Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1316/12.9PFLRS.L2-5
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO NA FORMA TENTADA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CONCURSO EFECTIVO
CONCURSO APARENTE
MEDIDA DA PENA
AGRAVANTE
FACA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/18/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I.-Entre o crime de violência doméstica e os crimes de ofensa à integridade física simples ou qualificada, de ameaça simples ou agravada, de coacção simples ou agravada, de sequestro simples, de coacção sexual/assédio (artigo 163.º, n.º2), de violação/assédio (artigo 164.º, n.º2), de importunação sexual e contra a honra, existe uma relação de concurso aparente, sendo o agente punido apenas pelo crime de violência doméstica.
II.-No que concerne à relação existente entre o crime de violência doméstica e os crimes de ofensa à integridade física grave, contra a liberdade pessoal e contra a liberdade e autodeterminação sexual que sejam puníveis com pena mais grave do que prisão de cinco anos, tem prevalecido o entendimento de que existe uma relação de subsidiariedade expressa (concurso aparente).
III.-Destacando-se os actos que materializam a tentativa de homicídio daqueles que, de diferentes naturezas, conjugadamente e por si só (ou seja, sem consideração dos que materializam a referida tentativa), integram a prática do crime de violência doméstica, descortinando-se diferentes sentidos de ilicitude, com pluralidade de bens jurídicos afectados e pluralidade de resoluções criminosas, há concurso efectivo entre os crimes de homicídio na forma tentada e de violência doméstica.
IV.-Para a agravação prevista no artigo 86.º, n.º3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, exige-se que a arma (ou armas) trazida por qualquer dos comparticipantes integre o elenco das armas das alíneas a) a d) do n.º1, pelo que fica afastada a dita agravação se o instrumento apenas se subsumir ao conceito de “arma” constante do artigo 4.º, do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março.

(Sumário elaborado pelo Relator).
Decisão Texto Parcial:Acordam, em Conferência, os Juizes do Tribunal da Relação de Lisboa.


I-RELATÓRIO:


1.No processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 1316/121.9PFLRS, foi a arguida M, melhor identificada nos autos, acusada de factos integradores da prática, em autoria material e concurso efectivo, de:
-um crime de violência doméstica, na forma consumada, previsto e punido no art.º 152º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do Código Penal.
-um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido nas disposições conjugadas dos arts. 22º, 23º, 73º e 131º e 132º, nºs 1 e 2, alíneas b), d) e e ) do Código Penal, agravado nos termos do disposto no art. 86º, nº3 da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro;
-um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art. 86º, nº1, al. d), com referência aos arts. 3º, al. g), 4º, nº1, todos da Lei 5/2006, de 23-02.

Foram deduzidos pedidos de indemnização civil contra a arguida/demandada por :
-B, peticionando a sua condenação no pagamento do montante de 10.000,00 Euros, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados;
-Centro Hospitalar Lisboa Norte, EPE, nova designação do Hospital de Santa Maria, EPE, peticionando a condenação da arguida/demandada no ressarcimento das despesas correspondentes à assistência hospitalar a que o seu comportamento dera lugar no dia 5 de agosto de 2012, no valor de €147,00;
-SGHL – Sociedade Gestora do Hospital de Loures, S.A. tendo em vista o ressarcimento dos valores despendidos com a assistência prestada ao ofendido pelo demandante entre o dia 5 de agosto de 2012 e 8 de outubro de 2012, após a sua transferência do Hospital de Santa Maria.

Realizado o julgamento, foi proferido acórdão que decidiu nos seguintes termos:
«Destarte, o presente Tribunal Coletivo decide:

I) RESPONSABILIDADE JURÍDICO-PENAL.

a) CONDENAR a arguida na pena de 3 (três) anos de prisão pelo crime de violência doméstica, previsto e punido no art.º 152º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do Código Penal, com a agravação prevista disposto no art. 86º, nºs 3 e 4 da Lei nº 17/2009, de 6 de Maio ;
b) CONDENAR a arguida na pena de 7 (sete) anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos arts. 22º, 23º, 73º, 131º, 132º, nºs. 1 e 2, al. b) do Código Penal, agravado nos termos do disposto no art. 86º, nº 3 da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro
c) ABSOLVER a arguida das qualificativas previstas nas alíneas d) e e) do art. 132º do Código Penal;
d) ABSOLVER o arguida da prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos arts. 2º, nº1, al. m), 3º, nº2, al. f), 4º, nº1 e  art. 86º, nº1, al. d) da Lei 5/2006, de 23-02.
e) Em cúmulo jurídico das penas parcelares aludidas em a) e b), CONDENAR a arguida na PENA ÚNICA de 8 (OITO) ANOS DE PRISÃO.
*
B) RESPONSABILIDADE JURÍDICO-CIVIL.

I–O Tribunal julga procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido por SGHL – Sociedade Gestora do Hospital de Loures e, em consequência:
a)CONDENA a demandada M no pagamento do valor correspondente às despesas a que deu lugar o tratamento do ofendido B, em consequências das agressões perpetradas por aquele, no valor de 5.986,97 Euros (cinco mil novecentos e oitenta e seis euros e noventa e sete cêntimos);

II–O Tribunal julga procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido por Centro Hospitalar Lisboa Nortes, EPE e, em consequência:
a)CONDENA a demandada M no pagamento do valor correspondente às despesas a que deu lugar o tratamento do ofendido B, em consequências das agressões perpetradas por aquele, no valor de 147,00 Euros (cento e quarenta e sete euros);

III–O Tribunal julga procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido por B. e, em consequência:
a)CONDENA a demandada M no pagamento de uma indemnização ao ofendido B, tendo em vista o ressarcimento dos danos causados, no valor de 10.000,00 Euros (dez mil euros);
(…).»

2.A arguida não se conformou com a decisão e dela interpôs recurso, tendo esta Relação proferido acórdão que declarou nulo o acórdão recorrido e, em consequência, determinou a sua substituição por outro que suprisse a apontada nulidade.

3.Na sequência, foi proferido novo acórdão pela 1.ª instância, que, no tocanta ao dispositivo, condenou nos mesmos termos do acórdão anterior.

