Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3243/16.1T8CSC.L1-8
Relator: MARIA DO CÉU SILVA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
TESTAMENTO
ENCARGOS
INCUMPRIMENTO
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/04/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1.- Não constando das conclusões recursivas a especificação dos pontos de facto que a recorrente entende terem sido incorrectamente julgados nem da decisão que, no entender daquela, deve ser proferida sobre a questão de facto impugnada, importa rejeitar o recurso na parte referente à impugnação da decisão da matéria de facto.
2 - Tendo as partes assumido a dispensa do pagamento da pensão mensal durante quase 8 anos, a invocação pela A. de vício formal do ato de dispensa do pagamento da pensão constitui abuso do direito.
3 - Na data em que o testamento foi feito, era o Código da Contribuição Predial que estava em vigor, pelo que declarar o testador que “os legados que acaba de instituir não são passíveis de qualquer encargo fiscal para os respectivos legatários” não é dispor contrariamente à lei.
4 - Se o não pagamento da pensão à A. confere a esta o direito à resolução da disposição testamentária, então, tal como ela pode não exercer esse direito, também pode dispensar os RR. de pagar a pensão.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa

Na presente ação declarativa que Santa Casa da Misericórdia… move contra A… e  R…, a A. interpôs recurso da sentença pela qual foi julgada a ação improcedente por não provada e, em consequência, foram os RR. absolvidos dos pedidos contra si deduzidos.
Na alegação de recurso, a recorrente pediu que seja a sentença recorrida substituída por outra que “declare a anulação do legado de usufruto deixado aos ora RR. em consequência do incumprimento do encargo estabelecido pelo testador, determinando a procedência da pretensão da Autora, operando a condição resolutiva que atribui o legado de usufruto aos RR., por falta de pagamento” e, “em consequência, determine a entrega do anexo à A., na qualidade de herdeira e proprietária do mesmo”.
A recorrente formulou as seguintes conclusões:
“1. Por testamento outorgado em 19-05-1978, J… deixou o usufruto do anexo do prédio… ao Senhor A… e esposa e ao filho de ambos R…, com o encargo duma pensão mensal de 1.000$00 (€4,98) a favor da Santa Casa da Misericórdia…
2. Em testamento, dispôs o seguinte: “Deixa o usufruto do anexo do referido prédio …, ao Senhor A… e esposa e ao filho de ambos R…, com o encargo duma pensão mensal de mil escudos a favor da Santa Casa da Misericórdia…
(…) Os legados que acaba de instituir não são passíveis de qualquer encargo fiscal para os respectivos legatários, mas a falta de pagamento, pelos legatários, das pensões nos termos que deixa estabelecidos implica automaticamente a anulação dos respectivos legados em proveito da herdeira (…) do remanescente. (…)
Deixa a nua propriedade do mesmo prédio à referida Santa Casa da Misericórdia…, a qual institui herdeira do remanescente dos seus bens.”
3. Desde Dezembro de 2008 que os RR. deixaram de pagar à A. a pensão referida no testamento invocando que, através de conversa telefónica entre a 2.ª R. e um colaborador da Santa Casa da Misericórdia… a A. isentou os RR. do pagamento do encargo de 1.000$00 devidos à A., a título de pensão prevista no testamento, em contrapartida do pagamento, por estes, do IMI referente ao anexo objecto de usufruto.
4. O que não corresponde à verdade.
5. E que o tribunal a quo extraiu com base apenas nos depoimentos de um dos RR. e a testemunha F…, sobrinho dos RR.
6. Pese embora, segundo o artigo 44.º, n.º 1, alínea f) do EBF, a A. esteja, desde logo isenta do pagamento de IMI.
7. E a obrigação do pagamento deste imposto impenda sobre o sujeito passivo, neste caso os RR., na qualidade de usufrutuários, nos termos e para efeitos do artigo 8.º, n.º 2 do CIMI. Pelo que não poderia o testador dispor contrariamente à lei no respeitante ao pagamento deste imposto concreto que nunca seria da responsabilidade da A.
