

2.1 As motivações de recurso da recorrente centram-se na total desconsideração, na decisão a qua, do regime de IVA por conta do adquirente, regime em que se encontrava aquela empresa de construção civil no ano e trimestre dos factos, ou seja em 2007, 4° trimestre;

2.2 Tal matéria foi discutida durante o julgamento tendo sido explicitamente objecto dos depoimentos de todas as pessoas ouvidas, nomeadamente da arguida, ora recorrente, das testemunhas de acusação e de defesa;

2.3 Para além de ter sido objecto dos supra referidos quatro depoimentos gravados, também existiu unanimidade na conclusão chegada: a de que durante o ano em causa, 2007, o IVA que aquela empresa cobrava aos seus Clientes corria por conta do adquirente ente ou seja por conta dos Clientes.

2.4 Tal resultou de imperativo legal criado pelo diploma publicado em 29 de Janeiro: o Decreto-Lei n° 21/2007, diploma que instituiu para o sector da construção civil do sistema da inversão do sujeito passivo.

2.5 O diploma em causa alterou o artigo 2° do Código do Imposto sobre o Valor Acrescentado, aprovado pelo Decreto-Lei n.°394-B/84, de 26 de Dezembro, abreviadamente designado por Código do IVA e nos termos do artigo 2, alínea j) de tal Código o IVA passou a correr por conta dos adquirentes em todos os serviços de construção civil, reparação, manutenção, conservação e demolição.

2.6 Passaram a ser os Clientes da empresa "Sociedade de Construções Ilidio Cabral e Filhos, Lda",

de que a ora Recorrente era gerente, que tinham a obrigação de entregar o IVA ao Estado.

2.7 Nestas situações uma eventual censura não merece qualquer tutela penal através do crime de abuso de confiança fiscal, independentemente da eventual dívida civil que tal não entrega de IVA ao Estado naturalmente pode gerar.

2.8 É que esse IVA não chega a estar na posse de quem factura o serviço, esse montante não chega a entrar na esfera jurídico-patrimonial da empresa, daí que também não se possa dar como provado que foi utilizado para este ou aquele fim, em qualquer caso alheio ao destino específico do imposto em questão.
2.9 Assim sendo, nunca se poderia considerar que a arguida preencheu o crime de abuso de confiança fiscal.

2.10 Mas mesmo se apenas se tivesse olhado para as contas bancárias da empresa, para os movimentos financeiros com as Clientes daquela e para a respectiva facturação ter-se-ia concluído hialinamente que o IVA em causa nem sequer alguma vez foi entregue pelos Clientes da empresa, co-arguida nestes autos, nem a esta nem ao Estado, isto ainda que se pudesse concluir ser o mesmo devido.

2.11 A totalidade das pessoas ouvidas - arguida, testemunhas de acusação e de defesa - referiram ou reconheceram o facto central de a sociedade estar no período dos autos sujeita ao regime de IVA por conta do adquirente, nas duas sessões de julgamento que tiveram lugar, uma em Junho e outra em Julho de 2014.

2.12 Os documentos também o comprovam.

2.13 Deixa-se consignada a matéria factual que o tribunal a quo deu erradamente como provada a qual consta do capítulo II, Fundamentação, pontos 14, 15 e 17 da matéria de facto dada como provada.

2.14 Com efeito, da discussão da causa não resultou provado que a arguida, em representação da sociedade arguida, se tivesse apropriado da quantia de 174.300€ para outros fins.

2.15 O dinheiro, desde logo, não entrou na sociedade

2.16 Não resultou também provado que a arguida actuou da forma descrita bem sabendo que os valores respeitantes ao IVA e efectivamente entregues pelos clientes não lhe pertenciam e que deviam ser entregues à Administração Fiscal.

2.17 Os valores não lhe foram efectivamente entregues pelos seus clientes/adquirentes nem tinham legalmente de o ser.

2.18 Finalmente, como consequência natural dos primeiros dois factos impugnados, não resultou igualmente provado que a arguida, em representação e no interesse da sociedade arguida, actuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era prevista e punida por lei. 2.19 As provas que impunham e impõem uma decisão diversa já estão supra elencadas, resultando da conjugação dos depoimentos de todas as testemunhas, sem excepção, do depoimento da arguida e da prova documental, com destaque para as declarações periódicas de IVA.