4.Mantendo-se inconformada, recorreu a arguida, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

1.Foram incorretamente julgados os factos dados como provados nos números 2 a 8 e 12 a 16.
2.Houve erro notório na apreciação da prova.
3.Há exceção dos factos ocorridos a 4 de agosto de 2012 mais nenhum outro é determinado ou determinável no tempo.
4.Todos os factos que o tribunal dá como provados terão acontecido entre 2011 e Agosto de 2012 e não a partir de 2009.
5.O ano de 2011 corresponde ao regresso de França do demandante.
6.Após o regresso de França onde esteve a trabalhar durante 3 meses, o arguido fez um casamento por conveniência.
7.E anunciou que pretendia trazer do Brasil a mulher com que se relacionara anteriormente, mãe dos seus filhos. Foram estes os motivos que intensificaram as discussões entre o casal. Os ciúmes.
8.O demandante negou sempre que alguma vez tivesse casado.
9.Uma testemunha confirmou ter tido conhecimento junto do registo civil que existia um casamento do demandante.
10.O tribunal recusou-se a apurar se efetivamente durante o relacionamento com M, B casou por conveniência com uma outra mulher.
11.O tribunal a quo refere apenas a existência de problemas monetários e não considera os ciúmes existentes na relação.
12.Foi também em 2011 que o demandante foi condenado pelo tribunal por agressão à sua companheira, ora arguida.
13.O tribunal a quo valoriza apenas o testemunho do demandante fazendo crer que este se limitava a ser agredido e que não tinha atitudes violentas que fossem susceptíveis de defesa pela arguida.
14.A testemunha do demandante E refere isso mesmo: “Era violência, andavam à porrada”.
15.Nos factos que segundo o tribunal a quo consubstanciam o crime de violência doméstica, o tribunal apenas valoriza as declarações do demandante.
16.Para além do demandante, do ofendido, não há uma única testemunha que tenha presenciado qualquer tipo de agressão.
17.No dia 4 de agosto de 2012 mais uma vez o ciúme esteve na base da discussão que levou aos fatos pelos quais a arguida é condenada por homicídio na forma tentada.
18.Neste dia 4 de agosto, o demandante não consegue explicar porque não saiu pela porta se efetivamente tinha tirado a chave à arguida.
19.As explicações do demandante sobre os factos ocorridos na referida data são feitos de forma imprecisa e contraditória.
20.Os testemunhos prestados pelo demandante e pela única testemunha dos factos ocorridos a dia 4 de agosto, não são suficientes para concluir que a arguida terá deixado cair o demandante ou terá largado o pé e em desequilíbrio o demandante tenha caído.
21.Não se consegue igualmente apurar, porque é que o demandante estava já com uma perna de fora.
22.A forma como o demandante cai é consentânea com uma queda propositada e não com um empurrão. O demandante caiu com os pés e não por impulso dado por terceiro que o tenha feito cair de cabeça ou de costas.
23.Na verdade o tribunal não conseguiu explicar de forma cabal e sem que subsistam dúvidas os factos que entende dar como provados e não foram.
24.O testemunho de J, foi desvalorizado pelo tribunal porque a testemunha estaria alcoolizada. Na verdade, todos os presentes, incluindo a arguida e o demandante admitiram ter bebido para além da conta e desde a manhã porque a cerimónia em que participavam e que incluía a morte da galinha e a sua degustação, assim o exigia.
25.Sobre estes factos, a arguida que poderia ter optado pelo silêncio também prestou declarações logo no início do julgamento mostrando abertura em explicar o que tinha ocorrido.
26.O que a arguida não pode fazer é dizer ao tribunal o que o tribunal quer ouvir.
27.E se confessa ter agredido, B após queda no solo também poderia admitir que o tinha empurrado pela janela.
28.Não o faz porque efetivamente a arguida não empurrou B.
29.A arguida nunca teve a intenção de matar B.
30.Perante a dúvida o tribunal deveria ter aplicado o princípio “in dubio pro reu” e absolvido a arguida do crime de homicídio qualificado na forma tentada.
31.Tanto assim que a arguida após o sucedido foi visitá-lo ao hospital, pediu-lhe desculpa e assinou o termo de responsabilidade para a operação do demandante.
32.Não ficou igualmente provado que tenha sido por causa de uma mensagem e de um alegado feitiço que o demandante tinha medo da arguida.
33.Não considerando o “princípio in dúbio pro reu”, deveria pelo menos o tribunal a quo considerar que os factos que integram o tipo legal de homicídio qualificado na forma tentada integram o conjunto de factos que materializam a violência doméstica e existindo um concurso aparente, uma vez que se verifica a existência de uma relação de subsidiariedade entre ambos os tipos legais, punir a arguida pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada e absolvido do crime de violência doméstica.
34.A pena aplicada é excessiva.
35.As penas de 3 e 7 anos de prisão pelos crimes de violência doméstica e homicídio qualificado, na forma tentada, respectivamente não se apresentam adequadas às necessidades de prevenção e desproporcional face à gravidade do ilícito.
36.O tribunal “a quo” não ponderou de forma criteriosa e adequada as diversas circunstâncias atenuantes que depõem a favor da arguida, em especial as constantes das alíneas c) e d) do artigo 71º do Código Penal.
37.O tribunal recorrido desrespeitou a aplicação das regras atinentes às finalidades das penas previstas nos números 1 e 3 do artigo 40º e violou ainda a regra estruturante do processo penal, segundo a qual em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa, conforme o nº2 do mesmo artigo. 
38.O tribunal não considera como atenuante o fato de depois do sucedido a arguida ter visitado B no hospital, um gesto que traduz a sua preocupação pelo sucedido e pelo bem-estar do demandante.
39.A pena suspensa permitiria uma plena reintegração na vida activa.

Nestes termos e nos demais de Direito que V. Exas, mui doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e a douta Decisão que condenou a arguida M à pena de 3 anos de prisão pelo crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº1, al.b) e nº2 do Código Penal, com a agravação prevista no disposto no artigo 86º, nºs 3 e 4 da Lei nº17/2009, de 6 de maio; e à pena de sete anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22º, 23º, 73º, 131º e 132º, nºs 1 e 2, al.b) do Código Penal, agravado nos termos do disposto no artigo 86º, nº3 da lei 5/2009, de 23 de fevereiro ser revogada e a arguida absolvida do crime de homicídio qualificado, na forma tentada por efeito da aplicação da al. b) nº1 do artigo 152º do Código Penal.

Se esse não for o entendimento de V. Exas., pois então que as penas determinadas sejam revistas e a arguida condenada em pena suspensa, sendo consequentemente ajustados os valores de indemnização civil definidos.

