Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
150/21.0PALSB.L1-3
Relator: ANA PAULA GRANDVAUX
Descritores: DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/23/2022
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I- Num processo tendo por objecto a prática de crime de violência doméstica, em que a ofendida se recusa em audiência de julgamento a prestar declarações sobre esse mesmo objecto, não pode ser valorado o seu depoimento anteriormente prestado nos autos, mesmo aquele prestado para memória futura, no decurso do inquérito ou da instrução – porque assim o exige o preceituado no artº 356º/6 do C.P.P.
 II- Com efeito, nada tendo sido estabelecido legalmente em sentido contrário, deve prevalecer o disposto no artigo 356º nº 6 do C.P.P, porquanto deve triunfar a autonomia da testemunha e os valores que subjazem ao seu direito de recusar prestar depoimento em julgamento, que lhe é conferido legalmente, em detrimento da procura da verdade.
 (Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
1 - No processo nº 150/21.0PALSB, do Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 5, foi submetido a julgamento em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido NS______ ,  nascido a 1989-07-08, na India, residente  Lisboa, acusado pelo M.P como autor material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nos 1, alínea a), 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal (contra a vítima AS_____ ), e de um crime de violência doméstica, p.p pelo artigo 152º, nos 1, alínea d), 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal (contra a vítima SN______ ).
O arguido apresentou contestação oferecendo o merecimento dos autos e arrolando testemunhas.
A audiência de discussão e julgamento realizou-se na presença do arguido e com observância do formalismo legal.
2- Realizado o julgamento, por sentença proferida em 21.12.2021, foi o arguido absolvido, nos seguintes (transcritos) termos:
IV. DISPOSITIVO
Pelo exposto, tudo visto e ponderado, julgo improcedente a acusação deduzida pelo Ministério Público e, consequentemente:
A) Absolvo o arguido NS______  da prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.os 1, alínea a), 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal (contra a vítima AS_____ ).
B) Absolvo o arguido NS______  da prática, como autor material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.os 1, alínea d), 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal (contra a vítima SN______ ).
A) Não se arbitra o pagamento pelo arguido NS______  a AS_____  nem a SN______  de qualquer indemnização ao abrigo do disposto nos artigos 21º, nº2, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro e 82º-A, do Código de Processo Penal.
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Não há lugar a condenação no pagamento de custas processuais.
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Medidas de coação
Ao abrigo do disposto no artigo 214º, nº1, alínea d), do Código de Processo Penal, declaro extintas as medidas de coação aplicadas a fls. 173 e que aqui se dão por integralmente reproduzidas, ficando o arguido sujeito apenas às obrigações decorrentes do Termo de Identidade e Residência.
D.n.
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Cumpra o disposto no artigo 372º, n.º 5 do Código de Processo Penal.
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Notifique.
*
3 – Inconformado com tal decisão, dela recorreu o Ministério Público, sendo que a motivação apresentada, termina com a formulação das seguintes (transcritas) conclusões:
I. O presente recurso tem por objeto a douta sentença absolutória proferida nos autos.
II. E funda-se no facto de o Tribunal a quo não ter valorado as declarações para memória futura prestadas pela ofendida, nem ter fundamentado a razão pela qual as não usou;
III. Com base no artigo 356°, n° 6 do C.P.P. decidiu o Tribunal a quo convocar a ofendida para comparecer na audiência de julgamento, permitir que a mesma prestasse declarações não falando e, com isso, afastar as declarações para memória futura por si anteriormente prestadas;
IV. Efeito este aceite pelo Tribunal a quo, mas não por nós.
V. O artigo 356°, n° 6 do C.P.P. não foi estabelecido para inibir a leitura/valoração das declarações para memória futura, mas sim para situações em que o depoimento da testemunha a poderá autoincriminar ou para os casos em que exista segredo profissional.
VI. Já o artigo 271°, n°8 do C.P.P. implica necessariamente que pretendendo a declarante prestar depoimento em audiência de julgamento, o faça efetivamente, prestando informações adicionais ou esclarecimentos ou até mesmo negando o que anteriormente disse,
VII. Dando assim cumprimento ao disposto no artigo 128°, n° 1 do CPP.
VIII. Mas nunca para se remeter ao silêncio, como sucedeu no caso concreto.
IX. E esse silêncio nunca poderia ser interpretado como forma de “invalidar” as declarações para memória futura já por si prestadas,
X. Nem para permitir a não valoração de tais declarações, que necessariamente tinham que ser apreciadas e valoradas (artigo 355°, n° 1 do CPP.).
XI. Tal falta de apreciação e valoração constitui uma nulidade nos termos do art. 120°, n°1, al. d) parte final do CPP..
XII. Implicando igualmente uma nulidade da sentença nos termos do art. 379°, n° 1, al. c) do CPP.
XIII. No Acórdão n° 8/2017 de 21 de Novembro foi fixada a seguinte jurisprudência:
As declarações para memória futura, prestadas nos termos do artigo 271.° do Código de Processo Penal, não têm de ser obrigatoriamente lidas em audiência de julgamento para que possam ser tomadas em conta e constituir prova validamente utilizável para a formação da convicção do tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355° e 356°, n ° 2, alínea a), do mesmo Código.”.(sublinhado nosso)
XIV. Mas o Tribunal a quo não as teve como prova adquirida no processo, não as leu, não as considerou, mas não fundamentou tal opção. O que por si só constitui outra nulidade da sentença nos termos do artigo 120°, n°1, al. d) parte final, artigos 374°, n° 2 e 379°, n° 1, al. a) ambos do CPP.
XV. A isto acresce que verificados os requisitos previstos no artigo 356°, n° 2, al. a) do C.P.P., o indeferimento da leitura das declarações assim prestadas perante o Juiz constitui também a nulidade prevista no último segmento normativo da alínea d) do n° 1 do artigo 120° do mesmo diploma legal, porquanto foram omitidas diligências reputadas como essências para a descoberta da verdade. - neste sentido Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03.06.2015.
XVI. Nesta conformidade e valorando as declarações para memória futura prestadas nos autos pela ofendida, cotejada com a demais prova (ainda que parca) produzida nos autos, deve o arguido ser condenado pela prática dos crimes de violência doméstica que lhe eram imputados na acusação.
XVII. Ainda que em pena de prisão, suspensa na sua execução,
XVIII. E bem assim na pena acessória de proibição de contactos a que se refere o artigo 152°, n°s 4 e 5 do CPP,
XIX. E ainda na indemnização a que se referem os artigos se referem os artigos 82°-A n°1 do Código de Processo Penal e 21° da Lei n° 112/2009 de 16 de setembro e,
XX. Na obrigação de frequência pelo arguido de curso de prevenção para a violência doméstica.
Nestes termos e nos demais de direito, deve a sentença recorrida ser revogada, decidindo V. Exas. ordenar a repetição do julgamento, determinando que o Tribunal a quo aprecie as declarações para memória futura proferidas pela ofendida, decidindo em conformidade.
Mas V.ªs Ex.ªs farão, como sempre.
JUSTIÇA!
4- Este recurso foi admitido por despacho proferido em 25.01.2022.
5- O arguido respondeu à motivação apresentada, sustentando que seja negado provimento ao recurso e mantida na íntegra a decisão absolutória da 1ª instância, por se mostrar a mesma devidamente elaborada e fundamentada.
6- Nesta Relação de Lisboa, o Digno Procurador Geral Adjunto, quando o processo lhe foi com vista, nos termos e para os efeitos do artº 416º do C.P.P, emitiu parecer em que adopta posição divergente daquela defendida pelo Ministério Público na 1ª Instância e conclui que não acompanha a tese da acusação.
Argumenta para o efeito, que não obstante a conduta da vítima em audiência, poder abarcar a possibilidade de esta se ter finalmente vergado às pressões familiares, máxime, dos seus próprios pais, para se calar e assim evitar que o arguido, pai do seu filho, sofra sanção penal, a norma vertida no n° 6, do art° 356° do CPP impõe a solução de direito que sobre a matéria foi acolhida na sentença recorrida – no sentido de que as declarações para memória futura que haviam sido validamente prestadas em sede de inquérito, não podem ser consideradas prova adquirida, perante a recusa da vítima em prestar declarações em sede de audiência de julgamento.
Isto porque defende o M.P no seu parecer, “a proibição referida, aplica-se, como impõe o segmento da referida norma legal «em qualquer caso», conferindo desta forma à norma, um sentido unívoco e excludente da excepção sugerida na tese do recurso”.
7- Foi oportunamente cumprido o artº 417º/2 do C.P.P., não tendo sido apresentada qualquer resposta.
8- Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
II - Questões a decidir
Delimitação do objecto do recurso
Do artº 412º/1 do C.P.P resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente definem as questões a decidir em cada caso (cf. Germano Marques da Silva em “Curso de Processo Penal” III edição 2º edição, 2000 pág. 335 e Ac. do S.T.J de 13.5.1998 em B.M.J 477º 263), exceptuando aquelas que sejam do conhecimento oficioso (cf. artº 402º, 403º/1, 410º e 412º todos do C.P.P e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J de 19.10.1995 in D.R I – A série, de 28.12.1995).
A única questão a apreciar por este Tribunal ad quem é a de saber se as declarações para memória futura, que haviam sido validamente prestadas, em sede de inquérito pela ofendida, podem ser ou não valoradas pelo Tribunal de 1ª instância, para fundamentar a decisão sobre a  matéria de facto, face à recusa da vítima em prestar declarações em sede de audiência de julgamento.
III- Fundamentação de Facto
A decisão recorrida
Na sentença recorrida o Tribunal a quo considerou provado o seguinte:
I. 1. Factos Provados
Da prova produzida em audiência de discussão e julgamento e com relevância para a decisão da causa, julgam-se provados os seguintes factos:
A) O arguido é casado com AS_____ , desde 04 de Dezembro de 2013 e vieram para Portugal em 08 de Março de 2016, residido na Rua   Lisboa.
B) Ambos tiveram uma filha, SN______ , nascida em Portugal em 03 de Junho de 2016.
C) O grau de risco atribuído à relação entre o arguido e AS_____  é médio.
D) O arguido trabalha no armazém da superfície comercial Continente auferindo, mensalmente, quantia entre €700 e €750.
E) O arguido é casado com AS_____ , a qual trabalha numa loja, auferindo quantia não concretamente apurada.
F) O arguido tem uma filha com 5 anos de idade, a qual reside com a respectiva progenitora, podendo o arguido contactar com a filha uma vez por semana na presença do tio de SN______ .
G) O arguido reside sozinho, em habitação arrendada, suportando, mensalmente, a título de renda a quantia de €150.
H) O arguido tem o bacharelato em economia .
I) O arguido não tem averbada qualquer condenação ao respectivo certificado do registo criminal.
Quanto aos factos não provados, ficou consignado o seguinte na sentença:
2. Factos não provados
1) Desde o inicio do casamento que o arguido tenta isolar AS_____  proibindo o convívio da mesma com outras pessoas, quer sejam homens ou mulheres.
2) Quando AS_____  vai visitar a família o mesmo diz-lhe: “tens tempo para eles e não tens tempo para mim”, repetindo vezes sem conta a ideia que o tempo que despende com sua família é tempo roubado ao tempo que devia despender com o marido, deixando a vítima stressada e angustiada, fazendo-a sentir-se uma má esposa.
3) Se AS_____  sai com amigas o arguido insulta as suas amigas dizendo que são todas umas prostitutas e que a mesma não pode sair com elas.
4) Se AS_____  fala com um homem é porque está a traí-lo e insulta-a chamando-a de prostituta e outros nomes que em indiano significam mulher de má conduta, o que na sua cultura indiana é extremamente humilhante e degradante para uma mulher casada, tendo consequências familiares e socias graves.
5) Em 2017, já em Portugal, o arguido insurgiu-se contra o facto de AS_____  trabalhar.
6) Quando AS____começou a trabalhar as discussões passaram a abranger as relações que AS_____  tem no trabalho, querendo proibi-la de falar como os colegas de trabalho, acusa-a de ter um amante sempre que esta fala com um homem.
7) O arguido quer que AS____vá só do trabalho para casa e de casa para o trabalho, não podendo confraternizar com ninguém.
8) O arguido diz a AS____ “és uma puta”, “tens outro homem”, “tu estragaste a minha vida”, “não quero ficar contigo”, “filha da puta”, “és uma má mãe”, “não és boa mulher”, tudo por AS_____  falar/confraternizar com outras pessoas, pois para o arguido se aquela sai diz-lhe que tem um namorado/amante e que vai ter com ele ou se fala com um homem é porque ele é seu amante.
9) Estas discussões ocorrem no domicílio comum e têm uma frequência diária o que é muito desgastante e stressante para AS_____ , que vive uma angustia diária e em sofrimento, pois devido à sua cultura as acusações que o arguido lhe faz são extremamente vexatórias e degradantes, deixando AS_____ , numa permanente angústia e sofrimento.
10) Nas discussões, quando AS_____  argumenta o arguido diz-lhe: “eu mato-te e não tenho problema com isso”, “mato-te se fores trabalhar”, “mato-te se falares com outro homem”, “vou-te matar já”, “cuidado quando fores trabalhar porque vais estar sozinha” referindo-se ao facto de AS_____  sair de casa para o trabalho às 6h25m, e ser de noite e estar poucas pessoas na rua quando vai apanhar o autocarro, dando a entender que é fácil matá-la.
11) O arguido já disse duas vezes referindo-se a AS_____  e a SN______ , sua filha, “mato-te a ti e a ela com veneno e depois a mim” e que dava veneno a ela e à filha e depois entregava-se à policia.
12) O arguido, quando AS_____  sai, chega a dizer a SN______  que a mãe vai ter com outro pai.
13) SN______  assiste às discussões diárias e às agressões a AS_____  o que causa angústia e stress na mesma que chora e pede, a chorar, ao arguido: “não batas na minha mãe..., não mates a minha mãe...” .
14) Em data não concretamente apurada, mas que se situa entre 2017 e 2018, já depois de AS_____  estar a trabalhar, o arguido, no domicílio comum, com a mão aberta, desferiu um número não concretamente apurado de bofetadas na cara de AS_____ , deixando os seus dedos marcados na cara desta.
15) Em data não concretamente apurada, mas que se situa em maio/junho de 2020, num período em que esteve grávida, o arguido, por saber que AS_____  não queria ter relações sexuais, para a conseguir forçar, empurrou a vítima para cima da cama, enquanto esta lhe dizia que não queria e disse-lhe: “se não fizeres sexo comigo vou dizer aos teus pais que tens outro” tendo AS_____  acabado por ceder a ter relações sexuais com o arguido, contra sua vontade.
16) Em data não concretamente apurada, mas que se situa em Novembro/Dezembro de 2020, quando AS_____  estava no domicílio comum a fazer as malas para ir para Viana do Castelo trabalhar e disse ao arguido que se separava dele, o arguido desferiu um número não concretamente apurado de bofetadas na cara de AS_____  e apertou-lhe o pescoço.
17) AS_____ , com as dores e o medo do que lhe pudesse suceder, fugiu para a rua, mas na altura não quis apresentar queixa por causa da sua filha, pois na cultura Indiana se uma mulher se queixa contra o marido toda a família e a própria vítima são criticados e mal vistos pela sociedade indiana.
18) O arguido começou a ligar aos pais de AS_____  a fazer queixas da mesma para que estes a obrigassem a voltar para casa, dizendo que AS_____  mente, e, em consequência, os pais de AS_____  passaram a ligar-lhe constantemente dizendo que se suicidavam se esta não voltasse para o arguido e que esta tinha de voltar a tentar viver com o mesmo.
19) AS_____ , sabendo que a sua separação traria consequências graves à sua família na India, e, cedendo à forte pressão familiar, em Janeiro de 2021 voltou para a morada acima referida onde vivia com o arguido.
20) Em data não concretamente apurada, mas que se situa em Março/Abril de 2021, o arguido agrediu AS_____  apertando-lhe o dedo indicador contra o polegar da mão de AS_____  com muita força, andando a mesma com dores na mão durante 15 dias.
21) No dia 13/03/2021, cerca das 21H20, na cozinha da residência supra referida, o arguido começou a questionar AS_____  porque é que ela ia trabalhar, dizendo que não quer que ela o faça, começando com a mesma conversa, de que tinha amantes, pois o mesmo não aceita que AS_____  fale com homens.
22) De seguida, de forma agressiva, disse: “vou matar-te já”, dirigindo-se a AS_____ , que pediu para o arguido não dizer aquelas coisas em frente da filha e fugiu para a rua, pedindo à vizinha para chamar a policia.
23) AS_____  dormiu nessa noite com SN______  em casa de pessoa amiga, mas no outro dia voltou para casa, pois não tinha alternativa para ficar.
24) Por ser insuportável a convivência com o arguido, por não querer que a sua filha SN______  continue a chorar e a sofrer e por ter receio pela sua integridade física e pela própria vida, AS_____  optou por pedir ajuda à entidade policial relatando os factos.
25) AS_____  aproveitou a saída do arguido de casa e mudou a fechadura.
26) O arguido liga para os pais de AS_____  dizendo que esta mente, para que estes a pressionem a voltar para ele.
27) AS_____  bloqueou o arguido no seu telemóvel, mas este falou com os pais de AS_____  e este fizeram pressão para esta o desbloqueasse o que acabou por fazer.
28) AS_____  recebe constantes telefonemas dos seus pais, para que a mesma retire a queixa, pedindo para esta desistir e dizer às autoridades que mentiu, mostram-se irritados com esta e dizem que ela mente, porque o arguido disse aos pais daquela que ela era uma mentirosa.
29) O irmão de AS_____  foi viver para a casa desta para garantir que AS_____  não se relaciona com nenhum homem e dá conta de tudo o que se passa aos pais de AS_____ .
30) Toda esta situação causa muita angústia e stress em AS_____ , pois tem medo que o arguido a mate se ficar sob o mesmo tecto que ele, por outro lado sabe que as decisões que tomou têm repercussões na sua família, que passou a ser mal vista e criticada no seu país.
31) Ao actuar conforme o descrito, o arguido pretendeu e logrou, ofender a integridade física de AS_____  e ofendê-la na sua honra e consideração, e ainda, proferiu as referidas afirmações, de forma séria, bem sabendo que as mesmas constituíam meio idóneo para provocar medo e inquietação na mesma, e que esta acreditou na seriedade daquelas, receando a partir de então pela sua integridade física, e pela sua vida, afetando-lhe deste modo o bem-estar físico e psíquico de AS_____  e a sua liberdade de movimentos, bem sabendo que aquela é sua mulher, a quem devia respeitar e cuidar.
32) Afectando, ainda, o arguido, com a sua conduta o bem-estar físico e psíquico de SN______ , bem sabendo que a mesma é menor e o efeito de sofrimento que lhe causa, que assiste à conduta do arguido contra a sua própria mãe, sem que nada possa fazer para o evitar devido à sua tenra idade, bem sabendo o arguido que SN______ , sua filha, é menor, pessoa especialmente vulnerável, a quem devia proteger e cuidar.
33) O arguido agiu livre, voluntaria e conscientemente, bem sabendo que os seus comportamentos são proibidos e punidos pela lei penal.
Não resultaram provados outros factos, sendo certo que não foi considerada matéria conclusiva, de direito ou sem qualquer relevância para a boa decisão da causa.
O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão de facto nos seguintes termos:
3. Motivação da matéria de facto
O tribunal estribou a sua convicção, no que concerne aos factos pelos quais o arguido vinha acusado, na prova documental constante dos autos e nas declarações produzidas pelo arguido em audiência de discussão e julgamento. AS_____  decidiu não prestar declarações.
A prova da factualidade descrita em A) e B) resultou do cotejo do teor das declarações produzidas pelo arguido, que a confirmou, tendo AS_____  corroborado ter casado com o arguido na Índia em 04 de Dezembro de 2013.
A demais factualidade elencada em 1) a 33) foi negada pelo arguido e as declarações para memória futura prestadas a fls. 105 não podem ser consideradas atenta a válida recusa de AS_____  em prestar declarações em audiência de discussão e julgamento.
Pese embora o auto de denúncia de fls. 2, na ausência de outros meios de prova a tanto conducentes, a referida factualidade não resultou provada.
O grau de risco atribuído a esta situação resultou demonstrado com base no relatório de fls. 367.
No que tange às condições sócio-económicas do arguido o tribunal tomou em consideração as declarações por si prestadas por se afigurarem verosímeis, atendendo à forma espontânea e clara com que foram produzidas.
No que concerne aos antecedentes criminais, foi considerado o certificado do registo criminal junto aos autos.
Analisando
No caso em apreço está pois em causa, saber se as declarações para memória futura que haviam sido validamente prestadas pela ofendida AS_____ , vítima do crime de violência doméstica imputado ao arguido, podem ser ou não valoradas pelo Tribunal a quo para fundamentar a sua decisão sobre a matéria de facto, face à recusa dessa mesma vítima em prestar declarações, em sede de audiência de julgamento.
O Tribunal de 1ª instância decidiu-se pela absolvição do arguido, por considerar não ter sido feita prova em audiência dos factos ilícitos que o M.P lhe imputava, face à negação dos mesmos pelo arguido em julgamento, ao silêncio da ofendida AS_____  sobre esses factos - principal e única testemunha directa dos mesmos - e por ter entendido que nenhuma outra prova foi produzida em audiência, que comprovasse a tese da acusação.
O Tribunal de julgamento não valorou as declarações para memória futura que a mesma ofendida havia prestado em sede de inquérito, fundamentando a sua posição nos seguintes termos:
A demais factualidade elencada em 1) a 33) foi negada pelo arguido e as declarações para memória futura prestadas a fls. 105 não podem ser consideradas atenta a válida recusa de AS_____em prestar declarações em audiência de discussão e julgamento.
Pese embora o auto de denúncia de fls. 2, na ausência de outros meios de prova a tanto conducentes, a referida factualidade não resultou provada.”
O M.P na 1ª instância veio recorrer da sentença absolutória, reagindo contra a não valoração das declarações para memória futura da ofendida, invocando que essa decisão absolutória, padece dos seguintes vícios:
1) a falta de apreciação e valoração das declarações para memória futura prestadas nos autos, consubstancia a nulidade do artº 120º/1 d) parte final do C.P.P, por omissão de diligências para a descoberta da verdade;
2) o Tribunal a quo incorreu em omissão de pronúncia, padecendo a sentença da nulidade prevista nos termos do artº 379º/1 c) do C.P.P - por omissão de pronúncia
Para o efeito, argumentou do seguinte modo:
Com base no artigo 356°, n° 6 do C.P.P. decidiu o Tribunal a quo convocar a ofendida para comparecer na audiência de julgamento, permitir que a mesma prestasse declarações não falando e, com isso, afastar as declarações para memória futura por si anteriormente prestadas.
Efeito este aceite pelo Tribunal a quo, mas não por nós.
O artigo 356°, n° 6 do C.P.P. não foi estabelecido para inibir a leitura/valoração das declarações para memória futura, mas sim para situações em que o depoimento da testemunha a poderá autoincriminar ou para os casos em que exista segredo profissional.
Já o artigo 271°, n°8 do C.P.P. implica necessariamente que pretendendo a declarante prestar depoimento em audiência de julgamento, o faça efetivamente, prestando informações adicionais ou esclarecimentos ou até mesmo negando o que anteriormente disse,
Dando assim cumprimento ao disposto no artigo 128°, n° 1 do CPP.
Mas nunca para se remeter ao silêncio, como sucedeu no caso concreto.
E esse silêncio nunca poderia ser interpretado como forma de “invalidar” as declarações para memória futura já por si prestadas,
Nem para permitir a não valoração de tais declarações, que necessariamente tinham que ser apreciadas e valoradas (artigo 355°, n° 1 do CPP.).
Tal falta de apreciação e valoração constitui uma nulidade nos termos do artº 120°, n°1, al. d) parte final do CPP.
Implicando igualmente uma nulidade da sentença nos termos do artº 379°, n° 1, al. c) do CPP.
Conclui assim, pedindo que a sentença proferida em 21.12.2021, seja revogada e o julgamento seja repetido, a fim de aí serem apreciadas as declarações para memória futura oportunamente prestadas nestes autos pela ofendida, em sede de inquérito.
A posição do M.P na 1ª instância não foi porém acolhida pelo Procurador Geral Adjunto nesta Relação, como vimos.
Este digno representante do M.P emitiu parecer sobre esta questão controvertida, onde veio subscrever a posição do Tribunal recorrido, invocando que a mesma é consentânea com o preceituado no artº 356º/6 do C.P.P. e que este preceito, não permite outra interpretação diversa.
Sublinhou para o efeito no seu parecer, que a proibição legal ali referida, aplica-se, como impõe o segmento de norma «em qualquer caso», conferindo desta forma à norma um sentido unívoco e excludente da excepção defendida na tese do recurso.
Quid Juris?
Como se sabe, em regra e para estrita observância do princípio da imediação da prova e do rigoroso respeito pelo princípio do contraditório, a prova deve ser produzida em sede de audiência de julgamento, que é o momento adequado para a plena produção de prova, com o exercício do contraditório (artº 340º/1 e artº 355º do C.P.P).
O instituto da tomada de declarações para memória futura previsto no artº 271º do C.P.P, constitui um dos mecanismos consagrados na lei para evitar a repetição de audição da vítima e protegê-la do perigo de revitimização, devendo por isso ser sempre ponderado o interesse da vítima, que se encontra fragilizada.
No caso dos presentes autos, estamos sem dúvida perante uma testemunha, AS_ , que constitui uma vítima especialmente vulnerável, atento o disposto no artigo 67°-A, n° 1 al. a) i) do Código de Processo Penal e por força do estabelecido no n° 3 do mesmo preceito legal, já que o crime de violência doméstica, integra o conceito de criminalidade violenta, tal como definido no artigo 1º, al. j), também do Código de Processo Penal.
A vulnerabilidade da testemunha em causa, decorre igualmente do disposto no artigo 26° da Lei de Protecção de Testemunhas em processo penal, aprovada pela Lei nº 93/99 de 14.7 e do disposto no artigo 2º, alínea b) da Lei de Protecção às Vitimas de Violência Doméstica aprovada pela Lei nº 112/2009 de 16.9.
No caso em apreço, foram tomadas as declarações para memória futura à ofendida, ao abrigo do artº 33º da Lei n° 112/2009, de 16/09 (que veio introduzir o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica).
Este diploma, veio estabelecer no seu artigo 33°, um regime formalmente autónomo para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica - regime esse idêntico ao já previsto no artigo 271° do Código de Processo Penal para determinados tipo de condicionalismo, com existência de previsíveis dificuldades na obtenção da prova, ou em caso dos específicos crimes aí enunciados.
Dispõe o artº 33º/1 desta Lei nº 112/2009 de 16.9 sob a epígrafe “Declarações para memória futura”:
 “O Juiz a requerimento da vítima ou do M.P, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento”. 
Assim da análise conjunta da redacção conferida ao artº 24° do Estatuto de Vitima aprovado pela Lei nº 130/2015 de 4.9 e ao artº 33° da Lei de Protecção às Vitimas de Violência Doméstica (Lei nº 112/2009), resulta, que a tomada de declarações para memória futura tem actualmente uma inquestionável natureza de protecção da vítima particularmente vulnerável e que o âmbito de aplicação do instituto é agora muito mais alargado e não se circunscreve aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual e tráfico de pessoas, consagrados no artigo 271° do Código de Processo Penal.
Todavia, não obstante, tudo o acabado de expor, sem prejuízo do reconhecimento desta vulnerabilidade da vítima do crime de violência doméstica e da forte possibilidade de a mesma poder ser manipulada, enquanto testemunha principal em julgamento, a verdade é que não há garantia de que essa manipulação vá existir em todos os casos.
Poderá assim haver situações em que as circunstâncias de vida dos protagonistas envolvidos no litígio na vida real se alteram substancialmente, no período que decorre desde a abertura do inquérito até ao julgamento e a própria queixosa/ofendida não esteja já interessada no prosseguimento dos autos, por ter sido entretanto pacificada a sua vida familiar ou simplesmente por ter já sido sanado o conflito existente.
Desta forma observa-se que o legislador, decidiu não abrir aqui qualquer excepção e simplesmente deixou que pudesse ser a ofendida, mesmo no âmbito dos crimes de violência doméstica a decidir (tal como sucede com as vítimas de outros crimes) se quer ou não prestar declarações em julgamento, podendo validamente recusar-se a depor quando tem um laço de parentesco com o arguido, ao abrigo do artº 134º do C.P.P.
E nesse circunstancialismo, o que verificamos é que no nosso sistema processual penal, não lhe foi legalmente retirado o poder de impedir, através do recurso ao silêncio em audiência de julgamento, (não prestando declarações sobre os factos que integram o objecto do processo) que as declarações suas prestadas anteriormente perante o Juiz em sede de inquérito ou instrução, incluindo a título de declarações para memória futura, possam não ser lidas, nem valoradas pelo Juiz de julgamento.
E sendo assim, como é, salvo o devido respeito pela posição do M.P na 1ª instância, entendemos que não tem o mesmo razão e que a posição do Tribunal a quo encontra acolhimento legal na norma expressa do artº 356º/6 do C.P.P.
No caso em apreço (crime de violência doméstica) não se ignora ser grande a dificuldade de obtenção de prova em crimes desta natureza, onde a maior parte dos factos ocorrem dentro da intimidade do lar, sem testemunhas directas externas ao núcleo familiar.
Assumindo por isso quase sempre, o depoimento da vítima, um valor crucial e sendo também por isso o mesmo facilmente passível de manipulações por parte do agressor, durante o decurso do processo, que por essa via procurará fugir a eventuais responsabilidades em julgamento.
Mas não obstante o reconhecimento desse contexto social e processual, não podemos também esquecer que esta diligência da tomadas de declarações para memória futura, apenas visa proteger a vítima e acautelar o valor probatório futuro das suas declarações e não impede, que se assim o entender absolutamente necessário, para a descoberta da verdade e tal não colocar em risco a sua saúde física ou psíquica daquela, o Tribunal a quo possa ainda chamar o/a declarante a prestar depoimento em julgamento (artº 33º/7 da Lei nº 112/2009 de 16.9 e artº 271º/8 do C.P.P).
Na realidade não se pode esquecer como já ficou dito supra, que a tomada de declarações para memória futura, constitui uma excepção ao princípio da imediação e da produção de prova em sede de audiência de discussão e julgamento.
Esta recolha antecipada de prova tem como fundamento a possibilidade de perda de prova, evitar a grave vitimização do ofendido (nos casos do artº 271° n° 2 C.P.P.) ou em caso de impossibilidade ou dificuldade séria de a prova ser recolhida em momento posterior
Por isso, não será pelo simples facto de no caso em apreço, a ofendida ter prestado declarações para memória futura em sede de inquérito, que o Tribunal a quo teria que ficar obrigado/vinculado a valorar e relevar tais declarações - isto porque será sempre em audiência de julgamento que em última instância tudo se vai decidir, podendo a própria testemunha/ofendida comparecer em julgamento e relatar uma versão diferente ou remeter-se ao silêncio como sucedeu no presente caso.
E não se pode ignorar que o nº 6 do artº 356º do C.P.P, vem expressamente por vontade do legislador, proibir essa valoração, nas situações em que se verifique que a testemunha (ofendida), uma vez presente em julgamento, se recuse aí a prestar declarações sobre os factos imputados ao arguido – ainda que tal atitude possa levar inclusive à absolvição do mesmo, quando nenhuma outra prova seja suficiente para incriminar aquele, como sucedeu no caso em apreço.
Neste nosso processo, no decorrer do inquérito, o juiz de instrução ouviu, para memória futura, a vítima, ao abrigo do artigo 33º da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro).
A questão controvertida consiste pois em saber se ao caso é aplicável o artigo 356º, nº 6, do Código de Processo Penal, o qual que estabelece que “ É proibida em qualquer caso, a leitura do depoimento prestado em inquérito ou instrução por testemunha que em audiência, se tenha validamente recusado a depor.”
Importa pois ter em consideração na interpretação desta norma, o que preceitua o artº 356º com a epígrafe “Reprodução ou leitura permitidas de autos e declarações”:
Nº1 : Só é permitida a leitura em audiência de autos:
(…)
b) De instrução ou de inquérito que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou das testemunhas.
Nº 2: A leitura de declarações do assistente, das partes civis e de testemunhas só é permitida tendo sido prestada perante o Juiz nos casos seguintes:
a) Se as declarações tiverem sido tomadas nos termos dos artigos 271º e 294º do C.P.P
(…)
Mas logo a seguir, o nº 6 do artº 356º do C.P.P, vem expressamente regular como já vimos, que na situação em que a testemunha se recuse validamente a depor em julgamento, fica proibido em qualquer caso (e por força da interpretação semântica, não poderá deixar de se considerar aqui que nesta previsão estão naturalmente abrangidas as situações referidas nos números anteriores, nomeadamente as declarações prestadas para memória futura, reguladas no nº 2 al a) deste mesmo preceito), a leitura do seu depoimento prestado em sede de inquérito ou instrução (e portanto neste condicionalismo, foi expressamente proibida pelo legislador, a leitura e subsequente valoração, das declarações para memória futura, como prova válida).
Assim, pela interpretação do teor literal do nº 6 do artº 356º do C.P.P, entendemos que ele se aplica também às situações previstas na alínea a) do nº 2 do artigo 356º do Código de Processo Penal (abrangendo por isso as declarações prestadas a título de declarações para memória futura).
De forma inteiramente acertada, se pronunciou pois o Digno Procurador Geral Adjunto nesta Relação, quando veio sublinhar no seu parecer, que a proibição legal ali referida, aplica-se, como impõe o segmento de norma «em qualquer caso», conferindo desta forma à norma um sentido unívoco e excludente da excepção defendida na tese do recurso.
E nem se invoque como fez o M.P na 1ª instância, que a sentença recorrida padece das nulidades a que aludiu no seu recurso.
Dispõe o artº 120º/2 do C.P.P: “Constituem nulidades dependentes de arguição (…)
al d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados actos legalmente obrigatórios, e a omissão de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade
E dispõe por sua vez o artº 379º/1 do C.P.P:
É nula a sentença: (…)
 al c) quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Não existe, manifestamente, a nulidade do artigo 120º, nº 2, alínea d), do Código de Processo Penal, uma vez que não existiu a omissão por parte do Tribunal a quo de nenhuma diligência que pudesse reputar-se essencial para a descoberta da verdade.
Que diligência foi omitida?
Não se encontra nenhuma, ao contrário do que é alegado pelo M.P.
Por outro lado, também não há, manifestamente, nulidade da sentença recorrida, uma vez que o Tribunal não se pronunciou sobre qualquer questão que não pudesse apreciar, nem deixou de apreciar qualquer questão que devesse apreciar.
Aliás, verifica-se que o Tribunal a quo decidiu não valorar as declarações para memória futura da vítima AS_____ , mas ao contrário do alegado pelo M.P, fundamentou essa sua decisão, no facto de a mesma se ter remetido ao silêncio em julgamento.
A questão que se coloca pois neste recurso, nada tem a ver com vícios do procedimento ou da sentença, mas com o acerto ou não da decisão, isto é com o mérito de tal decisão.
Em resumo:
No caso em apreço, a ofendida AS_____  poderia sempre, em julgamento, recusar-se a depor, nos termos do artigo 134º do Código de Processo Penal (por ser cônjuge do arguido).
É certo que quando o legislador previu que a testemunha, já inquirida para memória futura, pudesse ser ouvida em audiência, pretendia com essa faculdade permitir que o Tribunal ficasse habilitado a valorar melhor o depoimento já prestado e esclarecer dúvidas que tivessem surgido e ficado sem resposta.
Teria o legislador pensado na possibilidade de essa testemunha poder, com o seu comportamento em audiência, impedir a valoração do seu depoimento anterior…?
Admite-se que talvez não tivesse pensado sequer nessa possibilidade.
Ou talvez, no pensamento do legislador, tenha estado aqui a vontade de conferir alguma tutela à intimidade da vida privada, deixando uma válvula aberta no sistema, para deixar de fora do jus puniendi aquelas situações, em que não obstante estarmos perante um crime público, a situação vivida na realidade, já não justifique a intervenção do poder punitivo do Estado.
Nestes termos, nada tendo sido estabelecido legalmente em sentido contrário, deve prevalecer o disposto no artigo 356º, nº 6, do C.P.P, porquanto em nosso entender, deve triunfar a autonomia da testemunha e os valores que subjazem ao seu direito de recusar prestar depoimento em julgamento que lhe é conferido legalmente, em detrimento da procura da verdade.
Dito isto, como a ofendida AS_____  se recusou em audiência de julgamento a prestar declarações sobre o objecto do processo, não pode ser valorado o seu depoimento anteriormente prestado, mesmo o prestado para memória futura, no decurso do inquérito ou da instrução.
Por isso, e independentemente dos reais motivos que estiveram na base da opção do legislador, a verdade é que a decisão do Tribunal a quo de não valoração do depoimento para memória futura, não nos merece qualquer censura, na medida em que se limitou a respeitar o preceituado no artº 356º/6 do C.P.P, pelo que se mantém a mesma.
Pelo exposto improcede na íntegra o recurso do M.P.

IV- Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal da Relação de Lisboa em:
A) Julgar não provido o recurso interposto pelo M.P, mantendo-se a decisão recorrida nos seus precisos termos.
B) Sem custas.

Lisboa, 23.3.2022      
Ana Paula Grandvaux Barbosa
Maria Perquilhas

- com declaração de voto - Voto a decisão.
Contudo, entendo que deveriam ter sido eliminados os seguintes parágrafos:
Poderá assim haver situações em que as circunstâncias de vida dos protagonistas envolvidos no litígio na vida real se alteram substancialmente, no período que decorre desde a abertura do inquérito até ao julgamento e a própria queixosa/ofendida não esteja já interessada no prosseguimento dos autos, por ter sido entretanto pacificada a sua vida familiar ou simplesmente por ter já sido sanado o conflito existente[1].
[1] Sublinhado nosso.
Desta forma observa-se que o legislador, decidiu não abrir aqui qualquer excepção e simplesmente deixou que pudesse ser a ofendida, mesmo no âmbito dos crimes de violência doméstica a decidir (tal como sucede com as vítimas de outros crimes) se quer ou não prestar declarações em julgamento, podendo validamente recusar-se a depor quando tem um laço de parentesco com o arguido, ao abrigo do artº 134º do C.P.P.
A frase que sublinhei contraria, em meu entender, a natureza pública do crime em causa nos autos – violência doméstica, e afasta-se dos estudos científicos sobre este flagelo.
Sendo um crime público não se pode admitir, ainda que de forma indireta, que a vítima tem poder para evitar a condenação, não prestando declarações. Nem tão pouco se pode passar tal mensagem:
a) Às vítimas que se se calarem, o que tenham afirmado no âmbito das declarações para memória futura não pode ser valorado pois tal pode ser o pretexto para assim agirem, uma vez que, como se sabe, experienciam sentimentos contraditórios, querem e acreditam na mudança do agressor e por isso mesmo demoram em média durante 5 a 7 anos a denunciar. Os sentimentos de culpa e a esperança na mudança, típicos do sentir da vítima de violência doméstica, não são compatíveis com a mensagem transmitir-se com o excerto em causa, pois pode levar a que optem por se recusar a depor, apenas para evitar o momento de dor e tensão que constitui o depoimento em audiência. Especialmente em situações como a presente em que, como se verifica da acta da audiência junta no sistema CITIUS sob a ref.ª 411277851, a ofendida foi questionada se pretendia prestar declarações na presença do arguido, em clara violação do direito de proteção que lhe assiste e consagrado no 20.º, n.ºs 2 e 3 da Lei 112/2009 de 16 de setembro, e 21.º, al. c) do Estatuto da Vítima aprovado pela Lei 130/2015 de 4 de setembro, em conformidade com o disposto no art.º 56.º, al. g) da Convenção de Istambul.
b) Aos agressores, pois torna as vítimas mais vulneráveis às suas tentativas, nomeadamente de inicio de fase de enamoramento, no sentido de não prestarem declarações.
Acresce que nos presentes autos, a vítima não tinha que ser questionada se queria prestar declarações sobre o objeto do processo, uma vez que apenas foi convocada, como se pode ler no Despacho proferido nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 311.º do CPP, constante do sistema CITIUS com a Ref. 408984299, por causa da aplicação de pena acessória (?!) peticionada pelo MP. Na verdade, é do seguinte teor a parte em causa do despacho referido: “Considerando que foi requerida a aplicação de pena acessória, notifique, sendo AS_____  para comparência em audiência de discussão e julgamento”.
Assim, a ofendida apenas deveria ter sido questionada quanto a esta questão, desde logo porque o despacho proferido transitou em julgado e não se encontra nos autos qualquer despacho justificativo da sua necessidade em ser inquirida, como em meu entender o exigem os artigos 24.º, n.º 6 da Lei n.º 130/2015 de 4 de setembro e 271.º, n.º 8 do CPP.
Contudo, uma vez que o MP, presente em audiência, não suscitou qualquer nulidade, nomeadamente com fundamento em preterição de caso julgado formal e ou falta de fundamentação da inquirição sobre o objeto do processo, nos termos do disposto, nos artigos 24.º, n.º 6 da Lei n.º 130/2015 de 4 de setembro e 271.º, n.º 8 do CPP, nada mais nos resta que votar a decisão supra, com exceção dos parágrafos assinalados.

Maria Gomes Bernardo Perquilhas