Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1519/21.5PDAMD-A.L1-5
Relator: FERNANDO VENTURA
Descritores: RECOLHA DE IMAGEM E VOZ
INQUÉRITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: Para a autorização de uma medida tão intrusiva, como a recolha sistemática de imagem e de voz sobre um específico cidadão, incidindo também em cidadãos indiferenciados que com ele interajam no espaço público, é necessário que tenha sido processualmente adquirido um manancial minimamente encorpado de indícios, capazes de legitimar proporcionalmente uma tal restrição da esfera de privacidade.

Não basta que se proclame um objeto investigatório, assente numa mera convicção da investigação, com a justificação de que o inquérito se encontra no início. De outro modo, logo no momento da abertura da investigação, sem qualquer diligência, bastaria formular o prognóstico se vir a apurar um dos crimes do catálogo para ver franqueado o acesso aos meios de investigação que o legislador reservou para as formas de criminalidade mais graves, vulgarizando uma intromissão que se quer especial e criteriosa.

Também, deveria o recorrente concretizar qual a razão que impede o desenvolvimento de outras diligências investigatórias na área urbana em questão, sobretudo quando se alega, justamente, o resultado de duas intervenções policiais realizadas no mesmo bairro em sete dias.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa


I.Relatório


1.Nos presentes autos, em fase de inquérito no Departamento de Investigação e Ação Penal da Amadora, o magistrado do Ministério Público determinou a incorporação do inquérito n.º 251/22.7T9AMD, e promoveu ao JIC que autorizasse a captação de registo de som e de imagens fotográficas do suspeito e locais onde o mesmo pudesse praticar o ilícito em investigação, sem consentimento dos visados, pelo prazo de trinta dias e nas condições propostas na mesma promoção.

2.Por despacho judicial de 22 de fevereiro de 2022 foi indeferida a promoção.

3.Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso desse despacho, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
«1-O Mmo Juiz, por despacho proferido em 22.02.2022, indeferiu o requerimento do Ministério Público quanto à autorização para recolha de voz e imagem, nos termos da Lei nº 5/2002 de 11/1.
2-Entendeu o Mmº Juiz de Instrução estarmos perante a prática de crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º do DL 15/93 de 22.01, pelo que indeferiu o requerido.
3-No dia 21.12.2021 foram apreendidos dois tipos de produto estupefaciente (cocaína, MDMA) ao arguido, bem como a quantia monetária de € 100 e no dia 27.12.2021, foi apreendido ao arguido a quantia de€ 675.
4-Tal circunstância não é compatível com o mero tráfico de menor gravidade.
5-O arguido não exerce qualquer ocupação laboral declarada, o que indicia que faz do tráfico modo de subsistência, tanto mais que o arguido detinha quantias monetárias em numerário, maioritariamente em notas de baixo valor.
6-Considerando o local onde os factos foram praticados, no interior de um Bairro, é de primordial importância a realização da presente diligência, não sendo possível o recurso a outros meios de recolha de prova.
7-Nestes termos deverá o despacho do Mmº JIC que indeferiu o pedido de autorização para a recolha de voz e imagem, revogado e substituído por outro que o autorize.
8-Com tal decisão violou o Mmº JIC o disposto nos artigos 1º, nº 1, alínea a) e 6°, nº 1 e 2 da Lei 5/2002 de 11.01 e 269º, n.º 1, al. f) do Código de Processo Penal.

4.O recurso foi admitido, consignando-se, nos termos do artigo 414.º, n.º 4 do CPP, que se mantinha o despacho recorrido.
5.Remetido o recurso a esta Relação, o Ministério Público, através do Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, aderindo na totalidade à argumentação constante da motivação do recurso.
6.Notificado o defensor do arguido A., nos termos e para os efeitos do n.º 2 do artigo 417.º do CPP, não foi apresenta resposta.

Cumpre apreciar e decidir.

II.Fundamentação

A.Objeto do recurso e questões a decidir
7.Mostra-se sedimentado na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que a delimitação do objeto do recurso decorre do enunciado das conclusões formuladas na motivação do recurso, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2.ª ed., Ed. Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ de 24/03/99, in CJ [STJ], ano VII, T1, pág. 247, entre muitos).
A única questão colocada consiste na verificação dos pressupostos do registo de voz e de imagem, sem consentimento do visado, previsto no n.º 1 do artigo 6.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro.