8. Esvaziando-se por completo o argumento que a dispensa do pagamento da pensão devida à A. seria por conta do pagamento do IMI pela A, que, legalmente, está impedida de o assumir.
9. Tendo os RR. mantido na sua titularidade o direito real de habitação sobre o anexo do imóvel, que ocupou na sua totalidade, impende sobre a mesma a obrigação de suportar o IMI relativo aos anos de 2008 e seguintes.
10. Decorrendo da lei tal obrigação não poderia o testador substituir-se à lei.
11. Nem faria sentido, face ao exposto e ao que prevê a lei que, apenas mediante conversa telefónica com colaborador da A. a mesma dispensasse os RR. do pagamento do IMI em troca do encargo que lhes fora imposto pelo testador aquando do usufruto em troca do cumprimento de obrigação que, por lei, obriga desde logo os RR. na qualidade de usufrutuários e não a A.
12. E que, nos termos da lei, está ainda isenta do pagamento desse imposto.
13. Esse acordo verbal, mediante conversa telefónica alegadamente estabelecida entre a 2ª R. e um colaborador da A., a existir, não produz quaisquer efeitos nem vincula a A. perante terceiros.
14. Porquanto não cumpre os requisitos e formalidades essenciais.
15. O acordo verbal de dispensa do pagamento da pensão mensal devida pelos RR. por conta do IMI por eles directamente suportado não foi objecto de qualquer deliberação, não revestiu forma escrita e não foi assinada pelos órgãos com competência para o efeito.
16. Ora, “A condição contrária à lei ou à ordem pública, ou ofensiva dos bons costumes, tem-se igualmente por não escrita, ainda que o testador haja declarado o contrário, salvo o disposto no artigo 2186.º”, à luz do disposto nos artigos 2229.º e 2230.º, n.º 2 do Código Civil.
17. Dando-se por provada pelo depoimento indirecto das testemunhas supra referidas e que teve lugar com colaborador da A., que não vincula nem poderia vincular a Instituição.
18. Tal argumento para justificação da falta de pagamento da pensão estabelecida só pode improceder por falta de suporte legal para produção de quaisquer efeitos jurídicos.
19. Independentemente do depoimento do R. e seu sobrinho, testemunha com manifesto interesse no desfecho da causa.
20. Decorre expressamente do testamento quando dispõe o testador que “a falta de pagamento, pelos legatários, das pensões nos termos que deixa estabelecidos implica automaticamente a anulação dos respectivos legados em proveito da herdeira (…) do remanescente.”
21. Dispõe o artigo 2248.º, n.º 1, 2ª parte, do Código Civil que “Qualquer interessado pode também pedir a resolução da disposição testamentária pelo não cumprimento do encargo, se o testador assim houver determinado, ou se for lícito concluir do testamento que a disposição não teria sido mantida sem o cumprimento do encargo.”
22. Cuja referência é manifesta no testamento fazendo culminar a falta de pagamento, de forma expressa na anulação do legado do usufruto em proveito da A., na qualidade de herdeira e proprietária.”
Os RR. não responderam à alegação da recorrente.
São as seguintes as questões a decidir:
- da impugnação da decisão sobre a matéria de facto; e
- da validade da dispensa do pagamento da pensão.
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Na sentença, foram dados como provados os seguintes factos:
“1. Sob a descrição n.º …, da freguesia da…, encontra-se descrito, junto da 1.ª Conservatória do Registo Predial de…, o prédio urbano…, composto por uma moradia de rés--do-chão e 1.º andar, com entrada pelo n.º 10, designada «Vivenda…» e por uma moradia de dois corpos designada «Anexo da Vivenda…», com entrada pelo n.º 10-A, o qual abrange os artigos matriciais…
2. Sob a apresentação n.º 10, de 09-04-1935 mostra-se inscrita a aquisição por J…, casado, do prédio referido em 1.
3. Aquando do casamento do 1.º R., em data não concretamente apurada, J… cedeu ao 1.º R. e à sua mulher o «Anexo da Vivenda…», para aí residirem.
4. Em data não concretamente apurada, por sugestão da mulher do 1.º R., M…, no sentido de pagarem a J… algum valor pela ocupação do Anexo, os RR. passaram a pagar a J… a quantia de 1.000$00 mensais.
