Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1971/14.5T2SNT-B.L1-2
Relator: CARLOS CASTELO BRANCO
Descritores: DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL
NULIDADE DE CITAÇÃO
INCIDENTE INOMINADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I) A arguição da falta/nulidade do ato processual da citação, com fundamento no disposto no artigo 188.º, n.º 1, al. e) do CPC, implica a demonstração pelo arguente de que:
a) não teve conhecimento tempestivo do ato de citação; e
b) tal sucedeu por facto que não lhe é imputável.
II) Tal arguição configura um incidente inominado, comportando uma sequência de atos que exorbitam da tramitação normal do processo, com carácter eventual, não fazendo parte do encadeado lógico necessário à resolução do pleito, a cuja tramitação é aplicável o comando do artigo 292.º do CPC e, por via deste, as disposições dos artigos 293.º a 295.º do CPC.
III) Nos termos do artigo 293.º, n.º 1 do CPC, “no requerimento em que se suscite o incidente (…) devem as partes oferecer o rol de testemunhas e requerer os outros meios de prova”.
IV) A atuação do juiz dirigindo ativamente o processo, providenciando pela sua célere tramitação, promovendo as diligências necessárias ao normal prosseguimento da causa, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual, bem como, determinando o suprimento da falta de pressupostos processuais sanáveis, não determina que o juiz deva atuar de forma a suprir a inércia ou a não atuação das partes, quando esta é exigível, como sucede no caso de lhes ser imposto que deduzam as pretensões de que se arrogam titulares e de requerer os meios de prova atinentes à demonstração das mesmas.
V) Se o juiz não determina diligência probatória que, não se afigura, em si mesma, essencial ou determinante para a decisão do incidente da falta de citação, de acordo com a controvérsia resultante das posições apresentadas pelas partes, e que, não foi tempestivamente requerida pela requerente da arguição incidental, não se verifica inobservância do dever de gestão processual exigível ao julgador (artigo 6.º do CPC), por não lhe competir suprir a inércia da parte no cumprimento do ónus processual que primariamente lhe competia.
VI) A citação edital de pessoa singular apenas é admissível nos casos em que não se mostre viável, por alguma das modalidades legalmente previstas na lei, a citação pessoal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Relatório:
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1. Por requerimento inicial apresentado em juízo em 22-01-2014, o BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A., identificado nos autos, instaurou contra AM e JR, também identificada nos autos, execução sumária, para pagamento de quantia certa, com o n.º 19 …/….5 … (de que os presentes autos são apenso), dando à execução uma “Escritura” e alegando os seguintes factos:
“1º Por escrituras de compra e venda e mútuo com hipoteca, outorgadas em 22.07.2010 o Exequente declarou emprestar aos Executados, e estes declararam expressamente ter recebido daquele, a título de empréstimo, as seguintes quantias:
- € 90.000,00 (noventa mil euros) destinada a aquisição de imóvel para habitação (v. Doc. 1 adiante junto e que aqui se dá por integralmente reproduzido);
- € 16.500,00 (dezasseis mil euros) destinada a fazer face a compromissos financeiros e a aquisição de equipamento para habitação (v. Doc. 2 adiante junto e que aqui se dá por integralmente reproduzido);
2º Através das referidas escrituras, os Executados constituíram a favor do ora Exequente hipotecas voluntárias sobre a fracção autónoma designada pela letra “AB”, correspondente ao piso um, letra D, destinado a habitação, com a arrecadação número sete no piso menos cinco, do prédio urbano sito na R. …, números …,…-A, …-…, …-C, …-D e R … …, em …, freguesia de Algueirão,-Mem Martins, concelho de Sintra, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n.º …, inscrito na respectiva matriz sob o artigo …, como caução e garantia de pagamento dos capitais mutuados, juros e demais despesas inerentes aos capitais mutuados.
3º As referidas hipotecas encontram-se devidamente registadas, conforme se comprova pela respectiva Certidão do Registo Predial (v. Certidão Permanente On Line, in www.predialonline.pt, com o código de acesso PP-…-54697-111102-001617 e que aqui se dá por integralmente reproduzida).
4º Nos termos dos referidos contratos, os Executados, por sua vez, comprometeram-se a reembolsar o Exequente das quantias mutuadas, acrescidas das respectivas taxas remuneratórias actualizáveis trimestralmente, conforme contratualizado, mediante prestações mensais e sucessivas.
5º No âmbito das referidas escrituras ficou ainda estipulado entre as partes contratantes que o incumprimento de qualquer prestação, ou outrossim a penhora do bem imóvel dado de hipoteca, implicava o vencimento imediato de todas as restantes (v. Docs. 1 e 2, adiante juntos).
6º Sucede os contratos em causa encontrarem-se em incumprimento pelos Executados desde 10.06.2012, o que origina por si só o vencimento imediato das obrigações assumidas.
7º Assim, relativamente aos contratos em causa, verifica-se o seguinte:
- Quanto ao contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca outorgado em 22.07.2010, pelo valor de € 90.000,00, encontra-se em dívida a quantia de € 88.603,07 a título de capital, acrescida de 7 273,26 € relativos a juros e respectivo imposto de selo, contabilizados às taxa remuneratórias de 4,808% e de mora de 2,00%, desde 10.06.2012 - v. Doc. 1, adiante junto; e
- Quanto ao contrato de mútuo com hipoteca outorgado em 22.10.2007, pelo valor de € 16.000,00, encontra-se em dívida a quantia de € 15.751,67 a título de capital, acrescida de 1293,00 € relativos a juros e respectivo imposto de selo, contabilizados às taxas remuneratórias de 4,808% e de mora de 2,00%, desde 10.06.2012 – v. Doc. 2, adiante junto.
8º O Reclamante é assim credor dos Executados pelo valor global de € 112.921,00 (cento e doze mil e novecentos e vinte e um euros), a título de capital em dívida, juros, imposto de selo”.
Em sede de “LIQUIDAÇÃO DA OBRIGAÇÃO” indicou os seguintes valores:
“Valor Líquido: 104.354,74€
Valor dependente de simples cálculo aritmético: 8.566,26€
(…)
Total: 112.921,00€
Os valores dependentes de simples cálculo aritmético, calculados até à presente data, são os seguintes:
- Quanto ao contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca outorgado em 22.07.2010, pelo valor de € 90.000,00, encontra-se em dívida a quantia de € 88.603,07 a título de capital, acrescida de 7 273,26 € relativos a juros e respectivo imposto de selo, contabilizados às taxa remuneratórias de 4,808% e de mora de 2,00%, desde 10.06.2012 - v. Doc. 1, adiante junto; e
- Quanto ao contrato de mútuo com hipoteca outorgado em 22.10.2007, pelo valor de € 16.000,00, encontra-se em dívida a quantia de € 15.751,67 a título de capital, acrescida de 1293,00 € relativos a juros e respectivo imposto de selo, contabilizados às taxas remuneratórias de 4,808% e de mora de 2,00%, desde 10.06.2012 – v. Doc. 2, adiante junto.
Reclamam-se ainda os juros vincendos, à taxa e sobretaxa acima referidas, sobre o valor líquido acima indicado, com o acréscimo do imposto de selo e até efectivo e integral pagamento.”.
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2. Em 10-03-2014 foi lavrado auto de penhora do prédio urbano sito na Rua …, n.º … ….º D, …, 2725-575 Mem Martins, inscrito na matriz com o artigo n.º …, fração …, da freguesia de …-Mem Martins e descrito na CRP sob o n.º ….
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3. Em 15-04-2014 foi junta aos referidos autos de execução cópia de documento intitulado “CITAÇÃO APÓS PENHORA- POSTAL” dos executados e, bem assim, citação da Fazenda Nacional e do IGFSS, I.P., atos com data de 14-…-2014.
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4. Em 28-01-2015 foi junta aos referidos autos de execução documento intitulado “CERTIDÃO DE CITAÇÃO PESSOAL”, de onde consta, nomeadamente, escrito o seguinte:
“Pelas 18:00 do dia 4-…-2014, na Rua …, …, ….º Dtº, 2725-575 Mercês, comarca de Sintra Efectuei a Citação de JR (…)
6. Pelas 11:00 do dia 13-09-2014 deixei aviso com a indicação para citação com dia e hora certa, tendo ficado consignado que a diligência será realizada pelas 18:00 do dia 4-…-2014;
7. A citação foi efectuada mediante afixação na morada supra referida da nota de citação com a indicação de que o duplicado e os documentos anexos ficam à disposição do citando na secretaria judicial, tendo testemunhado este acto os Srs. JD e PV (…).
9. Efectuada pelo Agente de Execução (…).
10. Observações: Confirmou-se junto da vizinhança que os executados residem no local”.
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5. Em 28-01-2015 foi igualmente junta aos referidos autos de execução documento intitulado “NOTIFICAÇÃO”, dirigida à executada, referindo-se a morada da Rua …, …, ….º Dt.º, 2725-575 Mercês, de onde consta, nomeadamente, escrito o seguinte:
“OBJECTO E FUNDAMENTO DA NOTIFICAÇÃO
Advertência em virtude da citação não ter sido feita na própria pessoa.
Nos termos do disposto no art.º 233º do Código de Processo Civil, fica V.Ex.ª notificado de que na data de 13-…-2014, foi afixado o Aviso de Data e Hora Certa.
A citação considera-se efectuada na data de 4-…-2014, sendo de 20 dias o prazo para pagar ao exequente,deduzir oposição à execução, sob pena de penhora em bens da sua pertença. Àquele prazo acresce uma dilação de:
0 dias por a citação ter sido efectuada em comarca diferente daquela onde correm os autos; 5 dias por a citação não ter sido efectuada na pessoa de V.Exa.. A contagem do prazo suspende-se durante as férias judiciais. Terminando em dia que os tribunais estiverem encerrados, transfere-se o seu termo para o primeiro dia útil seguinte. Fica advertido de que: Nos termos do art.º 32.º do CPC. é obrigatória a constituição de advogado nas causas da competência de tribunais com alçada, em que seja admissível recurso ordinário; nas causas em que seja admissível recurso, independentemente do valor; nos recursos e nas causas propostas nos tribunais superiores. Nos termos do nº 1 do artº 60º do CPC as partes têm de fazer-se representar por advogado nas execuções de valor superior à alçada da Relação e nas de valor inferior a esta quantia, mas excedente à alçada dos tribunais judiciais da 1ªInstância, quando tenha lugar algum procedimento que siga os termos do processo declarativo. Nos termos do nº 3 daquele normativo, nas execuções de valor superior à alçada do Tribunal da 1ª Instância e não abrangidas no nº anterior, as partes têm de se fazer representar por advogado,advogado estagiário ou solicitador.
Nota: O duplicado e os documentos relativos à citação, ficam à disposição do citando na Secretaria Judicial do Tribunal acima indicado, e/ou, no escritório do Agente de Execução.”.
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6. Em 22-05-2015 foi igualmente junta aos referidos autos de execução documento intitulado “NOTIFICAÇÃO”, endereçado à referida executada, para a morada acima mencionada, de onde consta, nomeadamente, escrito o seguinte:
“FUNDAMENTO DA NOTIFICAÇÃO
Nos termos e para os efeitos do disposto no nº 1 do artigo 812º do Código do Processo Civil (CPC), fica V. Exa. notificado(a), para, no prazo de 10 (dez) dias, indicar ao signatário qual o valor base que atribui ao bem penhorado e modalidade da venda pretendida”.
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7. Na sequência da única pronúncia sobre a modalidade da venda – da exequente (conforme requerimento apresentado nos autos de execução em 01-06-2015) – em 22-09-2015 foi tomada a seguinte decisão pelo agente de execução, notificada às partes, por correspondência expedida em 22-09-2015:
“DECISÃO
Nos termos do artigo 812º do Código Processo Civil, depois de ouvidas as partes, declara que tomou a seguinte
decisão:
VENDA MEDIANTE PROPOSTAS EM CARTA FECHADA PELO VALOR BASE DE 83.547,45 EUROS.
BENS A VENDER Os constantes do auto de penhora elaborado na data 10/…/2014 PRÉDIO URBANO SITO NA RUA … Nº… …ºD … … 2725-575 MEM MARTINS, INSCRITO NA MATRIZ COM O ARTIGO Nº … FRACÇÃO AB DA FREGUESIA DE … - MEM MARTINS E DESCRITO NA CRP SOB O Nº …
MODALIDADE DE VENDA Venda mediante propostas em carta fechada.
VALOR DE VENDA Serão aceites propostas iguais ou superiores a 85% do valor de base (…).”.
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8. Com data de 15-03-2016 foi proferido despacho judicial, nos referidos autos de execução, do seguinte teor: “Deverá antes de mais o Sr. AE comprovar nos autos a citação postal ou pessoal da executada, que não apenas o cumprimento do disposto no art. 233º do CPC como até ao presente sucede”.
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9. Prosseguindo os autos de execução com a realização de diligências para venda do imóvel penhorado e de efetivação de penhora sobre outros bens, em 24-05-2021 foi apresentado pela executada requerimento do seguinte teor:
“JR, executada melhor identificada nos autos acima referenciados, representada pelo mandatário que esta subscreve, vem respeitosamente a V. Exa., com fundamento nos artigos 187.º, a), 188.º, n.º 1, e), 196.º e 198.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, apresentar RECLAMAÇÃO, consubstanciada na narrativa a seguir.