B.Da decisão recorrida
8.A decisão recorrida tem o seguinte teor:

«Vem o M.P. nos presentes autos requerer a recolha de voz e imagem do suspeito, nos termos da Lei nº 5/2002 de 11/1, alegando, no essencial, indiciar-se a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º, n.º 1 do D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro, punível com pena de prisão de 4 a 12 anos, considerando tal meio de obtenção de prova indispensável para a descoberta da verdade dos factos e para a prova.
Ao abrigo do disposto nos artº 1.º, n.º 1, al. a), e 6.º, ambos da Lei n.º 5/2002, de 11/1, é admissível o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado, quando esteja em causa a prática de crimes de tráfico de estupefacientes, nos termos dos artigos 21.º a 23.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro.
Respeitando parecer contrário, é nosso entendimento que, olhando à quantidade de produto estupefaciente apreendida – 3,31 gr de cocaína e sem desvalorizar a quantia monetária apreendida no processo incorporado nº 251/22.7 T9AMD -, indicia-se, antes, a eventual prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos artºs 21º, nº 1 e 25º, al. a) D.L. n.º 15/93, de 22 de Janeiro.
No processo nº 209/17.8PAAMD o suspeito foi condenado pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade.
É certo que se indicia continua a vender pequenas quantidades de produto estupefaciente, ao consumidor de rua, porém, em nosso modesto entendimento, não ultrapassará, assim, uma vez mais, a indiciada prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade.
Nesta conformidade, de facto e de Direito, o Tribunal indefere o requerimento do M.P.. Notifique.»

C.Apreciação

9.A impugnação em apreço versa divergência sobre a verificação dos pressupostos de uma das medidas especiais de obtenção ou recolha de prova no âmbito da investigação a criminalidade organizada e económico-financeira, constante da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro.

Invocando a existência de indícios de um dos tipos de crime enunciados no catálogo do artigo 1.º do diploma, a saber, do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, peticionou a magistrada do Ministério Público titular do inquérito à juíza de instrução criminal que autorizasse o registo de voz e de imagem, por qualquer meio, sem consentimento do visado, medida prevista no artigo 6.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro.

Diga-se que, tomando apenas a parte final do despacho do Ministério Público, a pretensão assume um alcance mais restrito, pois peticiona-se apenas a «captação de registo de imagens fotográficas do suspeito e locais onde o mesmo possa praticar o ilícito», sem referência ao registo de voz. No entanto, cotejando a motivação exarada na promoção, verifica-se que é sempre feita referência ao registo de voz e imagem, existindo, então, lapso na parte conclusiva daquela. Foi, aliás, esse também o entendimento do tribunal recorrido.

Contrariamente ao defendido pelo Ministério Público, entendeu a JIC que os indícios colhidos no inquérito, mormente ao nível da quantidade de estupefacientes apreendidos, não suportam a qualificação jurídico-penal avançada na promoção, correspondendo antes à prática do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1 e 25.º, alínea a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro. O qual, como emerge do respetivo enunciado, encontra-se excluído do elenco de crimes que legitima a medida especial de obtenção de prova.

Esse entendimento mostra-se inteiramente correto.

O legislador instituiu no artigo 25.º, alínea a) do D.L. 15/93, de 22/1, um tipo de tráfico de estupefacientes privilegiado, com redução da moldura penal para 1 a 5 anos de prisão, o qual tem como elemento essencial uma considerável diminuição da ilicitude do facto, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações.

Ora, a apreensão de 3,31 gramas de cocaína e de 0,260 gramas de MDMA, juntamente com a deteção de uma venda de um outro produto, não apreendido, mesmo que juntamente a apreensão da quantia monetária de €675,00, remete para a esfera de ilicitude contemplada pelo tipo privilegiado.

Invoca-se no recurso o estado “incipiente” da investigação e estranha-se que se efetue “um juízo de prognose tão assertivo”, mas a argumentação enferma de um equívoco. Para a autorização de uma medida tão intrusiva como a recolha sistemática de imagem e de voz sobre um específico cidadão, incidindo também em cidadãos indiferenciados que com ele interajam no espaço público, é necessário que tenha sido processualmente adquirido um manancial minimamente encorpado de indícios, capazes de legitimar proporcionalmente uma tal restrição da esfera de privacidade.

Não basta que se proclame um objeto investigatório, assente numa mera convicção da investigação, com a justificação de que o inquérito se encontra no início. De outro modo, logo no momento da abertura da investigação, sem qualquer diligência, bastaria formular o prognóstico se vir a apurar um dos crimes do catálogo para ver franqueado o acesso aos meios de investigação que o legislador reservou para as formas de criminalidade mais graves, vulgarizando uma intromissão que se quer especial e criteriosa.

Por último, não se vê, nem o recorrente concretiza, qual a razão que impede o desenvolvimento de outras diligências investigatórias na área urbana em questão, sobretudo quando se alega, justamente, o resultado de duas intervenções policiais realizadas no mesmo bairro em sete dias. Ademais, o próprio despacho proferido no próprio dia da apresentação do recurso (ref. 135918981) contraria essa linha argumentativa.

Improcede, assim, o recurso, devendo ser mantida a decisão recorrida.

III.Dispositivo

Pelo exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal desta Relação em julgar improcedente o recurso e manter a decisão recorrida.
Não são devidas custas.
Notifique.



Texto elaborado em computador e revisto pelo relator (art.º 94.º, n.º 2 do CPP).
                                                               


Lisboa, 17 de maio de 2022



(Fernando Ventura- relator)                                                          
(Maria José Machado)