2.20 Em cumprimento do comando legal constante do artigo 412, nº 4, in fine, do Código de Processo Penal, a recorrente indica concretamente as passagens em que funda a sua impugnação da matéria de facto supra referida, o que faz nos pontos 53 a 61 desta motivação.

2.21 Por outro lado, mesmo uma teórica conservação incólume de toda a factualidade não deixará de impor a conclusão de que existe na decisào a quo o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

2.22 E que o tribunal a quo nunca deu como provado que a empresa co-arguida recebeu efectivamente dos seus clientes no 4o trimestre de 2007 a quantia de 174.300C referente ao IVA liquidado.

2.23 O tribunal nunca dá como provado que a empresa teve alguma vez esse dinheiro na sua posse, na sua esfera jurídica, fosse numa conta bancária ou noutro local qualquer.

2.24 Tal prova de recebimento efectivo de IVA, independentemente da questão civil que a dívida subjacente pode representar, era e é essencial para o preenchimento do crime, sendo irrelevante, de per si, uma conclusão quanto a uma pretensa apropriação, conceito jurídico que não prescinde do pressuposto factual prévio do real contacto com o dinheiro/valores de IVA.

2.25 No caso do IVA, só comete o crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105° do RGIT, aquele sujeito passivo que tendo efectivamente recebido o montante devido pela cobrança do imposto, estando por isso obrigado à sua entrega ao Estado, o não faça no prazo legalmente fixado para tal.

2.26 O pagamento do IVA liquidado e declarado é exigível logo que decorra o respectivo prazo, tenha ou não aquele sido recebido do devedor.

2.27 Mas se as coisas se passam assim a nível fiscal, não é, porém, licito concluir que para efeitos criminais, isto é da consumação de um crime de abuso de confiança fiscal, é indiferente saber se ocorreu ou não efectiva a cobrança do imposto aos clientes.

2.28 Importa não confundir a responsabilidade tributária pelo imposto devido com a responsabilidade penal tributária.

2.29 O facto gerador da responsabilidade tributária é autónomo da responsabilidade criminal: a obrigação tributária existe independentemente do crime.

2.30 O crime de abuso de confiança fiscal tem, como um dos seus elementos objectivos, a dedução ou o recebimento da prestação tributária, o que, no âmbito do imposto sobre o valor acrescentado (NA), significa que o devedor tributário só pode praticar esse crime se tiver recebido o montante da prestação tributária, se esta lhe tiver sido entregue pelo adquirente.

2.31 O que verdadeiramente interessa saber nestes autos é qual o valor da quantia de IVA, por facturação emitida no 4.° trimestre de 2007, que a sociedade arguida efectivamente recebeu até ao dia 15 de Fevereiro de 2008.

2.32 E da matéria de facto provada não resulta ter a sociedade recebido o valor em causa, nem da prova existente se pode retirar ter algum valor de IVA sido efectivamente recebido.

2.33 A matéria do regime de IVA por conta do adquirente, a que a sociedade estava sujeita em 2007, logo também no 4° trimestre de 2007 onde efectivamente não recebeu qualquer IVA dos seus Clientes, foi discutida e posta à consideração do tribunal a que durante o julgamento, não tendo obtido resposta.

2.34 A falta de elementos de facto relacionados com a questão acima indicada integra o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada da alínea a) do n.°2 do artigo 410° do Código de Processo Penal.

2.35 Tal vício resulta do texto da decisão recorrida e é de conhecimento oficioso, não se justificando, no caso dos presentes autos, o reenvio do processo por ser possível decidir já da causa.

2.36 Os autos contêm suficientes elementos de prova, entre a documentação neles constante e as declarações recolhidas em sede de audiência final, no sentido de se poder dar como assente que o IVA corria, no 4° trimestre de 2007, por conta do adquirente, por um lado, e por outro, que a sociedade não recebeu IVA dos seus Clientes nesse período.

2.37 Consequentemente, por qualquer dos dois caminhos trilhados chega-se à segura e justa conclusão de que a arguida deve ser absolvida.

2.38 É, por fim, feita a invocação da ilegalidade e da inconstitucionalidade material da norma presente no artigo 14, n° 1, do RGIT (Regulamento Geral de Infracções Tributárias).

2.39 Ao impedir que o julgador tenha em conta a situação financeira do condenado na decisão de suspensão da pena de prisão, mais concretamente ao impor ao condenado uma condição financeira automática sem a qual a suspensão não se pode aplicar, em total desrespeito pela capacidade ou incapacidade de cumprimento desse encargo financeiro por parte do condenado, a norma em causa viola os princípios gerais de direito, os princípios gerais do direito penal e o princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso.