Falta de citação
1. Todos os atos praticados após o requerimento inicial são nulos, uma vez que a executada não tomou conhecimento do ato de citação pessoal que foi efetuado, o que implica na falta de citação. Passo a explicar.
2. A primeira tentativa de citação da executada, postal, se deu no dia 14/04/2014 (requerimento de 15/01/2014 com ref. 7834394), tendo restado infrutífera.
3. Ato contínuo, no dia 28/01/2015 foi apresentada pelo Exmo. Sr. Agente de Execução informação (ref. 1372779) que havia procedida a citação dos executados (citação com hora certa).
4. Neste ato, informou que pelas 11h00 do dia 13/09/2014 havia deixado aviso de que a diligência de citação se realizaria no dia 04/…/2014, pelas 18h00. Como testemunhas indicou o Sr. JD e o Sr. PV. Por fim, informou que confirmou junto da vizinhança que os executados residiam no local.
5. Pois bem.
6. Aquele ato de citação não deveria ter surtido os efeitos que se verificaram.
7. Com efeito, a executada deixou o território nacional no dia 22 de janeiro de 2013, retornando para seu país de origem, Brasil. Voltou a Portugal somente em 15 de setembro de 2018.
8. O executado AM, que à época era seu marido, retornou ao Brasil em 20 de setembro de 2013, não mais tendo retornado para Portugal. Todos os membros do agregado familiar retornaram ao Brasil entre os dias 22 de janeiro de 2013 e 20 de setembro de 2013.
9. Nenhum dos executados se encontrava em território nacional quando da propositura da ação.
10. Portanto, com a devida vênia, o Exmo. Sr. Agente de execução não enveredou os esforços necessários para concretização da citação dentro dos ditames legais. Determina o artigo 232, n.º 1, do Código de Processo Civil: No caso referido no artigo anterior, se o agente de execução ou o funcionário judicial apurar que o citando reside ou trabalha efetivamente no local indicado, não podendo proceder à citação por não o encontrar, deve deixar nota com indicação de hora certa para a diligência na pessoa encontrada que estiver em melhores condições de a transmitir ao citando ou, quando tal for impossível, afixar o respetivo aviso no local mais indicado
11. Não é credível que o Exmo. Sr. Agente de Execução tenha apurado que a executada vivesse ainda naquela morada. Como dito alhures, há 1 ano e 09 meses, contado da data em que fora procedida a citação com hora certa, que a executada não mais vivia no local.
12. Salvo melhor juízo, o Exmo. Sr. Agente de Execução deveria ter se assenhorado de todas as informações possíveis antes de investir para a citação com hora certa. O que não fez.
13. Debruçando-nos sobre os autos, verifica-se que fora procedida a tentativa de citação postal, infrutífera; a seguir, inexiste qualquer busca nos meios disponíveis para se encontrar o paradeiro dos executados. A informação seguinte é a da realização da citação com hora certa.
14. A executada não teve conhecimento do ato de citação. E a assertiva de que já há muito estava ausente é facilmente comprovada pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, porquanto a executada é cidadã estrangeira e o seu trânsito de entrada e saída do espaço Schengen é armazenado nas bases de dados.
15. A executada somente teve conhecimento inequívoco deste processo e de seu conteúdo no dia 14/05/2021, data em que este mandatário foi considerado como notificado do despacho que permitiu a consulta aos autos, não tendo, por conseguinte, efetuado qualquer manifestação no processo. E dentro em 10 dias, tempestivamente, apresenta esta reclamação.
16. O ato de citação praticado pelo Sr. Agente de Execução, ao arrepio dos moldes legais, induziu este juízo a erro, que antes de determinar a marcação de dia e hora para abertura das propostas determinou que fosse procedida a junção do comprovativo da citação dos executados.
Contudo, municiado com informações equivocadas, determinou que o processo seguisse sua marcha, crendo na efetiva formação da relação processual. O que não aconteceu.
17. Deste modo, não restam dúvidas de que não existiam os elementos necessários para a realização da citação com hora certa, inexistindo, portanto, a citação, exegese do artigo 188.º, n.º 1, e), do Código de Processo Civil, o que necessariamente remete a nulidade de todo o processo após o requerimento executivo, inteligência do artigo 187.º, alínea a), do mesmo diploma legal.
18. Portanto, a nulidade do processo após o requerimento executivo é o que se pede.
Dos juros
19. A discussão que passará a ser travada não pode, de forma alguma, ser interpretada como conflitante com a anterior discussão, haja vista que anteriormente fora tratada questão processual de primeira ordem e agora se discutirá o que fora pedido pela exequente, sendo independentes as decisões que serão proferidas.
20. Seguindo.
21. Analisemos o pedido efetuado no requerimento executivo:
“7º Assim, relativamente aos contratos em causa, verifica-se o seguinte:
- Quanto ao contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca outorgado em 22.07.2010, pelo valor de € 90.000,00, encontra-se em dívida a quantia de € 88.603,07 a título de capital, acrescida de 7 273,26 € relativos a juros e respectivo imposto de selo, contabilizados às taxa remuneratórias de 4,808% e de mora de 2,00%, desde 10.06.2012 - v. Doc. 1, adiante junto; e
- Quanto ao contrato de mútuo com hipoteca outorgado em 22.10.2007, pelo valor de € 16.000,00, encontra-se em dívida a quantia de € 15.751,67 a título de capital, acrescida de 1 293,00 € relativos a juros e respectivo imposto de selo, contabilizados às taxas remuneratórias de 4,808% e de mora de 2,00%, desde 10.06.2012 – v. Doc. 2, adiante junto.
8º O Reclamante é assim credor dos Executados pelo valor global de € 112.921,00 (cento e doze mil e novecentos e vinte e um euros), a título de capital em dívida, juros, imposto de selo.”
22. É possível depreender que pelo exequente foram pleiteados valores que estariam em dívida, referente a dois contratos e que o montante pedido açambarcaria o capital, juros vencidos e imposto de selo.
23. Mas em análise a nota discriminativa, elaborada em 10/03/2021 (ref. 18430383) é possível verificar que o Exmo. Sr. Agente de Execução acresce ao cálculo juros vincendos, o que não fora pleiteado pela exequente no requerimento executivo.
24. Vale esclarecer que a exequente fora devidamente notificada do conteúdo da nota discriminativa, tendo anuído tacitamente ao cálculo elaborado.
25. O tribunal está adstrito aos pedidos formulados pelas partes, quando do momento processual adequado. O exequente teve a oportunidade, quando da elaboração do requerimento executivo, de pleitear os juros vincendos, mas claramente não o fez.
26. Buscou, como está evidenciado, a condenação dos executados aos pagamentos dos juros vencidos, desde o alegado incumprimento (10/06/2012) até a data da propositura da ação (27/01/2014). E agora inova, buscando receber juros vincendos, sem ter formulado o competente pedido.
27. E está claro que agora o exequente pleiteia juros vincendos, porquanto pese embora a nomenclatura não esteja clara, é fácil perceber que os juros vencidos compõem o que na nota discriminativa é denominado como “quantia exequenda” e onde se lê “juros” se trata dos juros vincendos.
28. O que busca o exequente agora é ilegal. Neste sentido, vale a lição que se extrai do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, de 11/07/2019, no âmbito do processo 13644/12.9.YYLSB-C.L1-2, disponível em dgsi.pt1 , cuja parte da ementa se transcreve:
“(…)
III. Quando a execução inclua juros que continuem a vencer-se, o agente de execução procederá ao respetivo cálculo em face do título executivo e dos documentos que o exequente ofereça ou, sendo o caso disso, em função de taxas legais de juros de mora aplicáveis (n.º 3 do art.º 703.º do CPC), não se exigindo, para esta tarefa, mais do que a mera leitura e interpretação do título executivo e do requerimento executivo, à luz das regras legais aplicáveis.
(…)
V – Nesse caso, deve admitir-se o recurso do despacho judicial proferido sobre a reclamação apresentada pela executada contra a nota de liquidação elaborada pelo agente de execução, assim se interpretando restritivamente a alínea c) do n.º 1 do art.º 723.º do CPC, na medida em que uma ideia de irrecorribilidade absoluta colidiria com o direito a uma tutela jurisdicional efetiva (art.º 20.º n.ºs 1 e 4, da CRP).
VI – Se a exequente, no requerimento executivo, procedeu ao cálculo dos juros vencidos até à data da instauração da execução e peticionou o seu pagamento, sem formular o pedido de pagamento de juros de mora vincendos, abstendo-se, assim, de integrar, por meio de pedido ilíquido, na execução esse crédito vincendo, é ilegal, por violar o princípio do dispositivo, a inclusão, na nota de liquidação final da obrigação exequenda, de juros de mora vencidos após a instauração da execução.”
29. Este tribunal, pelo princípio do dispositivo, deve observar os parâmetros impostos pelo exequente quando da apresentação de seu requerimento inicial, impedindo que, de forma ilegal, sejam alargados.
30. Neste diapasão, deve ser declarado ilegal a adição de juros vincendos ao pedido e consequentemente aos cálculos de atualização dos valores, cingindo-se a decisão acerca do estritamente pleiteado no requerimento primitivo.
Da suspensão da execução.
31. Considerando que a executada jamais efetuou qualquer intervenção processual; considerando que somente há poucos dias teve conhecimento do processo; considerando a tempestividade desta reclamação, adequado o pedido de suspensão da execução, o que se pede por analogia ao disposto na norma do artigo 733.º, n.º 1, d), do Código de Processo Civil.
32. Com efeito, os factos narrados nesta peça processual, no âmbito da alegação de falta de citação, são devidamente suportados por documentos que aqui se juntam, sem prejuízo deste juízo, se o entender, oficiosamente expedir ofício ao SEF para comprovativo das assertivas aqui constantes.
33. As provas são inequívocas, remetendo a verossimilhança das alegações.
34. E o prosseguimento desta demanda, sem que o tribunal analise criticamente o que aqui se relata, causará prejuízo de difícil reparação à executada, que está em vias de ter parte de seus vencimentos penhorados, o que fatalmente colocará em causa o seu sustento e o dos que dela dependem.
35. E não podemos nos olvidar que a executada nunca teve a oportunidade de se opor a esta execução, porquanto o seu direito constitucionalmente salvaguardado de resistir fora sumariamente violado.
36. A execução pode ser suspensa quando se verifica que faltou a citação, ou é nula a citação feita ou ainda quando o réu não tenha tido conhecimento da citação por facto que não lhe é imputável, inteligência da combinação da norma do artigo 733.º, n.º 1, d) e do artigo 696.º, e), i e ii, do Código de Processo Civil.
37. E pelos motivos acima explanados requer seja suspensa a execução, até decisão acerca desta reclamação.
Por todo o acima exposto, requer seja acolhida a presente reclamação, para:
a) Que seja suspensa a execução, nos termos da fundamentação;
b) Que todo o processo, após o requerimento executivo, seja declarado nulo, em decorrência da falta de citação, nos termos da fundamentação;
c) Que seja declarada ilegal a adição dos juros vincendos ao crédito pleiteado, porquanto não peticionado inicialmente, nos termos da fundamentação. (…)”.
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10. Por requerimento apresentado nos autos de execução em 27-05-2021, o exequente pronunciou-se sobre a reclamação da executada, nos seguintes termos:
“(…) 1.º Todo o alegado pela Executada carece de fundamento legal, como de seguida se demonstrará.
2.º No que concerne aos juros e ao invocado pela Executada nessa sede, deveria ter sido suscitado em sede de embargos à execução, não o tendo sido, mostra-se precludido o direito de o vir invocar nesta sede, que não é a própria, pelo que se requerer o seu indeferimento.
3.º No que diz respeito à citação a mesma ocorreu de acordo com o estabelecido nos preceitos legais. Senão vejamos,
4.º Vem a Executada invocar que “todos os atos praticados após o requerimento inicial são nulos, uma vez que a executada não tomou conhecimento do ato de citação pessoal que foi efetuado, o que implica na falta de citação.”
5.º Contudo, para o efeito junta documentos que não fazem prova da sua alegada ausência do território nacional pelo período inequívoco de 22 de janeiro de 2013 a 15 de setembro de 2018.
6.º Os documentos juntos não são suscetíveis de fazer a prova pretendida pela Executada.
7.º E, note-se, que de acordo com a certidão de citação pessoal, doc. n.º 1, que ora se junta, os próprios vizinhos atestaram que os Executados residiam no local.
8.º O requerido pela executada trata-se de uma mera manobra dilatória para, mais uma vez, se escusar das responsabilidades assumidas.
9.º O art.º 231.º do CPC prevê a Citação por agente de execução ou funcionário judicial.
10.º De acordo com o n.º 1 frustrando-se a via postal, a citação é efetuada mediante contacto pessoal do agente de execução com o citando.
11.º Prevê o art.º 232.º do CPC “Não sendo possível obter a colaboração de terceiros, a citação é feita mediante afixação, no local mais adequado e na presença de duas testemunhas, da nota de citação, com indicação dos elementos referidos no artigo 227.º, declarando-se que o duplicado e os documentos anexos ficam à disposição do citando na secretaria judicial”. – Vide doc n.º 1 que ora se junta.