5.Respondeu o Magistrado do Ministério Público junto do tribunal de 1.ª instância à motivação de recurso, no sentido de que o recurso não merece provimento, concluindo (transcrição das conclusões):

1ª–A arguida M inconformada com o douto acórdão de fls. 633 e seguintes, que a condenou pela prática, em autoria material e concurso efectivo, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artº 152º, nº 1, al. b) e nº 2 do Código Penal, com a agravação prevista no disposto no artº 86º, nºs 3 e 4 da Lei nº 17/2009, de 6 de Maio, na pena de 3 (três) anos de prisão e de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 73º, 131º, 132º, nºs 1 e 2, al. b) do Código Penal, com a agravação prevista no artº 86º, nºs 3 e 4 da Lei nº 17/2009, de 6 de Maio, na pena de 7 (sete) anos de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 8 (oito) anos de prisão, veio dele interpor recurso.
2ª–As questões suscitadas pela arguida/Recorrente no recurso reconduzem-se, salvo melhor opinião, a quatro, a saber: da matéria de facto provada; do erro notório da apreciação da prova; da qualificação jurídica do crime – o princípio da subsidiariedade e da escolha e medida da pena aplicada.
3ª–Da leitura da motivação apresentada pela Recorrente e respectivas conclusões (que, como é sobejamente sabido, delimitam o objecto do recurso) resulta que esta impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto dada como provada e não provada invocando que, face à prova produzida em audiência, existem diversos pontos de facto incorrectamente julgados e provas que impõem uma decisão diversa, resultando do acórdão que apenas foram valorizadas as declarações do ofendido/demandante B, tendo sido desvalorizadas as declarações da arguida e da testemunha E.
4ª–Com efeito, o que a ora Recorrente pretende verdadeiramente é impugnar o processo de formação da convicção do tribunal a quo que levou à fixação da matéria de facto dada como provada e não provada, embora demonstre perfeito conhecimento do conteúdo, sentido e extensão do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artº 127º do Código de Processo Penal, insindicável em reexame da matéria de direito.
5ª–A Recorrente analisa e aprecia a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e interpreta a mesma em sentido diverso daquele que consta como provados nos factos sob os pontos 2 a 8 e 12 a 16, fazendo a sua análise pessoal e descontextualizada das passagens que indica, pretendendo impor a sua própria interpretação da prova.
6ª–No que respeita às regras sobre a apreciação da prova, vigora no direito processual penal português, o princípio da prova livre, contemplado no já citado artº 127º do Código de Processo Penal, segundo o qual, aquelas são valoradas e apreciadas segundo a livre convicção do julgador.
7ª–In casu haverá que afirmar que a fundamentação do acórdão sub judice cumpre exemplarmente os respectivos requisitos legais, ali se encontrando muito bem explicitado e explicado o processo de formação da convicção do tribunal e o exame crítico das provas que o alicerçou, nomeadamente o raciocínio lógico-dedutivo seguido e o porquê, a medida e a extensão da credibilidade que mereceram (ou não mereceram) os depoimentos prestados em audiência.
8ª–Fundamentação que, de resto, se acha também muito bem alicerçada nas regras da experiência e em adequados juízos de normalidade, não se perfilando a violação de qualquer regra da lógica ou ensinamento da experiência comum.
9ª–Impõe-se concluir que os factos assentes nos autos resultaram da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, sendo que a douta decisão recorrida mostra-se bem e suficientemente fundamentada, de facto e de direito, no que concerne à indicação dos factos provados, não provados e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, tendo o Tribunal a quo indicado os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e porque o elucidaram e explicitou o modo que o levou a proferir a decisão no sentido da condenação da arguida.
10ª–Em consequência, não se mostra violado o preceituado nos artigos 127º, 410º, nº 2, al. c) e 412º, nº 3 do Código de Processo Penal, pois inexistem factos incorrectamente julgados, não colhendo a interpretação dada pela ora Recorrente à prova produzida.
11ª–A Recorrente vem, ainda, invocar o princípio in dubio pro reo, mas também aqui sem razão.
12ª–A Jurisprudência dominante tem vindo a afirmar que a violação deste princípio só se verifica se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo haja chegado a um estado de dúvida insanável e que, perante ela, tenha acabado por acolher a tese desfavorável ao arguido.
13ª–Ora, da análise do acórdão recorrido, mormente da sua fundamentação, em ponto algum se constata que o tribunal a quo se tenha debatido com uma situação com tais características.
14ª–Não lhe assiste, igualmente razão, quando invoca que existe uma relação de subsidiariedade entre os crimes de violência doméstica e de homicídio qualificado, na forma tentada, não havendo lugar à condenação por ambos, mas apenas e, quanto muito, pelo mais grave.
15ª–Ora, in casu, existem dois conjuntos de factos autónomos, os provados de 2 a 8 e 23 e os provados de 9 a 18, 24 e 25 que preenchem os elementos típicos objectivos e subjectivos do crime de violência doméstica e de homicídio qualificado, na forma tentada, respectivamente, que protegem bens jurídicos diferentes.
16ª–E é esta circunstância que, obviamente, impede a aplicação do princípio da subsidiariedade a que alude a Recorrente, sendo certo que estamos na presença de duas resoluções criminosas distintas e autónomas, consubstanciadas em factos distanciados no tempo.
17ª–Nessa medida, impunha-se ao tribunal a quo condenar a arguida pela prática de tais ilícitos, como o fez, conforme, aliás, se alcança do acórdão recorrido, na fundamentação da formação da convicção do Tribunal (cfr. fls. 660 a 665).
18ª–À cautela a ora Recorrente discorda da medida da pena encontrada pelo tribunal, por um lado, porque a considera excessiva, e, por outro lado, porque o “tribunal a quo não ponderou de forma criteriosa e adequada as diversas circunstâncias atenuantes que depõem a favor da arguida, em especial as constantes das alíneas c) e d) do artigo 71º do Código Penal”, inexistindo qualquer razão que impeça o tribunal de efectuar um juízo de prognose favorável e, em consequência, de suspender a execução da pena.
19ª–A encimar o acervo de finalidades das penas coloca o artº 40º do Código Penal, a protecção de bens jurídicos, encontrando-se a ele subjacente a intenção de limitar o poder punitivo do Estado, na linha, do artº 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual as restrições a direitos, liberdades e garantias se limitarão “ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
20ª–Depois de escolhida a pena e para a sua determinação o tribunal deve eleger os factores relevantes para o efeito, valorando-os à luz dos vectores de culpa e prevenção, nos termos do disposto no artº 71º do Código Penal que enumera, no seu nº 2, de forma exemplificativa, alguns dos mais importantes factores de medida da pena de carácter a aferir segundo critérios objectivos.
21ª–In casu, o Tribunal tomou em consideração, nos termos dos citados preceitos legais, todas as circunstâncias a favor e contra a arguida, tendo escolhido a pena de prisão, por ser esta a prevista nas normas incriminadoras, e graduado de acordo, e em síntese, com a circunstância da arguida ter agido com dolo directo, com violência psicológica e física, o período de tempo que o ofendido se viu provado da liberdade, a humilhação pública acrescida devida pela circunstância do ofendido ser homem, a intensidade da energia criminógena utilizada pela arguida nos factos integradores do crime de homicídio qualificado, na forma tentada – bem patente nos factos provados –, e, ainda, a existência de antecedentes criminais por crimes de ofensa à integridade física simples e qualificada – cfr. fls. 647, 680 a 682 do acórdão.
22ª–Ora, face às penas concretas encontradas de 3 (três) e 7 (sete) anos de prisão e ao circunstancialismo que determinou a sua aplicação, parece-nos adequada a aplicação, em cúmulo jurídico, de uma pena única de 8 (oito) anos de prisão, o que, por si só, obvia à possibilidade de suspensão da sua execução.
23ª–Aliás, a opção do Tribunal a quo não merece qualquer censura, mal se compreendendo a pretensão da arguida na defesa da suspensão da execução da pena que lhe foi aplicada – por ser possível efectuar um juízo de prognose favorável face à circunstância de ter ido visitar o ofendido no hospital, um gesto que, na sua perspectiva “traduz a sua preocupação pelo sucedido e pelo bem-estar do demandante” –, quando a atitude da arguida perante as condenações sofridas é reveladora de não ter compreendido o alcance dessas condenações, desde logo, por não ter interiorizado o quão grave era a sua conduta e ter praticado factos de natureza ainda mais gravosa, conforme resulta dos factos provados.
24ª–No caso em apreço, da análise ponderada dos antecedentes criminais, da atitude da arguida no cometimento dos factos, nomeadamente, da perversidade do seu comportamento, da violação e regras básicas da vida comunitária e do seu desprezo pela vida, o tribunal a quo não podia concluir pela aplicação de uma pena que, em concreto, permitisse a suspensão da execução da pena de prisão aplicada, sendo certo que só se deve optar pela suspensão da pena quando existir um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido.
25ª–Assim, resta concluir, nesta parte, que o Tribunal a quo valorou de forma adequada a situação da ora Recorrente, aplicando correctamente as normas citadas, devendo manter-se a pena única aplicada, por se mostrar adequada e justa.