2.40 Nesta matéria, os parâmetros legislativos com tradição no nosso ordenamento jurídico estão corporizados na norma definida pelo n" 2 do artigo 51° do CP cuja existência não pode ser atropelada por um diploma como o RGIT.

2.41 O artigo 14 do RGIT só se pode aplicar no decurso de um processo de verificação prévia dos pressupostos contidos nos artigos 50 e 51 do CP e não em processo de derrogação, total ou parcial, dos mesmos.

2.42 Consequentemente, interpretar-se a norma do artigo 14, n° 1 do RGIT no sentido de que é obrigatório ao julgador que verificar estarem reunidas as condições para a suspensão da pena condicionar a mesma ao pagamento automático da totalidade da prestação tributária, acrescida dos acréscimos legais, ainda que o condenado não tenha condições para pagar tais valores no prazo máximo de cinco anos fixado pela lei, representa urna violação dos artigos 50 e 51 do CP, especialmente do n° 1, alínea a) e do n° 2 deste último artigo, tornando a norma contida no artigo 14, n° 1 do RGIT ilegal.

2.43 Acresce que a aceitação aerifica de tal preceito legal também encerra um juízo de constitucionalidade material pot violação do princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso, sendo este último resultante de uma multiplicidade de normas da lei fundamental, máxime do artigo 18, n" 2 da Constituição da República Portuguesa.

2.44 Corno conclusão final, caso o tribunal ad quem indefira todas as primeiras razões de recurso da recorrente mas reconheça razão às críticas que em último lugar foram, em síntese, registadas sempre deverá, por ter poderes para tal e existirem dados suficientes nos autos, revogar e alterar o respectivo segmento condenatório, conformando-o ao regime imperativo constante dos artigos 50 e 51 do CP, nomeadamente, aplicando justa e criteriosamente os pressupostos enunciados no na 1, alínea) e no n° 2 do art° 51 do CP.

3. O recurso foi admitido, a subis imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, tendo sido apresentada resposta pelo Ministério Público, alegando que o recorrente não impugna correctamente a matéria de facto e pedindo o não provimento do recurso.

4. Neste Tribunal, o Exmo. PGA, apôs visto.

5. Colhidos os vistos legais, procedeu-se a conferencia.

6. O objecto do recurso, tal corno se mostra delimitado pelas respectivas conclusões,

reconduz-se à apreciação das seguintes questões:

- vício do art.410, n°2, al.a, CPP;

-impugnação da matéria de facto;

-condição de suspensão da execução da pena;


* * *

II° A decisão recorrida, no que diz respeito aos factos provados, não provados e respectiva fundamentação, é do seguinte teor:

A) Matéria de Facto Provada

Da discussão da causa com interesse para a decisão resultou provada a seguinte matéria de facto:

1. A "S...,Lda" teve a sua sede na Avenida (x), desde, pelo menos, 01/03/1991 e até 30/04/2010.

2. Tinha como sócios gerentes no registo comercial,  (a), (b), PC... e (c).

3. (a) renunciou à gerência em 31/12/2007.

4. (b) renunciou à gerência em 31/11/2009.

5. No entanto, pelo menos desde 2005, apenas a arguida PC... era gerente de facto da sociedade, assumindo as responsabilidades do cumprimento das obrigações fiscais da sociedade.

6. A sociedade arguida é uma sociedade por quotas, que se dedica, desde 1991, à actividade de construção de casas para venda, compra e venda de propriedades e empreitadas de construção civil.

7. A sociedade arguida, no exercício da sua actividade, no quarto trimestre de 2007, apurou valores de I.V.A. a entregar ao Estado, com base no I.V.A. cobrado aos seus clientes nas facturas ou documentos equivalentes que emitiu pela transmissão de bens e pelos serviços que prestou.

8.   Em 10 de Fevereiro de 2008, a arguida PC..., em nome e representação da sociedade arguida, remeteu a declaração periódica de IVA, relativa ao quarto trimestre de 2007, no qual fez constar no campo 4 - IVA Liquidado - o montante de € 20.789,29, e, no campo 24 - IVA dedutível ­o montante de € 21.799,58.