12.º Face ao exposto a citação dos Executados foi efetuada nos termos previstos no Código de Processo Civil, não sendo expectável, que na presente data a Executada venha invocar que ocorreu uma nulidade, por forma a evitar desresponsabilização pelo pagamento da divida, nomeadamente, para evitar a penhora de vencimento que está prestes a iniciar-se.
13.º Aliás o exposto no artigo anterior resulta claro na sequência do pedido de suspensão da instância, que desde já se requer que seja indeferido.
14.º Nestes termos deve todo o invocado pela Executada ser indeferido por falta de fundamento legal e a execução prosseguir os seus termos até efectivo e integral pagamento.
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO QUE V. EXA. DOUTAMENTE SUPRIRÁ, REQUER-SE O INDEFERIMENTO DA RECLAMAÇÃO APRESENTADA PELA EXECUTADA, DEVENDO A EXECUÇÃO PROSSEGUIR OS SEUS TERMOS ATÉ EFECTIVO E INTEGRAL PAGAMENTO.”.
*
11. Em 12-10-2021, nos referidos autos de execução foi proferido o seguinte despacho, ora recorrido:
“Através de requerimento dirigido aos autos em 24.05.2021, que identificou como reclamação de ato praticado pelo agente de execução, veio a executada JR arguir a falta/nulidade da citação efetuada nos autos, para tanto alegando, em síntese, que deixou o território nacional no dia 22.01.2013, retornando ao Brasil, seu país de origem, só voltando a Portugal em 15.09.2018, pelo que na data da citação, já há um ano e nove meses que não residia no local onde ela foi concretizada, não tendo tido o agente de execução o cuidado de efetuar as pesquisas necessárias a apurar do seu paradeiro após a devolução da carta registada remetida para citação, pelo que todo o processo é nulo após a entrada em juízo do requerimento executivo. Mais alegou que o agente de execução calculou indevidamente os juros vencidos desde a entrada em juízo do requerimento executivo, quando a exequente não pediu a cobrança de juros vincendos.
Respondeu o exequente alegando que a questão dos juros só poderia ter sido invocada em sede de embargos de executado, que não foram deduzidos, e que a citação foi efetuada de acordo com o formalismo legal, não fazendo os documentos juntos prova da alegada ausência da executada do território nacional durante o período referido.
Cumpre apreciar e decidir.
(…)
Asseguram-nos os autos, para o que agora nos interessa, que:
1- Em 22.01.2014, a exequente apresentou requerimento executivo contra AM e JR, indicando que os mesmos tinham o seu domicílio na Rua …,…, ….º Dtº, …, 2725-575 Mem Martins;
2- Deu à execução escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca, celebrada no Cartório Notarial de Odivelas, em 22.07.2010;
3- No campo destinado à liquidação da obrigação, constante do requerimento executivo, fez o exequente constar o seguinte:
“Os valores dependentes de simples cálculo aritmético, calculados até à presente data, são os seguintes:
- Quanto ao contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca outorgado em 22.07.2010, pelo valor de € 90.000,00, encontra-se em dívida a quantia de € 88.603,07 a título de capital, acrescida de 7 273,26 € relativos a juros e respectivo imposto de selo, contabilizados às taxa remuneratórias de 4,808% e de mora de 2,00%, desde 10.06.2012 - v. Doc. 1, adiante junto; e
- Quanto ao contrato de mútuo com hipoteca outorgado em 22.10.2007, pelo valor de € 16.000,00, encontra-se em dívida a quantia de € 15.751,67 a título de capital, acrescida de 1 293,00 € relativos a juros e respectivo imposto de selo, contabilizados às taxas remuneratórias de 4,808% e de mora de 2,00%, desde 10.06.2012 – v. Doc. 2, adiante junto.
Reclamam-se ainda os juros vincendos, à taxa e sobretaxa acima referidas, sobre o valor líquido acima indicado, com o acréscimo do imposto de selo e até efectivo e integral pagamento.”;
4- Tentada a citação dos executados através de carta registada com aviso de receção, com referência àquela morada, a mesma frustrou-se;
5- Em 13.09.2014, pelas 11 horas, o agente de execução procurou obter a citação dos executados através de contacto pessoal, na mesma morada, não os tendo encontrado, mas apurando junto da vizinhança que os mesmos residiam no local, como fez constar do respetivo auto de diligência, pelo que deixou nota com indicação de hora certa, dando-lhes conhecimento de que voltaria ao local no dia 04.10.2014, para proceder à citação;
6- No dia 04.10.2014, pelas 18 horas, não tendo encontrado os executados, o agente de execução efetuou a citação mediante afixação de nota de citação, na aludida morada, com a indicação de que o duplicado e os documentos anexos ficavam à disposição dos citandos na secretaria judicial, e que o ato havia sido testemunhado por JD e PV;
7- Após, deu cumprimento à formalidade prevista no art. 233.º do Código de Processo Civil, remeteu aos executados cartas registadas com as menções aí previstas.
(…)
Alegou a executada que não corresponde à verdade que residisse naquela morada na data em que a citação foi efetuada, porquanto se encontrava no Brasil, para onde foi em 22.01.2013, só regressando a Portugal em 15.09.2018.
Para prova dessa matéria limitou-se a juntar cópia de auto de notícia elaborado pelo SEF, do qual resulta ter-lhe sido aplicada uma coima por se ter apresentado em 22.01.2013 no Aeroporto de Lisboa, com intenção de sair do território nacional, para além dos 90 dias da autorização de permanência que lhe havia sido concedida, uma vez que tinha entrado em Portugal em 17.01.2011. E fotocópia do seu passaporte, do qual consta carimbo de entrada no território nacional em 15.09.2018.
Ora, destes singelos elementos não resulta demonstrado que em 04.10.2014 a executada não residisse na morada onde a citação foi concretizada.
Apenas resulta que, em 17.01.2011, entrou em território nacional, que em 22.01.2013 se apresentou no Aeroporto de Lisboa com a intenção de sair, desconhecendo-se se efetivamente o fez, e que, em 15.09.2018, voltou a entrar em Portugal. Mesmo a admitir-se ser verdade que tenha viajado para o Brasil em 22.01.2013, nada impedia que a executada tivesse regressado depois a Portugal e que, em 04.10.2014, residisse na morada onde foi concretizada a citação. Tudo indica, aliás, que as viagens da executada fossem frequentes, tanto mais que em 22.07.2010, antes portanto da data de entrada constante do documento junto, esteve comprovadamente presente no Cartório Notarial de Odivelas, onde celebrou a escritura de compra e venda e  mútuo com hipoteca que foi dada à execução, através da qual adquiriu, conjuntamente com executado AM, o imóvel onde a citação foi concretizada, para habitação de ambos.
A executada não juntou outra prova do alegado, sendo certo que, nos termos do art. 293.º, n.º 1, do Código de Processo Civil – diploma a que respeitam todos os normativos legais sem menção de fonte diversa –, era com o requerimento que o deveria ter feito.
(…)
Sendo aqueles os factos relevantes para a decisão do alegado, vejamos agora o direito.
Nos termos do art. 188.º, n.º 1, al. e), considera-se existir falta de citação, geradora da sua nulidade, “quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável”.
E, dispõe o art. 191.º, n.º 1, que “Sem prejuízo do disposto no art. 188.º, é nula a citação quando não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades prescritas na lei”, sendo que, nos termos do n.º 4 da mesma norma, a arguição só deverá ser atendida quando “a falta cometida puder prejudicar a defesa do citado”.
De outra sorte, estatui o n.º 1 do art. 195.º que “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.”, devendo ser arguida nos termos do n.º 1 do art. 199.º.
No caso, alega a executada que foram preteridas formalidades legais de citação, porquanto o agente de execução não teve o cuidado de efetuar as pesquisas necessárias a apurar do seu paradeiro após a devolução da carta registada remetida para citação.
Porém, sem qualquer razão, uma vez que, como resulta do art. 231.º, frustrada a citação por via postal, deve o agente de execução procurar efetuá-la mediante contacto pessoal com o citando.
Foi precisamente o que o agente de execução, tendo avançado para a citação através de contacto pessoal, depois de frustrada a tentativa de citação por via postal registada para a morada indicada no requerimento executivo.
A realização de diligências tendentes ao apuramento de outras moradas só deveria ter lugar no caso de se frustrar a tentativa de citação por contacto pessoal, como resulta do disposto no art. 236.º.
Inexistiu, pois, omissão de formalidades legais que pudessem determinar a nulidade da citação realizada.
Quanto à arguida falta de citação, tratando-se de facto extintivo do direito de crédito invocado pelo exequente, era sobre a exequente que incidia o ónus de alegação e de prova da sua verificação (art. 342.º, n.º 2, do Código Civil).
Ora, como se referiu, não logrou a executada fazer essa prova, não tendo junto prova documental suficiente que permita demonstrar que não residia na morada onde a citação foi concretizada nem tendo requerido ou apresentado qualquer outra prova destinada a prova-lo.
Não ocorre por isso a falta de citação, pelo que improcede a arguição de nulidade suscitada.
(…)
Quanto à questão dos juros, importa apenas dizer que, conforme resulta de forma cristalina do requerimento executivo, o exequente fez constar do campo destinado à liquidação da obrigação, a seguinte menção: “Reclamam-se ainda os juros vincendos, à taxa e sobretaxa acima referidas, sobre o valor líquido acima indicado, com o acréscimo do imposto de selo e até efectivo e integral pagamento.”.
O pedido executivo, efeito jurídico que a exequente pretende obter da ação, consubstancia-se na execução para pagamento de quantia certa, no pagamento, pelo executado, de uma determinada quantia pecuniária.
Tal quantia é indicada no requerimento executivo, no campo designado por “Liquidação da Obrigação”, local próprio para o efeito.
Não é por isso verdade que o exequente não tenha pedido a cobrança de juros vincendos.
Improcede, assim, in totum a pretensão da executada.
(…)
Termos em que, face ao exposto, julgo improcedente a arguição de nulidade de citação suscitada, bem como a reclamação apresentada relativamente aos juros.
Custas incidentais pela executada, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC (art. 7.º, n.º 4, do Regulamento das Custas Processuais, e tabela II que do mesmo faz parte integrante), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Notifique. (…)”.
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12. Não se conformando com a referida decisão, dela apela a executada, pugnando seja julgada procedente a reclamação apresentada, decretando-se a nulidade da citação e de todos os atos praticados após a apresentação do requerimento executivo; alternativamente, pugnando seja determinado “que o tribunal a quo diligencie junto ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras para se informe se a Recorrente adentrou no território nacional, ou no Espaço Schengen, no período compreendido entre 22 de janeiro de 2013 e 15 de setembro de 2018”, tendo formulado as seguintes conclusões:
“(…) I – O recurso tem, por objeto, a reforma da decisão que julgou improcedente a reclamação, relativamente à arguição de nulidade de citação.
II – O tribunal a quo, não agiu com o costumeiro acerto, porquanto fundamentou a decisão acerca da nulidade da citação em dois pilares: falta de provas e inexistência de desrespeito às formalidades legais exigidas quando da citação.
III – A Recorrente comprovou, documentalmente, e de forma cabal, que não estava no país quando da citação por hora certa.
IV - O tribunal a quo entendeu que as provas eram singelas, e que a Recorrente viajava de forma frequente, o que, com a devida vênia, trata-se apenas de uma conjectura, sem o mínimo lastro probatório.
V - O tribunal a quo se furtou ao cumprimento de seu dever legal, uma vez que a gestão processual é um dever que compete ao juiz, mormente no que toca ao suprimento da falta de pressupostos processuais, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º, do Código de Processo Civil.
VI – Caso o tribunal a quo não entendesse que os documentos apresentados pela recorrente eram suficientes – como foi o caso – deveria ter diligenciado oficiosamente para se certificar que todos os pressupostos processuais restavam garantidos, porquanto seu dever, sob pena de violação da garantia de acesso aos tribunais, exegese do artigo 2.º do Código de Processo Civil.
VII – Limitou-se o tribunal a quo a delegar a sua responsabilidade à Recorrente, sob a alegação de que, uma vez que a alegação de falta de citação se traduz num facto extintivo do direito de crédito do Recorrido, o ónus da prova recaia sobre a Recorrente, o que se trata de um posicionamento equivocado.
VIII - A Recorrente invocou uma nulidade baseada na ausência de realização de um dos atos mais basilares do processo, que juntamente com a petição inicial e o tribunal competente formam a tríade fundamental do processo civil.
IX - Os efeitos da declaração de nulidade não extinguiriam o suposto direito do Recorrido, que nesta mesma demanda, repetido os atos declarados nulos, poderia continuar a perseguir o crédito que alega ter.
X - À Recorrente competia o ónus da alegação, ao passo que compete ao juiz a garantia dos pressupostos processuais.
XI - Não só arguiu tempestivamente a nulidade em discussão, assim como trouxe prova bastante de que o ato praticado pelo Exmo. Sr. Agente de Execução não respeitou os ditames legais.