6.Subiram os autos a este Tribunal da Relação, tendo a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), emitido parecer no sentido do não provimento do recurso.

7.Procedeu-se a exame preliminar e, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

II–Fundamentação.

1.-Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).

Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência da recorrente com a decisão impugnada, as questões a decidir no recurso são:    
-Impugnação da matéria de facto/erro notório na apreciação da prova/ violação do princípio in dubio pro reo;
-Enquadramento jurídico-penal – concurso efectivo versus concurso aparente;
-A determinação das penas, parcelares e conjunta.

2.-A Decisão Recorrida.

2.1.-O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

1–A arguida e B partilharam cama, mesa e habitação, de forma intermitente, durante cerca de três anos e até ao dia 4 de Agosto de 2012, residindo na Rua de (…), Odivelas, nesta comarca de Loures, com eles também vivendo B G, filha menor daquela.
2–Cerca de seis meses após o início da relação, a arguida evidenciou comportamentos violentos e agressivos para com B, motivo pelo qual ocorreram diversas discussões entre ambos, motivadas por questões monetárias, que eram potenciados sempre  que a mesma ingeria bebidas  alcoólicas  em  excesso.
3–Pelo menos uma vez a seguir a uma discussão, a arguida trancou B no interior da residência, fechando a chave a porta respetiva, impedindo-o, assim, de sair para o exterior durante cerca de 4 horas.
4–Em data não apurada do decurso de uma discussão a arguida deu-lhe uma bofetada e, ainda, por três vezes rasgou-lhe a roupa que o ofendido preparara para viajar para S. Tomé para realizar a cerimónia fúnebre da sua mãe;
5–Na última vez em que tal sucedeu, B saiu de casa da arguida, indo viver para um quarto alugado, na Póvoa de Santo Adrião;
6–Neste contexto, tendo B ido a casa da arguida para ir buscar umas ferramentas que lá deixara, no decurso de uma discussão, a arguida mordeu a B na mão esquerda e entalou essa mesma mão na porta da entrada da casa, por forma a evitar que este aí entrasse;
7–Numa outra ocasião, dirigiu-se ao quarto onde B se encontrava alojado para ir buscar um DVD que aquele levara de sua casa por entender que era sua pertença e desferiu-lhe uma facada na mesma mão.
8–A arguida e B por diversas vezes terminaram o relacionamento, após o que reatavam a relação e aquele voltava a viver com ela, dizendo-lhe a arguida que se acabasse a relação que mantinha com ela lhe faria um feitiço para o matar;
9–No dia 4 de agosto de 2012, entre as 21h00 e as 22h00, a arguida decidiu fazer uma cerimónia que envolvia a decapitação de uma galinha para que melhorassem as suas condições de vida;
10–Após a decapitação, o galináceo foi cozinhado e ingerido por vários convivas, acompanhado de grande quantidade de bebidas alcoólicas, ao longo de todo o dia, em ambiente de festa;
11–Quando estavam na dita residência, entre as 21h00 e as 22h00, iniciou-se uma discussão entre a arguida e B, por motivo não concretamente apurado.
12–No decurso da aludida discussão, a arguida dirigiu-se à cozinha onde se muniu de uma faca com 22 (vinte e dois) centímetros de comprimento total, dotada de uma lâmina com 11 (onze) centímetros de comprimento, com a qual tentou atingir B, o que não logrou, uma vez que este evitou as investidas daquela e fugiu, a correr, para a sala.
13–Contudo, a arguida, que é de compleição física forte e robusta, perseguiu B até à sala, dirigindo-se àquele, que foi recuando até ficar de costas para a janela, que se encontrava aberta.
14–Para evitar ser atingido pela faca, B foi debruçando o corpo, de costas, para fora da janela.
15–Quando B estava prestes a cair, a arguida agarrou-o por uma das pernas e golpeou-o, com a faca de que se munira, junto ao tornozelo.
16–Seguidamente, a arguida largou B por forma a que este viesse a cair do primeiro andar, ficando prostrado no solo em frente ao prédio.
17–Ato contínuo, a arguida saiu de casa, desceu as escadas e dirigiu-se ao local onde B estava caído, desferindo-lhe dois golpes na cabeça e um no tórax, com a faca de que se encontrava munida.
18–Aquando da chegada das autoridades policiais ao local, a arguida dirigiu-se novamente para o interior da sua residência.
19–Já na presença dos bombeiros que se dirigiram ao local para prestar auxílio a B, colocou-se à janela aos gritos, a dizer que ele estava a fingir e que era um aldrabão.
20–Como consequência, direta e necessária, da descrita atuação da arguida, B sofreu lesões na cabeça, costas e perna esquerda (gémeo interno e externo), assim como fratura exposta do colo do fémur direito, devida a queda que sofreu, tendo sido sujeito a intervenção cirúrgica, o que lhe determinou 116 (cento e dezasseis) dias de doença, todos com incapacidade para o trabalho e dores nas diversas zonas que foram atingidas.
21–A arguida cometeu os factos descritos nos pontos 9 a 16 na presença de sua filha menor.
22–Depois do sucedido e já após B ter tido alta hospitalar, a arguida contactou-o pelo menos uma vez exigindo que “retire a queixa” e dizendo que se não o fizer que “lhe faz um feitiço para que morra”.
23–A arguida agiu sempre de forma consciente e voluntária, sabendo que infligia maus-tratos ao homem com quem vivia, molestando-o física e psiquicamente, condicionando-lhe gravemente a vida e bem-estar psicossocial, ofendendo-lhe a respetiva dignidade humana, honra, consideração e bom-nome, limitando-lhe outrossim a sua liberdade de decisão e ação no interior daquela que foi a residência do casal, conhecendo bem o perigo que as suas condutas representavam para a saúde e equilíbrio mental do mesmo. 
24–A arguida ao desferir-lhe da forma descrita facadas na cabeça, nas costas e perna; ao atirá-lo da janela abaixo, quis tirar a vida de B, só não o tendo conseguido por circunstâncias externas a sua vontade, bem sabendo que tais condutas eram aptas a causar a morte do mesmo.
25–A arguida sabia que detinha a faca acima descrita, conhecendo bem as  suas características e suscetibilidade de ser usada como meio de agredir outrem, objeto que utilizou exclusivamente para o aludido fim.
26–Agiu em tudo de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
27–Em consequência das agressões e maus tratos acima descritos, o ofendido B sofreu dores físicas, angústia e ansiedade.
28–Sente receio de que os atos que o levaram a sofrer 116 dias de doença se voltem a repetir, uma vez que a arguida atuou com manifesta e completa insensibilidade perante a vida humana e especialmente daquele que foi durante anos seu companheiro.
29–A arguida contactou-o pelo menos uma vez dizendo-lhe que retirasse a queixa e que se ela o não o fizesse que lançaria um feitiço contra ele.
30–Pelas razões descritas, o demandante andou nervoso e inquieto.
31–B tinha a profissão de servente de pedreiro, tendo trabalhado por conta e sob a direcção de várias empresas ligadas ao ramo da construção, sendo que a última remuneração base auferida por este e retratada no seu extracto de remunerações foi de €559,81.
32- 54 (…)