9. Em 31 de Julho de 2008, a sociedade arguida, através da sua gerente PC..., remeteu declaração periódica de substituição de IVA referente ao mesmo período de imposto, mas alterando os valores declarados nos campos 4 - IVA liquidado - e 24 - IVA dedutível - para os valores de € 195.089,29 e € 196.099,58, respectivamente.

10. Por despacho de 08/02/2010, foi ordenada a realização de uma acção inspectiva por parte da administração tributária à sociedade arguida, detectando-se que os valores inscritos na declaração periódica de substituição apresentada quanto ao IVA dedutível não possuíam documentação de suporte, pelo que não foram aceites pela administração tributária.
11. Assim, e em consequência de tal acção inspectiva, a sociedade arguida, através da sua sócia gerente, veio a apresentar urna segunda declaração periódica de substituição, relativamente ao quarto trimestre de 2007, o que ocorreu em 8 de Junho de 2010.

12.Na declaração referida em 11., a sociedade arguida fez inscrever no campo do IVA dedutível a quantia de € 21.799,58 e no campo do IVA liquidado manteve o valor de € 195.089,29, apurando-se, da sua diferença, valor de imposto a pagar no montante de €, 174.300,00.
13. No entanto, apesar de ter procedido a tal liquidação, a sociedade arguida não fez acompanhar da declaração o montante para pagamento da dívida tributária.
14. Assim, a arguida, actuando em nome e representação da sociedade arguida, não procedeu ao pagamento do referido imposto deduzido aos seus clientes, apropriando-se da quantia de 174.300,00 para outros fins.

15. A arguida actuou da forma descrita, em nome e representação da sociedade arguida, bem sabendo que os valores respeitantes ao I.V.A. e efectivamente entregues pelos clientes não lhe pertenciam e que deviam ser entregues à Administração Fiscal.
16. A arguida, em representação e no interesse da sociedade arguida, não procedeu ao pagamento das quantias devidas a título de I.V.A. na respectiva data de vencimento, em 11/02/2008, nem após 90 dias sobre o termo do prazo legal para a sua entrega, nem após 30 dias após a notificação para o efeito

17.A arguida, em representação e no interesse da sociedade arguida, actuou de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era prevista e punida por lei.

18.A "S...,Lda." foi declarada insolvente por sentença datada de 25 de Janeiro de 2011.

Mais se provou, com interesse para a decisão do mérito:

19.A arguida PC... possui, como habilitações literárias, o 12.° ano de escolaridade.

20. Encontra-se, desde o ano de 2010, numa situação de desemprego, não auferindo qualquer tipo de subsídio ou de apoio estatal.

21. Vive na companhia dos seus dois filhos, que contam as idades de 16 anos e de 7 anos, respectivamente, pagando o ex-marido da arguida e pai destes, a título de pensão de alimentos, a quantia mensal de 400,00 (quatrocentos euros), sendo frequente este ajudar, atribuindo mais
dinheiro o agregado familiar.

22.A arguida vive numa casa arrendada, sendo de € 200,00 (duzentos euros) o valor mensal da renda, cujo pagamento é suportado pelo ex-marido da arguida.

23.A arguida PC... não tem condenações averbadas no registo criminal.

24. A "S...,Lda." não tem condenações averbadas no registo criminal.

B) Matéria de Facto Não Provada

Da discussão da causa, resultaram provados todos os factos constantes da acusação, pelo que inexistem factos não provados.

O Motivação da Matéria de Facto

O Tribunal formou a sua convicção com base na apreciação crítica da documentação junta aos autos, designadamente a que integra fls. 44, 50 a 54, 55 a 58, 90 a 99, 124 a 127, 133 a 140, 214 a 216, 219 a 225, 229 a 234 e 238 a 241, e do conjunto das provas examinadas e/ou produzidas em audiência de julgamento.

A factualidade vertida sob os n.°s 1., 2., 3. e 4. encontra-se demonstrada com base no :cor da certidão permanente de fls. 229 a 234.

Para prova da factualidade enunciada nos pontos 7., 8., 9., 11. e 12., o tribunal firmou a sua convicção na análise crítica das declarações periódicas de IVA de fls. 238 e 239, de fls. 240 e 241 e da informação contabilística de fls. 124 a 127.

Quanto à não entrega nos cofres do Estado dos montantes indicados sob o n.° 12, para além de a arguida PC... ter reconhecido tal facto, atendeu-se, ainda, ao documento de fls. 126 e 127, ao auto de notícia de fls. 44 e bem assim à documentação contabilistica de fls. 90 a 99.

