Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
436/20.0PFCSC.L1-5
Relator: ALDA TOMÉ CASIMIRO
Descritores: DIFAMAÇÃO
MANDATÁRIO
IMUNIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/31/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: O advogado, como mandatário judicial, pratica actos jurídicos, não em nome próprio, mas por conta do mandante e, obviamente, com base em informações que lhe foram prestadas para o efeito pelo seu constituinte.
Entre o advogado e o cliente existe uma relação de confiança que não exige a comprovação de tudo o que lhe é afirmado pelo constituinte.
A Constituição assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz do patrocínio e se é certo que essa imunidade não é total, ela tem forçosamente grande abrangência.
A imunidade não está dependente de uma ponderação de valores de compatibilização que tenha em vista evitar a liberdade de expressão do advogado, de forma que se possa afirmar que quando atinge a honra de alguém a imunidade já não opera.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa


Relatório:


No âmbito da Instrução com o nº 436/20.0PFCSC, que corre termos no Juiz 2 do Juízo de Instrução Criminal de Cascais, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, e na sequência de despacho de não pronúncia proferido pela Meritíssima Juiz de Instrução, versando sobre acusação particular deduzida pelo assistente JP, veio este interpor recurso em que pede que o despacho de não pronúncia seja revogado e substituído por outro que pronuncie a arguida Dra. FC por um crime de difamação agravada, nos termos do disposto nos arts. 180º, 182º e alínea b) do nº 1 do art. 183º do Cód. Penal praticado em co-autoria com a Arguida BM .

Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem:
1º–Os presentes autos têm origem na queixa apresentada pelo Assistente contra BM e Dra. FC, a que se seguiu a respectiva acusação particular que o Ministério Público acompanhou.
2º–A queixa é devida ao conteúdo de um requerimento apresentado a 14/02/2020 pela Arguida BM e subscrito pela sua mandatária, a Arguida Dra. FC (Doc. 1 junto à acusação particular e aqui "Requerimento"), no Processo nº 640/19.4T8CSC que correu termos no Juiz 3 do Juízo de Família e de Menores de Cascais do Tribunal da Comarca de Lisboa Oeste relativo à regulação do exercício das responsabilidades parentais dos dois filhos menores comuns do Assistente e da Arguida BM .

3º–O Requerimento contém imputações de factos, afirmações, insinuações, juízos e considerações feitas ao Assistente que este entendeu serem ofensivos da sua honra, consideração e do seu bom nome, que se impõem aqui reproduzir de forma resumida:
a)- artigo 9º - "O requerido (...) que os crimes foram por si praticados na presença dos filhos menores, que não puderam deixar de assistir ao desmando temperamental e à sua agressividade quase primitiva, mais própria de um animal feroz perdido ou acossado."
b)- artigo 13º - "(...) tresloucados actos que o requerido tem protagonizado, (...)."
c)- artigo 14º - "Acresce, que as condutas erráticas e violentas do requerido, para não dizer predatórias e de pura coacção contra a requerente e os filhos, (...)"
d)- artigo 23º - "Ao invés, o requerido usa e abusa de uma conduta perversa, conhecida por Stalking, para perturbar, coagir, amedrontar em suma "quebrar" a requerente, (…)."
e)- artigo 26º - "O constante assédio moral a que o requerido vem sujeitando a requerente, (...) um raciocínio manipulador, desequilibrado e confuso, leia-se um evidente esgotamento nervoso ou mesmo uma severa depressão."
f)- artigo 57º - "(...) um pai que se quis fosse herói, mas virou carrasco abusador e persecutório."
g)- artigo 59º - "É que, e ao contrário do requerido, a requerente nunca sujeitou os filhos a interrogatórios pidescos (…)."
h)- artigo 60º - "A requerente não é uma Stalker, ao contrário do requerido."
i)- artigo 61º - "(...) manobras inquisitórias levadas a cabo pelo requerido junto dos filhos, (…)."
j)- artigo 63º - "Ou seja, a espiral de loucura em que o requerido se vem lentamente afundando (...), onde reinava o terror imposto pelo requerido."
k)- artigo 64º - "Se a requerente (...) continuaria, como até então, subjugada e sujeita a toda a casta de sevícias."
I)- artigo 68º - "Em absurda negação de si e aparente desdobramento de personalidade, (…)"
m)- artigo 69º - "Em breve o requerido chegará a um ponto sem retorno, como psicopata, poliformo narcisista e perverso que é ..."
n)- artigo 72º - "Está cientificamente comprovado e descrito, que as personalidades de tipologia ou tendência paranóide vêm os seus traços agravados pelo consumo regular e excessivo de bebidas alcoólicas ou de substâncias químicas ou naturais, vulgarmente designadas por "drogas".
o)- artigo 73º - "Sabe-se igualmente, que a descompensação nestes pacientes ocorre em situações em que não existe uma terapia farmacológica coadjuvada por terapias comportamentais, simplesmente porque o sujeito não se encontra diagnosticado ou,"
p)- artigo 74º - "Porque de forma abrupta e sem precedência de qualquer processo de "desmame", o paciente deixa de tomar a medicação."
q)- artigo 75º - "(...), o requerido aumentou exponencialmente o consumo de álcool, designadamente vinho e "bebidas brancas"."
r)- artigo 76º - o requerido deixou por completo de poder ser considerado um "bebedor social".