Mais se provou o seguinte:

55–A arguida nasceu em 30-9-1967, tendo entre 31 e 34 anos de idade aquando da prática dos factos.
56–(…)
57–O seu registo criminal tem averbadas as seguintes condenações:

Foi condenada no âmbito do Proc. 19/08.3PCLSB do então 1º Juízo Criminal de Lisboa, por decisão transitada em julgado em 21-06-2013, pela prática em 9-1-2008, de factos consubstanciadores de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art. 143º, nº1 do Código Penal, tendo-lhe sido aplicada a pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano.
Esta pena encontra-se declarada extinta nos termos previstos no art. 57º do Código Penal.
-Foi condenado no âmbito do Proc. 666/11.6PCLSB do então 3º Juízo Criminal de Loures, por decisão transitada em julgado em 26-03-2014, pela prática em 5-7-2011, de factos consubstanciadores de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos arts. 143º, nº1, 145º, nº1, al. a) e nº2 e 132º, nºs 1 e 2, al. l) do Código Penal, tendo-lhe sido aplicada a pena de 90 dias de prisão, substituídos por 90 horas de trabalho a favor da comunidade.

2.2.-Quanto a factos não provados ficou consignado no acórdão recorrido (transcrição):

Não se fez prova do seguinte (sem prejuízo da matéria constante dos factos provados):
-que a arguida ingerisse bebidas alcoólicas em excesso frequentemente;
-que desde o início da relação a arguida evidenciou comportamentos violentos e agressivos para com B;
-que em número de vezes indeterminado, a arguida, sempre que pedia dinheiro a B e este não tinha para lho dar, exibiu-lhe facas e brandiu-as na sua direção, assim como lhe desferiu chapadas na cara, o que lhe causou, direta e necessariamente, dores nas zonas atingidas;
-que a seguir às discussões, a arguida, mais do que uma vez, trancou B no interior da residência, fechando à chave a porta respetiva, impedindo-o, assim, de sair para o exterior.
-que a mordedura na mão e a facada desferida pela arguida na mão do ofendido hajam ocorrido no mesmo dia;
-que dado o temperamento da arguida, B, várias vezes, pretendeu terminar o  relacionamento de ambos, sendo que, sempre que tal sucedeu, a arguida lhe disse concretamente que “se acabasse com ela que o matava”.
-que a discussão ocorrida entre a arguida e o ofendido no dia 4 de Maio de 2012 se deveu a questões monetárias.
-que quando a arguida e o ofendido já se encontravam na sala, esta desferiu-lhe dois golpes na cabeça e nas costas do mesmo.
-que aproveitando-se da sua compleição física forte e robusta e do facto de B se encontrar junto à janela, começou a empurra-lo para fora da mesma;
-que a arguida haja desferido várias pancadas na cabeça do ofendido, com uma pedra que ali se encontrava, quando este se encontrava prostrado no solo;
-que depois do sucedido e já na presença dos bombeiros que se dirigiram ao local, a arguida se manteve junto do ofendido;
-que a arguida cometeu todos os factos descritos na presença da sua filha menor;
-que a arguida houvesse contactado o ofendido por diversas vezes para que este retirasse a queixa;
-que o ofendido haja mudado de residência para não se cruzar com a arguida.
               
2.3.-O tribunal recorrido fundamentou a decisão de facto nos seguintes termos (transcrição):
(…)  
           
3.-Apreciando

3.1.-(…)
3.1.4.-Face ao que antecede, nos limites da reapreciação da prova, não vislumbramos quaisquer razões para divergir do juízo formulado pelo tribunal recorrido em sede de decisão de facto, pelo que, inexistindo vícios de conhecimento oficioso, deve manter-se a factualidade provada e não provada, nos exactos termos em que o foi pelo tribunal a quo, quanto a cada um dos pontos de facto impugnados.
           
3.2.-Considera a recorrente que existe concurso aparente entre o crime de violência doméstica e o crime de homicídio qualificado na forma tentada, no pressuposto de que os factos dados como provados não sofram alteração – como não devem sofrer. Na sua perspectiva, os factos que integram o tipo legal de homicídio qualificado na forma tentada integram o conjunto de factos que materializam a violência doméstica, pelo que existirá um concurso aparente atenta a relação de subsidiariedade entre ambos os tipos legais.

Não se questionando a integração dos factos provados naquelas tipologias criminais, resulta do artigo 30.º, n.º 1, do Código Penal, que o número de crimes se determina “pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.”

O critério determinante do concurso é, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efectivamente violados, o que aponta para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico, acolhendo-se as construções e categorias dogmáticas que, sucessivamente elaboradas, se acolhem nas noções de concurso real e concurso ideal.

Há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções), e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes (unidade de acção).

O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).

Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real, homogéneo ou heterogéneo) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras, segundo regras de especialidade, subsidiariedade ou consunção, de acordo com as definições majoritariamente aceites.

O crime de violência doméstica suscita problemas de concurso, desde logo porque a conduta típica é, em grande parte, susceptível de integrar, simultaneamente, outros tipos de crime.