Acresce que a testemunha (x), a inspectora tributária que elaborou o relatório que integra fls. 219 a 225, asseverou ao Tribunal que da quantia de € 174.300,00, a que é feita menção em 12., nada foi pago ao Estado.

Atendeu-se, igualmente, ao depoimento testemunhal de (y), que deu conta ao tribunal de ter desempenhado as funções de técnica oficial de contas, na "S...,Lda", desde a data da respectiva constituição e até ao ano de 2009, tendo explicitado que a partir do ano de 2004 passou a tratar de todo e qualquer assunto relativo à empresa, única e exclusivamente, com a ora arguida PC..., sendo esta que lhe entregava toda a documentação relativa à sociedade, e com quem, sempre que necessário, falava dos assuntos relativos á sociedade, ou pelo telefone, ou pessoalmente, quando a ora arguida se deslocava ao escritório da testemunha, tendo esclarecido que todas as declarações periódicas de

IVA, incluindo as duas declarações periódicas de substituição, a que é feita menção nos pontos 9. e 11. da Matéria de Facto, foram efectuadas e remetidas à administração tributária com prévio conhecimento da ora arguida, tendo sempre mantido a ora arguida a par de tudo o que se passava.

A testemunha Maria Conceição Filipe respondeu de forma congruente a todas as questões que lhe foram colocadas, justificando a razão de ser do seu conhecimento directo dos factos, o que fez sem qualquei outro desígnio que não o de colaborar com o tribunal na descoberta da verdade, motivo pelo qual nos mereceu credibilidade, tendo o seu depoimento sido determinante para o tribunal firmar a sua convicção que, no período a que respeitam os factos, a saber, entre o quarto trimestre do ano de 2007 e o mês de Junho de 2010, a ora arguida PC... não só exerceu a gerência de facto da sociedade arguida, como foi a única pessoa que o fez, motivo pelo qual as declarações prestadas pela arguida, no sentido de, no período em questão, quase não se ter deslocado à empresa, e de ter sido o seu pai  (a) a tratar, no período em análise (até ao dia 31/12/2007), dos assuntos da sociedade, não nos mereceram credibilidade, tanto mais que a arguida afirmou que ao longo da sua existência, a única contabilista que a "S...,Lda" teve foi a referida (y).
Pelo mesmo fundamento, não nos mereceu credibilidade o depoimento da testemunha (l), ex-marido da arguida PC..., com quem esteve casado entre os anos de 1995 e de 2010, e ex‑ funcionário da "S...,Lda", funções que cessou no ano de 2009, quando afirmou que até ao final do ano de 2007 foi o seu sogro  (a) a pessoa que tomou todas as decisões referentes ao funcionamento da empresa, e quando asseverou que ao longo dos anos de 2006 e de 2007 a arguida esteve sempre em casa e nunca se deslocou ao escritório da contabilista para entregar documentação, sendo certo que, neste particular, o depoimento da testemunha foi contrariado pelas declarações da própria arguida PC....

A notificação das arguidas, nos termos do artigo 105.°, n.° 4, al b) do RGIT, consta de fls. 55 e 55v., de fls. 56 e 56v., de fls. 57 e 57v. e de fls. 58 e 58v. dos autos, respectivamente.

O tribunal socorreu-se, ainda, de uma presunção natural no que tange aos factos subjectivos constantes dos pontos 15. e 17., porquanto os factos objectivos provados, de acordo com as regras da experiência comum, permitem inferir estes factos subjectivos. Que a arguida PC... agiu com vontade livre e consciente corresponde ao normal do agir humano, nada tendo sido alegado que ponha em causa essa liberdade de decisão.
O facto sob o n.° 18 assenta no teor da sentença, proferida no âmbito dos autos de insolvência de pessoa colectiva n.° 889/10.5 TYLSB, que correram os seus termos no 1.° Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa, cuja cópia integra fls. 133 a 140.
Os factos dos pontos 19. a 22. resultaram provados, tendo por base as declarações da arguida e da testemunha Luís Jesus quanto às condições pessoais, laborais e económicas da primeira, que se consideraram credíveis, não sendo postas em causa, mostrando-se a ausência de antecedentes criminais de ambas as arguidas certificada a fls. 366 e a fls. 374, respectivamente, ambos com data de emissão de 19/03/2014.

III° 1. A recorrente Invoca o vício da al. a, do nº2, do art.410, CPP.