4º–Os factos mencionados na Conclusão anterior foram alegados no artigo 6º da acusação particular e o Tribunal de Instrução, na Decisão em recurso, considerou-os indiciariamente provados.
5º–Além destes, o Tribunal a quo considerou também indiciariamente provados os factos constantes dos arts. 1º a 3º e 21º da acusação particular e como indiciariamente não provados os restantes factos da mesma acusação.
6º–Importa referir que a Arguida BM foi pronunciada pelo crime de difamação agravada, nos termos do disposto nos artigos 180º, 182º e alínea b) do nº 1 do artigo 183º do Código Penal.
7º– O presente recurso é interposto da Decisão Instrutória de não pronúncia proferida quanto à Arguida Dra. FC pelo crime de difamação agravada, nos termos do disposto nos artigos 180º, 182º e alínea b) do nº 1 do artigo 183º do Código Penal.
8º–A decisão recorrida confirma a co-autoria das Arguidas quanto ao texto do Requerimento, ao referir que a Arguida Dra. FC o elaborou, enquanto mandatária de BM "com base em informações que lhe foram prestadas para o efeito pela sua constituinte, BM ".
9º–Quando o advogado transfere para a peça processual o que a sua constituinte lhe disse e se o mandatário tem conhecimento que os factos que reproduz no articulado não correspondem à verdade e mesmo assim os reproduz (como é o caso), estamos perante uma comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria.
10º–Pelo que no caso sub judice verifica-se comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria na prática do crime de difamação.
11º–As imputações dos factos, as insinuações, as afirmações, as considerações e os juízos feitos quanto ao Assistente para serem legítimos tinham obrigatoriamente de ser verdadeiros.
12º–Mas as imputações dos factos, as insinuações, as afirmações, as considerações e os juízos exarados no Requerimento pela Arguida Dra. FC sobre o Assistente eram (à data do Requerimento), e são, falsos, pelo que não são legítimos.
13º–Têm a agravante de terem sido feitos numa peça processual apresentada no processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais dos menores, filhos do Assistente e de BM .
14º–Quando, em 14/02/2020, o Requerimento foi junto ao processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, o que estava em discussão entre os progenitores era o regime de visitas do pai, o ora Assistente (durante o período escolar e durante as férias de Verão) e o valor da pensão de alimentos (cfr. Doc. 2 junto à acusação particular) e não, por exemplo, o impedimento do direito de visita do pai (o aqui Assistente) relativamente a seus filhos menores.
15º–Para defender a causa da sua constituinte, a Arguida Dra. FC não necessitava de utilizar as expressões / afirmações usadas e de imputar ao aqui Assistente factos falsos, injuriosos e difamatórios, como o fez no Requerimento que subscreveu.
16º–Até porque o processo não tinha um "grau de elevadíssimo litígio" e mesmo que o tivesse, não há grau de conflituosidade que justifique as imputações de facto, as insinuações e os juízos feitos quanto ao ora Assistente.
17º–A Arguida Dra. FC bem sabia que os factos imputados ao ora Assistente e as insinuações ou juízos feitos no Requerimento não correspondiam (e não correspondem) à verdade.
18º–As expressões usadas e as imputações feitas eram totalmente dispensáveis à defesa da causa.
19º–Pelo que o seu uso foi ilícito (pelo que não é aplicável o disposto no nº 2 do artigo 150º do Código de Processo Civil) e não legítimo.
20º–Não se aplicam, ao caso em apreço, as causas de exclusão da punição do crime de difamação previstas no nº 2 do artigo 180º do Código Penal.
21º–Era no requerimento de abertura de instrução que a arguida Dra. FC devia ter alegado, e em sede de instrução devia ter demonstrado e provado, o que não fez: (i) que as imputações foram feitas para realizar interesses legítimos, (ii) a verdade das imputações ou como teve fundamento sério para, em boa-fé, reputar as imputações como verdadeiras, o que não fez.
22º–Mesmo estando em causa os interesses dos menores no que respeita aos direitos de visita do pai, aqui Recorrente, e ao valor da pensão de alimentos, certo é que não se justifica a defesa feita com a utilização das expressões usadas, das acusações feitas, das insinuações que constam do Requerimento que, além de falsas são ofensivas (aliás, não há interesse legítimo que o justifique).
23º–As imputações e os juízos de valor feitos ultrapassaram claramente aquilo que é aceitável a uma defesa.
24º–O exercício de um direito só pode ser considerado legítimo quando não é abusivo e, neste caso, foi abusivo pois mostrou-se totalmente desnecessário à defesa da causa.
25º–As afirmações, imputações, insinuações, além de não terem sido especificadas, nem provadas (nem podiam, pois não existe prova), excederam a necessidade da defesa na referida acção judicial de regulação do exercício das responsabilidades parentais e, por isso, não tiveram como objectivo a realização de qualquer interesse legítimo.
26º–Tratam-se de imputações de factos, suspeitas e de juízos negativos e ofensivos da honra e consideração do Assistente que não precisavam nem deviam ter sido usados no Requerimento com vista à defesa da Arguida BM .
27º–As imputações de factos, as afirmações, as insinuações e as considerações (como se lhes refere o despacho de não pronúncia em recurso) feitas no Requerimento são falsas, além de que excederam, em muito, a defesa necessária no processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, pelo que o seu uso não pode ser considerado lícito (cfr. nº 2 do artigo 1502 do Código de Processo Civil).
28º–A Arguida Dra. FC bem sabia serem falsas as afirmações e imputações e insinuações que fez no Requerimento e, por isso, não as provou, nem no processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais, nem no presente processo em sede de instrução (nem as provará), pelo que está afastado o previsto na alínea a) e 1ª parte da b) do nº 2 do artigo 180º do Código Penal.
29º–A Arguida Dra. FC não provou ter tido fundamento sério para, em boa-fé, reputar como verdadeiras as imputações feitas ao Assistente (ao contrário do que é mencionado na Decisão Instrutória).
30º–Não se percebe como é que o Tribunal decidiu que a Arguida Dra. FC teve fundamento sério para, em boa-fé, reputar tais factos como verdadeiros apenas porque lhe foram transmitidos pela sua constituinte.
31º–A Arguida Dra. FC tinha obrigação de cumprir o dever de informação sobre a verdade da imputação (cfr. nº 4 do artigo 180º do Código Penal), solicitando, por exemplo, à Arguida BM, os documentos de processos judiciais (artigos 9º, 14º, 23º) e documentos médicos (artigos 13º, 26º, 60º, 63º, 68º, 69º) necessários à confirmação das alegações que fez.
32º–Não o tendo feito, a boa-fé a que se reporta a 2ª parte da alínea b) do nº 2 do artigo 180º do Código Penal está afastada, decaindo a causa de exclusão da punição deste crime (cfr. nº 4 do artigo 180º do Código Penal).
33º–A Arguida Dra. FC ultrapassou, em muito, a liberdade de expressão que lhe era permitida enquanto mandatária da Arguida BM .
34º–Como se conclui do que a Arguida Dra. FC escreveu no artigo 77º do Requerimento, tinha consciência da gravidade do que estava a escrever.
35º–Não ficaram indiciariamente provadas, nestes autos, quaisquer "características da personalidade do assistente", para as quais o Tribunal onde correu termos o processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais precisasse de ser alertado (porque são inexistentes), para que o Tribunal a quo pudesse tirar esta conclusão.
36º–Se prova existisse já tinha sido apresentada para confirmar a verdade das imputações e assim beneficiar da exclusão da ilicitude por força da 1ª parte da alínea b) do nº 2 do artigo 180º do Código Penal.
37º–Por exemplo, antes de acusar o Assistente de ser um psicopata, de ter "um raciocínio manipulador, desequilibrado e confuso", "esgotamento nervoso ou mesmo severa depressão", "tresloucados actos", o que não só é falso, como é gravíssimo, a Arguida Dra. FC devia ter solicitado a respectiva prova documental médica, pelo que não tem fundamento sério para, em boa-fé, reputar tais factos como verdadeiros.
38º–O advogado tem de ter noção do alcance das afirmações que faz nas peças processuais que subscreve e tem de se informar e de suportar documentalmente quanto a este tipo de imputações.
39º–As afirmações, imputações e insinuações escritas no Requerimento são ofensivas da honra e do bom nome do Assistente e foram para além da liberdade de expressão permitida à Arguida Dra. FC enquanto advogada.
40º–Tal como previsto no parágrafo 2º do artigo 10º da CEDH, a liberdade de expressão está sujeita a excepções (...)." (Acórdão do TRG de 13707/2020 proferido no Processo nº 377/18.1T9BCL.G1, in www.dgsi.pt).
41º–As expressões usadas e as afirmações feitas relativamente à pessoa do Assistente "jamais poderiam ser consideradas lícitas a coberto do alegado exercício do direito à liberdade de expressão sob pena de violarem o princípio da dignidade da pessoa humana – enquanto princípio regulativo primário da nossa ordem jurídica." (Acórdão do TRL de 12/11/2019 proferido no Processo nº 4695/15.2T9PRT.L1-9), in www.dgsi.pt).
42º–Muitas das expressões e afirmações relativas ao Assistente escritas pela Arguida FC (designadamente, artigo 13º, 2ª parte do artigo 26º, artigos 57º, 63º, 68º, 69º do Requerimento) "à luz do senso comum, veiculam uma ideia de insanidade mental e desonestidade intelectual do apelante (aqui o Recorrente) e que, por isso, atentam contra a sua honra e podem deslustrar a consideração que merece a terceiros que delas tomem conhecimento" (Acórdão do TRL de 28/11/2017 proferido no Processo nº 1521/13.0TVLSB.L2-1, in www.dgsi.pt).
43º–Outras (por exemplo, artigo 14º, 1ª parte do artigo 26º, artigos 23º, 60º do Requerimento) representam a imputação ao Assistente da prática de, pelo menos, dos crimes de coacção e de perseguição (artigos 154º e 154º-A do Código Penal), não podendo a Arguida Dra. FC deixar de ter consciência do alcance desta imputação.