No que toca ao concurso entre o crime de violência doméstica e os crimes de ofensa à integridade física simples ou qualificada, de ameaça simples ou agravada, de coacção simples ou agravada, de sequestro simples, de coacção sexual/assédio (artigo 163.º, n.º2), de violação/assédio (artigo 164.º, n.º2), de importunação sexual e contra a honra, tem sido sustentado estarmos perante um concurso aparente, em que o agente é apenas punido pelo crime de violência doméstica, divergindo os autores quanto à qualificação da relação existente entre as normas em confronto, defendendo uns que se trata de uma relação de especialidade (caso de Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2008, pp. 406-407), enquanto outros entendem mais adequada a identificação de uma relação de consunção (Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª ed., pp.527 e 528).

Diversamente, no que concerne à relação existente entre o crime de violência doméstica e os crimes de ofensa à integridade física grave, contra a liberdade pessoal e contra a liberdade e autodeterminação sexual que sejam puníveis com pena mais grave do que prisão de cinco anos, tem prevalecido o entendimento de que existe uma relação de subsidiariedade expressa (concurso aparente), porquanto a própria lei prescreve (artigo 152.º, n.º1, in fine) que «é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal», o que significa que a punição destes tipos de ilícito afasta a da violência doméstica.

Como se diz no acórdão da Relação de Évora, 08/01/2013, processo 113/10.0TAVVC.E1, a defesa da dignidade pessoal de pessoa inserida em ambiente de conjugalidade ou equiparada, mesmo que sem coabitação e abrangendo outros, inseridos na convivência ou desta resultantes, é o que se pode afirmar protegido pela norma, tutela que se pode qualificar como complexa. Por outras palavras: “não se podendo afirmar que bem jurídico tutelado pela norma é a dignidade da pessoa, dada a generalidade da afirmação, nem que é a relação de conjugalidade ou equiparada, dada a sua instrumentalidade (e “meio” de exercício de violência), aquele bem jurídico só pode ser um feixe de interesses mais concretos que se convencionou designar como bem jurídico complexo, incluindo a saúde física, psíquica e emocional, a liberdade de determinação pessoal e sexual da vítima de actos violentos e a sua dignidade quando inserida numa relação ou por causa dela”.

Tendo em vista que, como se realçou, o tipo de crime de violência doméstica concorre quase sempre com outras normas incriminadoras, numa situação de concurso aparente, certo é que têm sido identificadas pela jurisprudência situações de concurso efectivo de crimes, com punição dos arguidos pela autoria de um crime de homicídio e de um crime de violência doméstica, aquele como resposta jurídica ao acto de tirar a vida e este como resposta ao infligir de maus-tratos físicos e psíquicos durante vários anos precedentes ao homicídio.

Não se ignora que já foi entendido que sendo complexo o bem jurídico protegido pela “violência doméstica”, a tentativa de matar alguma das pessoas abrangidas pelas alíneas do n.º1 do artigo 152.º, do Código Penal, num contexto de violência doméstica, seria enquadrável na inflicção de maus tratos físicos e psicológicos a que se reporta o dito artigo 152.º, pelo que “a tentativa de homicídio pode constituir ato de materialização de violência doméstica abrangido pelo tipo legal do art. 152º do C. Penal quer do ponto de vista objetivo, por constituir ato suscetível de afetar a saúde da vítima, enquanto bem jurídico complexo que é expressão da dignidade pessoal da vítima, pelo menos nas hipóteses de não consumação do crime, quer subjetivo, na medida em que o dolo de homicídio pressupõe o dolo necessário ou eventual, consoante os casos, de lesão à saúde da vítima enquanto bem jurídico complexo tutelado pelo tipo legal de violência doméstica.” Nesta perspectiva, os factos que integram o tipo legal de homicídio qualificado na forma tentada integrariam também o conjunto de factos que materializam a violência doméstica, verificando-se uma relação de subsidiariedade expressa entre ambos os tipos legais que conduziria à punição, apenas, pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada (acórdão da Relação de Évora, 04/06/2013, processo 237/12.0GDSTB.E1).

Afigura-se-nos que não é assim.

Desde logo, fica por explicar a razão de funcionar a referida “subsidiariedade expressa” nos casos de concurso entre homicídio na forma tentada e violência doméstica, e não também nas situações de concurso entre homicídio consumado e violência doméstica, em que se tem reconhecido, na jurisprudência, a existência de situações de concurso efectivo, sendo certo que o tipo subjectivo do ilícito na tentativa inclui o dolo de tipo nos mesmos termos que o tipo subjectivo do ilícito da consumação.

Não se justifica, pois, a nosso ver, qualquer distinção em função do homicídio ser tentado ou consumado.

Considerando a factualidade concretamente provada, a resolução criminosa que presidiu ao crime de violência doméstica não se confunde com a do homicídio, o que afasta a possibilidade de se falar de concurso aparente.

Pode ler-se no acórdão da Relação de Coimbra, de 12/10/2011, processo 293/10.5 JALRA.C1, a propósito do concurso entre homicídio qualificado e violência doméstica:

“(…) o crime de violência doméstica, apesar de inserido nos crimes contra a integridade física (e, portanto, como dizendo respeito a um bem cuja protecção, em tese, se pode ter, ponderando, nomeadamente, as circunstâncias temporais e os meios utilizados, como consumido pelo do crime de homicídio), não visa a salvaguarda apenas da integridade corporal ou a saúde, mas, e sobretudo, a própria integridade moral do sujeito passivo e, desta forma, uma realidade axiológica da vida humana própria, autónoma e independente quer do direito a essa integridade e saúde, quer, diga-se, dos bens «Vida», «honra» e «liberdade» (esta nas suas diversas manifestações), muitas e muitas vezes também violados com a prática dele, ponderando as diversas modalidades que, como se extrai do artigo 152.º do Código Penal, a sua acção pode revestir.

Com o que se pretende afirmar que o aludido crime é, não só um crime complexo, mas também uma infracção que, mais do que a integridade física, a honra, a liberdade (inclusive, de determinação sexual) e, em certos termos, a vida [alínea b) do n.º 3 do citado artigo 152.º] do sujeito passivo (bens que as suas diversas formas de execução podem atingir), tem em vista, primacialmente, a protecção da inviolabilidade da personalidade humana e, portanto, o direito a ser tratado como um ser em si, como uma individualidade própria, um ser humano livre e que, precisamente, por o ser deve tratado com respeito nos mais diversos aspectos da sua existência, nomeadamente, na sua liberdade de conformação e nunca como um objecto, uma coisa.

Ora, como é sabido, um dos critérios aferidores da pluralidade de crimes é, precisamente, o da diversidade de bens jurídicos protegidos, inclusive, do ponto de vista de, relativamente a eles, não se poderem afirmar relações de especialidade ou de consunção (pura ou impura).

Vale pois por concluir da inverificação do reclamado concurso aparente de infracções.”