5. Por testamento cerrado, datado de 02-07-1964 e aprovado na mesma data pela Notária…, do Segundo Cartório Notarial de…, cuja cópia se mostra junta como doc. n.º 1 da petição inicial, sob a referência citius 8458907, de 11-11-2016, Al… declarou, além do mais, o seguinte:
«Lego a meu referido marido J…, em propriedade plena, todos os mobiliários existentes na minha casa de habitação e que constituem todo o recheio da mesma casa. Do remanescente de todos os meus bens, direitos e ações, instituo herdeiro do usufruto, enquanto vivo for, o mesmo meu marido, e herdeira da nua propriedade dos mesmos bens, a Santa Casa da Misericórdia do concelho de…»
6. Al... faleceu em 06-04-1978, no estado de casada com J…
7. Al… deixou o testamento referido em 5.
8. Por testamento outorgado em 19-05-1978, na Secretaria Notarial de…, perante a Notária…, do 2.º Cartório Notarial de…, cuja cópia se mostra junta como segundo documento da petição inicial, sob a referência citius 8458907, de 11-11-2016, J…, viúvo, declarou, além do mais, o seguinte:
«Lega o usufruto do primeiro andar do prédio urbano sito…, a H… e esposa e à filha de ambos… com o encargo duma pensão mensal de mil escudos a favor de Santa Casa da Misericórdia…
Deixa o usufruto do anexo do referido prédio com entrada pelo número dez-A, ao Senhor A… e esposa e ao filho de ambos R…, com o encargo duma pensão mensal de mil escudos a favor de Santa Casa da Misericórdia…
Que estes usufrutos são simultâneos e sucessivos. Que as referidas pensões vencem--se no primeiro dia útil do mês seguinte ao seu falecimento e remetidas à Santa Casa da Misericórdia… nos primeiros dez dias a que respeitam. Os legados que acaba de instituir não são passíveis de qualquer encargo fiscal para os respetivos legatários, mas a falta de pagamento, pelos legatários, das pensões nos termos que deixa estabelecidos implica automaticamente a anulação dos respetivos legados em proveito da herdeira do (…) remanescente. Os legatários deverão manter limpos, utilizáveis e em bom estado de conservação os locais legados.
Deixa a nua propriedade do mesmo prédio à referida Santa Casa da Misericórdia…, a qual institui herdeira do remanescente dos seus bens.»
9. J… faleceu em 19-08-1978.
10. Em data não concretamente apurada, mas anterior a 31-12-2008, o anexo da Vivenda… que integra o imóvel referido em 1, foi inscrito na matriz predial urbana em nome dos RR., na qualidade de usufrutuários do mesmo.
11. Pelo menos desde 2008 que a Administração Tributária liquida como obrigação tributária dos RR. o IMI relativo ao anexo referido em 8.
12. Em data não concretamente apurada do ano de 2008, a 2.ª R., …, contactou telefonicamente a A. acerca do IMI cobrado aos RR. e esta dispensou os RR. de pagarem a pensão mensal de 1.000$00 (4,98 €) como contrapartida de assumirem o pagamento do IMI do imóvel.
13. Desde dezembro de 2008 que os RR. não pagam à A. a pensão de 1.000$00 referida no testamento mencionado em 8 dos factos provados.
14. Entre 2009 e 2016, os RR. procederam ao pagamento à Administração Tributária, a título de IMI relativo ao anexo referido em 8, os seguintes valores:
14.1. Por referência ao ano de 2008, 226,66€
14.2. Por referência ao ano de 2009, 235,14€
14.3. Por referência ao ano de 2010, 235,14€
14.4. Por referência ao ano de 2011, 235,14€
14.5. Por referência ao ano de 2012, 243,96€
14.6. Por referência ao ano de 2013, 217,86€;
14.7. Por referência ao ano de 2014, 217,86€;
14.8. Por referência ao ano de 2015, 217,86€.
15. A A. teve contacto com o R. R… acerca do registo e legalização do Anexo a que se reportam os autos, desde data não concretamente apurada, mas anterior à propositura da presente ação.