44º–Não foram apresentados documentos que comprovassem tais afirmações; não foram ouvidos testemunhos que as confirmassem; não foi feita qualquer prova, ou seja, nada foi feito que legitime e torne lícito o que foi escrito pela Arguida Dra. FC .
45º–Não se provou qualquer facto que tornasse aceitável ou legitimasse a Arguida Dra. FC a fazer as imputações de facto, as insinuações e os juízos sobre o Assistente que fez no Requerimento. (Acórdão do TRL de 28/11/2017 proferido no Processo nº 1521/13.0TVLSB.L2-1, in www.dgsi.pt).
46º–No caso em apreço, houve violação desproporcionada e desnecessária da honra, consideração e do bom nome do Assistente, pois as afirmações (além de falsas), bem como as expressões e as considerações eram totalmente desnecessárias e foram desproporcionadas à defesa da causa da constituinte que a Arguida Dra. FC representava, pelo que tais expressões e afirmações não podem ser consideradas lícitas. (cfr. nº 2 do artigo 150º do Código de Processo Civil).
47º–Ora, "Nenhuma das partes deve usar, nos seus escritos ou alegações orais, expressões desnecessárias ou injustificadamente ofensivas da honra ou do bom nome da outra." (nº 2 do artigo 9º do Código de Processo Civil)
48º–É aceitável conceder-se ao advogado alguma amplitude de actuação e expressão "mas aquela defesa não pode implicar uma violação desproporcionada e desnecessária da honra e bom nome dos demais intervenientes processuais, sendo esse o critério aferidor da (ilicitude do comportamento do advogado." (Acórdão do TRL de 28/11/2017 proferido no Processo nº 1521/13.0TVLSB.L2-1, in www.dgsi.pt).
49º–Perante o que se deixou alegado, conclui-se que não tem fundamento o argumento da liberdade de expressão.
50º–Do exposto se conclui que as considerações sobre o Assistente feitas pela Arguida Dra. FC, são gratuitas, desproporcionadas e sem correspondência com o interesse legítimo de defesa da sua Constituinte.
51º–Também de todo o exposto, podemos afirmar que a Arguida Dra. FC, enquanto advogada, excedeu o necessário ao patrocínio que lhe tinha sido confiado e não respeitou os deveres de urbanidade e de correcção que lhe são impostos pelo seu Estatuto (cfr. artigos 95º e 110º do Estatuto da Ordem dos Advogados).
52º–Se assim não fosse estaríamos perante "um caso de impunidade dos excessos, uma vez que a arguida se estendeu, para além da necessidade da defesa ao proferir as expressões" constantes do requerimento em causa nestes autos. (Acórdão TRG de 30/06/2014 proferido no Processo nº 30/11.7GBAVV.G1, in www.dgsi.pt).
53º–Ao contrário do que é mencionado na Decisão Instrutória, a Arguida Dra. FC "ultrapassou a fronteira do penalmente censurável", pois não se manteve "dentro dos limites admissíveis do direito de defesa exercido ao abrigo do patrocínio judiciário conferido para o efeito."
54º–"A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça." (artigo 208º da Constituição da República Portuguesa e artigo 13º, nº 1 e nº 2, alínea b) da Lei de Organização do Sistema Judiciário).
55º–E também é por isso o artigo 150º, nº 2 do Código de Processo Civil prevê a exclusão de ilicitude, desde que as expressões e imputações sejam indispensáveis à defesa da causa.
56º–Ao contrário do que afirma, a Arguida Dra. FC não usou "expressões contundentes, enérgicas", "expressões de estilo para definir atitudes e vivências do Assistente, dentro do quadro da liberdade de expressão que decorre do livre exercício da advocacia", nem usou "todas as "armas" para uma defesa adequada e necessária da sua constituinte."
57º–Fez afirmações falsas e ofensivas da honra, consideração e do bom nome do Assistente e desnecessárias à defesa.
58º–Se "o advogado conhecedor do carácter difamante de uma qualquer descrição, por não corresponder à verdade, opta por transcrevê-la em articulado, incorre em responsabilidade criminal. Mas neste caso viola flagrantemente o dever de urbanidade a que está sujeito e como tal perde a protecção legal que lhe é concedida." (cfr. Acórdão do TRE de 03/07/2017 proferido no Processo nº 488/14.2PBELV.E1, in www.dgsi.pt)
59º–A Arguida Dra. FC excedeu o necessário ao patrocínio que lhe tinha sido confiado e não respeitou os deveres de urbanidade e de correcção que lhe são impostos pelo seu Estatuto (cfr. artigos 95º e 110º do Estatuto da Ordem dos Advogados), pelo que não está, aqui, abrangida pela imunidade prevista no artigo 208º da Constituição da República Portuguesa.
60º–A Arguida Dra. FC sabia e não podia ignorar, que as imputações dos factos que fez, as considerações ou insinuações que teceu são falsas, mas escreveu-as.
61º–Por isto, conhecedora que os factos eram falsos e, mesmo assim, tendo-os transcrito para o Requerimento, a Arguida Dra. FC deixou de beneficiar da imunidade própria dos advogados.
62º–Na instrução basta a mera prova indiciária (cfr. nº 1 do artigo 308º do Código de Processo Penal), não se exigindo ainda a certeza quanto ao mérito da questão.
63º–"Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança." (nº 2 do artigo 283º do Código de Processo Penal aplicável por via do nº 2 do artigo 308º do mesmo diploma legal).
64º–Os indícios recolhidos neste processo resultam de terem sido considerados indiciariamente provados os factos do artigo 6º da acusação particular: os factos do Requerimento escrito e assinado pela Arguida Dra. FC (enquanto mandatária da Arguida BM) cujo conteúdo (na parte que aqui interessa) contém imputações, afirmações, considerações, suspeitas e juízos sobre o Assistente ofensivos da sua honra e consideração.
65º–Tal como demonstrado à saciedade, os fundamentos da Decisão Instrutória não têm procedência, pois há indícios suficientes que apontam para a prática pela Arguida Dra. FC de um crime de difamação agravada e pela probabilidade (objectiva) da sua condenação em julgamento (tal como o Tribunal entendeu relativamente à Arguida BM). (cfr. nº 1 do artigo 308º do Código de Processo Penal).
66º–As afirmações, insinuações e as imputações feitas no Requerimento excederam os critérios da necessidade e da proporcionalidade da defesa e são destituídas de pertinência para a defesa da posição da Arguida BM no processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais.
67º–Os "exageros verbais e escritos não podem atingir os direitos de outrem merecedores de protecção, como é o direito à honra e ao bom nome, (...) sendo que, nas peças escritas da responsabilidade de advogados, maiores terão de ser as exigências de respeito desses limites." (Acórdão do TRL de 11/02/2004 proferido no Processo nº 6352/2004-5, in www.dgsi.pt).
68º–As expressões e imputações dos factos e os juízos constantes do Requerimento, põem em causa e são ofensivos do bom nome e da consideração merecida pelo Assistente, bem como da sua honra como pessoa, como pai e como cidadão, designadamente junto do Tribunal onde foram proferidas por escrito.
69º–A Arguida Dra. FC bem sabia (e sabe) que os factos imputados ao ora Assistente e as insinuações e juízos feitos no Requerimento não correspondiam (e não correspondem) à verdade e tinha consciência que não os podia provar.
70º–Sabia que não só não podia provar a sua veracidade, como também que não tinha qualquer fundamento para as reputar como verdadeiras.
71º–Pelo que estão afastadas as circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 180º do Código Penal.
72º–E, por isso, há responsabilidade criminal também da Arguida Dra. FC, pelo que são puníveis os seus actos e, por isso, deve ser pronunciada pelo crime de difamação agravada.
73º–O Assistente sentiu-se ofendido na sua dignidade, no seu nome, na sua honra e consideração e, portanto, difamado.
74º–Trataram-se de afirmações excessivas, desprimorosas, objectivamente ofensivas da honra e consideração do Assistente.
75º–A Arguida Dra. FC escreveu-as com a intenção de ofender o Assistente na sua honra e consideração e até de denegrir a imagem do Assistente perante o Tribunal onde corria o processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais.
76º–E fê-lo de forma consciente, voluntária e livre, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
77º–Atento o exposto, o Tribunal a quo devia ter considerado provados todos os factos alegados na acusação particular (e não apenas os factos dos artigos 1º a 3º, 6º e 21º).
78º–O Tribunal de Instrução deveria ter concluído pela verificação de indícios suficientes, consubstanciados na factualidade alegada e provada, quanto aos elementos objectivo e subjectivo do tipo legal do crime em causa, e, em consequência proferir a competente decisão de pronúncia em relação à Arguida Dra. FC .
79º–Por tudo o quanto se deixou exposto, encontram-se indiciariamente provados os factos relativos à prática de um crime de difamação agravada, pelo que se conclui que deve ser proferido despacho que pronuncie a Arguida Dra. FC, em co-autoria com a Arguida BM, por um crime de difamação agravada nos termos do disposto nos artigos 180º, 182º e alínea b) do nº 1 do artigo 183º do Código Penal.
80º–Ao proferir despacho de não pronúncia relativamente à Arguida Dra. FC , o Tribunal a quo, violou as disposições dos artigos 180º, 182º, 183º, nº 2, alínea b) do Código Penal, dos artigos 308º, nº 1 e 283º, nº 2 do Código de Processo Penal, dos artigos 150º, nº 2 e 9º do Código de Processo Civil (a contrario), dos artigos 95º e 110º do Estatuto da Ordem dos Advogados, do artigo 208º da Constituição da República Portuguesa e do artigo 13º, nºs 1 e 2, alínea b) da Lei da Organização do Sistema Judiciário.
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A Digna Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância contra-alegou, manifestando-se no sentido da improcedência do recurso ainda que sem apresentar conclusões.
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Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto Parecer no sentido da improcedência do recurso.