XII – E pairando dúvidas ou havendo indícios de que a Recorrente alterava a verdade dos factos, no estrito cumprimento de seu dever de gestão processual, e como forma de garantir que a tutela jurisdicional era entregue aos litigantes com o devido respeito ao ordenamento jurídico, o tribunal a quo deveria ter diligenciado para confirmar junto à autoridade competente (SEF) se a Recorrente realmente estava fora do território nacional no citado período.
XIII – O tribunal a quo deixou de cumprir o seu dever de gestão processual, confirmando a ilegalidade perpetrada pelo Exmo. Sr. Agente de Execução, obstando à Recorrente o seu direito de resistir ao direito alegado pelo Recorrido.
XIV - A Recorrente esteve fora do território nacional no período compreendido entre 22 de janeiro de 2013 e 15 de setembro de 2018. O Exmo. Sr. Agente de Execução não tomou o devido cuidado para confirmar se a Recorrente e o executado AM ainda viviam no imóvel na data encimada.
XV – Poderia o Exmo. Sr. Agente de Execução, após efetuar pesquisa acerca do paradeiro dos executados, ter realizado a citação edital, o que formaria a relação processual dentro dos parâmetros conferidos pela lei processual civil.
XVI – O Sr. Agente de Execução praticou um ato deveras ilegal, causando enorme prejuízo à Recorrente, que sem qualquer possibilidade de defesa; ao passo que, com especial responsabilidade, o tribunal, quando alertado da ausência de tão importante pressuposto processual, não deu a resposta que lhe competia, permitindo a perpetração da ilegalidade.
XVII - Deve este tribunal ad quem conferir o devido reparo à decisão equivocada, dando provimento a este recurso, julgando procedente a reclamação e declarando nulos todos os atos praticados após a apresentação do requerimento executivo, pela falta de citação.
XVIII - Alternativamente, na remota hipótese de se entender que todos os elementos ainda não se fazem presentes para a decisão acerca da nulidade da citação, determinar que o tribunal a quo diligencie junto ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras para que se informe se a Recorrente adentrou no território nacional, ou no Espaço Schengen, no período compreendido entre 22 de janeiro de 2013 e 15 de setembro de 2018 (…)”.
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13. O recorrido contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida.
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14. O recurso foi liminarmente admitido, com efeito devolutivo, por despacho proferido em 23-11-2021.
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15. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, uma vez que nada a tal obsta.
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2. Questões a decidir:
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil (abreviadamente, CPC) - sem prejuízo das questões de que o tribunal deva conhecer oficiosamente e apenas estando adstrito a conhecer das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso - , as questões a decidir são as de saber:
A) Se o Tribunal recorrido não observou o dever de gestão processual que lhe incumbia?
B) Se a decisão que julgou improcedente a arguida nulidade de citação da executada deve ser revogada?
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3. Fundamentação de facto:
Com pertinência para a decisão do presente recurso e com fundamento nos actos praticados no presente processo, mostra-se assente a factualidade constante do relatório.
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4. Fundamentação de Direito:
De acordo com o disposto no artigo 637.º, n.º 2, do CPC, “versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar: a) As normas jurídicas violadas; b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas; c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Vejamos, pois, o recurso apresentado, apreciando as questões enunciadas.
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A) Se o Tribunal recorrido não observou o dever de gestão processual que lhe incumbia?
Invocou a recorrente nas suas alegações de recurso, nomeadamente, o seguinte:
“(…) 13. Para além de desconsiderar o valor probatório dos documentos apresentados, o tribunal a quo se furtou ao cumprimento de seu dever legal.
14. Com efeito, a gestão processual é um dever que compete ao juiz, mormente no que toca ao suprimento da falta de pressupostos processuais, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º, do Código de Processo Civil: 2 - O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.
15. Pese embora ser do entendimento da Recorrente que os documentos juntos com a reclamação eram bastantes para demonstração da nulidade processual, caso o tribunal a quo não entendesse desta forma – como foi o caso – deveria ter diligenciado oficiosamente para se certificar que todos os pressupostos processuais restavam garantidos, porquanto seu dever, sob pena de violação da garantia de acesso aos tribunais, exegese do artigo 2.º do Código de Processo Civil.
16. Limitou-se o tribunal a quo a delegar a sua responsabilidade à Recorrente, sob a alegação de que, uma vez que a alegação de falta de citação se traduz num facto extintivo do direito de crédito do Recorrido, o ónus da prova recaia sobre a Recorrente.
17. Contudo, este posicionamento é equivocado.
18. Com efeito, a Recorrente invocou uma nulidade baseada na ausência de realização de um dos atos mais basilares do processo, que juntamente com a petição inicial e o tribunal competente formam a tríade fundamental do processo civil.
19. A nulidade da citação não implica na extinção do direito do Recorrido. No caso concreto, o estado, na figura do Exmo. Sr. Agente de Execução, promoveu um ato categoricamente nulo. Os efeitos da declaração de nulidade não extinguiriam o suposto direito do Recorrido, que nesta mesma demanda, repetindo os atos declarados nulos, poderia continuar a perseguir o crédito que alega ter.
20. À Recorrente competia o ónus da alegação, e por boa fé e cooperação trazer elementos mínimos de sua alegação, uma vez que compete ao juiz a garantia dos pressupostos processuais.
21. Não só arguiu tempestivamente a nulidade em discussão, assim como trouxe prova bastante de que o ato praticado pelo Exmo. Sr. Agente de Execução não respeitou os ditames legais.
22. E pairando dúvidas ou havendo indícios de que a Recorrente alterava a verdade dos factos, no estrito cumprimento de seu dever de gestão processual, e como forma de garantir que a tutela jurisdicional era entregue aos litigantes com o devido respeito ao ordenamento jurídico, o tribunal a quo deveria ter diligenciado para confirmar junto à autoridade competente (SEF) se a Recorrente realmente estava fora do território nacional no citado período, sujeitando-a, inclusive, às consequências legais, caso tivesse trazido inverdades ao processo.
23. Todavia, o tribunal a quo não fora diligente, cingindo-se a ignorar as provas carreadas pela Recorrente e deixando, evidentemente, de cumprir o seu dever de gestão processual, confirmando a ilegalidade perpetrada pelo Exmo. Sr. Agente de Execução, obstando à Recorrente o seu direito de resistir ao direito alegado pelo Recorrido (…).
28. Doutra banda, e com especial responsabilidade, o tribunal, quando alertado da ausência de tão importante pressuposto processual não deu a resposta que lhe competia, permitindo a perpetração da ilegalidade.
29. Neste sentido decidiu recentemente o Supremo Tribunal de Justiça (processo 3250/19.2T8VCT-B.G1.S1, de 06/07/2021, disponível em www.dgsi.pt):
I – A falta de um pressuposto processual deixou de conduzir automaticamente à absolvição  da instância, que só tem lugar quando a sanação for impossível ou quando, dependendo ela da vontade da parte, esta se mantiver inativa perante o convite ao aperfeiçoamento.
II – A lei consagra, assim, um dever do juiz de providenciar pela sanação da falta de pressuposto processual que seja sanável.
III – Este dever não se reporta apenas aos casos previstos em disposições legais específicas, mas abrange todos os pressupostos cuja falta possa, por natureza, ser sanada, a fim de que sejam removidos todos os impedimentos da decisão de mérito (…)”.
No que se reporta à questão da atuação do dever de gestão processual e, de nesse âmbito, o Tribunal recorrido ter – ou não - o dever de confirmar junto do SEF se a Recorrente realmente estava fora do território nacional no período que referiu, importa caracterizar se o aludido dever de gestão importava para o juiz a vinculação a tal determinação, ou se, ao invés, tal não sucedia.
Vejamos:
A gestão do processo é a atuação do julgador destinada a conseguir, em tempo razoável, a justa composição do litígio.
Esta actuação tem o círculo de sub-deveres insertos no artigo 6.º do CPC:
- Direção ativa do processo;
- Providenciar pelo andamento célere dos autos;
- Suprimento da falta de pressupostos sanáveis;
- Promoção oficiosa das diligências necessárias ao normal prosseguimento da causa;
- Adotar, após audição das partes, mecanismos de simplificação e agilização processual.
“O dever de gestão processual procura ajudar a solucionar a “equação processual”: uma decisão justa do processo com os menores custos, a maior celeridade e a menor complexidade que forem possíveis no caso concreto” (assim, Miguel Teixeira de Sousa; “Apontamentos sobre o princípio da gestão do processual no novo Código de Processo Civil”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 43, 2013).
O artigo 6.º do CPC, embora integrado no Título do CPC atinente aos princípios fundamentais do processo civil é configurado como um “dever” do juiz, o que inculca uma especial responsabilidade de actuação deste na procura da boa gestão processual.
A gestão processual consiste na direcção ativa e dinâmica do processo, tendo em vista a rápida e justa resolução do litígio e a melhor organização do trabalho do tribunal (assim, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro; Primeiras Notas ao CPC, Vol. I, 2013, p. 30).
Estas duas perspetivas são fundamentais e acompanham qualquer reflexão sobre a gestão processual: A justa composição do litígio do caso concreto (visão micro) e a melhor organização do trabalho do tribunal (visão macro).
Sem prejuízo do «ónus de impulso» processual das partes – dispositivo – o juiz deve:
a) Dirigir ativamente o processo (trata-se de uma expressão inovadora face ao 265.º, n.º 1, do CPC revogado);
b) Providenciar pelo seu andamento célere;
c) Promover as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação;
d) Recusar o que for impertinente ou meramente dilatório;
e) Adotar, ouvidas as partes, mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam, em prazo razoável, a justa composição do litígio (trata-se de uma expressão inovadora face ao 265.º, n.º 1, do CPC revogado);
f) Providenciar oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais sanáveis, com duas condutas:
- Determinando os atos necessários para a regularização da instância; ou,
- Quando a sanação dependa de ato das partes, convidando estas a praticá-lo.
Assim, por exemplo, “cumpre ao juiz – no âmbito do seu dever de gestão processual – providenciar ex-officio pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a prática dos atos necessários à regularização da instância, ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-los (artº 6º, n.º 2, ex vi da al. a) do n.º 2 do artº 590º); isto (sem que tal acarrete necessariamente a inutilidade de todo o processado anterior), em ordem à remoção de todos os obstáculos ao proferimento de uma decisão de mérito” (assim, Francisco Ferreira de Almeida; Direito Processual Civil, vol. II, Almedina, 2015, p. 177).
A gestão processual visa diminuir os custos, o tempo e a complexidade de tramitação do procedimento.
A adequação pode comportar a substituição da tramitação legal (v.g. tramitação autónoma e prévia de uma questão incidental, para que a decisão dessa questão não torne inúteis todos os demais actos praticados na acção) ou a adaptação ou modificação da tramitação legal (testemunha ouvida antes de outras, julgamento sem aguardar a prova pericial, autorização de cumulação de pedidos).
Nas acções de valor não superior a metade da alçada da relação – cfr. art. 597º do CPC - a adequação traduz-se na escolha de uma ou várias alternativas de entre as opções concedidas ao juiz: Pode haver audiência prévia, despacho a programar a audiência final, designar dia para julgamento mediante prévio acordo de datas com os mandatários.
A adequação formal exige a prévia audição das partes e, se esta não tiver lugar ocorre uma nulidade processual (cfr. art. 195.º, n.º 1, do CPC).
Os limites da adequação determinam o respeito pelos princípios da igualdade e contraditório, o não afastamento de regras imperativas, a garantia de que a tramitação deve continuar a observar um processo equitativo, deve haver um standard mínimo de tramitação respeitado em qualquer processo, a adequação não pode contender com a aquisição processual de factos, nem com a admissibilidade de meios probatórios (cfr. artigo 630.º, n.º 2, do CPC).
Em síntese: “A gestão processual visa diminuir os custos, o tempo e a complexidade do procedimento, e pressupõe um juiz empenhado na resolução célere e justa da causa.
A gestão processual comporta:
- um aspeto substancial, que se expressa no dever de condução do processo que recai sobre o juiz, dever que é justificado pela necessidade de este providenciar pelo andamento célere do processo, devendo, para a obtenção desse fim, promover as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação e recusar o que for impertinente ou meramente dilatório (art. 6.º, n.º 1, do C.P.C.); pode, neste caso, pode falar-se de um poder de “direção do processo” e de um poder de “correção do processo”;
- um aspeto instrumental ou adequação formal, no âmbito do qual o dever de gestão processual procura ajudar a solucionar a “equação processual”, ou seja, uma decisão justa do processo com os menores custos, a maior celeridade e a menor complexidade que forem possíveis do caso concreto (art. 547.º, do C.P.C.)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05-07-2018, Pº 4508/10.1TBOER-B.L1-7, rel. JOSÉ CAPACETE).
Conforme evidencia Miguel Dinis Pestana Serra (“O dever de Gestão Processual no Código de Processo Civil de 2013”, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade Lusófona do Porto, Porto, v.5, n.5 (2014), pp. 101-103, disponível no endereço: http://revistas.ulusofona.pt/index.php/rfdulp/article/view/4980/3294): “Ao Juiz é atribuído o dever/poder de direção, agilização, adequação e gestão processual, sempre respeitando os princípios estruturantes do processo civil, como já se referiu. Partindo destas ideias basilares diremos que o Dever de Gestão é concretizado, por exemplo:
- No que diz respeito à forma do processo, o Juiz tem o dever de corrigir oficiosamente o erro na qualificação do meio processual utilizado pela parte (artigo 193º n.º 3 cpc). Cabe ao autor indicar a forma de processo, na petição inicial (artigo 552º n.º 1 al c) do cpc), mas se este não escolher a forma adequada, o Juiz irá corrigi-la, não se anulando os atos processuais anteriormente praticados que puderem ser aproveitados (artigo 193º n.º 1 do cpc).
- Ainda dentro do âmbito dos poderes de adequação formal (…): O Juiz tem o dever de adotar a tramitação processual adequada às especificidades da causa. O Juiz poderá dispensar a prática de atos processuais que se revelam desnecessários. Pode também substituir atos processuais por outros, que se revelam mais adequados às especificidades da causa ou inclusive adicionar atos não previstos. Por outro lado, o Juiz tem também o dever de adaptar o conteúdo e a forma dos atos processuais ao fim que visam acreditar (artigo 547º cpc). A este propósito Lebre de Freitas bem refere que "a adequação formal não tem só lugar quando a tramitação legal não se adeque (em absoluto) ao caso concreto; deve ter também lugar quando, embora adequada, outra haja que melhor se adeque"8.
- O Dever de Gestão é concretizado ainda, em diversos preceitos do Código de Processo Civil. Releva o artigo 590º do cpc (Gestão Inicial do Processo), no âmbito da intervenção do Juiz na fase anterior à audiência prévia, devendo providenciar pelo suprimento das exceções dilatórias, pelo aperfeiçoamento dos articulados e inclusive determinar a junção de documentos para conhecimento de exceções ou do seu mérito (…).
- O Juiz também pode retificar lapsos de escrita ou de cálculo (artigo 146º n.º 1 do cpc) podendo, embora com limitações, com base num requerimento da parte, admitir o suprimento ou correção de vícios ou omissões formais de atos praticados (artigo 146 º n.º 2 do cpc). Igualmente o Juiz poderá nos termos do artigo 267º do cpc ordenar a apensação de ações.”.
Na “reclamação” apresentada pela recorrente, a mesma veio arguir a questão da nulidade da citação, não tendo, para além dos elementos constantes dos autos, apresentado ou requerido a produção de qualquer outra prova.
A contraparte pronunciou-se pelo indeferimento da reclamação.
No caso, teve lugar a arguição da nulidade da citação pela executada, pelo que, tal como se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20-10-2016 (Pº 1392/13.7TBFAR-A.E1, rel. MANUEL BARGADO), “a arguição da nulidade de ato processual constitui, no caso, um incidente da instância”.
Os incidentes da instância constituem sequências de atos que exorbitam da tramitação normal do processo e têm, por isso, carácter eventual, visando a resolução de determinadas questões que, embora sempre de algum modo relacionadas com o objeto do processo, não fazem parte do encadeado lógico necessário à resolução do pleito tal como ele é inicialmente desenhado pelas partes (assim, Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Duarte; Código de Processo Civil Anotado, 2008, vol. 1º, Coimbra Ed., p. 180).
A previsão de qual a tramitação geral a que obedece a apreciação e decisão de um incidente da instância resulta do disposto no artigo 292.º do CPC, onde se prescreve que, “em quaisquer incidentes inseridos na tramitação de uma causa observa-se, na falta de regulamentação aplicável, o que vai disposto neste capítulo” [o qual contém as disposições dos artigos 292.º a 295.º do CPC].
Nos termos do artigo 293.º, n.º 1 do CPC, “no requerimento em que se suscite o incidente (…) devem as partes oferecer o rol de testemunhas e requerer os outros meios de prova”.
Conforme dão nota Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 339), “os incidentes da instância configuram procedimentos de natureza declarativa cujo esquema comporta três momentos: o inicial, destinado à apresentação do requerimento e da oposição, o da audiência, que comporta a produção de prova e alegações orais; e o da decisão. As linhas estruturantes são definidas nos arts. 293.º, 294.º e 295.º, disposições a observar em quaisquer incidentes que surjam na pendência de uma causa, salvo havendo regulamentação especial que deva prevalecer”.
No requerimento em que arguiu a falta de citação, sobre o ponto em apreço, a recorrente referiu singelamente que: “14. A executada não teve conhecimento do ato de citação. E a assertiva de que já há muito estava ausente é facilmente comprovada pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, porquanto a executada é cidadã estrangeira e o seu trânsito de entrada e saída do espaço Schengen é armazenado nas bases de dados”.
Mas, a recorrente não requereu qualquer prova sobre tal aspeto.
De facto, a recorrente juntou aos autos apenas a cópia do auto de notícia elaborado pelo SEF (de onde resulta ter-se sido aplicada coima por se ter apresentado em 22-01-2013 a pretender sair do país, para além dos 90 dias de autorização de permanência que lhe tinha sido concedida, por ter entrado em Portugal em 17-01-2011) e fotocópia do passaporte (de onde consta carimbo de entrada em 15-09-2018), não tendo requerido fosse obtida alguma informação ou documento ao SEF, pretensão que só vem a formular em sede de recurso.
Conforme se lê na decisão recorrida, o Tribunal expressou, precisamente, tal ausência de requerimento probatório alinhando a insuficiência probatória para concluir pelo deferimento do pretendido pela “reclamante”, o que fez nos seguintes termos:
“(…) Alegou a executada que não corresponde à verdade que residisse naquela morada na data em que a citação foi efetuada, porquanto se encontrava no Brasil, para onde foi em 22.01.2013, só regressando a Portugal em 15.09.2018.
Para prova dessa matéria limitou-se a juntar cópia de auto de notícia elaborado pelo SEF, do qual resulta ter-lhe sido aplicada uma coima por se ter apresentado em 22.01.2013 no Aeroporto de Lisboa, com intenção de sair do território nacional, para além dos 90 dias da autorização de permanência que lhe havia sido concedida, uma vez que tinha entrado em Portugal em 17.01.2011. E fotocópia do seu passaporte, do qual consta carimbo de entrada no território nacional em 15.09.2018.
Ora, destes singelos elementos não resulta demonstrado que em 04.10.2014 a executada não residisse na morada onde a citação foi concretizada.
Apenas resulta que, em 17.01.2011, entrou em território nacional, que em 22.01.2013 se apresentou no Aeroporto de Lisboa com a intenção de sair, desconhecendo-se se efetivamente o fez, e que, em 15.09.2018, voltou a entrar em Portugal. Mesmo a admitir-se ser verdade que tenha viajado para o Brasil em 22.01.2013, nada impedia que a executada tivesse regressado depois a Portugal e que, em 04.10.2014, residisse na morada onde foi concretizada a citação. Tudo indica, aliás, que as viagens da executada fossem frequentes, tanto mais que em 22.07.2010, antes portanto da data de entrada constante do documento junto, esteve comprovadamente presente no Cartório Notarial de Odivelas, onde celebrou a escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca que foi dada à execução, através da qual adquiriu, conjuntamente com executado AM, o imóvel onde a citação foi concretizada, para habitação de ambos.
A executada não juntou outra prova do alegado, sendo certo que, nos termos do art. 293.º, n.º 1, do Código de Processo Civil – diploma a que respeitam todos os normativos legais sem menção de fonte diversa –, era com o requerimento que o deveria ter feito”.
Conforme decorre do exposto, seria com o requerimento que desencadeou a questão incidental da arguição da falta da citação, que a ora recorrente deveria ter requerido, se o entendesse pertinente para a prova da sua alegação, a aludida requisição de elementos ao SEF, o que, como se viu, não ocorreu.
No caso, a recorrente veio arguir a falta da citação com fundamento no artigo 188.º, n.º 1, al. e) do CPC, que prescreve que há falta de citação “quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável”.
Será que o Tribunal deveria ter oficiosamente suprido tal omissão da requerente? Que é o mesmo que questionar: Existia dever de gestão processual de assim proceder?
Ora, no caso, ao invés do pugnado pela recorrente, não se afigura que, para observar um tal dever de gestão processual, o Tribunal estivesse vinculado a emitir um despacho no sentido de determinar a diligência de obtenção de informações ao SEF sobre a executada.
Na realidade, a situação em apreço não envolvia a atuação de qualquer dos subdeveres consignados na lei a respeito do dever de gestão processual que implicassem uma composição do litígio diversa e mais justa.
É que, ao invés do invocado pela recorrente não resulta dos autos que devesse o juiz realizar uma diligência probatória como a pretendida pela recorrente, no sentido de que a mesma se evidenciasse enquanto determinante para a tomada de decisão sobre a questão suscitada pela reclamante.
A atuação do juiz dirigindo ativamente o processo, providenciando pela sua célere tramitação, promovendo as diligências necessárias ao normal prosseguimento da causa, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual, bem como, determinando o suprimento da falta de pressupostos processuais sanáveis, não determina que o juiz deva atuar de forma a suprir a inércia ou a não atuação das partes, quando esta é exigível, como sucede no caso de lhes ser imposto que deduzam as pretensões de que se arrogam titulares e de requerer os meios de prova atinentes à demonstração das mesmas.
Na realidade, conforme se afirmou com clareza no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19-11-2020 (Pº 26/12.1TBAFE-C.G1, rel. JORGE TEIXEIRA): “O princípio da cooperação deve ser conjugado com o princípio da auto-responsabilidade das partes, que não comporta o suprimento por iniciativa do juiz da omissão de articulação de factos estruturantes da causa no momento processualmente adequado. Assim, a amplitude de poderes/deveres decorrentes do principio do inquisitório não significa que o juiz tenha a exclusiva responsabilidade pelo desfecho da causa, pois que, associada a ela está a responsabilidade das partes, sobre as quais a lei faz recair ónus, inclusive no domínio probatório, que se repercutem em vantagens ou desvantagens para as mesmas e que, por isso, aquelas têm interesse directo em cumprir. Por consequência, neste contexto, a investigação oficiosa não deve ser exercida com a finalidade da parte poder contornar a preclusão processual decorrente da sua inércia, uma vez que o exercício dos poderes de investigação oficiosa do tribunal pressupõe que as partes cumpriram minimamente o ónus que sobre elas prioritariamente recai de indicarem tempestivamente as provas de que pretendem socorrer-se para demonstrarem os factos cujo ónus probatório lhes assiste”.
Não decorre da atuação da executada que a mesma tenha observado, em termos mínimos, o ónus de alegação ou prova dos factos que agora pretende comprovar.
Com efeito, limitou-se a executada a afirmar a possibilidade de ser colhida informação junto do SEF sobre o seu trânsito de entrada e saída no espaço Schengen, sem, contudo, daí ter retirado qualquer ilação probatória.
Neste contexto, na apreciação da questão incidental que lhe foi submetida, o Tribunal recorrido não teria que desencadear todo e qualquer mecanismo para investigação de factos que, em primeira linha, a executada não se preocupou em demonstrar.
Nesta linha, a apreciação do incidente de falta de citação, nos termos em que o mesmo resultou da controvérsia havida entre as partes, na decorrência da arguição pela recorrente e da contra-pronúncia pela recorrida, não merece qualquer reparo, inserindo-se no âmbito da atuação exigível e expetável ao Tribunal, com vista ao cumprimento da obrigação de tutela jurisdicional que se encontrava a seu cargo (cfr. artigo 2.º do CPC).
De facto, da conjugação do disposto nos artigos 2.º, 3.º, 5.º, 6.º, 7.º, 547.º e 590.º do CPC resulta que “a desejada intervenção do Tribunal, ao nível da própria matéria de facto, não deve esquecer que a natureza dessa intervenção é essencialmente subsidiária, não no sentido de que exista neste plano uma concorrência de atribuições, mas no sentido de que com ela se pretende superar supletivamente as evidentes deficiências em que as partes incorreram visto que, no processo civil, as partes continuam a dispor do soberano poder de instaurar ou de não instaurar o pleito, de alegar os factos essenciais e de fixar a causa de pedir (artigo 5.º/1) (…) e finalmente de pôr termo ao litígio, em regra livremente, por desistência confissão ou transação (…).
A cooperação do Tribunal, exercida no âmbito de um princípio de subsidiariedade que não está expresso na lei processual mas flui da sua intrínseca filosofia e da natureza das coisas, traduz-se num esforço acrescido sobre os serviços judiciais e sobre entidades estranhas ao Tribunal que com ele devem colaborar e que obviamente tem consequências no tempo de duração do processo; o juiz, cada vez mais interveniente e, por conseguinte, mais afastado da função exclusiva de valoração dos factos e aplicação do Direito, assume um risco acrescido visto que não se pode deixar de reconhecer que a intervenção do Tribunal implica sempre uma margem de erro.
A intervenção do Tribunal no âmbito da definição da matéria de facto relevante e subsequente apreciação dos factos obriga ainda o juiz a um acentuado cuidado na preservação da sua imparcialidade; impõe-se-lhe assegurar, a par da sua intervenção no mundo complexo dos factos que lhe permite diligenciar pela obtenção de meios de prova, a conveniente e necessária equidistância entre as partes litigantes.” (assim, Salazar Casanova; “A Janela de Oportunidade do Novo Código de Processo Civil”, in Julgar, n.º 23, 2014, Coimbra Editora, p. 14).
Apreciando as diversas situações passíveis de contenderem com a atuação de poderes do Tribunal e, em particular, quanto à situação em que uma parte requeira ao Tribunal a realização de uma diligência probatória que tempestivamente omitiu, refere Nuno Lemos Jorge (“Os poderes instrutórios do juiz: Alguns problemas”, in Julgar, n.º 3, 2007, Coimbra Editora, p. 70) o seguinte: “(…) A exposição anterior permite, desde já, tomar posição sobre o caso em que uma parte pretende que seja realizada uma diligência instrutória, sem que ela própria tenha providenciado pela satisfação do seu ónus probatório. Imagine-se que, não tendo apresentado rol de testemunhas, o autor, pretende, na audiência, que seja ouvida certa pessoa, alegando que ela conhece factos relevantes para a causa. Por regra, um tal circunstancialismo conduzirá à conclusão de que a parte pretende apenas colmatar a falta de cumprimento de um ónus probatório no momento processualmente adequado, não devendo o juiz atender tal pretensão, sob pena de desvirtuar o sistema legalmente previsto de preclusões processuais. (…) a necessidade de promoção de diligências probatórias pelo juiz deve resultar do normal desenvolvimento da lide. Se foi a própria parte a negligenciar os seus deveres de proposição da prova, não seria razoável impor ao tribunal o suprimento dessa falta (…).”.
E, se assim é, não se pode dizer que o Tribunal tenha incumprido algum dever de gestão processual, pela simples circunstância de não ter determinado a produção probatória que, ulteriormente, a parte venha a entender pertinente, mas que, no momento devido e até encerrada a instrução probatória do incidente, não formulou ou considerou necessária.
No caso, não nos deparamos com uma situação que determinasse qualquer aperfeiçoamento do articulado, ou que demandasse o suprimento de alguma exceção dilatória ou a junção de documento essencial ao conhecimento de uma exceção dilatória ou do mérito (cfr. artigo 590.º, n.ºs. 2 a 4, do CPC), mas sim de um ónus processual – da parte carrear para o processo as provas que considerasse necessárias e pertinentes para possibilitar ao julgador a apreciação do incidente suscitado - prévio à apreciação pretendida obter do Tribunal sobre a questão da falta de citação, relativamente ao qual a lei não prevê que, no caso de não ser observado, possa ser ultrapassado de forma ou em fase ulterior.
Pode concluir-se que, em face do que resulta dos autos, não se mostra incumprido o dever de gestão processual – artigo 6.º do CPC – pois, não se alcança da atuação do Tribunal, alguma omissão do dever de o juiz dirigir ativamente o processo, de providenciar pelo seu andamento célere, de promover as diligências necessárias ao seu normal prosseguimento, de adotar mecanismos de simplificação e agilização processual ou de suprir pressupostos processuais suscetíveis de sanação.
Se, como sucedeu no caso, o juiz não determina diligência probatória que, não se afigura, em si mesma, essencial ou determinante para a decisão do incidente da falta de citação – em si mesmo ocorrência que exorbita da tramitação normal do processo e que tem caráter eventual - de acordo com a controvérsia resultante das posições apresentadas pelas partes, não se poderá afirmar alguma inobservância do dever de gestão processual exigível, por não competir ao julgador suprir a inércia da parte no cumprimento do ónus processual que primariamente lhe competia.
E, assim, não procedem, neste conspecto, as atinentes conclusões da apelante.
*
B) Se a decisão que julgou improcedente a arguida nulidade de citação da executada deve ser revogada?
A recorrente pugna pela revogação da decisão recorrida tendo, quanto ao mais, invocado nas alegações de recurso o seguinte:
“24. (…) A Recorrente esteve fora do território nacional no período compreendido entre 22 de janeiro de 2013 e 15 de setembro de 2018. O Exmo. Sr. Agente de Execução não tomou o devido cuidado para confirmar se a Recorrente e o executado AM ainda viviam no imóvel.
25. Acredita-se que se assenhorou de informações equivocadas e enveredou para realização da citação por hora certa. Contudo, evidentemente os executados não mais viviam no local, quiçá viviam no país.
26. Poderia o Exmo. Sr. Agente de Execução, após efetuar efetiva pesquisa acerca do paradeiro dos executados, ter realizado a citação edital, o que formaria a relação processual dentro dos parâmetros conferidos pela lei processual civil.
27. Entretanto, praticou um ato deveras ilegal, causando enorme prejuízo à Recorrente, que sem qualquer possibilidade de defesa, teve o seu bem vendido e ainda é devedora de vultosa quantia.
30. Portanto, deve este tribunal ad quem conferir o devido reparo à decisão equivocada, dando provimento a este recurso, julgando procedente a reclamação e declarando nulos todos os atos praticados após a apresentação do requerimento executivo, pela falta de citação.
31. Alternativamente, na remota hipótese de se entender que todos os elementos ainda não se fazem presentes para a decisão acerca da nulidade da citação, determinar que o tribunal a quo diligencie junto ao Serviço de Estrangeiros e Fronteiras para que se informe se a Recorrente adentrou no território nacional, ou no Espaço Schengen, no período compreendido entre 22 de janeiro de 2013 e 15 de setembro de 2018 (…).”.
Contrapôs o recorrido, na sua contra-alegação, o seguinte:
“A executada /ora Recorrente vem alegar a falta de citação, porque deixou o território nacional no dia 22-01-2013, retornando ao Brasil, seu país de origem, só voltando a Portugal em 15-09-2018, pelo que na data da citação, não residia no local onde a citação foi concretizada.
Contudo, os únicos documentos juntos, não são susceptiveis de provar o alegado.
Ora. Vejamos,
Nos termos que nos são elucidados pelo Douto Acórdão de 13-07-2020 do Tribunal da Relação de Coimbra, no processo n.º 1186/19.6T8CBR-B.C1, relator: Luís Cravo: “(…) IV –Contudo, em conformidade com o ínsito no artigo 188, n.º 1 alínea e) (cuja aplicação está ressalvada na 1ª parte do n.º 1 do artigo 191.º do mesmo n.C.P.Civil), para que ocorra nulidade da citação é necessário que o respectivo destinatário alegue e demonstre que não chegou a ter conhecimento do acto por motivo que não lhe foi imputável. (sublinhado nosso).
Resulta claro para a Jurisprudência que não basta a mera alegação da qual a Recorrente se pretende fazer valer, é necessária, a demonstração, a prova dessa alegação, o que não se extrai quer da reclamação de acto, quer do douto recurso ora interposto.
Citando a douta decisão do tribunal a quo, “a ora Recorrente para prova dessa matéria limitou-se a juntar cópia de auto de notícia elaborado pelo SEF, do qual resulta ter-lhe sido aplicada uma coima por se ter apresentado em 22.01.2013 no Aeroporto de Lisboa, com intenção de sair do território nacional, para além dos 90 dias da autorização de permanência que lhe havia sido concedida, uma vez que tinha entrado em Portugal em 17.01.2011. E fotocópia do seu passaporte, do qual consta carimbo de entrada no território nacional em 15.09.2018”.
“Ora, destes singelos elementos não resulta demonstrado que em 04.10.2014 a executada não residisse na morada onde a citação foi concretizada”.
“Apenas resulta que, em 17.01.2011, entrou em território nacional, que em 22.01.2013 se apresentou no Aeroporto de Lisboa com a intenção de sair, desconhecendo-se se efetivamente o fez, e que, em 15.09.2018, voltou a entrar em Portugal”.
E ressalve-se que o Sr. Agente de Execução apurou com a vizinhança que os Executados residiam no local onde foi efectuada a citação.
Neste sentido Vide “ Ac. do TRG de 10.07.2018 Falta de citação - A falta de citação a que alude a alínea a) do n.º 1 do artigo 188º do Código de Processo Civil ocorre quando a pessoa que devia ser citada não o é, verificando-se quanto a esta a falta de citação, por o citado não ser a pessoa que o autor indicou na petição inicial, não se confundindo o erro de identidade do citado com a citação em pessoa diversa do réu (cfr. artigo 228º n.º 2) e nem com a incorrecta identificação do réu na petição inicial. Para que ocorra a falta de citação a que alude a alínea e) do n.º 1 do artigo 188º do Código de Processo Civil é necessário que se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do acto e que essa falta de conhecimento não lhe é imputável, permitindo-se ao citando demonstrar que não chegou a ter conhecimento da citação antes do termo do prazo da defesa.” (sublinhado nosso) (…).
(…) conforme extraído dos elementos constantes do processo, carreados pelo próprio Agente de Execução que o mesmo confirmou a residência da ora Recorrente na referida morada” Confirmei junto da vizinhança que os executados residem no local”.
Questiona-se o ora Recorrido, se de facto existisse outra morada, não haveriam documentos comprovativos, contas de fornecimento de serviços e/ou telecomunicações, declaração da junta de freguesia… documentos idóneos que pudessem ser juntos aos autos como prova do alegado, ainda, que a residência ocorresse em pais estrangeiro.
Nenhum documento suscetível de configurar meio de prova foi carreado pela ora Recorrente, quer na reclamação de acto, quer nas suas alegações de recurso.
Alegou, ainda, a Recorrente, no douto recurso apresentado “As provas existentes para demonstração da nulidade da citação, por falta de citação, estão explícitas”.
Aqui chegados importa clarificar os conceitos jurídicos invocados.
Neste sentido, Vide o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 2/10/2003, proc 03B2478. "Ora, são realidades processuais distintas, constituindo vícios diferentes da citação, a falta e a nulidade desta. A falta de citação, prevista no artº. 194º e caracterizada no artº. 195º, não se confunde com a nulidade da citação, que tem previsão no artº. 198º/1.
Porque diferentes, bem se entende que diferente seja também o regime de uma e outra. Enquanto a primeira acarreta a anulação de tudo o que se processe depois da petição inicial, salvando-se apenas esta, a mera nulidade da citação pode não importar a anulação de coisa alguma: a arguição só será atendida - diz o artº. 198º/4 - se a falta cometida puder prejudicar a defesa do citado. Diferente é também o prazo para a arguição de cada um dos vícios.
A falta de citação pode ser arguida em qualquer estado do processo, enquanto não dever considerar-se sanada (artº. 204º/2); mas considera-se sanada se o réu intervier no processo sem arguir logo tal falta (artº. 196º). Já a nulidade da citação terá de ser arguida no prazo indicado para a contestação, ou - no caso de citação edital ou não tendo sido indicado prazo para a defesa - quando da primeira intervenção do citado no processo”.
Concluindo-se, também, que a Recorrente já não estaria em prazo para a arguição da nulidade de citação.
E, não verifica o Exequente que assista razão à ora Recorrente de que o Agente de Execução deveria ter lançado mão da citação edital e aqui, mais uma vez, lançaremos mão do vertido na lei processual civil portuguesa.
Dispõe o art.º 236, n.º 1 do CPC “Quando seja impossível a realização da citação por o citando estar ausente em parte incerta (….) ”, e ainda, o art.º 240.º do CPC – “ A citação edital determinada pela incerteza do lugar em que o citando se encontra é feita por afixação de edital (…) “.
No âmbito da lei processual civil vigente não se verifica a omissão de qualquer formalidade legal, para a arguição da nulidade de citação, mais uma vez, torna-se imperioso reforçar em prol da boa decisão da causa que não foram preludiadas quaisquer formalidades, uma vez não estavam reunidos os pressupostos para a citação edital, a partir do momento em que foi atestado pela vizinhança conhecerem os executados e afirmarem que os mesmos residiam no local.
Em síntese da subsunção dos factos ao direito carreados para os presentes autos é possível extrair que não ocorreu qualquer nulidade processual (…)”.
Vejamos:
Dispõe o artigo 219.º do CPC (na redação dada pelo D.L. n.º 97/2019, de 26 de julho – com a epígrafe “Funções da citação e da notificação” – o seguinte:
“1 - A citação é o ato pelo qual se dá conhecimento ao réu de que foi proposta contra ele determinada ação e se chama ao processo para se defender; emprega-se ainda para chamar, pela primeira vez, ao processo alguma pessoa interessada na causa.
2 - A notificação serve para, em quaisquer outros casos, chamar alguém a juízo ou dar conhecimento de um facto.
3 - A citação e as notificações são sempre acompanhadas de todos os elementos e de cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessários à plena compreensão do seu objeto.
4 - Quando as citações e as notificações forem realizadas por via eletrónica:
a) Podem ser efetuadas através do envio de informação estruturada respeitante à identificação do processo e da interoperabilidade entre o sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais e o sistema de informação do citando ou notificando;
b) Os elementos e cópias referidos no número anterior podem constar de outro suporte eletrónico acessível ao citando ou notificando (…)”.
Por seu turno, estabelece o artigo 225.º, nºs. 1 e 2, do CPC, acerca das modalidades de citação, que:
“1 - A citação de pessoas singulares é pessoal ou edital.
2 - A citação pessoal é feita mediante
a) Via eletrónica, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º;
b) Entrega ao citando de carta registada com aviso de receção, seu depósito, nos termos do n.º 5 do artigo 229.º, ou certificação da recusa de recebimento, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo;
c) Contacto pessoal do agente de execução ou do funcionário judicial com o citando”.
