Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
7912/12.7TDLSB.L1-9
Relator: CALHEIROS DA GAMA
Descritores: PROPRIEDADE INDUSTRIAL
PROPRIEDADE INTELECTUAL
CONTRAFACÇÃO
INDÍCIOS SUFICIENTES
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/13/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: Uso ilegal de marca registada e de colocação em circulação no território português de produtos contrafeitos (artigos 323.º e 324.º do CPI). Proteção das marcas no contexto da Propriedade Industrial e no mais vasto dos direitos de Propriedade Intelectual. Recurso às regras da experiência comum e presunções naturais, em sede de despacho de pronúncia, como meio de formação da convicção do juiz de instrução para a existência de indícios suficientes da prática dos crimes. Perante a aquisição pela internet, em site de compras online, de diversos comandos para consola de jogos PlayStation3, em estado novo e muito abaixo do preço de mercado é de presumir, face ao seu valor, quantidade e demais elementos de prova recolhidos durante a fase de inquérito, que o comprador/importador não podia deixar de se aperceber que os mesmos não eram autênticos, antes sendo contrafeitos, e ainda que não os destinava exclusivamente ao seu uso pessoal. Apesar dos produtos contrafeitos terem sido apreendidos na alfândega os crimes estão preenchidos na sua forma tentada.
(sumário elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. No processo nº 7912/12.7TDLSB, em que é arguido AS (…), contra quem foi deduzida queixa-crime pela prática dos crimes previstos e punidos pelos artigos 322.º, 323.º e 324.º do Código da Propriedade Industrial (DL n.º 36/2003, de 5 de Março, doravante designado apenas por CPI), findo o inquérito, cuja competência para as necessárias diligências de investigação foi delegada na ASAE e durante o qual foi determinada e efetuada a apensação aos autos do inquérito 11677/12.4TDLSB (cfr. fls. 68 e vº, 78 e 79 e Apenso), o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento por considerar que os autos não continham indícios suficientes da prática pelo denunciado dos alegados crimes (cfr. fls. 114).

As queixosas SONY COMPUTER ENTERTAINMENT EUROPE LIMITED, sociedade inglesa com sede em (…) Inglaterra, e KABUSHIKI KAISHA SONY COMPUTER ENTERTAINMENT que também usa SONY COMPUTER ENTERTAINMENT INC., sociedade Japonesa com sede em (…), Tóquio, Japão, não se conformando, constituíram-se então assistentes e requereram a abertura de instrução pedindo a pronúncia do arguido pela prática dos crimes p. e p. pelos artigos 323.º e 324.º do CPI (cfr. fls. 130 a 193).

Foi realizada a instrução e, após debate, proferida, em 25 de Março de 2014, pelo Meritíssima Juíza do 1º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal e Lisboa, decisão instrutória de não pronúncia do arguido (cfr. fls. 310 a 317).

2. As assistentes SONY COMPUTER ENTERTAINMENT EUROPE LIMITED e KABUSHIKI KAISHA SONY COMPUTER ENTERTAINMENT, inconformadas com a mencionada decisão, interpuseram recurso, extraindo das suas motivações as seguintes conclusões:

(i) Sem desdouro, ousamos discordar do, apesar de tudo, Douto Decisório ora em crise, no que concerne à decisão de não pronúncia do arguido;

(ii) Desde já, salvo o devido respeito, mostram-se violadas as normas jurídicas ínsitas nos arts. 323º e 324.º, todos do CPI, na medida em que a decisão recorrida não fez uma correcta interpretação e subsunção dos factos às normas a que se referem os referidos artigos;

(iii) Mais tendo julgado incorrectamente os próprios factos apurados pois que das provas constantes dos autos resultam indícios suficientes do preenchimento do tipo legal de crime previsto nos artsº 323º e 324º do C.P.I.;

(iv) Aliás, a intenção de enganar não constitui pressuposto do tipo de legal de crime a que respeitam os artigos 323º e 324º do C.P.I., bastando que os produtos sejam contrafeitos e se destinem a venda ou circulação.

(v) Ora, a decisão instrutória  recorrida reconheceu já a natureza contrafeita dos produtos apreendidos, pelo que esta parte não se coloca em crise com o presente recurso; Quanto ao demais, o destino dos bens:

(vi) In casu, verificou-se que o arguido importou 15 comandos oriundos da China e Hong Kong, ostentando e imitando os produtos genuínos que ostentam as marcas das recorrentes (constituindo produtos contrafeitos tal qual conclui a decisão instrutória  recorrida), os quais pela via da importação e da consequente entrada no território português, foram colocados em circulação, num sentido amplo, e assim a uso pelo arguido;

(vii) Efectivamente, a mercadoria importada pelo arguido só não chegou ao consumidor final, assim como só não chegou a ser usada pelo arguido como conclui a decisão instrutória  recorrida, exactamente por força da apreensão alfandegária dos mesmos;

(viii) Dito de outra forma, não tivesse sido a actuação das autoridades alfandegárias, os bens apreendidos teriam entrado efectivamente no comércio paralelo;

(ix) Por outro lado, atentas as regras de senso comum e da experiência e atendendo nomeadamente às quantidades apreendidas não é crível que os bens apreendidos (num total de 15) se destinassem apenas a uso pessoal do arguido, não obstante a família numerosa que este alegar ter visado presentear com tais produtos;

(x) Por outro lado, o arguido não podia ignorar a natureza ilícita do seu acto, já que a marca “SONY” é mundialmente conhecida, conhecendo por isso perfeitamente os produtos genuínos e as marcas registadas existentes, mais constituindo facto público e notório que esta apenas é vendida apenas em estabelecimentos comerciais para tal autorizados;

(xi) Assim faltou à decisão recorrida a consideração por um lado das regras de experiencia comum e o uso adequado das presunções naturais;

(xii) Por outro lado, o tribunal a quo assentou a sua decisão de não pronúncia exclusivamente na versão do arguido, que alegou ter comprado apenas cinco produtos em Junho de 2012, versão esta que o Meritíssimo Juiz a quo entendeu encontrar-se corroborada pela prova documental junta aos autos; ora, nada mais incorrecto;

(xiii) De facto, a prova documental constante dos autos, nomeadamente a fls. 248, 249, 250, 251, 252 e 253 e, ainda fls 290 e 291, no entendimento das Recorrentes não corrobora, pelo contrário, a versão do arguido, pelo que a fundamentação da decisão recorrida incorreu num manifesto erro na apreciação da prova;

(xiv) Efectivamente da análise atenta do conteúdo resulta que na data alegada na versão do arguido – Junho de 2012 -  mais precisamente no dia 15/06/2012 a Delegação Aduaneira das Encomendas Postais procedeu à suspensão do desalfandegamento de mercadoria suspeita de contrafacção da marca SONY, procedente da China, referente a cinco objectos postais com os números locais 526921, 526922, 526910, 526911 e 526913, cada um contendo 2 comandos com a marca SONY, o que perfaz o total de 10 unidades, destinados a AS, nestes autos arguido, processo ao qual foi atribuído o seguinte numero interno daquela Delegação PIC nº 879/2012 – tudo cfr. documentos que constam a fls. 248, 249, 250, 251, 252 e 253 dos autos;

(xv) Verifica-se então que, de acordo com os referidos documentos juntos aos autos, a importação ocorrida em Junho de 2012PIC nº 879/2012 - referia-se a 10 comandos e não a cinco conforme alega o arguido, versão esta última que foi acolhida pela decisão instrutória  recorrida, pese embora nesta se referir que tal versão era ainda sustentada pela prova documental, nomeadamente pelas facturas juntas aos autos;

(xvi) Ora, a factura e documento respectivo de pagamento, constantes a fls 290 e 291 dos autos referem-se ao referido PIC Nº 879/2012, ou seja, a dez comandos e não 5, conforme decorre também do documento de fls. 289 dos autos;

(xvii) Traduzindo-se o respectivo texto, tal factura na sua descrição refere na quantidade o nº 10 (e não 5 comandos), no preço o valor unitário de £11.50 e no montante total o valor de £115,00;

(xviii) Por sua vez, juntamente com a factura, segue a fls.291 documento comprovativo do respectivo pagamento da factura nº 0007, este efectuado na mesma data, que neste documento vem identificada da seguinte forma “May 9, 2012”;

(xix) De tal documento consta o valor a pagar, quer em libras quer em euros, este resultante da respectiva conversão monetária, o primeiro no valor de £115,00GB e o segundo no montante de 149,17€;

(xx) Logo, estes documentos, referem-se evidentemente ao PIC Nº 879/2012, de Junho de 2012, pois só após o pagamento da mercadoria que ocorreu em 9 de Maio de 2012, é que esta foi enviada ao arguido, sendo que o respectivo desalfandegamento foi suspenso em Junho de 2012;

(xxi) Por conseguinte e consequentemente, a ainda assim douta decisão instrutória  recorrida interpretou e aplicou incorrectamente a lei – os artigos 323º e 324.º do CPI - aos factos;

(xxii) Por outro lado tem ainda de se concluir que existe contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, por um lado, e erro notório na apreciação da prova, por outro lado;

(xxiii) Termos em que deverá este Venerando Tribunal alterar os factos não provados para provados, na medida em que resulta claro que o arguido importou, pelo menos, os dez comandos a que se referem os documentos juntos com o PIC Nº 879/2012, assim existindo indícios suficientes da prática dos crimes previstos nos art.º 323º (uso ilegal de marca) e 324.º (colocação em circulação no território português) do CPI, assim se revogando a decisão recorrida,

ASSIM SE FAZENDO INTEIRA JUSTIÇA!(fim de transcrição)

3. O recurso foi admitido (cfr. fls. 337), tendo sido apresentadas respostas, quer pelo Ministério Público, junto do tribunal recorrido (cfr. fls. 344 a 346), quer pelo arguido AS (cfr. fls. 341 a 343), em ambas se concluindo ser de manter a decisão recorrida.  