Este preceito legal admite o alargamento dos fundamentos do recurso às hipóteses previstas nas suas três alíneas, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada COM as regras experiência comum.

Verifica-se o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (al.a), quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição[1].

A recorrente, refere-se a este vício, alegando que interessa saber qual o IVA efectivamente recebido pela empresa arguida no 4° trimestre de 2007, uma vez que o IVA corria por conta dos clientes na sequência das alterações introduzidas ao CIVA pelo Dec. Lei n°27/07, de 291an.

Este diploma legal, como consta do respectivo preâmbulo "... vem adoptar... uma outra faculdade conferida pela Directiva n° 2006/ 69/ CE, do Conselho, de 24 de Julho. Assim, por via da inversão do sujeito passivo, passa a caber aos adquirentes ou destinatários daqueles serviços, quando se configurem como sujeitos passivos com direito à dedução total ou parcial do imposto, proceder à liquidação do IVA devido, o qual poderá ser também objecto de dedução nos termos geral?.

Assim, o art.2, do CIVA, sob a epígrafe " Incidência subjectiva", na al. j, do n° l, passou a ter a seguinte redacção:

"... As pessoas singulares ou colectivas referidas na alínea a) que disponham de sede, estabelecimento estável ou domicílio em território nacional e que pratiquem operações que confiram o direito à dedução total ou parcial do imposto, quando sejam adquirentes de serviços de construção civil, incluindo a remodelação, reparação, manutenção, conservação e demolição de bens imóveis, em regime de empreitada ou subernpreitada".

Consagrou este diploma legal, a inversão do sujeito passivo do IVA, aplicável às empresas de construção civil, dependente, porém, de dois factores: é necessário que esteja em causa a existência de serviços de construção civil e que o adquirente seja um sujeito passivo de IVA que pratique operações que confiram, total ou parcialmente, o direito à dedução do imposto.

Esta inversão não se aplica quando o adquirente dos serviços não é sujeito passivo de IVA, pratica exclusivamente operações isentas que não conferem direito à dedução (vulgo sujeitos passivos
abrangidos pelo art.9 ou pelo art.53 do CIVA), ou é sujeito passivo que apenas o é porque efectua aquisições intracomunitárias (sujeitos passivos abrangidos pelo art.9 ou pelo art.53 do CIVA e Estado, nas condições definidas no art. 5 do RITI).

Por outro lado, este regime só entrou em vigor em Janeiro de 2007 (art.6, do citado Dec. Lei n°27/07), não sendo, por isso, aplicável a operações anteriores.

No caso, o tribunal recorrido ignorou em absoluto esta questão, apesar de estar em causa uma sociedade prestadora de serviços de construção civil, hipótese em que em relação a serviços prestados no decurso do ano de 2007, para adquirente não abrangido pelos referidos casos de exclusão, a regra era a da inversão do sujeito passivo.

Alega o Ministério Público, na resposta apresentada em 1ª instância, que a documentação junta aos autos demonstra que não existiu IVA por conta do adquirente.
Contudo, o que resulta das facturas juntas a fls.91 a 97, relativas a serviços prestados pela sociedade arguida em Nov. e Dez.07 é que nas mesmas não foi liquidado IVA, sinal da aplicação do regime da inversão do sujeito passivo do IVA, pelo menos em relação a essas operações.

Por outro lado, apoia aquela afirmação no documento de fls.239, quando essa é a declaração inicial, ignorando as declarações de substituição, em particular a segunda declaração de substituição junta a fls.241, de onde não é possível retirar a inexistência de operações com IVA. por conta do adquirente.

Defende o recorrente que é possível sanar este vício com os elementos disponíveis nos autos.

Contudo, não constando dos autos todas as facturas que justificaram a apresentação da segunda declaração periódica de substituição (referida no n°11 dos factos provados), não é possível concluir que em relação a todos os serviços prestados pela arguida sociedade e incluídos nessa declaração ocorreu inversão do sujeito passivo do IVA, pois podem aí ter sido incluídos serviços prestados antes de 2007 (quanto não estava em vigor este regime jurídico), ou relativos a casos excluídos da inversão, acima referidos, hipóteses em que o prestador de serviços tem de liquidar o respectivo IVA.
Actualmente, a doutrina e jurisprudência maioritárias consideram que[2]

Deste modo, estando em causa agente económico que, pelos menos em relação a alguns serviços, não estava obrigado a liquidar o imposto (por estarem em causa operações sujeitas à inversão do sujeito passivo do IVA, em que o imposto recaía sobre o adquirente), impunha-se que o tribunal averiguasse quais as operações concretas e respectivos valores em que tal inversão não ocorreu, só assim sendo possível concluir, com segurança, qual a quantia concreta de IVA recebido em cuja apropriação a recorrente participou.