O recorrente respondeu, rebatendo os argumentos emitidos no Parecer.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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Fundamentação

A decisão instrutória proferida nos autos tem o seguinte teor:
Declaro encerrada a instrução que as arguidas BM e FC requereram e a que se procedeu.
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Não concordando com a acusação particular contra si deduzida pelo Assistente JP, requereu a arguida BM a abertura da instrução, alegando, em síntese, que a acusação particular baseia-se num requerimento que foi apresentado num processo de regulação das responsabilidades parentais com um grau de litígio elevadíssimo, espelhado em inúmeros requerimentos e respostas a estes e no qual todos os intervenientes dos autos usaram e abusaram do seu direito de resposta, de acusações mútuas, de inúmeros documentos, razões e juízos de valor de parte a parte. Mais alega a mesma arguida que à data do referido requerimento, o ora assistente era arguido em dois processos de violências doméstica e nos quais surgia como vítima a ora requerente; o que só por si justifica muitos dos juízos de valor constantes do requerimento em causa, além de agravar o já elevado grau de conflito e litígio que transbordou do processo crime para o de família.
Por sua vez, a arguida FC veio igualmente requerer a abertura de instrução, referindo que na defesa da sua constituinte aqui co-arguida usou expressões contundentes, enérgicas e recorreu a expressões de estilo para definir atitudes e vivências do assistente dentro do quadro de liberdade de expressão que decorre do livre exercício da advocacia. Mais invoca esta arguida que usou de todas as “armas” para uma defesa adequada e necessária da sua constituinte sem estar inibida ou condicionada pelo receio de, a qualquer momento, poder incorrer em responsabilidade criminal por ofensas à honra de outros intervenientes processuais.
Ambas as arguidas terminam o seu requerimento, requerendo que seja proferido despacho de não pronúncia.
*
Nesta fase de instrução, procedeu-se à realização do debate instrutório com observância do legal formalismo. Cumpre proferir decisão instrutória.
(…)
A instrução, que tem carácter facultativo, visa in casu a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, em ordem a submeter, ou não, a causa a julgamento – art. 286.º nº 1 do Código de Processo Penal. Constitui, pois, uma fase preparatória e instrumental relativamente ao julgamento.
Assim, a prova produzida em sede de instrução tem carácter meramente indiciário, conforme arts 308.º nºs 1 e 2 e art. 283.º nº 2 do Código de Processo Penal, ou seja, não é uma prova tão exigente como é aquela que tem na base a condenação de um arguido em audiência de discussão e julgamento, a qual não se fazendo aí, levará a que esse arguido beneficie do princípio in dubio pro reo e seja absolvido.
Constituem indícios suficientes, os vestígios, suspeitas, resoluções, sinais, indicações suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido responsável por ele. Contudo, para a pronúncia não é necessária uma certeza da existência da infracção, mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado - v., neste sentido, o Ac. da Relação de Coimbra, de 31/03/1993, in Colectânea de Jurisprudência, XVIII, 2, 65.
Dir-se-á, desde já, que não se trata na instrução de recolher prova de que os crimes denunciados não se verificaram. Trata-se de apurar se, em face das diligências probatórias realizadas, foram ou não recolhidos indícios suficientes da prática pelo arguido de factos que constituam crime.
Nos presentes autos, importa, na sequência dos requerimentos de abertura da instrução e do teor da prova recolhida em sede de inquérito, verificar se existem ou não nos autos indícios suficientes da prática pelas arguidas do crime de difamação que lhe vem imputado na acusação particular.
Consta da acusação particular que no requerimento apresentado por BM no processo n.º 640/19.4T8CSC e subscrito pela advogada FC, as arguidas fizeram inserir no mesmo os factos sobre a pessoa do assistente elencados no art. 6.º da acusação particular e que aqui se dão integralmente por reproduzidos.
No tocante a estas situações factuais, as mesmas encontram-se suportadas no teor dos documentos de fls. 174-181.
Nesta fase de instrução não foi produzida qualquer prova.
Pelo que os factos alegados pelo assistente encontram apenas sustento indiciário nos elementos probatórios recolhidos na fase de inquérito, concretamente no auto de denúncia apresentado pelo aqui assistente e no aludido requerimento que constitui suporte da acusação particular.