4. A Exma. Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação apôs o seu visto e emitiu o seu parecer, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso interposto pelas sociedades assistentes (cfr. fls. 354).

5. Foi cumprido o preceituado no art. 417.º n.º 2 do C.P.P., tendo o arguido respondido "aderir na integra ao teor do douto despacho" (cfr. fls. 357).

6. Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso.

7. Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer [cfr., entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) de 16/11/95, de 31/01/96 e de 24/03/99, respetivamente, nos BMJ 451° - 279 e 453° - 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, arts. 403° e 412°, n° 1, do CPP).

Mediante o presente recurso as sociedades assistentes  recorrentes submetem à apreciação deste Tribunal Superior em síntese as seguintes questões:

- na decisão recorrida existe contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, por um lado, e erro notório na apreciação da prova, por outro lado, na medida em que resulta claro que o arguido importou, pelo menos, os dez comandos a que se referem os documentos juntos com o PIC Nº 879/2012, assim existindo indícios suficientes da prática dos crimes previstos nos art. 323º (uso ilegal de marca) e 324.º (colocação em circulação no território português) do CPI.

2. Passemos, pois, ao conhecimento das questões sub judice. Para tanto, vejamos, antes de mais, o conteúdo da decisão recorrida, que é, na parte que ora interessa, do seguinte teor (transcrição):

"A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art° 286, nº 1 do Código de Processo Penal). -

Não se apresenta como um novo inquérito, mas consubstancia, tão-só, um momento processual de comprovação da decisão de acusar ou não (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 1996, pgs. 454). 

A acusação é deduzida se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado um crime e de quem foi o seu agente (art° 283, nº 1 do Código de Processo Penal). 

Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança (art° 283, nº 2 do citado diploma).

Posto isto, e realizadas as diligências instrutórias pertinentes, há que proceder a uma análise crítica da prova produzida com vista comprovar judicialmente a decisão do MºPº proferida no encerramento do inquérito. 

Nos presentes autos o MºPº proferiu despacho de arquivamento dizendo que o arguido afirmou que comprou 5 comandos, pensando que eram autênticos e que os mesmos se destinavam ao seu uso pessoal. 

As disposições legais a ter em causa para a apreciação das questões suscitadas pela assistente, encontram-se nos artºs 323 e 324 do CPI, e rezam o seguinte:

Artigo 323.º

Contrafacção, imitação e uso ilegal de marca

É punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias quem, sem consentimento do titular do direito:

a) Contrafizer, total ou parcialmente, ou, por qualquer meio, reproduzir uma marca registada;

b) Imitar, no todo ou em alguma das suas partes características, uma marca registada;

c) Usar as marcas contrafeitas ou imitadas;

d) Usar, contrafizer ou imitar marcas notórias cujos registos já tenham sido requeridos em Portugal;

e) Usar, ainda que em produtos ou serviços sem identidade ou afinidade, marcas que constituam tradução ou sejam iguais ou semelhantes a marcas anteriores cujo registo tenha sido requerido e que gozem de prestígio em Portugal, ou na Comunidade Europeia se forem comunitárias, sempre que o uso da marca posterior procure, sem justo motivo, tirar partido indevido do carácter distintivo ou do prestígio das anteriores ou possa prejudicá-las;

f) Usar, nos seus produtos, serviços, estabelecimento ou empresa, uma marca registada pertencente a outrem.

Artigo 324.º

Venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos

É punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias quem vender, puser em circulação ou ocultar produtos contrafeitos, por qualquer dos modos e nas condições referidas nos artigos 321.º a 323.º, com conhecimento dessa situação.

A assistente peticiona a pronúncia do arguido pela prática dos crimes supra citados.

Relativamente ao art° 323 do CPI, consideramos que o mesmo não tem enquadramento no caso concreto. 

Efetivamente em nenhum momento resulta que o arguido contrafez, imitou ou usou uma marca registada, porquanto, o que está em causa é tão só a importação de comandos para a PS3. Assim, está a afastado o cometimento do crime do art° 323 do CPI.

Analisemos então, de forma mais detalhada o artº 324 do CPI.

Determina este normativo, conforma já se referiu que quem vender, puser em circulação ou ocultar produtos contrafeitos, com conhecimento dessa situação, é punido. 

Conforme referido em Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa "( ... ) o agente adquire produtos contrafeitos para os revender, está a introduzi-los no giro comercial, preenchendo-se de imediato o elemento "puser em circulação", sendo irrelevante que no momento da detenção pela autoridade policial não se encontre a vender;

III° A circulação que interessa ao preceito incriminador é a comercial, que vai desde a compra para revenda até à venda ao consumidor final;

IVº Com aquele art.234, pretende-se evitar que o produto contrafeito entre no giro comercial, seja objecto de compra e venda comercial, o que só será possível com uma interpretação abrangente deste tipo de crime, que permita alcançar a primeira pessoa que adquire o produto contrafeito para revenda ( ... )" (Cf. Acórdão do TRL de 15/2/2011, in www.dgsi.pt)

Importa contudo, no presente caso, e tendo em conta os elementos de prova recolhidos - apreensão dos comandos, declarações do arguido, relatório pericial (fls. 88 e 89) e documentos respeitantes à importação (fls. 272-273, 290 e 291) colocar algumas questões. 

-  A 1ª saber se os comandos apreendidos são contrafeitos;

- A 2ª saber se o arguido ao efetuar a encomenda no ebay tinha conhecimento dessa situação e qual o destino que iria dar aos comandos. 

Relativamente à primeira questão importa ter presente alguns conceitos. 

O conceito de contrafacção, para efeitos do tipo legal em análise, é dado pelo artº 323 do CPI.

O exame pericial efetuado afirma que os produtos apreendidos não são artigos originais, o que é percetível para os peritos conhecedores da marca, mas não para o público consumidor em geral.

Resulta assim que os comandos em causa são contrafeitos. 

A 2ª questão remete-nos para o conhecimento que o arguido teria de tal situação e o que pretendia fazer com os comandos.

A resposta a esta questão, em primeira linha é dada pelo arguido, a que terão que acrescer os documentos relativos à importação, bem como as regras da experiência comum. 

o arguido, quando interrogado, referiu que:

"( ... ) só adquiriu 5 comandos em Junho de 2012, sendo que em Novembro de 2012 recebeu uma carta em casa dos correios para levantar uma encomenda em seu nome, o que não fez, por não ter sido ele a encomendar nada. 

Perguntado sobre o que pretendia fazer com tais objetos, afirmou que adquiriu os 5 comandos no sítio da Internet "ebay" com o intuito de ficar com os 5 comandos, pois aproveitava a promoção e os portes serem gratuitos. Como tem sobrinhos pequenos e que lhe danificam os comandos, bem como a bateria dos mesmos vicia facilmente, entendeu como uma boa compra, para aproveitar o preço.

Perguntado sobre se tem conhecimento do conceito de contrafação, imitação e uso ilegal de marca e das penalidades que recaem sobre quem vender, colocar em circulação ou ocultar artigos com aquelas características, afirmou que tem as noções básicas dos referidos conceitos, no entanto refere que a sua intenção não era vender os comandos, mas sim para seu uso pessoal.

Perguntado sobre se sabia que os dizeres/desenhos apostas nas peças, designadamente "Sony" e "PS3" são marcas que se encontram registadas, afirmou que sim, tem conhecimento desse registo. 

Perguntado sobre se está licenciado pelo titular das marcas em questão para produzir/comercializar tal tipo de artigo, afirmou que não, até porque a sua intenção mão era comercializar, nem produziu os comandos. 

Afirmou ainda que adquiriu os 5 comandos no sítio da Internet "ebay", julgando estar a adquirir comandos originais da "sony" para a "PS3", por a compra de 5 unidades ser mais barata e para uso pessoal. (...).

De acordo com as faturas remetidas pela ASAE e que constam a fls. 272-273 e 291-292, resulta que o arguido só fez uma compra e que pagou pelos comandos a quantia de 149,17€. A versão do arguido tem assim sustentação nos documentos que acompanharam a importação. 

Acresce que os Srs. Peritos afirmaram que um consumidor não conseguiria concluir que os comandos eram falsos, o que abona a favor do arguido. 

Também não ficou demonstrado que fosse intenção do arguido vender os comandos, recordando que apenas está comprovada a compra de 5 comandos, e explicou o arguido que comprou esta quantidade por ser mais barato, por não ter de pagar portes e porque tem sobrinhos que lhe danificam facilmente os comandos da PS3. 

Face à prova existente nos autos, poderemos então concluir que os mesmos contêm indícios suficientes para sujeitar o arguido a julgamento pela prática dos ilícitos objecto da presente instrução?

Como ensina o Prof. Figueiredo Dias", "os indícios só são suficientes e a prova bastante, quando já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável que a absolvição". 

Assim, não se basta a lei com um mero juízo subjectivo, mas antes exige um juízo objectivo fundamentado nas provas dos autos. Da análise destas provas há-de resultar a convicção da forte probabilidade de que a arguida seja responsável pelos factos constitutivos do crime.

No presente caso, não se pode a nosso ver concluir pela existência de tal probabilidade.

Assim, julgo que não foram recolhidos indícios suficientes que permitam formular a conclusão de que, em julgamento, e com base nos mesmos o arguido seja condenado numa pena. 

V. Pelo exposto, não pronuncio o arguido AS, pela prática dos crimes constantes do requerimento de abertura de instrução.  