Não basta aceitar acriticamente o que consta da declaração periódica de substituição, elaborada pelo TOC, importando apurar a que regime de IVA o sujeito passivo estava obrigado no período em referência, como foram facturados os serviços que conduziram aos proventos constantes de tal declaração e qual o valor concreto a título de IVA incluído nas respectivas facturas e efectivamente recebido.

Não constando dos autos, como se referiu, todos os elementos necessários a apurar esses factos, impõe-se o reenvio do processo para novo julgamento em relação à totalidade do objecto do processo (art.426 e 426 A, CPP).

*

IV° DECISÃO:

Pelo exposto, os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, dando provimento ao recurso da arguida PC..., acordam em revogar a sentença recorrida, reenviando o processo para novo julgamento, em relação à totalidade do objecto do processo, nos termos dos arts.426 e 426 A, CPP.

Sem tributação.

Lisboa, 24 de Março de 2015

(Relator: Vieira Lamim)

(Adjunto: Ricardo Cardoso)


[1] Ac. do S.T.J. de 6Abr.00, no B.M.J. n°496, pdg.169
[2] Neste sentido, entre outros:
-Ac. desta Secção, de 7 Maio13 (Relator Artur Varggues, P° n°169/09.9IDFUN.L1-5, acessível em www.dgsi.pt) " …  III - Só comete o crime de abuso de confiança  fiscal, previsto e punido pelo artigo 105° n.° 1 e n.° 2 do AGTF, quem não proceda à entrega ao Estado, no prazo legalmente fixado para tal, do montante de imposto que efectivamente recebeu no concreto período em causa: IV-Não se mostrando apurado o montante da facturação da sociedade arguida com incidência em cada uma das declarações periódicas e, consequentemente, qual o valor do IVA liquidado, mas não recebido, que a cada uma delas diz respeito, a sentença padece de vício de "insuficiência para a derisão da matéria de facto provada", a que alude o artº 410°, n° 2, al a), do CPP";
-Ac. deste Tribunal da Relação de Lisboa, de 21Nov.13 (Relator Carlos Benido, Proc. 22/10.31DFUN.L1 9ª Secção, sumário acessível em www.pgdl.pt) "Tratando-se do IVA, para que se mostre preenchido o crime de abuso de confiança fiscal (artº 105° do RGIT) é pressuposto o efectivo recebimento da prestação tributária, na medida em que o devedor só fica obrigado á sua entrega ao Estado se o adquirente lhe entregou o montante respectivo",
-Ac. do Trib. Relação de Guimarães de 22Abr.13 (Relator Cruz Bucho, P°520/11.1IDERG.G1, acessível em www.dgsi.pt) " I — O dever fiscal de entrega de IVA não recebido não gota de proteção penal, por atipifidade do facto. II — O efetivo recebimento da prestação tributária é pressuposto essencial do crime de abuso de confiança
-Ac. do Trib. da Relação de Évora de 10Set.13 (Relator António João Latas, P° 346/09 2IDSTB.E1, acessível em www.dgsi.pt) " I — Para o cometimento do crime de abuso de confiança fiscal, quando se trate de prestações tributárias releremos a IVA, é necessário que fique demonstrado o efectivo recebimento do correspondente montante pelo sujeito passivo obrigado à sua entrega ao Estado até ao momento da entrega das respetivas declarações periódicas à Autoriade Tributária. II — Não tendo o tribunal diligenciado pelo apuramento das concretas datas do recebimento parcial ou total do IVA com reprimia ao momento estabelecido para a entrega de cada uma das sobreditas declarações e do imposto devido, incorreu no vicio de insuficiência para a deeisdo da matéria de facto provada".
-Ac. do Trib. de Coimbra de 22Jan.14 (Relator Jorge Dias, P° 49/085IDAVR.C2, acessível em www.dgsi.pt) " No âmbito do IVA, o devedor tributário só comete o crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido pelo artigo 105º, da AGIT., se tiver recebido o montante da prestação tributária e esteja, por isso, obrigado à soa entrega ao Estado, o não faça no prazo legalmente fixado para tal'.