IV–Fundamentação jurídica
Nos presentes autos, o assistente apresentou acusação particular contra as arguidas imputando-lhes a prática de um crime de difamação, p. e p. pelo art. 180.º e 183º, nº 1, al. b) ambos do Código Penal.
Decorre do disposto no art. 180º do Cód. Penal que será difamatória a acção ou expressão que tenha aptidão (objectivamente, perseguindo critérios de normalidade e repudiando meras susceptibilidades pessoais) para colocar em causa a “auto-estima” ou a “fama” do sujeito visado, sem ser na presença deste último. Por sua vez, o artigo 182º dispõe que “à difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão”.
Já no artigo 183º, n.º 1, alínea b) do Código Penal encontra-se prevista a seguinte circunstância agravante: “Se no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 183.º (…) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação; (…) as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo”.
Posto isto, importa referir que para o preenchimento deste tipo de crime exige-se a nível objectivo a atribuição a alguém de facto ou conduta que encerrem em si uma reprovação ético-social, isto é que sejam ofensivos da reputação do visado. E que tal atribuição seja feita na presença de outrem que não o visado.
Reconduz-se por conseguinte a difamação a um comportamento lesivo da honra e consideração de alguém, constituindo a honra o elenco dos valores éticos que cada pessoa humana possui, como sejam o carácter, a lealdade, a probidade, a rectidão, isto é a dignidade subjectiva, o património pessoal e interno de cada um, e a consideração o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, o bom nome, o crédito, confiança. A estima a reputação que constituem a dignidade objectiva, o património que cada um adquiriu ao longo da sua vida, o juízo que a sociedade faz de cada cidadão, em suma a opinião pública (cfr. Leal Henriques e Simas Santos, in Código Penal de 1982, Vol II, pág. 196).
Para que o elemento subjectivo do crime de difamação seja preenchido não é exigível o dolo específico bastando o dolo genérico em qualquer das suas formas, directo necessário ou eventual.
O bem jurídico protegido pelo tipo do artigo 180º, do Código Penal, é a honra, perspectivada em duas vertentes: a interna, enquanto valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade (a ideia que cada um tem de si) e a externa, relativa à sua reputação ou consideração exterior, ou seja, a ideia que terceiros têm de nós - cfr. Faria e Costa, “Comentário Conimbricence do Código Penal”, Coimbra Editora, volume I, pag. 607.
Face ao que, será difamatória a acção ou expressão que tenha aptidão (objectivamente, perseguindo critérios de normalidade e repudiando meras susceptibilidades pessoais) para colocar em causa a “auto-estima” ou a “fama” do sujeito visado.
No quadro legal a considerar, resulta que a Constituição tutela, quer o direito à honra, quer o direito à liberdade de expressão e informação, sem estabelecer hierarquia entre eles. No entanto, o Professor Costa Andrade referindo-se à colisão entre o direito à honra e o direito à livre expressão, consagrado enquanto direito fundamental, no art.º 37º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, escreveu: “No conflito entre o direito à honra e a liberdade de expressão, tem vindo a verificar-se um ponto de viragem, tendo por base e fundamento o relevo, a dignidade e a dimensão da liberdade de expressão considerada numa dupla dimensão, concretamente como direito fundamental individual e como princípio conformador e essencial à manutenção e aprofundamento do Estado de Direito democrático, reconhecendo-se que o exercício do direito de expressão, designadamente enquanto direito de informar, de opinião e de crítica, constitui o próprio fundamento do sistema democrático, o que justifica a assunção de uma nova perspectiva na resolução do conflito”, posição estribada pelo referido Professor (in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, 1996), citado pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 07.03.2007 (disponível em www.dgsi.pt).
Por força do disposto nos arts. 8.º e 16.º, n.º 1, da Lei Fundamental, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem doravante designada como CEDH situa-se em plano superior ao das leis ordinárias internas. Sucede que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, o qual tem vindo a reiterar em diversos acórdãos o entendimento de que a liberdade de expressão constitui um dos pilares primários de uma sociedade democrática. Como se pode ler no acórdão do STJ de 30.06.2011, proferido no proc. nº 1272- 04.7TBBCL.G1S1, disponível in www.dgsi.pt, referindo-se à CEDH “(…)V - Esta não tutela, no plano geral, o direito à honra, a ele se reportando apenas como possível integrante das restrições à liberdade de expressão enunciadas no art. 10.º, n.º 2. VI - O que leva o intérprete a ter seguir o caminho consistente, não em partir da tutela do direito à honra e considerar os casos de eventuais ressalvas, mas em partir do direito à livre expressão e averiguar se têm lugar algumas das excepções deste n.º 2. VII - Este caminho sai reforçado pelo texto da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. VIII- Na interpretação daquele art. 10.º é de acatar, pelos tribunais internos, a orientação jurisprudencial que, muito reiteradamente, o TEDH vem seguindo e que se caracteriza, no essencial, pelo seguinte: - a liberdade de expressão constitui um dos pilares fundamentais do Estado democrático e uma das condições primordiais do seu progresso e, bem assim, do desenvolvimento de cada pessoa; - as excepções constantes deste n.º 2 devem ser interpretadas de modo restrito; - tal liberdade abrange, com alguns limites, expressões ou outras manifestações que criticam, chocam, ofendem, exageram ou distorcem a realidade Assim, numa sociedade pluralista e democrática, a liberdade de expressão e informação constitui a regra e as restrições a excepção.
Como já referimos, pratica o crime de difamação quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo (art. 180.º, nº 1 do C. Penal). Por sua vez, o n.º 2, do art.º 180º do Código Penal dispõe que a conduta não é punível quando: a) A imputação for feita para realizar interesses legítimos; e b) O agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver tido fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira. Deste modo, no que ao elemento objetivo do tipo do crime de difamação diz respeito, impõe-se que o agente impute um facto ou formule um juízo, suscetível de ofender a honra ou consideração do visado, não perante o próprio, mas perante terceiros. Por sua vez, no que concerne ao elemento subjetivo, o tipo legal apenas admite o dolo, o que significa, desde logo, o afastamento das condutas negligentes, tendo-se por suficiente a imputação efetuada a título de dolo eventual.
No entanto, encontram-se previstas nas duas alíneas do n.º 2, do art.º 180º do Código Penal causas de justificação, ou seja, a difamação não é punível desde que se verifiquem cumulativamente as circunstâncias ali elencadas. E em face do disposto nas citadas alíneas, mesmo que se entenda que uma determinada conduta é típica do ponto de vista jurídico-criminal, porque extravasou o âmbito da crítica objetiva ou o exercício legítimo do direito de liberdade de expressão, tal conduta, ainda assim, não será punível quando a imputação do facto desonroso for feita para realizar interesses legítimos e o agente provar a verdade da imputação ou ter o fundamento sério para, em boa fé, a reputar como verdadeira.
Em face do enquadramento legal que se procurou delinear, importa agora apreciar os requerimentos de abertura de instrução apresentados.
Comecemos por apreciar o requerimento de abertura de instrução apresentado pela arguida FC. Nesse requerimento, aquela arguida veio dizer, designadamente que na defesa da sua constituinte aqui co-arguida usou expressões contundentes, enérgicas e recorreu a expressões de estilo para definir atitudes e vivências do assistente dentro do quadro de liberdade de expressão que decorre do livre exercício da advocacia. E ainda que usou de todas as “armas” para uma defesa adequada e necessária da sua constituinte sem estar inibida ou condicionada pelo receio de, a qualquer momento, poder incorrer em responsabilidade criminal por ofensas à honra de outros intervenientes processuais.
No caso dos autos, temos por um lado, a arguida FC que é uma advogada que patrocinava judiciariamente BM enquanto progenitora dos menores visados no processo de regulação de responsabilidades parentais em que era requerente e por outro lado, o assistente que era o progenitor desses menores e requerido no mencionado processo.
Ora, a arguida FC enquanto advogada mandatada pela progenitora dos menores elaborou o requerimento que serve de base à acusação particular que apresentou no âmbito do referido processo. Ao elaborar o requerimento em causa e no que respeita aos factos aí exarados sobre o assistente, a Exma. Advogada fê-lo com base nas informações que lhe foram prestadas para o efeito pela sua constituinte, BM .
Ora, temos para nós que as considerações exaradas no aludido requerimento por parte da arguida sobre a pessoa do assistente são legítimas porque feitas no âmbito do exercício de defesa do direito da progenitora BM no âmbito do patrocínio forense que lhe foi conferido por esta, não devendo, pois, serem censuradas.
Mas mesmo que se entenda que tais factos são abstratamente suscetíveis de ofender o bom nome, honra e reputação do assistente, a verdade é que a imputação foi feita para realizar interesses legítimos e a arguida FC com base nas informações veiculadas pela sua constituinte tinha tido fundamento sério para, em boa fé, reputar tais factos como verdadeiros. Com efeito, entendemos que a arguida FC proferiu as afirmações em causa ao abrigo do seu direito de liberdade de expressão e na qualidade de mandatária da arguida BM, reputando como verdadeiras as imputações que efetuou ao assistente com base nas informações prestadas por esta e na defesa do interesse legítimo de alertar o Tribunal para as características da personalidade do assistente.
Pelo que a conduta praticada pela arguida FC não deverá ser punida, conforme o estabelecido no art. 180.º, nº 2 do C. Penal.
Em face do exposto, o vertido no aludido requerimento, concretamente as considerações tecidas sobre o assistente, a constituir ofensa não se apresentam como gratuitos, desproporcionados ou sem correspondência com o interesse legítimo de defesa da respetiva constituinte. E como tal, a conduta da arguida FC enquanto autora dos textos publicado no requerimento mencionado não ultrapassou a fronteira do penalmente censurável, tendo-se mantido dentro dos limites admissíveis do direito de defesa exercido ao abrigo do patrocínio judiciário conferido para o efeito.
E assim sendo no tocante a esta arguida, o Tribunal considera indiciariamente provados os factos constantes dos arts. 1.º a 3.º, 6.º e 21.º da acusação particular e como indiciariamente não provados os restantes factos da mesma acusação particular. Nestes termos e com os fundamentos expostos impõe-se não pronunciar a arguida FC pela prática do crime de difamação que lhe é imputado pelo assistente nestes autos.
(…)
V – Decisão
Nesta conformidade, decido o seguinte:
- não pronunciar arguida FC , pela prática, de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180º, nº 1 e 183º, n.º 1, al. b) ambos do Código Penal, arquivando-se os autos quanto a esta arguida; e
- pronunciar, a fim de ser julgada, em processo comum, perante Tribunal Singular, BM, pela prática, de um crime de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180º, nº 1, 182.º e 183º, n.º 1, al. b) todos do Código Penal, pelos fundamentos de facto constantes da acusação particular, que aqui dou por integralmente reproduzidos, nos termos do art. 307º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
(…)
*          *          *