Importa referir, desde já – assim se rebatendo uma das objeções adiantadas pela recorrente em contrário – que a citação edital de pessoa singular apenas é admissível nos casos em que não se mostre viável, por alguma das modalidades legalmente previstas na lei, a citação pessoal (cfr., neste sentido, v.g., o Ac. do STJ de 15-05-1979, in BMJ 287.º, p. 226 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05-11-1992, Pº 0045526, rel. RODRIGES CODEÇO: “Sempre que haja a possibilidade de efectuar a citação pessoal, a citação edital é inadmissível; A citação edital só funciona em dois casos: a) Quando o Réu é incerto; b) Quando se encontre ausente em parte incerta. Para que a citação edital seja accionada à verificação formal da ausência há-de corresponder a verificação real desta”).
A citação de pessoa singular por via postal encontra-se prevista no artº. 228º do CPC.
Por seu turno, a citação por contacto pessoal do agente de execução encontra-se regulada no artigo 231.º do CPC, preceito onde se dispõe o seguinte:
“1 - Frustrando-se a via postal, a citação é efetuada mediante contacto pessoal do agente de execução com o citando.
2 - Os elementos a comunicar ao citando, nos termos do artigo 227.º, são especificados pelo próprio agente de execução, que elabora nota com essas indicações para ser entregue ao citando.
3 - No ato da citação, o agente de execução entrega ao citando a nota referida no número anterior, bem como o duplicado da petição inicial, recebido da secretaria e por esta carimbado, e a cópia dos documentos que a acompanhem, e lavra certidão, que o citado assina.
4 - Recusando-se o citando a assinar a certidão ou a receber o duplicado, o agente de execução dá-lhe conhecimento de que o mesmo fica à sua disposição na secretaria judicial, mencionando tais ocorrências na certidão do ato.
5 - No caso previsto no número anterior, a secretaria notifica ainda o citando, enviando-lhe carta registada com a indicação de que o duplicado nela se encontra à sua disposição.
6 - O agente de execução designado pode, sob sua responsabilidade, promover a citação por outro agente de execução, ou por um seu empregado credenciado pela entidade com competência para tal nos termos da lei.
7 - Nos casos em que a citação é promovida por um empregado do agente de execução, nos termos do número anterior, a citação só é válida se o citado assinar a certidão, que o agente de execução posteriormente também deve assinar.
8 - A citação por agente de execução tem também lugar, não se usando previamente o meio da citação por via postal, quando o autor assim declare pretender na petição inicial (…)
11 - Aplica-se à citação por agente de execução o disposto no n.º 2 do artigo 226.º.”.
Quanto à citação com hora certa dispõe o artigo 232.º do CPC o seguinte:
“1 - No caso referido no artigo anterior, se o agente de execução ou o funcionário judicial apurar que o citando reside ou trabalha efetivamente no local indicado, não podendo proceder à citação por não o encontrar, deve deixar nota com indicação de hora certa para a diligência na pessoa encontrada que estiver em melhores condições de a transmitir ao citando ou, quando tal for impossível, afixar o respetivo aviso no local mais indicado.
2 - No dia e hora designados:
a) O agente de execução ou o funcionário faz a citação na pessoa do citando, se o encontrar;
b) Não o encontrando, a citação é feita na pessoa capaz que esteja em melhores condições de a transmitir ao citando, incumbindo-a o agente de execução ou o funcionário de transmitir o ato ao destinatário e sendo a certidão assinada por quem recebeu a citação.
3 - Nos casos referidos na alínea b) do número anterior, a citação pode ser feita nos termos dos n.ºs 6 e 7 do artigo anterior.
4 - Não sendo possível obter a colaboração de terceiros, a citação é feita mediante afixação, no local mais adequado e na presença de duas testemunhas, da nota de citação, com indicação dos elementos referidos no artigo 227.º, declarando-se que o duplicado e os documentos anexos ficam à disposição do citando na secretaria judicial.
5 - Constitui crime de desobediência a conduta de quem, tendo recebido a citação, não entregue logo que possível ao citando os elementos deixados pelo funcionário, do que será previamente advertido; tendo a citação sido efetuada em pessoa que não viva em economia comum com o citando, cessa a responsabilidade se entregar tais elementos a pessoa da casa, que deve transmiti-los ao citando.
6 - Considera-se pessoal a citação efetuada nos termos dos n.ºs 2 e 4.”.
Por fim, no que se reporta à advertência ao citando, quando a citação não haja sido na própria pessoa deste, refere-se no artigo 233.º do CPC que:
“Sempre que a citação se mostre efectuada em pessoa diversa do citando, em consequência do disposto no n.º 2 do artigo 228.º e na alínea b) do n.º 2 do artigo anterior, ou haja consistido na afixação da nota de citação nos termos do n.º 4 do artigo anterior, sendo ainda enviada, pelo agente de execução ou pela secretaria, no prazo de dois dias úteis, carta registada ao citando, comunicando-lhe:
a) A data e o modo por que o acto se considera realizado;
b) O prazo para o oferecimento da defesa e as cominações aplicáveis à falta desta;
c) O destino dado ao duplicado; e
d) A identidade da pessoa em quem a citação foi realizada”.
Refere Lebre de Freitas (A Ação Declarativa Comum à luz do código de processo civil de 2013, 4.ª ed., 2017, pp. 77-79) que o “desejável seria que, para haver a certeza de que o réu toma efectivo conhecimento da ação, a citação se fizesse por contacto pessoal do funcionário dela encarregado”, acrescentando que “a complexidade das relações sociais hodiernas tem levado a recorrer, cada vez mais insistentemente, a modalidades de citação que não podem garantir com o mesmo grau de segurança que o réu tome conhecimento da ação contra ele proposta”.
De acordo com o disposto no artigo 187.º, al. a) do CPC, é nulo tudo quanto se processe depois da petição inicial (salvando-se apenas esta) se o réu não tiver sido citado.
Há falta de citação se o ato tiver sido completamente omitido, se tiver havido erro de identidade do citando, se foi empregue indevidamente a citação edital, se se mostre que foi efetuada após o falecimento do citando e, ainda, nos termos do artigo 188.º, n.º 1, al. e), do CPC, “quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável”.
E, dispõe o art. 191.º, n.º 1, do CPC que: “Sem prejuízo do disposto no art. 188.º, é nula a citação quando não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades prescritas na lei”, sendo que, nos termos do n.º 4 da mesma norma, a arguição só deverá ser atendida quando “a falta cometida puder prejudicar a defesa do citado”.
Estatui ainda o n.º 1 do art. 195.º do CPC que: “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.”, devendo ser arguida nos termos do n.º 1 do art. 199.º do mesmo Código.
O ato de citação tem natureza receptícia, constituindo pressuposto necessário do exercício do direito de defesa, constitucionalmente garantido (art. 20º da CRP).
Como se viu, dispõe o artigo 232.º, n.º 4 do CPC que, não sendo possível obter a colaboração de terceiros, a citação é feita mediante afixação, no local mais adequado e na presença de duas testemunhas, da nota de citação, com indicação dos elementos referidos no art. 227.º, declarando-se que o duplicado e os documentos ficam à disposição do citando na secretaria judicial.
Por sua vez, prescreve o artigo 233.º do CPC que, sempre que a citação haja consistido na afixação da nota de citação nos termos do nº 4 do art. 232.º, é ainda enviada, pelo agente de execução ou pela secretaria, no prazo de dois dias, carta registada ao citando, comunicando-lhe: a) a data e o modo por que o acto se considera realizado; b) o prazo para o oferecimento da defesa e as cominações aplicáveis à falta desta; c) o destino dado ao duplicado.
“O envio da carta a que alude o art. 233º do CPC é uma diligência complementar e confirmativa da citação, destinada a garantir que, por essa via, o citando venha a tomar conhecimento da citação de que foi alvo para o caso de ainda não ter tomado conhecimento da mesma, tratando-se de uma derradeira formalidade imposta pelo legislador com vista a atingir a efetiva citação do citando e garantir o seu direito de defesa” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17-12-2018, Pº 1867/14.0TBBCL-F.G1, rel. JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS).
A não citação do executado implica a nulidade do processado posteriormente ao requerimento executivo - arts. 187.º e 851º, nºs. 1 e 2, do CPC.
Existem duas modalidades de nulidade da citação: a falta de citação propriamente dita (prevista no artigo 188.º do CPC) e a nulidade da citação, em sentido estrito (estatuída pelo artigo 191.º do mesmo Código).
“Uma coisa é a “falta de citação”, o que pressupõe a inexistência, pura e simples, do ato de citação ou a verificação de uma das situações enunciadas no art. 188º, n.º 1 do CPC, em que a lei equipara essas situações à falta de citação, e outra, diversa, é “a nulidade de citação” a que se reporta o art. 191º, n.º 1 do CPC, a qual pressupõe a efetivação da citação embora com preterição de formalidades prescritas na lei para a respetiva realização.
A “falta de citação” é do conhecimento oficioso (art. 187º) e só se sana com a intervenção do preterido sem que a argua de imediato (art. 189º), enquanto a “nulidade da citação”, em regra, apenas é arguível pelo interessado e dentro do prazo indicado para a contestação (art. 191º, n.º 1)” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17-12-2018, Pº 1867/14.0TBBCL-F.G1, rel. JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS).
Há falta de citação nas situações descritas nas diversas alíneas do nº 1, do artigo 188.º do CPC, designadamente, quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do acto, por facto que não lhe seja imputável (citada alínea e) deste normativo).
A nulidade (falta) da citação (nulidade principal) deve ser arguida com a primeira intervenção no processo, em qualquer estado do processo, enquanto não deva considerar-se sanada –cfr. artigos 189.º e 198.º do CPC.
A falta de citação para a ação executiva pode ser arguida pelo executado a todo o tempo – cfr. artigo 851.º, n.º 1, do CPC.
A arguição da nulidade de ato processual constitui, no caso, como se viu, um incidente da instância.
A executada/recorrente invocou a falta da citação, “com fundamento nos artigos 187.º, a), 188.º, n.º 1, e), 196.º e 198.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil”.
De acordo com o disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 188.º do CPC haverá falta de citação, geradora de nulidade, “quando se demonstre que o destinatário da citação pessoal não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe seja imputável”.
Anotando o preceito em referência, salientam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pp. 226-227) o seguinte:
“Algumas situações que podem cair na previsão legal:
a) O distribuidor postal entregou a carta a pessoa diversa do citando (art. 228.º, n.º 2), a qual, apesar de ficar ciente do dever legal que sobre si impendia, não quis ou não pôde entregá-la ao destinatário, o qual, por isso, não teve efetivamente conhecimento do ato, nem sequer da segunda carta registada remetida pela secretaria (art. 233.º); outra alternativa é a de uma destas cartas ter-lhe sido entregue em momento que já não permitia o exercício do direito de defesa;
b) O agente de execução ou o funcionário procedeu à citação com hora certa (art. 232.º, n.º 1), por se ter certificado de que o citando residia ou trabalhava no local, mas, por facto não imputável ao citando, a carta que foi entregue a terceira pessoa não chegou efetivamente às suas mãos, nem teve conhecimento da segunda carta registada que posteriormente foi remetida;
c) O citando recebeu a carta ou foi diretamente contactado pelo funcionário, mas encontrava-se em situação de incapacidade de facto que o impedia de compreender a natureza e objetivo do ato, quer aquela fosse notória ou não;
d) A carta ou o duplicado da petição foi entregue a um funcionário da pessoa coletiva, mas este omitiu o dever de a entregar à administração, sem que possa imputar-se qualquer género de responsabilidade à respetiva organização interna.
(…) Para que nestas ou noutras situações possa concluir-se pela verificação da omissão de citação é suficiente a simples invocação e prova do efetivo desconhecimento; exige-se ainda que este não seja imputável ao citando (RP 14-12-17, 513/15, RP 11-14-18, 6418/12 e RC 9-1-18, 808/09). Considerando a referida presunção de conhecimento, é sobre o réu que recai o ónus de alegar e de provar os pressupostos legais referidos. Com efeito, em qualquer daquelas situações, pode ter-se verificado o efetivo desconhecimento do ato de citação e, ainda assim afirmar-se ser isso imputável ao citando, caso em que a citação deve considerar-se regularmente efetuada, independentemente das suas consequências”.
Deste modo, atento o exposto quadro legal, “se o réu conseguir ilidir a presunção de cognoscibilidade ou conhecimento do acto, ocorrerá o vício de falta de citação, nos termos da alínea e) do art. 195º” (assim, Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª Edição, 2004, Almedina, p. 23).
No caso, a executada fundamentou a invocação da falta/nulidade da citação ocorrida, no seguinte:
“(…) 7. (…) a executada deixou o território nacional no dia 22 de janeiro de 2013, retornando para seu país de origem, Brasil. Voltou a Portugal somente em 15 de setembro de 2018.
8. O executado AM, que à época era seu marido, retornou ao Brasil em 20 de setembro de 2013, não mais tendo retornado para Portugal. Todos os membros do agregado familiar retornaram ao Brasil entre os dias 22 de janeiro de 2013 e 20 de setembro de 2013.
9. Nenhum dos executados se encontrava em território nacional quando da propositura da ação (…).
11. Não é credível que o Exmo. Sr. Agente de Execução tenha apurado que a executada vivesse ainda naquela morada. Como dito alhures, há 1 ano e 09 meses, contado da data em que fora procedida a citação com hora certa, que a executada não mais vivia no local.