Taxa de justiça pelos assistentes em 2 Ucs.

Após trânsito, proceda-se à destruição dos comandos apreendidos, por serem contrafeitos." (fim de transcrição)

3. Apreciemos, então, se assiste razão às recorrentes.

Nos termos do disposto no art. 286.º, n.º 1, do CPP, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Estabelece o art. 308.º, n.º 1, do CPP que “Se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.

Critério semelhante está igualmente consagrado no art. 283.º, n.º 2, do CPP ao estabelecer que: “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

No entendimento de Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, pág. 179, “Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido.

Esta possibilidade é uma probabilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido”.

Acrescentando o referido autor “A referência que o art. 301.º, n.º 3, faz à natureza indiciária da prova para efeitos de pronúncia inculca a ideia de menor exigência, de mero juízo de probabilidade. Na pronúncia o juiz não julga a causa; verifica se se justifica que com as provas recolhidas no inquérito e na instrução o arguido seja submetido a julgamento pelos factos da acusação. A lei só admite a submissão a julgamento desde que da prova dos autos resulte uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena ou uma medida de segurança (artº 283º nº 2); não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final”.

E, mais adiante, diz ainda Germano Marques da Silva, in obra citada na pág. 240, "na fase de inquérito ou da instrução, fases em que o material probatório não é ainda completo, não pode exigir-se uma comprovação categórica da existência dos referidos pressupostos, mas tão-só, face ao estado dos autos, a convicção objectivável com os elementos recolhidos nos autos de que o arguido virá a se condenado pela prática de determinado crime. (…) fortes indícios, ou indícios suficientes, na definição dada pelo art° 283°, n° 2, do CPP, existem sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.”

Segundo Luís Osório no seu Comentário ao CPP, IV, pág. 411 refere que “devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia, a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado”

A este propósito, diremos, ainda e citando o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20 de Setembro de 2008, proferido no processo n.º 645/08.0PBFIG-A.C1, que: “Constituem-se em vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes para convencer da existência de um facto jurídico-penalmente relevante e de que deve ser imputável a alguém determinado, devendo ou podendo ser previsível que, num juízo de prognose solidamente estruturado  escorado, a manterem-se em julgamento, ocorrerão fundadas e sérias probabilidades de conduzir a uma condenação do arguido pelos factos típicos que lhe são imputados.

Na indiciação em fase de inquérito, ou seja numa fase em que os elementos colectados ainda não foram objecto de contraditório, o grau de convencimento do juiz e de ponderação de imputação casual de determinado agir a um concreto sujeito está dependente das regras da experiência e do sentido lógico representativo com que uma dada realidade percepcionada se prefigura ao discernimento e compreensibilidade do julgador.

O juiz pode, nesta fase, socorrer-se das inferências permitidas por um conjunto de elementos  que soem ocorrer em situações ou casos similares, observando sempre que as máximas de  experiências atinam com factores de aleatoriedade que podem conduzir a juízos erróneos ou de defeituosa avaliação.”

Em suma será necessário fazer um pré-juízo sobre a criminalidade e existência dos factos, a partir do material probatório que consta dos autos.

Estas as linhas gerais de orientação que o juiz terá de ter presente quando se lhe solicita a introdução de um feito penal em juízo.

Será pois de harmonia com elas que as provas irão ser apreciadas.

Vejamos então se existem nos autos indícios que permitam a sua pronúncia, sendo que o recurso ora em apreço tem por objeto a reapreciação da matéria de facto, nos termos do n.º 1 do art. 410.º e do n.º 2, alíneas b) e c) do mesmo artigo, e ainda do n.º 3 do art.º 412.º do CPP, bem como a apreciação da matéria de direito, quer em consequência da reapreciação da matéria de facto, quer igualmente quando conjugada a fundamentação da decisão ora recorrida, com as regras da experiência comum e bem assim com a interpretação e aplicação aos factos das normas legais que no caso se perfilam, nomeadamente os artigos 323.º e 324.º do CPI (cfr. n.º 2 do art. 410.º e 412º, n.º 2, alínea b) do CPP).

Comecemos por apreciar o pedido de pronúncia do arguido pela prática do crime previsto no art. 323º do C.P.I.

A decisão recorrida, neste domínio, como se alcança da transcrição já efetuada, limitou-se a afirmar o seguinte:

Relativamente ao artº 323 do CPI, consideramos que o mesmo não tem enquadramento no caso concreto.

Efectivamente em nenhum momento resulta que ao arguido contrafez, imitou ou usou uma marca registada, porquanto, o que está em causa é tão só a importação de comandos para PS3. Assim, está afastado o cometimento do crime do artº 323 do CPI.”

Com o devido respeito, é curto e desacertado.

Os bens jurídicos protegidos, previstos nos ilícitos a que se referem os artigos 323.º e 324.º do CPI, reconduzem-se à integridade e identidade da marca, a par da exclusividade da fruição das virtualidades que da mesma a lei permita que sejam extraídas, pertencentes ao respetivo titular (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27 de Junho de 2006, proferido no processo n.º 4512/2006-5)

A lei pretende impedir que por via da reprodução ou da imitação de uma marca já registada se possa criar confusão e erro no mercado, visando proteger-se por um lado a confiança e interesse do consumidor e, por outro lado, a reputação, prestígio, crédito e benefícios económicos do titular da marca (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 3 de Novembro de 1994).

In casu, verificou-se que o arguido importou 15 comandos (ou, pelo menos, 5 comandos, se se atentar apenas nas declarações do arguido prestadas nos autos) oriundos da China e de Hong Kong, ostentando e imitando os produtos genuínos que ostentam as marcas das recorrentes (constituindo produtos contrafeitos tal qual conclui a decisão instrutória  recorrida), os quais pela via da importação e da consequente entrada no território português, foram colocados em circulação, num sentido amplo, e com o fim de serem usados pelo arguido, o que não viria a conseguir porquanto os serviços da alfândega do Aeroporto de Lisboa procedendo, por iniciativa própria, a intervenção aduaneira suspenderam o desalfandegamento das mercadorias por se manifestarem indícios de infração prevista no CPI, como lhe é permitido pelo art. 319.º daquele mesmo Código.

Com efeito, a mercadoria importada pelo arguido só não chegou ao consumidor final, assim como só não chegou a ser usada pelo arguido como conclui a decisão instrutória  recorrida, exatamente por força da apreensão alfandegária dos mesmos.

Dito de outra forma, não tivesse sido a atuação das autoridades alfandegárias, os bens apreendidos teriam entrado efetivamente na esfera jurídica do arguido, uma vez que os bens a ele se destinavam e este não nega, aliás, conforme declarações prestadas nestes autos a fls. 106 e seg., ter importado comandos da PS3, visando usá-los e assim colocá-los em circulação. Não o conseguiu, mas tentou já que o arguido praticou atos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este se chegasse contudo a consumir-se. Sendo que a tentativa é punível in casu nos termos dos artigos 22.º e 23.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Penal, aplicáveis por força das disposições conjugadas do artigos 320.º do CPI e 4.º do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro.

De acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no processo nº 896/07.5TAMTS.P1, em 10 de Março de 2010:

“No que toca ao crime de contrafacção, imitação ou uso ilegal de marca, p. e p. nos termos do artigo 323° do Código da Propriedade industrial, refere este artigo que, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de muita até 360 dias quem, sem consentimento do titular do direito, contrafizer, total ou parcialmente, ou, por qualquer meio, reproduzir uma marca registada (al a)) usar as marcas contrafeitas ou imitadas (al. c)) São elementos objectivos deste crime, a prática de uma das situações descritas nas alíneas acima referidas, sem consentimento do titular do direito. No que se refere ao tipo subjectivo do crime, verifica-se a exigência de dolo. Relativamente ao bem jurídico protegido por esta norma, temos que é a propriedade da marca registada; a confiança dos consumidores na genuinidade e qualidade dos produtos, susceptíveis de ser defraudadas pela aparência imitativa da mercadoria e idónea a enganar. O interesse aqui protegido é essencialmente o do consumidor, a boa-fé nas relações negociais. Relativamente ao crime de venda, circulação ou ocultação de produtos ou artigos contrafeitos, p. e p. nos termos do artigo 324° do Código da Propriedade industrial, dispõe este artigo (anterior 264°, 2, do Código da Propriedade Industrial que):“É punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias quem vender, puser em circulação ou ocultar produtos contrafeitos, por qualquer dos modos e nas condições referidas nos artigos 321° a 323°, com conhecimento dessa situação.”São elementos objectivos deste crime:

- A venda, colocação em circulação ou ocultação de produtos contrafeitos;

- Por qualquer dos modos e condições referidas nos artigos 321° a 323°;

- O agente tenha conhecimento da situação.

Em relação ao tipo subjectivo do crime, preenche-se também o mesmo com o dolo, sendo que o bem jurídico protegido por esta norma é a marca registada, assegurando-se o interesse do respectivo titular."

Assim, a conduta do arguido, em termos objetivos, enquadra-se na previsão do ilícito p. e p. no art. 323.º do C.P.I., na sua forma tentada, sendo que em termos subjetivos também se enquadra conforme adiante melhor se verá.

Passemos, agora, a analisar do pedido de pronúncia do arguido pela prática do crime previsto no art. 324º do CPI.

A decisão recorrida, neste domínio, considerou duas questões:

Em primeiro lugar “saber se os comandos apreendidos são contrafeitos”, concluindo, e bem, pela positiva;

Em segundo lugar “saber se o arguido ao efectuar a encomenda no ebay tinha conhecimento dessa situação e qual o destino que iria dar aos comandos”.