Apreciando
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Em questão está a apreciação dos indícios apurados em sede de inquérito e de instrução, em ordem a saber se a arguida FC  deveria ter sido pronunciada pela prática de um crime de difamação agravado p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 180º, 1, 182º e 183º, 1 b) do Cód. Penal.
*
A instrução, de acordo com o preceituado no nº 1 do art. 286º do Cód. Proc. Penal, “visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” e a sua direcção compete a um juiz de instrução (nº 1 do art. 288º do mesmo Cód.). E “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia(art. 308º 1 do Cód. que se tem vindo a citar).
Por outro lado, define o nº 2 do art. 283º do mesmo Cód., que “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
A questão de saber quando é que os indícios são suficientes e, nomeadamente, o que deve ser entendido por “possibilidade razoável” de futura condenação, dividiu a doutrina e a jurisprudência.
Já se defendeu que para que os indícios fossem considerados suficientes bastaria a mera possibilidade de futura condenação em julgamento – neste sentido referia Germano Marques da Silva quepara a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido da certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais da ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade de que foi cometido o crime pelo arguido(in Curso de Processo Penal, vol. III, 1994, p. 183).
Uma outra posição defende que os indícios só são suficientes se deles resultar uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento, exigindo-se uma “possibilidade particularmente qualificada” ou uma “probabilidade elevada”de condenação (neste sentido cfr. Jorge Gaspar, Titularidade da Investigação Criminal e Posição Jurídica do Arguido, in Revista do Ministério Público, nº 88, p. 101 e ss.; Carlos Adérito Teixeira, Indícios Suficientes: Parâmetros de racionalidade e instância de legitimação, in Revista do CEJ, nº 1, p. 160); e Paulo Dá Mesquita, Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, 2003, p. 90 e ss.).
Todavia, temos para nós que a posição mais acertada é uma posição intermédia entre aquelas duas, denominada “teoria da probabilidade dominante”, actualmente maioritária e que é a que tem mais apoio na letra da lei. De acordo com esta tese, os indícios são suficientes para acusar ou pronunciar alguém sempre que, num juízo de prognose, se conclua que é mais provável a sua futura condenação do que a sua absolvição. Neste sentido diz Figueiredo Dias (in Direito Processual Penal, I, 1984, p. 133) queos indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando seja mais provável do que a absolvição” – cfr. ainda, e por todos, o Acórdão do STJ de 8.10.2008, no Proc. 07P031, onde se refere quepossibilidade razoável” é a que se baseia num juízo de probabilidade, “uma probabilidade mais positiva do que negativa, de que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha”; e o Acórdão do STJ de 16.06.2005, no Proc. 05P1938, que defende queaquela ‘possibilidade razoável’ de condenação é uma possibilidade mais razoável, mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é (mais) provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
Pelo que os indícios serão suficientes sempre que, por via deles, o Juiz de instrução chegue a um juízo de prognose em que a condenação do arguido é mais provável do que a absolvição, caso em que deve proferir despacho de pronúncia.

Analisemos o caso dos autos.

Nos termos da acusação particular, e para o que agora importa, o recorrente e assistente acusa a arguida FC  de, em requerimento que formulou e em 14.02.2020 juntou ao Proc. 640/19.4T8CSC de regulação das responsabilidades parentais, ter utilizado as seguintes expressões e frases:
- “desmando temperamental”, “agressividade quase primitiva, mais própria de um animal feroz perdido ou acossado” (9º)
- “tresloucados actos que o requerido tem protagonizado” (13º)
- “condutas erráticas e violentas do requerido, para não dizer predatórias e de pura coacção contra a requerente e os filhos” (14º)
- “o requerido usa e abusa de uma conduta perversa, conhecida por Stalking, para perturbar, coagir, amedrontar em suma “quebrar” a requerente” (23º)
- “O constante assédio moral a que o requerido vem sujeitando a requerente”, “Um raciocínio manipulador, desequilibrado e confuso, leia-se um evidente esgotamento nervoso ou mesmo uma severa depressão” (26º)
- “virou carrasco abusador e persecutório” (57º)
- “ao contrário do requerido, a requerente nunca sujeitou os filhos a interrogatórios pidescos” (59º)
- “A requerente não é uma Stalker ao contrário do requerido” (60º)
- “manobras inquisitórias levadas a cabo pelo requerido junto dos filhos” (61º)
- “a espiral de loucura em que o requerido se vem lentamente afundando” (63º)
- “continuaria, como até então, subjugada e sujeita a toda a casta de sevícias” (64º)
- “aparente desdobramento de personalidade” (68º)
- “como psicopata, poliformo narcisista e perverso que é” (69º)
-“Está cientificamente comprovado e descrito, que as personalidades de tipologia ou tendência paranoide vêm os seus traços agravados pelo consumo regular e excessivo de bebidas alcoólicas ou de substâncias químicas ou naturais, vulgarmente designadas por “drogas”.” (72º)
- “Sabe-se igualmente, que a descompensação nestes pacientes ocorre em situações em que não existe uma terapia farmacológica coadjuvada por terapias comportamentais, simplesmente porque o sujeito não se encontra diagnosticado ou,” (73º)
- “Porque é de forma abrupta e sem precedência de qualquer processo de “desmame”, o paciente deixa de tomar a medicação.” (74º)
- “O que a requerente pode afirmar, é que…, o requerido aumentou exponencialmente o consumo de álcool, designadamente vinho e ‘bebidas brancas’” (75º)
- “o que a requerente pretende afirmar… o requerido deixou por completo de poder ser considerado um ‘bebedor social’” (79º).
Mais acusa a arguida de ter extravasado a liberdade de expressão própria do exercício do direito de defesa em representação da sua cliente e de ofender a honra e consideração que lhe são devidas.

Dispõe o nº 1 do art. 180º do Cód. Penal quequem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias”.
E nos termos do nº 1, alínea b), do art. 183º do mesmo Código,se no caso dos crimes previstos nos artigos 180.º, 181.º e 183.º (…) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação; as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo”.
Mas dispõe o nº 2 do mesmo art. 180º quea conduta não é punível quando: a) a imputação for feita para realizar interesses legítimos; e b) o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira”.

O direito à honra e consideração, constituído, basicamente, por uma pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade, tem consagração constitucional e noutras Leis Fundamentais, como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) e Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH). Honra e consideração, no entanto, são conceitos que não se confundem. A honra tem componente individual ou subjectiva, podendo definir-se como o valor pessoal de cada indivíduo, radicado na sua inviolável dignidade, atributo inato de qualquer pessoa; a consideração envolve uma componente social, devendo entender-se como a reputação que a pessoa tem no seio da comunidade em que se insere.
Assim, a lesão do direito à honra e consideração ocorre quando alguém imputa a outrem um facto, ou formula um juízo, objectivamente adequado a depreciar ou desacreditar, quer individual quer socialmente, a vítima – o que significa que nem todo o facto ou juízo que envergonha, ou perturba, ou humilha, cabe neste conceito.
Quanto ao tipo subjectivo do ilícito, é ele necessariamente doloso, embora baste o dolo genérico (em qualquer das três modalidades legalmente previstas: directo, necessário ou eventual), sendo assim necessário, mas suficiente, que o agente tenha consciência da aptidão ofensiva das suas palavras ou gestos e ainda assim queira levar a cabo a sua actuação, ou, pelo menos, que admita como possível que essa mesma conduta ofenda a honra e reputação do visado e, não obstante, não se abstenha de agir, conformando-se com essa eventualidade.