12. Salvo melhor juízo, o Exmo. Sr. Agente de Execução deveria ter se assenhorado de todas as informações possíveis antes de investir para a citação com hora certa. O que não fez.
13. Debruçando-nos sobre os autos, verifica-se que fora procedida a tentativa de citação postal, infrutífera; a seguir, inexiste qualquer busca nos meios disponíveis para se encontrar o paradeiro dos executados. A informação seguinte é a da realização da citação com hora certa.
14. A executada não teve conhecimento do ato de citação. E a assertiva de que já há muito estava ausente é facilmente comprovada pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, porquanto a executada é cidadã estrangeira e o seu trânsito de entrada e saída do espaço Schengen é armazenado nas bases de dados (…).” (cfr. requerimento de “reclamação” de 24-05-2021).
Ora, conforme se salientou na decisão recorrida, embora alegando o desconhecimento do ato de citação, com fundamento na sua ausência (e dos demais membros do seu agregado familiar) do território nacional – entre 22-01-2013 e 15-09-2018 – e retorno ao Brasil, certo é que, quanto à dita ausência dos membros do agregado familiar, nenhuma prova foi produzida ou requerida e, quanto à pessoa da executada, os elementos de prova produzidos não permitem outra conclusão, senão aquela que foi alcançada pelo Tribunal recorrido: “Para prova dessa matéria limitou-se a juntar cópia de auto de notícia elaborado pelo SEF, do qual resulta ter-lhe sido aplicada uma coima por se ter apresentado em 22.01.2013 no Aeroporto de Lisboa, com intenção de sair do território nacional, para além dos 90 dias da autorização de permanência que lhe havia sido concedida, uma vez que tinha entrado em Portugal em 17.01.2011. E fotocópia do seu passaporte, do qual consta carimbo de entrada no território nacional em 15.09.2018”.
E tal como se concluiu na decisão recorrida: “(…) destes singelos elementos não resulta demonstrado que em 04.10.2014 a executada não residisse na morada onde a citação foi concretizada.
Apenas resulta que, em 17.01.2011, entrou em território nacional, que em 22.01.2013 se apresentou no Aeroporto de Lisboa com a intenção de sair, desconhecendo-se se efetivamente o fez, e que, em 15.09.2018, voltou a entrar em Portugal. Mesmo a admitir-se ser verdade que tenha viajado para o Brasil em 22.01.2013, nada impedia que a executada tivesse regressado depois a Portugal e que, em 04.10.2014, residisse na morada onde foi concretizada a citação. Tudo indica, aliás, que as viagens da executada fossem frequentes, tanto mais que em 22.07.2010, antes portanto da data de entrada constante do documento junto, esteve comprovadamente presente no Cartório Notarial de Odivelas, onde celebrou a escritura de compra e venda e mútuo com hipoteca que foi dada à execução, através da qual adquiriu, conjuntamente com executado AM, o imóvel onde a citação foi concretizada, para habitação de ambos.”.
Não logrou, pois, a executada demonstrar a invocação de que não chegou a ter conhecimento do ato de citação, o qual, todavia, observou as prescrições normativas aplicáveis e foi executado com as inerentes formalidades.
Mas, para além disso, em qualquer caso, sempre faltaria a verificação do outro requisito estabelecido na lei: A demonstração de que a falta de conhecimento da citação tenha resultado de facto que não fosse imputável à executada.
Sobre os termos em que deve ser interpretada a ausência de imputabilidade no não conhecimento do ato de citação, expenderam-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13-09-2018 (Pº 845/17.2T8ENT-A.E1, rel. ALBERTINA PEDROSO) as seguintes considerações, inteiramente pertinentes para o caso que nos ocupa:
“(…) No recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.07.2018 (…), a respeito da expressão legal “causa não imputável ao requerente” contida no artigo 323.º, n.º 2 do CC, relativamente à data em que se presume efectuada a citação para efeitos de interrupção da prescrição, na esteira de entendimento já anteriormente vertido nos arestos ali indicados, afirmou-se que tal expressão «deve ser interpretada em termos de causalidade objectiva, ou seja, quando a conduta do requerente em nada tenha contribuído, em termos adjectivos, para que haja um atraso no acto de citação».
Ora, um dos exemplos apontados como podendo integrar um facto que não seja imputável ao citando tem sido precisamente a “falta de entrega de correspondência por alguma razão”, conforme referido no citado aresto da Relação do Porto de 11.04.2018. Também FERREIRA DE ALMEIDA (…) afirma que esta causa invalidante do processado justifica-se «pela certeza de que, sem culpa sua, o réu não chegou a ter conhecimento da citação por esta não lhe ter sido transmitida pelo receptor».
Aplicando este entendimento na espécie, a executada alegou e demonstrou (…) que pese embora a correspondência que era remetida para a Rua de … n.º …, em Marinhais, habitualmente fosse recolhida pela sua filha, a qual fazia depois a entrega à mãe quando esta ia a Marinhais, nesta situação a filha da executada/embargante recebeu a notificação do procedimento de injunção mas não a entregou à executada/embargante.
Assim, caso se tivessem igualmente demonstrado factos tendentes a concluir que a executada residia alternadamente nesta morada e na de Lisboa, até poderíamos concordar com a Recorrente. Porém, a Recorrente oportunamente não os alegou e, consequentemente, os mesmos não se encontram demonstrados. E, como é sabido, o recurso não serve para tratar questões novas que não foram oportunamente alegadas em primeira instância.
Deste modo, salvo o devido respeito pelo entendimento preconizado pela Recorrente, pese embora a falta de notificação do procedimento de injunção tenha sido arguida tempestivamente pela executada com o fundamento a que alude o artigo 188.º alínea e) do CPC, invocando e demonstrando não ter tido conhecimento da injunção porque a filha, que nas circunstâncias descritas, recolhia e lhe entregava a correspondência, não o fez quanto a esta, o certo é que da demais factualidade provada - e não impugnada pela Recorrente -, não decorre que exista uma situação de residência alternada mas sim uma mudança de residência para Lisboa.
De facto, provou-se que até 01 de Fevereiro de 2016 a executada residiu em Marinhais na Rua de … n.º …. Porém, atentos os vários quilómetros que tinha que percorrer diariamente de Marinhais para Lisboa e vice-versa, e os custos que essas deslocações acarretavam, optou por arrendar, a partir de 1 de Fevereiro de 2016, uma casa em Lisboa, perto do seu local de trabalho, sendo que a partir de 1 de Fevereiro de 2016, a executada/embargante passou a residir naquela morada em Lisboa e só ia a Marinhais em alguns fins-de-semana. Ou seja, da factualidade provada decorre que a Embargante mudou o seu centro de vida para Lisboa, tanto assim que nem sequer vai a Marinhais todos os fins de semana.
Consequentemente, tendo passado a residir em Lisboa sem ter alterado a morada constante de todos os seus documentos oficiais, não podemos concluir, em termos de causalidade objectiva, que a conduta da requerente em nada tenha contribuído, em termos adjectivos, para que o acto de notificação da injunção não tenha chegado oportunamente ao seu conhecimento.
Pelo exposto, face aos factos alegados no requerimento de embargos e perante a factualidade que resulta provada quanto aos procedimentos de notificação realizados, não é possível ter-se por preenchida a previsão da alínea e) do n.º 1 do art.º 195.º relativa à falta de citação da embargante, por facto que não lhe seja imputável.”.
E, conforme se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-09-2004 (Pº 04A2277, rel. AZEVEDO RAMOS), “a validade da citação com hora certa pressupõe que o citando tenha residência no local onde aquela foi realizada e que a falta de conhecimento da citação não lhe seja imputável”.
Ora, neste enquadramento, mesmo na tese da recorrente – em que a ausência (temporária) do território nacional seria o elemento determinante do não conhecimento do ato de citação – não resulta demonstrado que tal facto não lhe fosse imputável, pois, certo é que, ficou cabalmente apurado – e isso não foi colocado em crise pela recorrente – que a mesma tinha residência, que não curou de alterar, fixada no local em que teve lugar a citação.
É que, conforme se aludiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-04-2007 (Pº 408/2007-2, rel. SOUSA PINTO), “tendo ficado apurado que a residência do Réu era efectivamente aquela onde se realizaram as diligências inerentes à citação com hora certa, há que ter presente que tal circunstancialismo implica para a pessoa do citando determinados deveres inerentes a essa qualidade, designadamente, no mínimo, o cuidado de saber com regularidade que correspondência lhe é dirigida. Tendo o tribunal cumprido todo o ritualismo exigido por lei para a concretização da indicada citação com hora certa – inclusivamente tendo-lhe enviado para a morada a carta registada a que alude o art.º 241.º [correspondente ao vigente artigo 233.º] do CPC, o mesmo só não terá tido conhecimento do acto em causa (caso assim tenha sucedido) por incúria da sua parte”.
Cabendo à reclamante, ora recorrente, o ónus da prova sobre tal matéria (cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-09-2018, Pº 2759/15.3T8STS-B.P1, rel. ANA PAULA AMORIM), a falta de observância de tal ónus conduz à improcedência da questão atinente à falta/nulidade da citação arguida pela mesma.
Assim, nessa medida e também nesta perspetiva, não merece qualquer censura a conclusão de improcedência da nulidade arguida a que chegou o Tribunal recorrido.
Improcedem, assim, todas as conclusões em sentido contrário da recorrente, sendo de manter a decisão recorrida.
*
No artigo 527.º, n.º 1, do CPC estipula-se que: “A decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito”.
As custas processuais abrangem a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cfr. artigo 529.º, n.º 1, do CPC).
As custas assumem, grosso modo, a natureza de taxa paga pelo utilizador do aparelho judiciário, reduzindo os custos do seu funcionamento no âmbito do Orçamento Geral do Estado (assim, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2°, 3.ª ed., p. 418).
A conjugação do disposto no art.º 527.º, n.ºs. 1 e 2 com o n.º 6 do art.º 607.º e no n.º 2 do artigo 663.º do CPC permite aferir que a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa, ou, não havendo vencimento, no critério do proveito, mas tal não sucede quanto à taxa de justiça, cuja responsabilidade pelo seu pagamento decorre automaticamente do respectivo impulso processual.
De acordo com o estatuído no n.º 2 do art. 527.º do CPC, o critério de distribuição da responsabilidade pelas custas assenta no princípio da causalidade e, apenas subsidiariamente, no da vantagem ou proveito processual.
Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. A condenação em custas rege-se pelos aludidos princípios da causalidade e da sucumbência, temperados pelo princípio da proporcionalidade, na vertente da proibição de excesso e da justa medida (cfr. Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2015, p. 359).
“Dá causa à acção, incidente ou recurso quem perde. Quanto à acção, perde-a o réu quando é condenado no pedido; perde-a o autor quando o réu é absolvido do pedido ou da instância. Quanto aos incidentes, paralelamente, é parte vencida aquela contra a qual a decisão é proferida: se o incidente for julgado procedente, paga as custas o requerido; se for rejeitado ou julgado improcedente, paga-as o requerente. No caso dos recursos, as custas ficam por conta do recorrido ou do recorrente, conforme o recurso obtenha ou não provimento (…)” (cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre; Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, 3.ª ed., p. 419).
Assim, deve pagar as custas a parte que não tem razão, litiga sem fundamento ou exerce no processo uma actividade injustificada, pelo que interessa apurar o teor do dispositivo da decisão em confronto com a posição assumida por cada um dos litigantes.
O princípio da causalidade continua a funcionar em sede de recurso, devendo a parte neste vencida ser condenada no pagamento das custas, ainda que não tenha contra-alegado, tendo presente, contudo, a especificidade acima apontada quanto à constituição da obrigação de pagamento da taxa de justiça, pelo que tal condenação envolve apenas as custas de parte e, em alguns casos, os encargos (cfr. Salvador da Costa; As Custas Processuais - Análise e Comentário, 7.ª edição, pp. 8-9).
Como tal, sempre que haja um vencido, com perda de causa, é sobre ele que deve recair, na precisa medida desse decaimento, a responsabilidade pela dívida de custas. Fica vencido quem na causa não viu os seus interesses satisfeitos; se tais interesses ficam totalmente postergados, o vencimento é total; se os interesses são parcialmente satisfeitos, o vencimento é parcial.
“"Vencidos" são todos os que não obtenham na causa satisfação total ou parcial dos seus interesses, ficando, pois, a seu cargo, a responsabilidade total ou parcial pelas custas” (assim, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-10-1997, P.º 97S079, rel. MATOS CANAS).
Em conformidade com o exposto, a responsabilidade tributária incidirá sobre a recorrente, atento o integral decaimento havido – cfr. artigo 527.º, n.ºs. 1 e 2, do CPC – sem prejuízo do apoio judiciário de que, a mesma, presentemente, beneficia.
*
5. Decisão:
Em face do exposto, acordam os Juízes que compõem o tribunal coletivo desta 2.ª Secção Cível em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.
Custas pela executada/apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que, a mesma, presentemente, beneficia.
Notifique e registe.
*
Lisboa, 13 de janeiro de 2022.
Carlos Castelo Branco
Orlando dos Santos Nascimento
Maria José Mouro Marques da Silva