Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1183/18.9T8SNT.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: EXECUÇÃO
PLURALIDADE DE EXECUÇÕES
EXECUÇÃO FISCAL
HABITAÇÃO PRÓPRIA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Se o processo fiscal, em que foi feita uma penhora anterior de imóvel destinado exclusivamente a habitação própria e permanente do executado ou do seu agregado familiar, não pode levar à venda do imóvel, por força do impedimento do art. 244/2 do CPPT na redacção dada pela Lei 13/2016, o processo comum onde foi feita a penhora posterior não deve ser suspenso, mas sim prosseguir para a venda, notificando-se a AT para reclamar os créditos fiscais na execução comum.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

1. H-SA, requereu em 2018 uma execução contra E, para dele obter o pagamento de um empréstimo garantido por uma hipoteca (com o limite máximo assegurado de cerca de 120.000€; a fracção foi vendida ao executado pelo valor de cerca de 82.500€ e o valor patrimonial matricial era de 1500€; tudo como consta da escritura de compra e venda junta; na certidão do imóvel que juntou, consta que a Fazenda Nacional / Autoridade Tributária e Aduaneira tinha penhorado em 24/04/2014 o imóvel hipotecado num processo de execução fiscal para cobrança de 1119,88€).
2. Em 24/09/2018 (mas o auto é de 15/10/2018…) foi penhorado, nestes autos, o imóvel em causa.
3. A AT e o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social foram citados, nesta execução comum, por cartas elaboradas a 12/10/2018 para reclamarem os seus créditos e entretanto a AE prosseguiu com diligências para venda do imóvel.
4. O MP veio, em representação do Estado Português / Autoridade Tributária reclamar um crédito de 123,14€ de IMI inscrito para cobrança em 2016 e juros (na certidão de dívidas fiscais faz-se referência, entre outros, ao n.º de processo de execução fiscal que deu origem à penhora de 2014 – e consta: custas: fase: venda…).
5. A 14/12/2018 foi proferido o seguinte despacho no apenso da reclamação de créditos:
Compulsados os autos para proferir sentença, constata-se que sobre o imóvel que sustenta os presentes, penhorado à ordem dos autos principais pela ap. 3162 de 24/09/2018, incide a penhora inscrita pela ap. 3400 de 24/04/2014. Assim sendo, notifique-se a AE para que esclareça do estado dos autos principais quanto a tal imóvel.
6. A 08/01/2019, a AE nesta execução comum informou (em duplicado) que:
O imóvel penhorado no processo em epígrafe, trata-se de casa de morada de família, não podendo assim a AT levar a mesma à venda, pelo que vamos prosseguir com as diligências de venda, citando a AT para reclamar os seus créditos. Pede Deferimento
7. A 21/01/2019 é proferido o seguinte despacho:
Face à penhora prévia do imóvel também penhorado à ordem dos presentes no âmbito da execução fiscal (ap. 3400 de 24/04/2014) não pode o mesmo ser vendido nestes autos, sendo que o exequente não está impedido de reclamar o seu crédito nesse processo e promover a venda do imóvel no mesmo - neste sentido vide acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24/10/2017, proc. 249/13.6TBSPS-A.C1.
Em conformidade, determino a sustação da execução quanto ao referido imóvel nos termos do artigo 794/1 do CPC.
Notifique.
Face ao supra decidido, indefiro os requerimentos [os dois que foram feitos pela AE] que antecedem.
8. A 06/02/2019, a exequente interpôs recurso deste despacho – para que seja revogado e substituído por outro que ordene o levantamento da suspensão e admita o prosseguimento dos autos com as diligências para a venda e com a citação da AT - alegando, em síntese feita por este Tribunal da Relação de Lisboa, o seguinte:
A Lei 13/2016, de 23/05, impediu a venda de imóvel que seja a habitação própria e permanente do executado pelo Estado/AT, mas não pelos credores comuns; assim, a execução fiscal não pode prosseguir, nem a requerimento dos outros credores; se não pode prosseguir a execução fiscal, não há a dupla pendência de penhoras/execuções que deva levar à suspensão da execução com penhora posterior (no caso, a comum), ou seja, não se preenche a previsão do art. 794 do CPC; logo, a execução não devia ter sido suspensa e, por isso, deve prosseguir, acautelando-se os interesses da AT com notificação para vir reclamar os seus créditos, o que tem o direito de fazer porque a execução fiscal está suspensa; a não se entender assim, está-se a interpretar o art. 794 do CPC e a Lei 13/2016 como pondo em causa o direito constitucional de propriedade dos credores comuns; assim o tem decidido jurisprudência corrente [invoca dois acórdãos, um no sentido de uma das correntes identificadas abaixo e outro no sentido da outra – parenteses deste acórdão do TRL].
O executado não contra-alegou.
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Questão a decidir: se a execução não devia ter sido suspensa, apesar da existência de uma penhora anterior.
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Decidindo:
A Lei 13/2016 veio defender a habitação própria e permanente do executado apenas quando estão em causa os interesses fiscais ou para-fiscais (excepto quanto às habitações de elevado valor tributário, excepção que não tem aplicação ao caso dos autos: o estudo citado abaixo, refere que este valor é de 574.323€, cf. art. 244/3 do CPPT e art. 17/1-a do CIMT). Não a protegeu – com base numa escolha de política legislativa que não cabe aos tribunais questionar – contra os credores comuns. A habitação própria e permanente do executado não pode ser vendida para satisfazer os créditos fiscais (art. 244/2 do Código do Procedimento e Processo Tributário na redacção que lhe foi dada pela Lei), mas pode-o ser para satisfazer os créditos comuns (embora, prosseguindo o processo para venda do bem penhorado, o produto da venda acabe por servir, potencialmente, para satisfazer todos os créditos).
[note-se, no entanto, que é questionável a afirmação feita no estudo referido a seguir, qual seja, a de que os credores hipotecários comuns podem invocar a cláusula dos contratos que lhes permite executar a garantia real sobre o imóvel abrangido pelo contrato de empréstimo sempre que este imóvel seja penhorado ou apreendido por qualquer outro modo, devido à exigibilidade antecipada das prestações provocada pela penhora, se se tiver em conta que esta penhora fiscal não pode levar à venda do imóvel; a interpretação de tal cláusula terá de ser feita de acordo com a realidade criada pela nova lei]
Quanto a isto – que a habitação própria e permanente não pode ser vendida sob impulso da AT para satisfazer os créditos fiscais, mas pode-o ser para satisfazer os créditos comuns - não há qualquer divergência jurisprudencial ou doutrinária.
Onde há divergência é quanto ao processo que deve prosseguir, quando a primeira penhora foi feita numa execução fiscal.
Uma corrente jurisprudencial baseada num estudo da lei feito logo a seguir à sua publicação defende que a venda não pode prosseguir no segundo processo (comum), porque está ou deve ser suspenso, devendo prosseguir no primeiro, da penhora anterior, fiscal, sendo que se a venda não pode ser feita aí a impulso da AT, pode-o ser pelos credores comuns.
Esse estudo é de J.H. Delgado Carvalho, publicado no blog do IPPC a 11/07/2016: “As alterações introduzidas pela Lei n.º 13/2016, de 23/5, no código de procedimento e de processo tributário e na lei geral tributária e as suas repercussões no concurso de credores”, que ainda não podia ter em conta o modo como a questão iria ser decidida no âmbito da jurisdição administrativa/tributária.
Representam esta corrente três decisões: dois acórdãos, um do TRC de 24/10/2017, proc. 249/13.6TBSPS-A.C1 [é o acórdão citado na decisão recorrida]; e outro do TRP de 08/03/2019, proc. 11128/11.1TBVNG-C.P1; e a decisão singular do TRC de 08/04/2019, proc. 1325/16.9T8ACB.C1
Mas a AT veio dizer que a Lei 13/2016 não permitia a venda no processo fiscal, pelo que os credores comuns não a podiam impulsionar, não dando seguimento a essas tentativas de impulso nas execuções fiscais (baseada, segundo se crê, num ac. do STA de 03/02/2016, proc. 087/15; inúmeras informações da AT desse tipo constam dos acórdãos citados aqui; entretanto o ac. do STA de 10/04/2019, proc. 0852/17.5BESNT, veio dizer que: II - A venda efectuada em execução fiscal em violação do n.º 2 do art. 244 do CPPT é nula, porque celebrada contra disposição legal de carácter imperativo (cfr. art. 294 do CC)). O que se percebe: se o Estado não quer que se venda a habitação própria e permanente em atenção aos interesses habitacionais do executado e do seu agregado familiar e em prejuízo dos interesses fiscais do Estado, não se lhe deve exigir que acabe por ser ele a ficar com o odioso da venda da habitação do executado para satisfação dos interesses dos credores comuns (embora reflexamente ele também possa vir a beneficiar do produto da venda da habitação).
A outra corrente, defendida primeiro num extensamente fundamentado acórdão do TRC de 26/09/2017, proc. 1420/16.4T8VIS-B.C1, tendo já em conta tudo isto, veio defender que como a suspensão do processo da penhora posterior (art. 794 do CPC) só se justificava porque, em princípio, o processo da penhora anterior continuava a correr e iria levar à venda do bem penhorado, entendeu que isto não era assim quando o processo da penhora anterior não podia prosseguir, quer de direito quer de facto (porque os tribunais administrativos/fiscais não dariam andamento ao processo contra aquilo que entendem ser uma lei imperativa). Assim, nestes casos, o processo comum (da penhora posterior) não devia ser suspenso, pelo contrário, devia prosseguir com a venda do bem penhorado e com notificação da AT para vir reclamar os seus créditos na execução comum.
Neste sentido, para além do referido ac. do TRC de 26/09/2017, proc. 1420/16.4T8VIS-B.C1, vão também os acórdãos do TRE de 06/12/2018, proc. 2267/16.3T8STB-B.E1 (com a surpreendente peculiaridade de ter dois sumários, ambos aparentemente da responsabilidade do relator, de sentido contrário; mas a solução que o acórdão seguiu é esta, correspondente ao segundo sumário, colocado no final do mesmo; porém, tendo em conta questões relacionadas com o ónus da prova, o acórdão não determinou o levantamento da suspensão); do TRE de 07/12/2018, proc. 893/12.9TBPTM.E1, do TRG de 17/01/2019, proc. 956/17.4T8GMR-C.G1; do TRL de 07/02/2019, proc. 985/15.2T8AGH-A.L1-6; do TRG de 23/05/2019, proc. 2132/17.7T8VCT-B.G1; do TRG de 30/05/2019, proc. 2677/10.0TBGMR.G1; e do TRE de 30/05/2019, proc. 402/18.6T8MMN.E1
Foi esta a posição seguida pela AE, que prosseguiu o processo sem suspender a execução e notificou a AT (e o IGFSS) para reclamar os seus créditos, apesar de saber da penhora anterior na execução fiscal. É esta a solução correcta, pelas razões referidas, e que se segue, pelo que o despacho recorrido deve ser revogado. Sendo ele revogado, fica levantada a suspensão da execução, porque foi ele que a determinou. O prosseguimento da execução é da competência da AE e este tribunal não tem que deferir ou indeferir o que por ela foi pedido. E não há que determinar a notificação da AT, porque, como se disse, a AE já o fez.
Por fim, não deixe de se dizer que a actuação dos AE não se deve poder bastar com informações verbais, não comprovadas nos autos, de que a execução fiscal não vai levar à venda do imóvel (o que poderá dar origem, por exemplo, às dúvidas que estão na base do ac. do TRE de 06/12/2018, proc. 2267/16.3T8STB-B.E1). No caso dos autos, apesar disto, a verdade é que a afirmação foi feita e o MP foi notificado para reclamar os créditos fiscais e fê-lo apesar de saber da pendência da execução fiscal e nada disse contra o prosseguimento da execução com venda do imóvel penhorado, pelo que se pode aceitar que aquela afirmação de facto feita pela AE nestes autos está comprovada (admitida por acordo).
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Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, revogando-se o despacho recorrido, devendo o processo prosseguir os seus termos.
Custas, na vertente de custas de parte (não há outras), pelo executado (por serem os seus os interesses vencidos no recurso).
Lisboa, 12/09/2019
Pedro Martins
Laurinda Gemas
Gabriela Cunha Rodrigues