Não está em causa que a arguida tenha subscrito a peça onde se inserem as expressões e afirmações em causa e supra transcritas.
O que sucede é que a arguida é advogada e elaborou a peça no exercício da sua profissão.
Assim, o que está em questão é saber se se pode concluir que a arguida FC, em face dos factos indiciados, teve intenção de difamar o assistente ou se agiu na prossecução de um interesse legítimo – recordamos que o que está em causa é uma peça junta em Processo de regulação das responsabilidades parentais.
Diga-se, desde já que a intenção de ofender a honra e consideração do outro (tutelada pelo artigo que pune a difamação como crime) tem que resultar, não só das expressões utilizadas, como também da análise do contexto em que foram proferidas, de modo a aferir a sua gravidade e a aptidão para lesar a honra e consideração.
Ora, no exercício das suas funções e em representação dos seus constituintes, os Advogados gozam do princípio de imunidade, garantido pelo art. 208º da Constituição da República Portuguesa. Preceitua o citado normativo que “a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça”.
Quanto ao que se deve entender por “imunidades necessárias ao exercício do mandato”, defende António José Barreiros (Em Patologia Social por José António Barreiros http://patologiasocial.blogspot.pt/2014/07/imunidade-dos-advogados.html) que são três os direitos que asseguram aos advogados a «imunidade necessária» e que são o «direito à protecção do segredo profissional», o «direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de actos conformes ao estatuto da profissão» e, enfim, o «direito à especial protecção das comunicações com o cliente e à preservação do sigilo da documentação relativa ao exercício da defesa», a que acresce um quarto: o direito a regimes específicos de imposição de selos, arrolamentos e buscas em escritórios de advogados, bem como de apreensão de documentos. E concretamente, no que se refere ao «direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de actos conformes ao estatuto da profissão» em sede de litigância, diz o referido Autor: A imputação de factos ou a formulação de juízos valorativos é conatural à prática de actos próprios de Advogado, sucedendo que o primeiro limite é que tal não signifique a supressão ou a desproporcionada compressão de direitos pessoais alheios; para além disso, não é admissível que, por efeito do acto, alguém fique, sob pressão decorrente de intimidação ou inferiorização psicológica devida a perturbação emocional ou rebaixamento, privado ou substancialmente limitado no exercício prático de um direito ou do cumprimento de um dever, lesionado, em suma, na sua capacidade de autodeterminação. Fica, em suma, como resíduo do problema, a gratuitidade por desnecessidade absoluta do acto, mormente a jocosidade insultuosa, através do argumento ad hominem ou do apoucamento pessoal que não crítica do contrário ou ironia argumentativa”.
E entendemos que devem ser estes os limites em que se inserem o art. 95º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei 145/2015, de 9/09 (“no exercício da profissão o advogado deve proceder com urbanidade, nomeadamente para com os colegas, magistrados, árbitros, peritos, testemunhas e demais intervenientes nos processos, e ainda oficiais de justiça, funcionários notariais, das conservatórias e de outras repartições ou entidades públicas ou privadas”); o art. 150º, nº 2, do Cód. Proc. Civil (“não é considerado ilícito o uso das expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa”) e o art. 326º, al. c), do Cód. Proc. Penal (os advogados não podem fazer uso de “expressões injuriosas ou difamatórias ou desnecessariamente violentas ou agressivas”).

Ora analisadas as expressões em causa, não podemos deixar de concordar com o Tribunal recorrido quando diz queas considerações tecidas sobre o assistente (…) não se apresentam como gratuitos, desproporcionados ou sem correspondência com o interesse legítimo de defesa da respetiva constituinte. E como tal, a conduta da arguida FC enquanto autora dos textos publicado no requerimento mencionado não ultrapassou a fronteira do penalmente censurável, tendo-se mantido dentro dos limites admissíveis do direito de defesa exercido ao abrigo do patrocínio judiciário conferido para o efeito”.
É verdade que alguns juízos de valor na descrição da personalidade do ora assistente se afiguram imoderados e contundentes, e muito próximos do excesso, mas ainda dentro dos limites permitidos a um causídico na defesa dos interesses legítimos do seu constituinte, estando a conduta abrangida pela previsão do art. 180º, nº 2, alínea a), do Cód. Penal.
Cumpre lembrar que o advogado, como mandatário judicial, pratica actos jurídicos, não em nome próprio, mas por conta do mandante e, obviamente, com base em informações que lhe foram prestadas para o efeito pelo seu constituinte.
Alega o recorrente que ainda que a arguida/advogada tenha transferido para a peça processual o que a sua constituinte lhe disse, tendo o mandatário conhecimento que os factos que reproduz no articulado não correspondem à verdade e mesmo assim os reproduz (como é o caso), estamos perante uma comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria.
Em tese geral assim seria.
Todavia, não existe qualquer indício nos autos de que a arguida FC soubesse que reproduzia factos que eram falsos, nem ela tinha obrigação de cumprir o dever de informação sobre a verdade da imputação, solicitando os documentos de processos judiciais e documentos médicos necessários à confirmação das alegações que fez. Entre o advogado e o cliente existe uma relação de confiança que não exige a comprovação de tudo o que lhe é afirmado pelo constituinte.
Alega também o recorrente que a arguida FC não provou ter tido fundamento sério para, em boa-fé, reputar como verdadeiras as imputações feitas ao Assistente (ao contrário do que é mencionado na Decisão Instrutória).
A este respeito cabe recordar que o arguido, no processo penal português, não tem que provar os factos que lhe são favoráveis. Basta-lhe provocar a dúvida, que esta será resolvida em seu benefício.

Como supra dissemos, a Constituição assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz do patrocínio e se é certo que essa imunidade não é total, ela tem forçosamente grande abrangência. Tal como defende o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 7.03.2017 (acessível em www.dgsi.pt), “a imunidade não está dependente de uma ponderação de valores de compatibilização que tenha em vista evitar a liberdade de expressão do advogado, de forma que se possa afirmar que quando atinge a honra de alguém a imunidade já não opera. Essa sempre seria uma imunidade ridícula, que apenas existiria caso não ferisse ninguém. Ou seja, só existiria nos casos em que seria inútil a sua existência. Porque, entende-se, a imunidade existe para operar quando ofende, mas a ofensa se justifica pela necessidade de defesa. A não ser assim a imunidade de advogado assemelhar-se-ia a certos seguros de saúde que implicam o pagamento de prémios mas que a seguradora cancela se o segurado ficar doente. No caso a “imunidade” existiria enquanto fosse desnecessária e ficaria cancelada quando fosse necessária.

Nestes termos, entendemos que não se justifica a submissão da arguida recorrida a julgamento, já que será altamente provável a sua não punição, impondo-se a confirmação do despacho de não pronúncia.
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Decisão

Pelo exposto acordam em negar provimento ao recurso e confirmam o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.



Lisboa, 31.05.2022

(processado e revisto pela relatora)
(Alda Tomé Casimiro)
(Anabela Simões Cardoso)