 Ora, quanto a esta segunda questão, a decisão instrutória sub judice – conjugando as declarações do arguido e os documentos juntos aos autos relativos à importação dos bens contrafeitos - concluiu em suma que:

- quando interrogado o arguido declarou ter adquirido apenas “… 5 comandos em Junho de 2012” (…) “com o intuito de ficar com os 5 comandos”;

- “de acordo com as facturas remetidas pela ASAE e que constam de fls. 272-273 e 291-292 resulta que o arguido só fez uma compra e que pagou pelos comandos 149,17€”, pelo que “a versão do arguido tem assim sustentação nos documentos que acompanharam a importação.”

- “também não ficou demonstrado que fosse intenção do arguido vender os comandos, recordando que apenas está comprovada a compra de 5 comandos (…)”.

 

Discorda este tribunal ad quem da conclusão a que chegou a decisão instrutória recorrida na medida em que entendeu acolher, sem mais e sem o devido sentido crítico sobre a valoração das declarações do arguido, as explicações deste, em que apesar de reconhecer ter procedido à importação de 5 comandos da PS3, refere que estes se destinavam a seu uso pessoal, mais entendendo que esta tese é corroborada pelos documentos de importação juntos aos autos.

Ora, as recorrentes entendem inversamente não só que a tese do arguido não é verosímil, como também não é sequer suportada pelos documentos juntos aos autos, pelo contrário, pelo que existiu erro notório na apreciação da prova pela Meritíssima Juíza  a quo.

Também a nós nos parece o mesmo. Senão vejamos.

Diz a decisão instrutória recorrida que o arguido, quando interrogado referiu que “(…)” só adquiriu 5 comandos em Junho de 2012, sendo que em Novembro de 2012 recebeu uma carta em casa dos correios para levantar uma encomenda em seu nome, o que não fez, por não ter sido ele a encomendar nada”.

Ora, contrariamente a esta versão da prova documental junta aos autos, resulta que:

- em Junho de 2012, mais precisamente no dia 15/06/2012 a Delegação Aduaneira das Encomendas Postais procedeu à suspensão do desalfandegamento de mercadoria suspeita de contrafação da marca SONY, procedente da China, referente a cinco objetos ou encomendas postais com os números locais 526921, 526922, 526910, 526911 e 526913, cada um contendo 2 comandos com a marca SONY, o que perfaz o total de 10 unidades, destinados a AS , nestes autos arguido, processo ao qual foi atribuído o seguinte número interno daquela Delegação Aduaneira PIC nº 879/2012 – tudo cfr. documentos que constam a fls. 248, 249, 250, 251, 252 e 253 dos autos;

e resulta ainda que:

- em Novembro de 2012, mais precisamente no dia 8/11/2012 a Delegação Aduaneira das Encomendas Postais procedeu à suspensão do desalfandegamento de mercadoria suspeita de contrafação da marca SONY, procedente de Hong Kong, referente a um objeto postal com o número local 548603, contendo 5 comandos para consola com a marca SONY, destinados a AS , nestes autos arguido, processo ao qual foi atribuído o seguinte número interno daquela Delegação PIC nº 1802/2012 - tudo cfr consta a fls. 258 e 259, dos autos.

Verifica-se então que, de acordo com os referidos documentos juntos aos autos, e ainda que se atenda à versão do arguido de que não procedeu a nenhuma encomenda em Novembro de 2012, o que não se concede e se coloca como mera hipótese, a importação ocorrida em Junho de 2012PIC nº 879/2012 - respeita a 10 comandos (e não a 5 conforme alega o arguido), estes encomendados e pagos pelo arguido no decurso do mês de Maio de 2012, de acordo com os atrás citados documentos.

Por outro lado ainda, refere a decisão instrutória recorrida “De acordo com as faturas remetidas pela ASAE e que constam a fls. 272-273 e 291-292 resulta que o arguido só fez uma compra e que pagou pelos comandos a quantia de 149,17€. A versão do arguido tem assim sustentação nos documentos que acompanharam a importação.”

Ora ainda que se entenda que o arguido só tenha efetuado uma compra e não duas – o que, como se disse, apenas se coloca como mera hipótese, não se concedendo – a verdade é que a factura e documento respetivo de pagamento, constantes a fls. 290 e 291 dos autos (e não fls. 291-292 como refere a decisão instrutória na página 6, a fls. 315, que nos parece tratar-se de mero lapso de escrita já que fls. 292 se refere a um despacho e uma vez que na página 4 da decisão instrutória  alude-se “fls. 290 e 291”) referem-se ao PIC Nº 879/2012, dez comandos, conforme decorre do documento de fls. 289 dos autos.

Na verdade, vendo o teor de tal documento: a factura nº 0007 – fls. 290 – esta contém na sua descrição as seguintes menções:

Date                   Description                                                                          Quantity          Unit Price              Amount

5/9/2012             Bluetooth controllers                                                                10                    £11.50                  £115,00

Note to recipient

Please pay for it and give me your telephone number

Thanks

                    Subtotal                      £115,00
          

                Total                     £115,00GB

Importa ainda notar que na língua inglesa a referência ao mês antecede, pelo que a indicação de “5/9/2012” quer dizer “Maio, dia 9 de 2012”

Traduzindo-se o texto, tal factura na sua descrição refere no título “descrição” comandos Bluetooth, no título “quantidade” o nº 10, no título “preço unitário” o valor de £11.50 (onze libras e meia) e no “montante” o total de £115,00 (cento e quinze libras)

Por sua vez, juntamente com a factura, consta a fls. 291 conforme alude a decisão instrutória, documento comprovativo do respetivo pagamento da factura nº 0007, este efectuado na mesma data, a qual neste documento vem identificada da seguinte forma “May 9, 2012”.

De tal documento consta o valor a pagar, quer em libras britânicas quer em euros, este resultante da respetiva conversão monetária, o primeiro no valor de £115,00 GBP e o segundo no montante de 149,17€.

Logo, estes documentos, referem-se evidentemente ao PIC Nº 879/2012, de Junho de 2012, pois só após o pagamento da mercadoria que ocorreu em 9 de Maio de 2012, é que esta foi enviada ao arguido, sendo que o respetivo desalfandegamento foi suspenso em Junho de 2012.

Assim, da análise das provas, resulta erro manifesto na apreciação que destas fez a decisão instrutória que, tendo atendido a estes documentos supostamente para corroborar a versão do arguido de que em Junho de 2012 efetuou uma compra de 5 comandos, no valor de 149,17€ pago pelo arguido, no entanto nada refere quanto à quantidade de bens a que a mesma factura se reporta – 10 e não 5 como alega o arguido –, conforme resulta do teor da respetiva descrição da factura.

Afinal, atento os documentos a que a decisão instrutória alude para alicerçar a sua fundamentação, tal prova documental referida e junta aos autos não sustenta a versão do arguido, que não só não é verosímil atentas as regras de senso comum e da experiência, como não é crível atenta a documentação existente nos autos.

Por outro lado, também decorre das regras da experiência comum que não é verosímil que os 15 comandos ou, pelo menos, os 10 comandos (tal qual resulta da documentação supra referida do PIC Nº 879/2012) se destinariam apenas a uso pessoal do arguido. Acolhendo a sua tese teria de ter muitos e devastadores sobrinhos a jogarem frequentemente na PS3 em sua casa para precisar de tantos comandos de reserva/substituição para a consola. Matéria que desenvolveremos mais adiante.

Em suma, dos factos resulta que:

- os bens apreendidos são contrafeitos – nesta parte não se coloca em crise a douta decisão instrutória  recorrida;

- não é crível a versão do arguido atentas as regras normais da experiência, sendo que esta não é de forma alguma corroborada pelos documentos constantes dos autos, pelo contrário estes documentos colocam exatamente em crise a versão do arguido;

- por esse motivo a decisão instrutória  recorrida errou francamente na apreciação da prova documental;

- daí que existem indícios suficientes, atentas as regras da experiência comum, que indiciam que o arguido sabia e não podia desconhecer que os comandos para a PS3 que importou e por conseguinte colocou em circulação, e que tudo leva a crer (nomeadamente atendendo à quantidade de bens importados) seriam destinados a revenda, constituíam imitação das marcas das aqui recorrentes, marcas essas que o arguido, bem conhece, tanto mais que são marcas notórias e de prestígio, e apenas vendidas em estabelecimentos autorizados, como aliás aquele também reconheceu já nos autos;

- a conduta do arguido é, assim, suscetível de integrar os ilícitos previstos e punidos pelos artigos 323.º e 324º todos do C.P.I., ambos na forma tentada.

Os factos relevantes para a decisão que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à "dúvida razoável" do Tribunal, não podem considerar-se como provados, sejam em sede de sentença final seja indiciariamente em sede de pronúncia.

Em processo penal, a dúvida sobre os factos resolve-se em função do princípio da presunção da inocência.

O princípio condensado na fórmula latina in dubio impõe que em caso de dúvida na valoração da prova, a decisão seja pro reo.

Um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido.

Por força do princípio in dubio pro reo, todos os factos relevantes para a decisão da causa que, apesar da prova recolhida, não possam ser subtraídos à dúvida razoável, também não podem considerar-se como provados, não podendo a falta de provas, de modo algum, desfavorecer o arguido.

Está em causa a observância do princípio da presunção da inocência consagrado desde logo no artigo 32.° da CRP, que se traduz na garantia que cada um tem de não ser considerado culpado enquanto não forem provados factos inerentes à imputação de um qualquer ilícito penal através de uma atividade probatória inequívoca.

A determinação de um non liquet na questão da prova deverá ser sempre valorado a favor do arguido pela observância do princípio in dubio pro reo, corolário máximo do princípio da presunção da inocência.

Neste sentido, este non liquet na questão da prova (não permitindo, contudo, ao juiz omitir uma decisão) tem, sempre, de ser valorado a favor do arguido (Direito Processual Penal, Lições do Prof. Figueiredo Dias coligidas por Maria João Antunes, Coimbra, 1988-9, pág. 145).

Ao que parece, a Meritíssima Juíza de Instrução entendeu que a prova produzida nos autos não lhe permitia firmar um juízo de certeza indiciária sobre se o arguido AScometeu ou não factos integrantes dos crimes eu lhe eram imputados, acarretando a sua não pronúncia.

A decisão recorrida padece do vício contemplado na alíneas a) e c), do n.º 2, do art. 410.º, do CPP, porque o Tribunal a quo não se pronunciou sobre factos sobre os quais se devia ter pronunciado, insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida e errou na apreciação da prova.

A insuficiência a que se refere o referido preceito legal é a que decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão.

Assim, tal vício não tem a ver nem com a insuficiência da prova produzida, pois que, se não foi feita prova bastante de um facto e ele é dado como provado, haverá, sim, erro na apreciação da prova, nem com a insuficiência dos factos provados para a decisão proferida, em que, também, há erro, já não na decisão sobre a matéria de facto mas, sim, na qualificação jurídica desta (cfr., neste sentido, o Acórdão do STJ, de 7 de Julho de 1999, proferido no processo nº 99P348 e consultável em www.dgsi.pt).

Resulta suficiente indiciariamente provado que o arguido AS terá procedido às operações de importação de 15 (quinze) comandos para a PS3 sendo absolutamente seguro que o fez relativamente a pelo menos 10 (dez) deles e não apenas a 5 (cinco) como este afirma nas suas declarações e a decisão instrutória também dá por assente sem mais, isto é, sem qualquer juízo crítico, como se impunha, relativamente aos 15, de que existe prova nos autos, e sobretudo a 10 de que existe inequívoca prova nos autos, fazendo aliás parte intrínseca da mesma encomenda dos 5 que o arguido admite ter feito para a sua compra através do site internet do ebay e que pagou pelo sistema PayPal como se alcança de fls. 272/273 e 290/291.

A contradição do número de comandos é manifesta na própria decisão recorrida pois se a um lado afirma:

"A resposta a esta questão, em primeira linha é dada pelo arguido, a que terão que acrescer os documentos relativos à importação, bem como as regras da experiência comum. (…)

De acordo com as faturas remetidas pela ASAE e que constam a fls. 272-273 e 291-292, resulta que o arguido só fez uma compra e que pagou pelos comandos a quantia de 149,17€. A versão do arguido tem assim sustentação nos documentos que acompanharam a importação." 

Por outro lado, a mesma decisão recorrida diz que:

"Também não ficou demonstrado que fosse intenção do arguido vender os comandos, recordando que apenas está comprovada a compra de 5 comandos, e explicou o arguido que comprou esta quantidade por ser mais barato, por não ter de pagar portes e porque tem sobrinhos que lhe danificam facilmente os comandos da PS3." 

Sendo que da análise desses mencionados documentos resulta claríssimo que foram 10 e não 5 os comandos para a PS3 encomendados e pagos pelo arguido. Aliás, os mencionados 149,17€ dizem respeito ao valor de 10 comandos.

Quanto ao argumento do arguido, que a decisão instrutória de não pronúncia acolheu, de que pensava que os comandos encomendados eram autênticos, impõe-se-nos dizer que o arguido AS deveria desde logo reconhecer estar perante produtos contrafeitos face ao baixo valor que lhe era oferecido para comprar aqueles comandos ditos Sony Dualshock 3 para a consola de videojogos PlayStation 3 (PS3), não em estado de usado mas novo a um valor unitário inferior a quinze euros (mais exatamente a 14,91€ cada). Tendo-o feito pela internet certamente que fez outras consultas noutros sites para além do "ebay". E, tal como nós as fizemos, um Comando Sony Dualshock 3 para a PS3, como todos o que estão em causa nos autos, pois assim resulta, designadamente, dos relatórios periciais de fls. 71 e 82 e das fotos de fls. 167 e 168, custa presentemente, nas lojas online, desde os 39,99€ da MegaMania até aos 64,00€ da Coditek, passando pelos 43,90€ da FNAC ou os 59,99€ da Worten, da SAtecnosol e do El Corte Inglês (em todos acrescendo portes). E mesmo em estado de usado (2ª mão) o seu preço médio online anda pelos 25,00 a 30,00€, ou seja entre cerca do dobro (usado) e do quádruplo (novo) do valor que o arguido desembolsou para comprar cada um deles. Acresce que, o valor daqueles comandos - os Dualshock PS3 - terá certamente diminuído com o lançamento da geração seguinte da PlayStation, a quarta, lançada na Europa em 29 de Novembro de 2013, a que imediatamente se seguiu a dos novos Comandos Sony Dualshock PS4 Magma Red e Wave Blue, sendo que as compras do arguido ocorreram em 2012 quando a PS4 ainda não existia e as primeira e segunda gerações da PlayStation estavam já ultrapassadas, pelo que a PS3 era então a da moda, logo, segunda as regras da experiência comum, a mais cotada bem como os respetivos acessórios. Por tudo isto o arguido bem sabia que estava a comprar gato por lebre, isto é falso em vez de verdadeiro, querendo efetivamente que assim fosse para beneficiar de um significativo menor custo na aquisição/compra do referido equipamento.
Mutatis mutandis, tal como na recetação culposa ou negligente (vd. art. 231.º, n.º 2, do Código Penal), o arguido AS, com a intenção de obter para si ou para terceiro determinada vantagem patrimonial, não se assegurou previamente da legítima proveniência dos comandos que pretendia adquirir, e efetivamente adquiriu, para uso e colocação em circulação, devendo, face ao montante do preço que lhe era proposto, razoavelmente suspeitar que provinham de facto ilícito típico violador dos direitos de propriedade industrial de terceiros, in casu de marca das recorrentes.
Também aqui, a conduta criminosa pode estruturalmente definir-se como de delito que acarretava a manutenção, consolidação ou perpetuidade de uma situação anormal e antijurídica, decorrente de um crime anterior praticado por outrem de lesão de direitos de propriedade intelectual de terceiro legalmente consagrados (cfr. o Acórdão do STJ de 19 de Setembro de 1991, Jurisprudência Penal, Simas Santos, Leal Henriques, pag. 619 e Pedro Caeiro, Comentário Conimbricense ao Código Penal, V.II, pag. 475 e ss).

Quanto ao argumento do arguido, que a decisão instrutória de não pronúncia acriticamente acolheu, de que os comandos encomendados se destinavam exclusivamente ao seu uso pessoal, impõe-se-nos dizer que tendo dito que tais comandos seriam igualmente usados pelos seus sobrinhos logo aqui estaria só por si afastado serem tais comandos destinados exclusivamente ao seu uso pessoal, mas considerando, numa interpretação mais favorável ao arguido, que tal uso estritamente pessoal será de atender enquanto expressão de que os comandos seriam apenas usados dentro do seu espaço residencial e numa única consola, ainda assim, não faz qualquer sentido que queira ter em casa, para além dos que presumivelmente já teria para jogar a PlayStation 3, mais quinze ou pelo menos dez comandos iguais, pois mesmo jogando acompanhado (os comandos têm natureza individual)  uma consola PS3 em multiplayer pode comportar - em modo offline que é o que aqui releva - apenas até um máximo de 4 jogadores em simultâneo.

E convenhamos que também é fraco o argumento do arguido de que "como tem sobrinhos pequenos e que lhe danificam os comandos, bem como a bateria dos mesmos vicia facilmente, entendeu como uma boa compra, para aproveitar o preço."

Com efeito, por um lado, os comandos são concebidos e estão construídos para suportarem uso intenso e mesmo algo musculado por parte de jogadores mais entusiasmados e fisicamente vigorosos na motricidade fina da mão.. A não ser que os referidos sobrinhos - de cuja real existência, número e idades nem sequer se apurou - arranquem os botões e os manípulos, saltem de pés juntos em cima dos comandos ou os quebrem a martelo, mas nesse caso recomendará a prudência e o bom senso que não os deverá deixar usar os comandos e a PS3 ou que permitindo-o não deverá deixar que o façam sozinhos, isto é sem a sua (do arguido) presença ou de pessoa mais responsável que os impeça de tais vandalismos.

Por outro lado, se as baterias dos comandos da PS3, como alega, se viciam facilmente, como na generalidade dos demais aparelhos que usam baterias será de comprar nova bateria e não novo equipamento, pois em regra o custo da bateria será menor que do aparelho, in casu comando, onde operam e cujo funcionamento, por via de fornecimento elétrico, asseguram.  No "ebay" estão disponíveis para compra baterias para os comandos sem fios da PS3 de 1800mAh a cerca de 2€ cada e de 2000mAh a cerca de 3€ cada. Logo muito abaixo dos 15€ pagas pelo arguido por cada comando. Se bem que, também aqui, é de logo crer que se trata manifestamente de contrafação pois nos sites de especializada e marcas reputadas como sérias pelo público em geral tais baterias rondam, mesmo com menores amperagens, logo menos potentes das anunciadas no ebay, os 25€ a unidade.

Ora, face a esta factualidade indiciada na prova, nunca o Tribunal poderia ter concluído pela não pronúncia do arguido sem se debruçar, como devia, sobre se as questões acima tratadas, que, de resto,  já constavam do requerimento para abertura de instrução e das duas queixas-crimes que o antecederam (nestes autos com o NUIPC 7912/12.7TDLSB e nos autos apensos com o NUIPC 11677/12.4TDLSB) e a que aquele requerimento também se reporta, o arguido AS conhecia, aliás não podia deixar de conhecer, a natureza e características contrafeitas dos comandos que encomendou, tudo apontando para que os poria em circulação em Portugal não os destinando ou não os destinando exclusivamente ao seu uso pessoal mas certamente à venda a terceiros, agindo deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que aquelas apuradas condutas não lhe são por lei permitidas.

E, face aos factos denunciados, tais factos acima mencionados sobre os quais o Tribunal a quo não se pronunciou, são indubitavelmente relevantes para a decisão da causa,

Não obstante, entendemos que não restam dúvidas de que existem elementos de prova bastantes para formulação de um juízo de suficiente certeza indiciária que leve a concluir que o arguido AS praticou, em autoria material e na forma tentada, os crimes  previstos e punidos nos artigos 323.º, alínea c) (uso de marca contrafeita) e 324.º (colocação em circulação de produtos contrafeitos no território português) ambos do CPI.

 Ora, posto isto, apenas se entende como resultante de erro notório na apreciação da prova o facto afirmar-se na decisão recorrida "que não foram recolhidos indícios suficientes que permitam formular a conclusão de que, em julgamento, e com base nos mesmos o arguido seja condenado numa pena." 

Perante a factualidade apurada, o que não se pode fazer de todo é o raciocínio plasmado na decisão recorrida ao não pronunciar o arguido apenas fazendo fé e dando credibilidade às suas declarações, fazendo cindir a factualidade e a restante prova que devem ser vistas e valoradas num todo concatenado, valorando-as assim separadas à luz do princípio in dubio pro reo, uma vez que, deste modo formatado, o raciocínio inexoravelmente se não afastará a final de uma conclusão dedutiva que aponte para a falta de prova dos factos e sua autoria e para, pelo menos, a que se considere instalada a dúvida que afasta o juízo de certeza que se impõe ao julgador para proferir decisão instrutória de não pronúncia.

Valorando separadamente a prova e os factos, desinseridos e descontextualizados de toda a prova produzida e de toda a factualidade assente, em clara violação do que deve ser a valoração da prova e, em especial, da prova indireta.

Quanto à apreciação da prova importa atentar na decisão deste Tribunal da Relação de Lisboa lavrada em 10 de Outubro de 2007 no processo n.º 8428/2007-3:

"– A livre apreciação da prova a que se refere o artigo 127º do Código de Processo Penal é apenas um princípio metodológico de sentido negativo que impede a formulação de «regras que predeterminam, de forma geral e abstrata, o valor que deve ser atribuído a cada tipo de prova», ou seja, o estabelecimento de um sistema de prova legal.

– Não obstante o seu carácter negativo, este princípio pressupõe a adoção de regras ou critérios de valoração da prova. E se o que se pretende num julgamento é conhecer um acontecimento pretérito, «a valoração há-de conceber-se como uma atividade racional consistente na eleição da hipótese mais provável entre as diversas reconstruções possíveis dos factos».” (destaque nosso)

Vejamos estoutro proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 7 de Janeiro de 2004 no processo n.º 03P3213 e que contém ensinamentos importantes:

"- O princípio estabelecido no artigo 127° do CPP significa que o valor dos meios de prova não está legalmente pré-estabelecido, devendo o tribunal valorar os meios de prova de acordo com a experiência comum e com a concorrência de critérios objectivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação e convicção.

- O "erro notório na apreciação da prova" constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.

- A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da ‘experiência comum’.

- Na dimensão valorativa das "regras da experiência comum" situam-se as descontinuidades imediatamente apreensivas nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidades ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência da vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta.

- Na passagem de um facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) de um facto desconhecido, têm de intervir as presunções naturais, como juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido. (destaque nosso)

- Na presunção deve existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido; a existência de espaços vazios no percurso lógico determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões.

- A compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação de uma decisão sobre a matéria de facto, quando respeite a factos que só podem ter sido deduzidos ou adquiridos segundo as regras próprias das presunções naturais, constitui um elemento relevante para o exercício da competência de verificação da (in) existência dos vícios do artigo 410°, n° 2, do CPP, especialmente do erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c).”

Também sobre as regras da experiência e a utilização de presunções naturais, vejam-se:

- o Acórdão do STJ de 9 de Fevereiro de 2005 proferido no processo n.º 04P4721:

"- Administração e valoração das provas cabe, em primeira linha, ao tribunal perante o qual foram produzidas, que apreciará e decidirá sobre a matéria de facto segundo o princípio estabelecido no artigo 127° do Código de Processo Penal: salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente.

- A livre convicção não significa, no entanto, apreciação segundo as impressões, nem inexistência de pressupostos valorativos, ou a desconsideração do valor de critérios, ainda objectivos ou objectiváveis, determinados pela experiência comum das coisas e da vida e pelas inferências lógicas do homem comum suposto pela ordem jurídica.

- A livre convicção não significa liberdade não motivada de valoração, mas constitui antes um modo não estritamente vinculado de valoração da prova e de descoberta da verdade processualmente relevante, isto é, uma conclusão subordinada à lógica e à razão e não limitada por prescrições formais exteriores.

- O "erro notório na apreciação da prova" constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.

- A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da "experiência comum”.

- A racionalidade e a não arbitrariedade da convicção sobre os factos devem ser apreciadas, de um lado, pela fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção), e de outro pela natureza das provas produzidas e dos meios, modos ou processos intelectuais utilizados e inferidos das regras da experiência comum para a obtenção de determinada conclusão.

- As presunções naturais são o produto das regras de experiência que permitem ao juiz retirar de um facto conhecido ilações para adquirir um facto desconhecido, quando um facto é a consequência típica de outro. (destaque nosso)

- Na ilação derivada de uma presunção natural tem de existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido; a existência de espaços vazios no percurso lógico de congruência segundo as regras de experiência, determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária.

- O afastamento das regras das presunções naturais integra o vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no art. 410º, n° 2, al.c), do C.P.P.."

- o Acórdão do STJ de 22 de Janeiro de 2013, proferido no processo n.º 184/11.2GCMTJ.L1.S1: “VIII - A prova indiciária não é nula, bastando para ser admitida o facto de não estar incluída nos métodos proibidos de prova (art. 126.º do CPP). No entanto, trata-se de prova inominada, por a ela não se referir o CPP, que deve ser avaliada de acordo com o princípio da livre convicção probatória, sem dispensar fundamentação motivada, objectiva e racional. IX - O indício apresenta-se de grande importância no processo penal porque nem sempre se tem ao alcance a prova directa que autoriza a perseguir a conduta, sendo necessário, pelo recurso ao esforço lógico-jurídico, partir de factos certos para inferir outros.”;

- o Acórdão do STJ de  9 de Fevereiro de 2012, proferido no processo n.º 233/08.1PBGDM.P3.S1 (em www.dgsi.pt): “VIII - A nossa lei processual penal não faz qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária. O funcionamento e creditação desta estão dependentes da convicção do julgador que, sendo uma convicção pessoal, deverá ser sempre objectivável e motivável. Fundamentando-se a condenação na prova indiciária a interpretação da prova e a fixação dos factos concretos terá, também, como referência as regras gerais empíricas ou as máximas da experiência que o juiz tem de valorar nos diversos momentos de julgamento. IX - A necessidade de controle dos instrumentos através dos quais o juiz adquire a sua convicção sobre a prova visa assegurar que os mesmos se fundamentam em meios racionalmente aptos para proporcionar o conhecimento dos factos e não em meras suspeitas ou intuições ou em formas de averiguação de escassa ou nula fiabilidade. Igualmente se pretende que os elementos que o julgador teve em conta na formação do seu convencimento demonstrem a fidelidade às formalidades legais e às garantias constitucionais.”


e ainda o acórdão do Tribunal de Relação de Lisboa de 7 de Março de 2012, proferido no processo n.º 443/09.4PEOER.L1-5: “II. Para a prova dos factos em processo penal, é legítimo o recurso à prova indirecta, também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial, com virtualidade incriminatória para afastar a presunção de inocência; III. Uma vez que em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125º, CPP), delas (das provas admissíveis) não pode ser excluída a prova por presunções, em que se parte de um facto conhecido (o facto base ou facto indiciante, que funciona como indício) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum) recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro.”

Só existe erro notório na apreciação da prova quando do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta com toda a evidência a conclusão contrária à que chegou o tribunal, ou seja, quando se dão como provados factos que, face às regras da experiência comum e à lógica corrente, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos, isto é, quando se dá como provado um facto com base em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios, claramente violadores das regras da experiência comum.

Para ser notório, tal vício tem de consubstanciar uma falha grosseira e ostensiva na análise da prova, denunciadora de uma violação manifesta das regras probatórias ou das “legis artis”, ou ainda das regras da experiência comum, ou que aquela análise se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

O erro é notório quando for ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, pág. 341).

Verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5ª edição, pgs. 61 e seguintes).

Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., pág. 341),

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).

Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.

Existe tal erro quando, usando um processo racional ou lógico, se extrai de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, irracional, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.

Tal erro traduz-se basicamente em se dar como provado algo que notoriamente está errado, que não pode ter acontecido, ou quando certo facto é incompatível ou contraditório com outro facto positivo ou negativo (cfr. Acórdão do STJ de 9 de Julho de 1998, Processo n.º 1509/97).

A convicção formada pelo Tribunal de primeira instância, ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova plasmado no art. 127.º do C.P.P., não surge criteriosamente fundamentada, racionalmente objetivada e logicamente motivada – cfr. Acs. TC nº 1165/96, de 19/11, in BMJ, nº 461, p.93; e STJ de 4/11/98, in CJ, Acs. do STJ, VI, t.3, 201, e de 21/01/99, Proc. nº 1191/98 – 3ª, SASTJ, nº 27, p.78).

E existe erro notório na apreciação da prova, ou seja como o facto de que todos se apercebem diretamente ou que, observado pela generalidade dos cidadãos, adquire carácter notório, de tal forma patente que não escapa à observação do homem de formação média, o que deve ser demonstrado a partir do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum – cfr. Acs. STJ de 6/04/94, in CJ, Acs. do STJ, II, t.2, 186; de 17/12/97, in BMJ, nº 472, p.407; de. 15/04/98, in BMJ, nº476, p.82, e de 10/03/99, Proc. Nº162/99-3ª, SASTJ, nº29, p.73.

Verifica-se da prova apreciada pelo Tribunal a quo, que do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta com toda a evidência a conclusão contrária à que chegou o Tribunal a quo, que desse texto se extrai, por forma mais do que óbvia, que o Tribunal optou por decidir, na dúvida não esclarecida por si como devia e podia, a favor do arguido AS .

A propósito do que vimos dizendo sobre a necessidade de apreciação global da prova, retenhamos o que neste aresto de 28 de Abril de 2009 do Tribunal da Relação de Coimbra se diz no processo n.º 435/07.8PATNV.C1:

"- As provas produzidas têm de ser apreciadas não apenas por aquilo que isoladamente valem, mas também valorizadas globalmente, isto é no sentido que assumem no conjunto de todas elas. (destaque nosso)

- O indício não tem apenas uma relação necessária com o facto probando, pois pode ter várias causas ou efeitos, por isso que o seu valor probatório seja extremamente variável. Um indício revela o facto probando e revela-o com tanto mais segurança quanto menos consinta a ilação de factos diferentes.

- Quando um facto não possa ser atribuído senão a uma causa, o indício diz-se necessário e o seu valor probatório aproxima-se do da prova directa. Quando o facto pode ser atribuído a várias causas, a prova de um facto que constitui uma dessas causas é também somente um indício provável ou possível. Para dar consistência à prova será então necessário afastar toda a espécie de condicionamento possível do facto probando menos um.”

Todos os acórdãos até agora citados estão disponíveis no site da DGSI.

Os factos materializados na prova pericial e documental nos quais se diz ter estribado a decisão (o que na realidade não fez), nas condições descritas, tem um suficientemente forte peso indiciário.

Para além da prova direta existente, existe uma presunção natural de que o arguido foi o autor dos denunciados crimes violadores de direitos de propriedade industrial das assistentes.

E quanto à presunção natural, e não legal ou jurídica, esta presunção natural não colide com o princípio in dubio pro reo, pois são duas presunções de natureza diferente.

A primeira é um instrumento de análise da realidade exterior, baseado na lógica e no senso comum, e que nos permite estabelecer ligações entre factos separados no espaço e no tempo.

A segunda é uma regra processual com consagração constitucional, que nos diz que a dúvida no julgamento da matéria de facto redundará sempre em benefício do arguido e nunca em seu prejuízo.

Exemplo:

- Num quarto fechado e sem janelas está guardado um objeto em vidro, intacto. É visto um indivíduo a abrir a porta e entrar. Passado minutos sai. O objeto de vidro aparece partido. Ninguém viu o indivíduo em causa a partir o vidro. No entanto, existe uma presunção fortíssima de que foi ele o autor do estrago, pois nas circunstâncias em que o facto ocorreu essa é a única explicação lógica.

Há uma presunção natural de ter sido ele o autor do estrago.

E para fugir a essa conclusão ele teria de demonstrar de que forma o vidro apareceu partido, sem a sua intervenção. Imaginemos agora que são vistas três pessoas a entrar para esse quarto. Já ficamos sem saber quem partiu o vidro, se os três, se só dois, se só um, e quem. Aqui entra o in dubio pro reo, que nos diz que não é possível adquirir a certeza sobre quem partiu o vidro, e nestes casos a solução é considerar o facto não provado.

No caso em apreço, como já vimos, existe uma forte presunção da autoria dos factos por parte do arguido, e nada na prova produzida em nos autos afasta essa conclusão.

É perfeitamente válido em processo penal o recurso a presunções simples ou naturais, nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal (art. 351.º do Cód. Civil) visto que o art. 125.º do C.P.P., sob epígrafe “legalidade da prova” estabelece que são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei, estatuindo o art. 349.º do Cód. Civil, que as presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido.

Ora, estas, são ao cabo e ao resto, o produto das regras de experiência que, como é sabido, enforma o principio da livre apreciação da prova expressamente consagrado no art. 127.º do C.P.P.[1], que, por isso, também funciona para a prova indireta, não havendo nenhuma colisão, como antes se viu, com o princípio da legalidade.

Como ensina Vaz Serra in "Direito Probatório Material", BMJ, n°112 pág, 190[2]: “Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência da vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência [ou de uma prova de primeira aparência]”.

“(...) Daqui e da compreensão conjugada dos demais indícios e elementos probatórios enunciados proficientemente em sede de fundamentação da decisão de facto, pode concluir-se que a convicção a que o tribunal acedeu, não violenta nenhuma regra de experiência, e é uma das possíveis, motivo pelo qual, este segmento de inconformismo soçobra.”

Sabe-se da primazia que os Tribunais nacionais dão à valoração da prova direta ou presencial para a prova dos factos, sobrepondo-a à chamada prova indireta, circunstancial ou por presunções, a ponderar necessariamente num todo concatenado.

Na verdade, tem sido pouco tratada na doutrina e jurisprudência a questão da valoração da prova indireta face à sobrevalorização da prova direta como fundamento primacial da decisão, sendo certo que, na ausência de prova direta dos factos e seus autores, não estando em causa critérios de natureza científica, há que recorrer aos critérios da prova de probabilidades, indireta ou indiciária, bastante para infirmar a presunção de inocência, recorrendo a factos plurais, concomitantes e interrelacionados, com ligação precisa aos factos a provar, segundo as regras do critério e experiência humanos e um raciocínio intelectual de inferência analógica elaborado de forma racional e lógica, que indiquem a existência de uma conduta penalmente relevante – podendo os indícios referir-se, apenas, a factos acessórios (cfr. Acórdãos da Relação de Coimbra de 4 de Março de 2009, proferido no processo n.º  1313/07.6 GBAGD.C1, e de 22 de Abril de 2009, proferido no processo n.º 2912/06.9 TALRA.C1, in www.trc.pt/processopenal/recpen; e Prova Indiciária, Contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo premente, Euclides Dâmaso Simões).

Em síntese, colhe-se dos arestos citados que a prova indiciária, devidamente valorada de acordo com o princípio da livre convicção probatória e assente em fundamentação motivada, objetiva e racional, permite fundamentar uma condenação, com virtualidade incriminatória para afastar a presunção de inocência. Isto desde que salvaguardadas as garantias constitucionais de defesa.
Não subscrevemos o raciocínio plasmado da decisão recorrida, que fazendo cindir a factualidade e prova que devem ser vistas e valoradas num todo concatenado, valorando-a assim separada à luz do princípio in dubio pro reo, uma vez que, assim formatado, o raciocínio inexoravelmente se não afastará a final de uma conclusão dedutiva que aponte para a falta de prova dos factos e sua autoria e para, pelo menos, a que  se considere instalada a dúvida que afasta o juízo de certeza indiciária que se impõe ao julgador para proferir decisão instrutória de não pronúncia.

Os tribunais administram a justiça em nome do povo (artigo 202.º, n.º 1, da Constituição). São, a um tempo garantia dos cidadãos contra eventuais abusos de quaisquer outros poderes e seu esteio contra atos delituosos de que possam ser alvo, prevenindo e reprimindo o crime com pedagogia e firmeza.

É comum ouvir dizer-se que o criminoso está sempre um passo, pelo menos, à frente da Lei.

E é bem verdade que mais valerá, infinitamente, absolver um culpado que condenar um inocente.

Mas numa sociedade em mutação – e respeitando, embora e sempre, os direitos constitucionalmente consagrados – a Justiça não pode refugiar-se no formalismo estrito, espúrio, da letra da lei, restritivamente interpretada em sistemático detrimento dos interesses e expectativas legítimas dos cidadãos e empresas que lhe cabe proteger, e, sobretudo, se o faz contra toda a lógica, em violação das mais elementares regras da experiência, cabendo ao Tribunal dar à Sociedade o sinal que ela tem o direito de esperar nos tempos conturbados que vivemos.

As marcas (de fábrica, de comércio e de serviço, que são os sinais usados para distinguir produtos e empresas no mercado), a par das invenções (de um produto ou de um processo de fabrico, desde maquinaria a fármacos, ou ainda de um modelo de utilidade/artefacto funcional), das criações estéticas (design) e dos chamados "desenhos e modelos industriais" constituem a designada Propriedade Industrial e todos podem ser devidamente acautelados de per se e em termos de garantia da lealdade de concorrência, as primeiras se forem registadas as segundas se forem passíveis de exploração industrial e estiverem patenteadas e assim sucessivamente. 

Paralelamente à Propriedade Industrial existem os Direitos de Autor e os Direitos com aqueles Conexos.

Os Direitos de Autor englobam e protegem as criações intelectuais originais nos domínios literário, científico e artístico, por qualquer modo exteriorizadas, aqui se incluindo, portanto, textos, desenhos, ilustrações, composições musicais, obras dramáticas, cinematográficas, fotográficas, coreográficas, arquitetónicas, pictóricas e escultóricas, entre outras.

Por seu turno, os Direitos Conexos são aqueles que, nomeadamente, englobam e protegem as prestações dos artistas intérpretes ou executantes, dos produtores de fonogramas e de videogramas e dos organismos de radiodifusão.
O conjunto da Propriedade Industrial e dos Direitos de Autor e Conexos constitui a Propriedade Intelectual.
Mais recentemente outros domínios tem merecido proteção em sistemas sui generis de propriedade intelectual como sucede com as obtenções vegetais, as indicações geográficas e as apelações/denominações de origem controlada. Outras matérias, alavancadas pelos países em desenvolvimento, podem vir a ser acolhidas nessa extensão de proteção de direitos como será porventura o caso dos recursos genéticos, dos conhecimentos tradicionais e do folclore.
Na Propriedade Intelectual os direitos do respetivo titular são protegidos face a qualquer terceiro que, sem consentimento daquele, explore um produto ou um processo objeto de patente, use marca igual ou semelhante para os mesmos produtos ou afins, ilicitamente utilize desenho ou modelo ou use abusivamente qualquer criação literária, científica ou artística. Terceiro infrator que arrisca, nalguns casos mesmo deverá, ser perseguido e punido criminalmente ainda que a censura social, por falta de informação, formação e sensibilidade, infelizmente, nem sempre se faça sentir, pois ainda há (demasiados) cidadãos complacentes quando não mesmo coniventes com tais práticas.
O combate à contrafação, ao plágio e a todas as demais formas de usurpação e pirataria aos direitos de propriedade intelectual (e à economia paralela, informal e subterrânea que lhes estão associadas, com também óbvia fuga ao fisco, em prejuízo de toda a comunidade em geral e de cada honesto  contribuinte em particular), é preocupação da União Europeia, em que nos inserimos, e resulta igual e inequivocamente das obrigações que Portugal, voluntária e internacionalmente, assumiu enquanto signatário e Estado-parte dos diversos tratados, convenções, acordos e protocolos multilaterais vigentes neste domínio e administrados pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual, agência especializada das Nações Unidas, criada em 1967, com sede em Genebra, na qual Portugal tem tido relevante e empenhado papel no contexto dos seus diversos comités, comissões, conselhos permanentes e outros órgãos diretores e nas Assembleias Gerais, cujas presidências, sublinhe-se, bastas vezes tem presidido. Sem olvidar as obrigações resultantes para a República Portuguesa do ADPIC - Acordo dos aspetos dos Direitos da Propriedade Intelectual relacionados com o Comércio (vulgo Acordo TRIPS), cuja implementação, supervisão/fiscalização dos quadros jurídico-legislativos nacionais e resolução de diferendos entre membros (Estados ou territórios aduaneiros autónomos) cabe à Organização Mundial do Comércio, que criada em 1995 também integra o sistema onusiano e tem a sua sede em Genebra.

Cabe às competentes autoridades com poderes inspetivos e policiais (ASAE, IGAC, GNR, PSP, etc.) investigar em inquérito crime, sob direção do Ministério Público, e a este ainda acusar, ou ao Juiz de Instrução pronunciar, quando resultem indícios suficientes da violação por conhecidos de direitos de propriedade intelectual e se mostrem verificados os pressupostos de que depende a aplicação ao(s) arguido(s) de uma pena ou de uma medida de segurança. Aos tribunais caberá, finalmente, absolver ou condenar, face à lei e à consciência dos julgadores, atentas as provas produzidas em julgamento.

Como se expendeu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29 de Março de 2006, proferido no processo 0545151 e consultável na Jusnet:

"A marca é um bem imaterial perceptível quando se materializa em bens tangíveis. Terá que haver a adopção de um símbolo que por sua vez, terá que estar relacionado com um produto ou serviço, princípio da especialidade, tendo, por fim, de existir uma representação mental pelo público consumidor. A marca será a união entre o símbolo e o produto, quando essa união é representada na mente do consumidor, sendo indispensável, condição sine qua non, que o símbolo possua capacidade distintiva, originalidade não no sentido subjectivo, mas no sentido de não ser banal.

São quatro as funções económicas e jurídicas que se reconhecem às marcas. Respectivamente, a função de indicação de proveniência, que como a mesma diz, indica a proveniência do produto, distinguindo-os no mercado em razão da sua proveniência; função indicadora de qualidade, em que há ónus daquele que concede uma licença de marca de controlar a qualidade do produto do licenciatário, no sentido de haver uma constância das características do produto; função condensadora de "goodwill "dado que a capacidade lucrativa da empresa tem tendência a fixar-se, evidenciar-se nas marcas. Estas condensam a capacidade lucrativa das empresas em virtude do chamado "selling power"; por último a função publicitária.(Art.191º do CPI).

(…)

Como assinala a Ex.mª magistrada do M.º P.º junto da 1.ª instância na sua resposta, citando Carlos Codesso in Delitos Económicos, edição Almedina, 1986, pág. 114, o legislador, ao falar em pôr em circulação "produtos ou artigos com marca contrafeita, imitada ou usada", emprega uma fórmula ampla e genérica, de maneira a abarcar todos os modos possíveis de entrada de mercadorias nos circuitos económico-sociais, tais como expedir pelos CTT, transportar, trazer consigo etc..

Ora, não fora o facto de os arguidos terem adquirido em Hong Kong os artigos contrafeitos e os mesmos não teriam sido expedidos para Portugal.

É evidente, assim, que a actuação deles integra o conceito de "por em circulação", tal como este deve ser entendido.

E não se diga, como alegam os arguidos, que não chegaram a estar na disponibilidade de tais artigos, uma vez que estes foram apreendidos antes de serem desalfandegados.

É que a mercadoria, depois de ter sido expedida em Hong Kong, não se transformou propriamente numa "res nullius" ou numa "res derelicta", sem ninguém que pudesse responder por ela.

Tendo entrado em Portugal, dirigida aos arguidos, estava à disposição deles, só os mesmos, ou alguém a seu mando, podendo levantá-la."

Voltando aos caso dos autos, como acima se disse, lida toda a prova produzida nos autos e conjugada num todo lógico e segundo as regras da experiência comum, inegável é a conclusão, com foros de suficiente certeza indiciária, de que o arguido AScometeu os factos imputados e pela prática dos quais devia ter sido pronunciado, que integram sem dúvida os elementos típicos dos crimes  previstos e punidos nos artigos 323.º, alínea c) (uso de marca contrafeita) e 324.º (colocação em circulação de produtos contrafeitos no território português) ambos do CPI.

Assim, afigura-se-nos que a Meritíssima Juíza de Instrução não interpretou nem aplicou corretamente as normas constantes dos artigos 323º e 324º do CPI ao caso, por um lado, e, por outro, na medida em que os meios de prova documental carreados para os autos impunham decisão diversa da recorrida, pois que contrariamente ao alegado pela decisão instrutória, não corroboram a versão do arguido, pelo contrário, expõem a fragilidade desta versão, a decisão instrutória  recorrida errou na apreciação da matéria de facto.

Motivos pelos quais deve, quer a decisão de direito quer a decisão sobre a matéria de facto ser alterada, entendendo-se que se recolherem indícios suficientes de que o arguido cometeu, em autoria material e na forma tentada, os crimes  previstos e punidos nos artigos 323.º, alínea c) (uso de marca contrafeita) e 324.º (colocação em circulação de produtos contrafeitos no território português) ambos do CPI e artigos 22.º e 23.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Penal, aplicáveis por força das disposições conjugadas do artigos 320.º do CPI e 4.º do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro.

Daí que se conclua que face aos elementos constantes dos autos neste momento, há indícios suficientes do cometimento objetivo dos crimes previstos e punidos pelos artigos 323.º e 324.º do CPI, embora na forma tentada, havendo por essa razão séria possibilidade de ao arguido vir a ser aplicada, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
Assim, sendo, procede o recurso, devendo o arguido ser pronunciado.

III – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso interposto pelas  assistentes SONY COMPUTER ENTERTAINMENT EUROPE LIMITED e KABUSHIKI KAISHA SONY COMPUTER ENTERTAINMENT, revogando-se a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que, com os fundamentos acima expostos e pelos factos constantes sob os n.ºs 3 a 8, 10 a 15, 20, 21, 24, 25, 31 (expurgado da referência a "é useiro e vezeiro") a 38, 41 a 43, 45 a 54 e 72 (O arguido agiu livre, consciente e deliberadamente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei e, ainda assim, não se coibiu de a praticar) do requerimento de abertura da instrução (vd. fls. 161 e segs.), pronuncie o arguido AS, com referência aos presentes autos e ao Apenso 11677/12.4TDLSB, pela prática, em autoria material e na forma tentada, dos crimes  previstos e punidos nos artigos 323.º, alínea c) (uso de marca contrafeita) e 324.º (colocação em circulação de produtos contrafeitos no território português) ambos do CPI e artigos 22.º e 23.º, n.ºs 1 e 2 do Cód. Penal, aplicáveis por força das disposições conjugadas do artigos 320.º do CPI e 4.º do DL n.º 28/84, de 20 de Janeiro.

Sem tributação.

Notifique nos termos legais.

(o presente acórdão, integrado por trinta e quatro páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmº Juiz Desembargador Adjunto – art. 94.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal)

Lisboa, 13 de Novembro de 2014 

Calheiros da Gama

Antero Luís

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[1] Livre apreciação da prova a formar “não em observância a qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes estribada na sua análise segundo as regra da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio de cariz intelectual e de consciência que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento (Ac. do STJ de 11/03/1998, CJ, Acs./STJ-1998, Tomo I, 220).
[2]  Nesta matéria, ver ainda com especial interesse, as lições de Processo Penal do Prof. Cavaleiro de Ferreira, impressão da Universidade Católica, Lisboa, 1981, págs. 288 a 295.