16. Antes da propositura da presente ação, a A. não contactou os RR. acerca da cessação do pagamento da pensão referida em 13.”
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No requerimento de interposição do recurso, a recorrente refere que o recurso é “com reapreciação da prova gravada”.
O art. 640º do C.P.C. dispõe o seguinte:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
“Todavia, para que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto seja admitida, não é necessário que todos os ónus estabelecidos no artigo 640º, do CPC, constem obrigatoriamente da síntese conclusiva.
Nesta conformidade, enquanto a especificação dos concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados deve constar obrigatoriamente da alegação e das conclusões recursivas, já não se torna forçoso que constem da síntese conclusiva a especificação dos meios de prova, e muito menos, a indicação das passagens das gravações.
Quanto a elas, basta que figurem no corpo da alegação, desde que nas conclusões se identifique, com clareza, os concretos pontos de facto que se impugnam e a decisão que sobre eles se pretende que recaia” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ de 12 de julho de 2018, processo 167/11.2TTTVD.L1.S1).
A recorrente não indicou, nas conclusões, por referência aos concretos pontos de facto que constam da sentença, aqueles que entende terem sido incorretamente julgados.
Nas conclusões recursivas, a recorrente não especificou também a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre a questão de facto impugnada.
“Ora, por menor exigência formal que se adote relativamente ao cumprimento dos ónus do art. 640º do CPC e em especial dos estabelecidos nas suas alíneas a) e c) do nº 1, sempre se imporá que seja feito de forma a não obrigar o tribunal de recurso a substituir-se ao recorrente na concretização do objeto do recurso. É o recorrente quem tem que proceder, nas conclusões, à indicação precisa do que pretende do tribunal «ad quem», como corolário não só o princípio do dispositivo, como também da autorresponsabilização das partes” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 16 de maio de 2018, processo 2833/16.7T8VFX.L1.S1).
Apesar de a recorrente pretender, conforme referido no requerimento de interposição do recurso, a reapreciação da prova gravada, nem nas conclusões recursivas nem no corpo das alegações indicou as passagens das gravações em que se funda o seu recurso.
“… relativamente ao recurso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não há lugar ao despacho de aperfeiçoamento das respectivas alegações “(www.dgsi.pt Acórdão do STJ proferido a 27 de setembro de 2018, processo 2611/12.2TBSTS.L1.S1).
Assim, rejeita-se o recurso na parte referente à impugnação da decisão da matéria de facto.
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A recorrente afirmou que foi dado por provado que o contacto telefónico foi “com colaborador da A.” e que este “não vincula nem poderia vincular a Instituição”.
Contudo, a recorrente incorreu em erro, pois o que consta do ponto 12 da matéria de facto provada é que, “em data não concretamente apurada do ano de 2008, a 2.ª R., …, contactou telefonicamente a A. acerca do IMI cobrado aos RR. e esta dispensou os RR. de pagarem a pensão mensal de 1.000$00 (4,98 €) como contrapartida de assumirem o pagamento do IMI do imóvel”.
A recorrente invocou a inobservância da forma de a A. se obrigar.
Nos termos do art. 19º dos Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social, aplicável às irmandades da Misericórdia por força do art. 69º, “a instituição fica obrigada com as assinaturas conjuntas de quaisquer 3 membros do órgão de administração ou com as assinaturas conjuntas do presidente e do tesoureiro, salvo quanto aos atos de mero expediente, em que basta a assinatura de um membro do órgão de administração ou de gestão corrente”.
Nos termos do art. 334º do C.C., “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
A jurisprudência tem admitido, em situações excepcionais e bem delimitadas, que possa decretar-se a inalegabilidade pela parte de um vício formal do acto jurídico, decorrente da preterição das normas imperativas que, à data da respectiva celebração, com base em razões de interesse público, regiam a forma do acto - acentuando, porém, que esta solução (conduzindo ao reconhecimento do vício da nulidade, mas à paralisação da sua normal e típica eficácia) carece de ser aplicada com particulares cautelas, não podendo generalizar-se ou banalizar-se, de modo a desconsiderar de modo sistemático o conteúdo da norma imperativa que regula a forma legalmente exigida para o acto.”