Não se afirmando relações de especialidade ou de consunção, tão-pouco se encontra razão para fazer funcionar a referida cláusula de subsidiariedade expressa, pois dos actos que materializam a tentativa de homicídio se destacam aqueles que, de diferentes naturezas, conjugadamente e por si só (ou seja, sem consideração dos que materializam a referida tentativa), integram a prática do crime de violência doméstica, descortinando-se diferentes sentidos de ilicitude, com pluralidade de bens jurídicos afectados e pluralidade de resoluções criminosas.

Em suma, tendo em vista a factualidade provada e que é de manter, não há lugar ao invocado concurso aparente de infracções.

3.3.-No que tange à determinação das penas, parcelares e única, lê-se no acórdão recorrido:

«Vejamos as molduras abstratas aplicáveis aos crimes praticados pelo arguido:

O crime de violência doméstica em causa nos autos é punido com a moldura abstrata de pena de prisão de 2 a 5 anos.

O crime de homicídio qualificado, previsto no art. 131º e 132º, nºs 1 e 2, al. b) [por mero lapso de escrita, nesta passagem do acórdão recorrido escreveu-se al. e), mas o texto é claro a evidenciar que se pretendia escrever “alínea b)] do Código Penal é punido com a moldura abstrata de pena de prisão de doze a vinte e cinco anos.

É esta, por isso, a moldura abstrata de referência para cada uma das punições, as quais, todavia, sofrerão alterações decorrentes da circunstância de estarmos perante um crime tentado, no caso do homicídio, e da legislação específica para crimes cometidos com armas.

Com efeito, aos crimes praticados pela arguida mostra-se aplicável a agravação da moldura abstrata da pena, nos seus limites mínimo e máximo, decorrente do disposto no art. 86º, nºs 3 e 4 da Lei nº 17/2009, de 6 de Maio.

Estabelecem os mencionados preceitos que as penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou o uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma – o que não sucede no caso vertente.  

Assim, no caso do crime de homicídio qualificado, o limite máximo da pena de referência mantém-se o mesmo, por força do disposto no art. 41º, nºs 1 e 2 do Código Penal e o limite mínimo passa a situar-se nos 16 anos de prisão.

Finalmente, no que respeita ao crime de homicídio qualificado, estando nós perante crime tentado, é-lhe aplicável a atenuação especial prevista no art. 73º, por força do disposto no art. 23º, nº2 do Código Penal.

Assim, o limite máximo da pena é reduzido de um terço e o seu limite mínimo é reduzido a uma quinto se for igual ou superior a três anos e ao mínimo legal se for inferior.

Posto isto e clarificando:

-No caso do crime de homicídio tentado, o limite máximo da pena situa-se nos dezasseis anos de prisão - uma vez que a atenuação especial decorrente do regime da tentativa é anulada pela agravação decorrente da aplicação da Lei das Armas – sendo que o limite mínimo, por força da atenuação especial decorrente do regime da tentativa passa para 1 ano, 7 meses e 6 dias e por aplicação da agravação de um terço (que corresponde a 6 meses e 12 dias) decorrente da Lei das Armas passa para dois anos, um mês e dez dias.
-No caso do crime de violência doméstica, passa a ser punido com a pena mínima de 2 anos e 3 meses e máxima de 6 anos e 6 meses de prisão.
*

Atenta a elevada frequência com que ocorrem os crimes em presença, principalmente de forma associada, como é o caso, afiguram-se prementes as necessidades de prevenção geral suscitadas, cumprindo assegurar a cabal proteção dos bens jurídicos tutelados pelas normas.
 
Ao nível da ilicitude da conduta, cumpre ponderar a intensidade do dolo, que é direto, em qualquer dos casos, o elevado grau de violência tanto psicológica como física, exercida contra a vítima, o tempo ao longo do qual esta perdurou e o número de atos e situações concretamente apurados que integram a conduta sob censura. Assim, importa ter presente que o ofendido vive(u) apavorado com a possibilidade de agressão física por parte da arguida e, principalmente, com a eventualidade de ela lhe vir a causar outros males, fazendo uso de feitiços, em cujo poder ambos acreditavam.

Em sede de ilicitude da conduta cabe assinalar, além do já referido de forma genérica, o período de tempo ao longo do qual o ofendido ficou privado da sua liberdade, a intensidade das agressões perpetradas nas mãos do arguido, obrigando a assistência hospitalar e o prejuízo económico causado, muito embora não apurado, com a danificação das roupas preparadas.
 
De ressaltar, ainda, a humilhação pública acrescida de se tratar de um homem a assumir o papel de vítima num crime de violência doméstica, sendo certo que a compleição física de ambos se mostrava desproporcional, com prejuízo para o ofendido.

Por outro lado, no que concerne ao crime de homicídio na forma tentada, para além das consequências deste, verbi gracia, as lesões físicas causadas pela queda e os ferimentos advenientes das facadas, os quais implicaram um período de doença de 160 dias, importa assinalar a intensidade da energia criminógena envolvida, bem patente em toda a sequência fática demonstrada. Mesmo com o ofendido prostrado no solo, ferido, prossegue a agressão, atingindo-o com golpes de faca na cabeça e no tronco.

Finalmente, importa considerar que a arguida apresenta já antecedentes por crimes contra bens pessoais, tendo sofrido duas condenações por crimes contra a integridade física.

Em face de todo o exposto, o Tribunal entende adequado aos fins subjacentes à punição a aplicação ao arguido pelos crimes praticados das seguintes penas de prisão, não se mostrando adequada a aplicação de pena de multa aos fins visados com a punição, no caso em que esta se encontra prevista em alternativa:
- 3 anos de prisão, pelo crime de violência doméstica;
- 7 anos de prisão, pelo crime de homicídio na forma tentada;
*

-Cúmulo jurídico.
Nos termos previstos no art. 77º, nº1 do Código Penal, “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena”.
Prescreve ainda o nº 2 que a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Assim, a pena mínima situa-se entre os 3 anos de prisão e a pena máxima nos 10 anos de prisão.
Tendo em conta os factos praticados na sua globalidade, todos inter-relacionados, os atos concretamente praticados por referência a cada um dos crimes em presença, a sua cadência e o período de tempo ao longo do qual tiveram lugar e a personalidade da arguida resultante do Relatório elaborado pela DGRSP, afigura-se ao Tribunal ajustada a aplicação da seguinte pena única:
- pena única de 8 anos de prisão.»

As finalidades da punição são, de acordo com o artigo 40.º do Código Penal, a partir da revisão de 1995, a protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).

No procedimento de determinação da pena, o juiz começa por determinar a moldura penal abstracta e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para finalmente escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida, tendo em vista as penas de substituição que a lei prevê.

O acórdão recorrido considerou ter a arguida praticado um crime de violência doméstica, previsto e punido no artigo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do Código Penal, com a agravação prevista no artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção introduzida pela Lei n.º 17/2009, de 6 de Maio, indicando a moldura abstracta aplicável como sendo de prisão de 2 anos e 3 meses a 6 anos e 6 meses.