“…tem-se admitido a paralisação da invocabilidade da nulidade por vício de forma:
- quando é claramente imputável à parte que quer prevalecer-se da nulidade a culpa pelo desrespeito das regras legais que impunham a celebração do negócio por determinada forma qualificada, obstando a que possa vir invocar-se um vício que a própria parte causou com o seu comportamento no momento da celebração do negócio, agindo de modo preterintencional ou, pelo menos, com culpa grave (…);
- quando a conduta das partes, sedimentada ao longo de período temporal alargado, se traduziu num escrupuloso cumprimento do contrato, sem quaisquer pontos ou focos de litigiosidade relevante, assumindo estas inteiramente os direitos e obrigações dele emergentes - e criando, com tal estabilidade e permanência da relação contratual, assumida prolongadamente ao longo do tempo, a fundada e legítima confiança na contraparte em que se não invocaria o vício formal, verificado aquando da celebração do acto” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ de 17 de Março de 2016, processo 2234/11.3TBFAF.G1.S1).
Resulta da matéria de facto provada que “desde dezembro de 2008 que os RR. não pagam à A. a pensão de 1.000$00” e que, “antes da propositura da presente ação, a A. não contactou os RR. acerca da cessação do pagamento da pensão”.
Tal significa que as partes assumiram a dispensa do pagamento da pensão durante quase 8 anos.
Assim, a invocação pela A. de vício formal do ato de dispensa do pagamento da pensão constitui abuso do direito.
Na fundamentação da sentença recorrida, pode ler-se:
o autor da sucessão não deixou também de regular, nas relações entre os seus herdeiros e legatários, quem deveria suportar os encargos fiscais sobre o imóvel deixado em usufruto aos RR., com a propriedade de raiz para a A., consignando, de forma taxativa, na sua deixa testamentária que «Os legados que acaba de instituir não são passíveis de qualquer encargo fiscal para os respetivos legatários …».
Assim, independentemente do regime legal ou fiscal aplicável – que poderá, como sucede in casu, eleger como sujeitos passivos de determinadas obrigações tributárias os legatários dos usufrutos instituídos em testamento por J… (cf. artigo 8.º, n.º 2, do Código do IMI) – no conjunto de posições jurídicas que o testador pretendeu criar relativamente à sua herança, este declarou não pretender que os encargos fiscais inerentes aos imóveis legados e que viessem a ser devidos (necessariamente após a sua morte) ficassem a cargo dos legatários.
Ao isentar os legatários de tais obrigações fiscais (não perante as autoridades tributárias, a quem a vontade dos proprietários não se sobrepõe, mas perante todos os que viessem a ser titulares da sua Herança), o de cujus fez pender sobre a A. (na qualidade de herdeira que supra já se evidenciou, ex vi artigo 2030.º, n.º 3, do Código Civil) a obrigação de suportar tais encargos, no limite das forças da Herança recebida (cf. artigo 2068.º do Código Civil), independentemente de a A., perante a AT, estar ou não isenta do pagamento de determinados tributos.”
Discordamos desta interpretação, pois não tem em consideração que o imposto municipal sobre imóveis substituiu a contribuição autárquica e esta, por sua vez, substituiu a contribuição predial e que, na data em que o testamento foi feito, era o Código da Contribuição Predial que estava em vigor.
A contribuição predial incidia sobre os rendimentos dos prédios e não sobre os prédios.
Nos termos do art. 6º § 6º do Código da Contribuição Predial, “as pessoas singulares ou coletivas que beneficiem da cedência gratuita, a título precário, de quaisquer prédios pertencentes a entidades isentas de contribuição predial são obrigadas ao pagamento do imposto pelos rendimentos dos mesmos prédios”.
Assim, declarar o testador que “os legados que acaba de instituir não são passíveis de qualquer encargo fiscal para os respetivos legatários” não é, ao contrário do afirmado pela recorrente, dispor contrariamente à lei.
Na fundamentação da sentença recorrida, pode ler-se ainda:
entre A. e RR., na qualidade, respetivamente, de terceiro beneficiário e promitentes (na relação de contrato a favor de terceiro que a instituição do legado com encargo criou), estabeleceu-se uma relação bilateral de execução, na qual as partes acordaram, livremente, uma forma distinta de cumprimento do encargo a cargo dos RR. – em vez do pagamento da pensão mensal estabelecida, os RR. passaram a estar encarregues de pagar um encargo que, de acordo com o testamento, correria, como se viu, por conta da Herança (enquanto despesa de administração da mesma) e que, como tal, estaria a cargo da Herdeira do remanescente.”
Discordamos deste enquadramento. Ele assenta numa interpretação incorreta de disposição testamentária.
Resulta da matéria de facto provada que, “aquando do casamento do 1.º R., em data não concretamente apurada, J… cedeu ao 1.º R. e à sua mulher o «Anexo da Vivenda …», para aí residirem” e que, “em data não concretamente apurada, por sugestão da mulher do 1.º R., …, no sentido de pagarem a J… algum valor pela ocupação do Anexo, os RR. passaram a pagar a J… a quantia de 1.000$00 mensais”.
Pode-se, pois, considerar que passou a haver um arrendamento.
Resulta ainda da matéria de facto provada que, por testamento outorgado a 19 de maio de 1978, J… declarou deixar o usufruto do anexo ao R. A…, à esposa e ao R. R…, “com o encargo duma pensão mensal de mil escudos a favor de Santa Casa da Misericórdia…”, constando do testamento que “os legados que acaba de instituir não são passíveis de qualquer encargo fiscal para os respetivos legatários, mas a falta de pagamento, pelos legatários, das pensões nos termos que deixa estabelecidos implica automaticamente a anulação dos respetivos legados em proveito da herdeira do (…) remanescente”.
Pode-se, pois, considerar que, com o falecimento do testador, o que aparentemente era um arrendamento passou a ser um usufruto.
Com a sujeição dos legatários a encargo, manteve-se a obrigação de pagar a quantia mensal de Esc. 1.000$00 e, tal como a falta de pagamento da renda era fundamento da resolução do contrato de arrendamento, foi estabelecido que a falta de cumprimento do encargo implicava a “anulação” do legado.
Declarando o testador que “os legados que acaba de instituir não são passíveis de qualquer encargo fiscal para os respetivos legatários”, é legítimo concluir que ele, ao fazer o testamento nos termos em que o fez, teve em conta o disposto no art. 6º § 6º do Código da Contribuição Predial.
Com a entrada em vigor do Código do IMI e com a inscrição do anexo na matriz predial urbana em nome do R. A..., da esposa e do R. R…, como usufrutuários, aqueles, que talvez nunca tivessem pensado ter de pagar mais do que Esc. 1.000$00 por mês para residir no anexo, passam a ter de pagar o IMI, uma vez que, por força do art. 8º nº 2 do citado diploma, “nos casos de usufruto…, o imposto é devido pelo usufrutuário”.
Conforme resulta da matéria de facto provada, em 2008, a esposa do R. A… “contactou telefonicamente a A. acerca do IMI cobrado aos RR. e esta dispensou os RR. de pagarem a pensão mensal de 1.000$00 (4,98 €) como contrapartida de assumirem o pagamento do IMI do imóvel”.
Afirmou a recorrente que não faz sentido a A. dispensar os RR. do pagamento da pensão mensal “em troca” do pagamento do IMI que, por força do art. 8º nº 2 do Código do IMI, recaía sobre os RR. na qualidade de usufrutuários e não sobre a A.
O termo “contrapartida”, no caso concreto, não significa em troca, mas em compensação. Em compensação por os RR. terem de pagar o IMI, a A. dispensou aqueles do pagamento da pensão mensal.
Na fundamentação da sentença recorrida, pode ler-se:
“Nas palavras de Pedro Pais Vasconcelos (in «Teoria Geral do Direito Civil», 8.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2015, páginas 546 e 547), «O modo distingue-se bem da condição resolutiva. Desde logo, porque o modo vincula, enquanto a condição não vincula.», sendo certo que, como bem denota este Professor (ibidem), a distinção é possível mesmo relativamente à condição potestativa arbitrária (aquela em que a verificação do facto condicionante depende apenas da vontade de uma das partes), uma vez que «a condição resolutiva é um facto lícito que nada tem de ética ou juridicamente reprovável e que corresponde ao normal funcionamento, enquanto a resolução do modo por incumprimento envolve um ato ilícito, ética e juridicamente reprovável, que constitui um delito civil; o funcionamento da condição resolutiva está de acordo com o plano do direito, enquanto a resolução por incumprimento do modo está contra o plano do direito.».
Referindo-se, concretamente, à cláusula modal testamentária, Rabindranath Capelo de Sousa define-a como «cláusula acessória típica, pela qual o testador impõe aos herdeiros ou legatários (art. 2244.º) um encargo positivo (prestação pecuniária, de coisa ou de facto a favor de terceiro ou por alma do testador (…) É uma estipulação limitativa imposta pelo testador aos seus beneficiários (…)» (op. cit., página 216).
Ora, in casu, resulta evidente da deixa testamentária em análise que o pagamento da pensão fixada pelo testador, por parte dos legatários à herdeira do remanescente, constitui uma vinculação dos primeiros, na qualidade de beneficiários da deixa, de caráter obrigacional (uma obrigação de dare) constituindo a eventual resolução deste encargo por incumprimento (a «falta de pagamento» da pensão) o delito civil a que se reporta Pedro Pais de Vasconcelos no trecho da sua obra que acima se citou, o que permite qualificar a disposição testamentária em causa, indubitavelmente, como um modo ou encargo, afastando, assim, o regime legal da condição resolutiva a que a A. fazia apelo na sua petição inicial.
O modo ou encargo, por seu turno, tanto poderá ser obrigatório como resolutivo, «consoante as consequências estipuladas para o seu incumprimento. No primeiro caso, o desrespeito do modo poderá dar lugar à condenação do faltoso no cumprimento, no segundo à resolução da própria atribuição patrimonial modal.» (cf. Pedro Pais de Vasconcelos, op. cit., página 545), sendo certo que a destrinça encontra eco nos artigos 2247.º (modo obrigatório) e 2248.º (modo resolutivo) do Código Civil.
No caso sub judice dúvidas não existem que, por expressa determinação do testador (nos termos previstos no artigo 2248.º, n.º 1, primeira parte, do Código Civil) o encargo com que onerou o usufruto deixado aos RR. é resolutivo, pois, tal foi expressamente referido na disposição de última vontade: «… a falta de pagamento, pelos legatários, das pensões nos termos que deixa estabelecidos implica automaticamente a anulação dos respetivos legados em proveito da herdeira do (…) remanescente.».
Denote-se que, apesar de o testador ter referido que a falta de pagamento das pensões «implica automaticamente a anulação dos legados», à luz do regime legal existente, e perante o caráter que se entende injuntivo da norma contida no artigo 2248.º, n.º 1, do Código Civil, a menção testamentária em causa apenas tem o efeito jurídico de se considerar que o testador determinou que o não cumprimento do legado dará a qualquer interessado o direito de pedir a resolução da disposição testamentária, nos termos dessa mesma norma – e não já uma qualquer «anulação automática» e ipso facto decorrente do não pagamento, a qual não encontra acolhimento legal nas soluções construídas pelo legislador para o não cumprimento dos encargos testamentários.”
Nas suas alegações, a recorrente nada disse em contrário a tal fundamentação.
Acresce dizer que, no mesmo sentido, decidiu o Tribunal da Relação de Guimarães a 19 de junho de 2019, no processo 3698/17.7T8VCT.G1.
Se o não pagamento da pensão à A. confere a esta o direito à resolução da disposição testamentária, então, tal como ela pode não exercer esse direito, também pode dispensar os RR. de pagar a pensão.
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a sentença recorrida.
Sem custas por delas a recorrente estar isenta.

Lisboa, 4 de fevereiro de 2021
Maria do Céu Silva
Teresa Sandiães
Ferreira de Almeida