Por sua vez, quanto ao crime de crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, al. b) do Código Penal, agravado nos termos do disposto no referido artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, considerou aplicável a moldura abstracta de 2 anos, um mês e 10 dias a 16 anos de prisão.

Não se percebe a aritmética utilizada pelo tribunal recorrido para chegar a estas molduras abstractas.

No pressuposto da aplicação da agravação prevista no artigo 86.º, n.º3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, não se vislumbra como o agravamento em um terço dos limites mínimo e máximo conduz o tribunal recorrido de uma pena de 2 a 5 anos de prisão (para a violência doméstica) para uma moldura de 2 anos e 3 meses a 6 anos e 6 meses de prisão.

Igualmente incompreensível se mostra a determinação da moldura quanto ao crime de homicídio qualificado na forma tentada, mesmo que se tenha como pressuposto a referida agravação da pena.

Importa, porém, salientar que a agravação das penas em função do artigo 86.º, n.º3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, carece de razão de ser.

Estabelece esse n.º3:
“As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma”.

Acrescenta o n.º4:
“Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente”.

Exige-se que a arma (ou armas) trazida por qualquer dos comparticipantes integre o elenco das armas das alíneas a) a d) do n.º1, pelo que fica afastada a agravação do n.º3 se o instrumento apenas se subsumir ao conceito de “arma” constante do artigo 4.º, do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março (neste sentido, Artur Vargues, Comentário das Leis Penais Extravagantes, volume 1, UCE, p. 245).

No que toca ao crime de violência doméstica, a única referência a uma arma surge na menção a “uma facada” que a arguida desferiu na mão esquerda do ofendido, o que, sem qualquer outra caracterização do instrumento com o qual foi desferida a dita “facada”, torna impossível o funcionamento da referida agravação.

No tocante ao crime de homicídio qualificado na forma tentada, o acórdão recorrido dedica atenção à questão da detenção da faca de cozinha descrita no ponto de facto provado n.º 12, concluindo que tal instrumento, integrando o conceito legal de arma branca, não preenche a tipicidade do crime de detenção de arma proibida, não estando enquadrado em qualquer das alíneas do artigo 86.º, n.º1.

Por conseguinte, deveria ter concluído que afastada estava a agravação prevista no n.º3 do mesmo artigo, já que o instrumento em causa não integra o elenco das armas das alíneas a) a d) do n.º1.

Assim, afastando a dita agravação, relativamente a ambos os crimes, as molduras penais aplicáveis são:
- prisão de 2  a 5 anos para a violência doméstica;
- prisão de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão para o crime de homicídio qualificado na forma tentada.

Dentro de cada moldura legal, estabelece o artigo 71.º, n.º1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o n.º3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjectiva no artigo 375.º, n.º1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.

Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção actuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pp. 227 e segs.).

Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º2, Abril-Junho de 2002, pp. 181 e 182), apresenta três proposições, em jeito de conclusões, da seguinte forma sintética:
«Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»

Como refere o S.T.J., em Acórdão de 17 de Abril de 2008, «as circunstâncias e os critérios do artigo 71.º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente» (proc. 08P571, disponível em www.dgsi.pt; também relativamente à questão da determinação da medida da pena, cfr., entre outros, o Acórdão do S.T.J. de 9 de Março do 2006, in CJSTJ, tomo I, pp. 212 e ss., e o Acórdão do S.T.J., de 29 de Maio de 2008, proc. 08P1145, em www.dgsi.pt).

Atenta a factualidade provada, valorando-se nos termos do artigo 71.º, n.ºs 1 e 2, há que ter em conta:

É intensa a ilicitude do facto e as consequências só não foram mais gravosas por circunstâncias alheias à vontade da recorrente.      
A arguida, além de fazer que o ofendido caísse desamparado da janela do 1.ª andar, ainda lhe desferiu, já prostrado no solo, dois golpes na cabeça e um no tórax, com a fraca de que se encontrava munida.

Assim como o ofendido foi vítima do comportamento desajustado da arguida ao longo de parte da vida em comum, fechando-o em casa, rasgando-lhe as roupas, ameaçando-o com feitiços, agredindo-o fisicamente de diversas formas.

A arguida agiu sempre com dolo directo.

Importa considerar que a arguida ingeria bebidas alcoólicas em excesso e que, no dia da tentativa, foram também ingerida pelos convivas – em que se inclui a arguida – grande quantidade de bebidas alcoólicas.

Admite-se, pois, que a arguida estaria algo alcoolizada, mas sem que restem dúvidas, porém, sobre a sua capacidade de avaliação sobre as consequências e a punibilidade da sua conduta.

São intensas as exigências preventivas.

Tendo em conta os vectores apontados no quadro do binómio formado pela culpa e pela prevenção, e considerada a moldura penal dos crimes pelos quais a arguida foi condenada, temos como ajustadas as penas de 5 anos e 6 meses de prisão para o homicídio qualificado na forma tentada e de 2 anos e 6 meses para o crime de violência doméstica.

Estabelece, quanto a regras de punição do concurso de crimes, o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, inalterado pela Lei nº 59/07, de 4 de Setembro, que “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

Nos termos do n.º 2, a moldura do concurso tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

O que significa que no caso presente, a moldura de punição do concurso é de 5 anos e 6 meses a 8 anos de prisão.

A medida da pena unitária a atribuir em sede de cúmulo jurídico reveste-se de uma especificidade própria, pois na fixação da pena correspondente ao concurso entra como factor determinante a personalidade do agente enquanto aglutinador da pena aplicável aos vários crimes.

Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso.

Como refere Cristina Líbano Monteiro, A Pena «Unitária» do Concurso de Crimes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 1, págs. 151 a 166, o Código rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente, estando em causa a avaliação de uma «unidade relacional de ilícito», portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um mesmo agente.

No caso em apreço, ponderando todos os factores que foram valorados, nesta sede, pelo tribunal recorrido, julgamos adequada a fixação da pena única em 6 anos e 6 meses de prisão, o que exclui a possibilidade de aplicação de pena de substituição.

Conclui-se que o recurso merece parcial provimento.
***

III–Dispositivo.

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em, no parcial provimento do recurso:

A) Desconsiderar a agravação prevista no artigo 86.º, n.º3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, quanto a ambos os crimes por que a arguida/recorrente M foi condenada;

B) Fixar as penas impostas à mesma arguida/recorrente em 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão pelo crime de violência doméstica, p. e p. no artigo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do Código Penal, e em 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão pelo crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 131.º, 132.º, nºs. 1 e 2, al. b) do Código Penal;

C) Em cúmulo jurídico, condenam a arguida/recorrente, M, na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão.
             
Sem tributação.



Lisboa, 18 de Outubro de 2016 



(o presente acórdão, integrado por sessenta páginas com os versos em branco, foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)


(Jorge Gonçalves)                                             
(Maria José Machado) 
Decisão Texto Integral: