Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1042/07.0T8SCR.L1-8
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: COLONIA
EXTINÇÃO
TRANSMISSÃO DE DIREITOS
DIREITO DE REMISSÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/13/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - A extinção do regime da colonia, decretada pela Lei 77/77, de 29/9, determinando ficassem cristalizadas as situações preexistentes, impede a transmissão isolada de um dos direitos reais daquela integrantes.

- Não tendo os colonos ou os proprietários do terreno exercido, no prazo para o efeito legalmente concedido (art. 13° Dec. Reg. 13/77/M, de 18/10), o respectivo direito de remição, relativamente às parcelas sujeitas ao regime de colonia, terá de entender-se não ser lícito àqueles transmitir o seu direito, sem essa transmissão abranger o direito de colonia, pois só assim se consolidaria a propriedade plena num só titular.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa :

1. J... e mulher, M..., vieram propor, contra C..., A..., entretanto falecida e representada pelos seus sucessores habilitados, F..., R..., B... e Z..., estes últimos menores, representados por L..., F... e mulher, A..., acção com processo ordinário, distribuída ao 2º Juízo da comarca de Santa Cruz, pedindo a condenação dos RR. a reconhecer aos AA. a propriedade de benfeitorias implantadas em prédio rústico, sito na freguesia de Machico, daquela comarca, bem como o direito de preferência na venda desse prédio, efectuada pelas 1ªs aos 2ºs RR., na parte referente às parcelas respectivas.
Contestaram os 2ºs RR., impugnando o direito invocado pelos AA. - concluindo pela improcedência da acção.
Efectuado julgamento, foi proferida sentença, na qual, considerando-se a acção parcialmente proce- dente, se condenaram os RR. a reconhecer aos AA. a propriedade das benfeitorias em causa, declarando-se a nulidade da venda efectuada, relativamente às aludidas parcelas - absolvendo-se os RR. do mais peticionado.
Inconformados, vieram os RR. habillitados, B... e Z..., interpor o presente recurso de apelação, cujas alegações terminaram com a formulação das seguintes conclusões :
- Com a extinção legal do regime e dos contratos de colonia operada pela Constituição da República Portuguesa de 1976, a Lei 77/77, de 29/9, e o Dec. Regional 13/77/M, de 18/10, os direitos de colonia perderam a natureza real, passando a ter natureza meramente obrigacional.
- Ao condenar os RR. (entre os quais a antecessora dos recorrentes) a reconhecer o direito de propriedade dos AA. sobre as duas porções de benfeitorias identificadas nos autos, a decisão a quo reconheceu-lhes um direito que a lei extinguiu enquanto tal.
- A decisão a quo poderia, quando muito, ter reconhecido que os apelados são donos das culturas e obras de benfeitorização que eventualmente existam nas correspondentes parcelas de terra.
- De qualquer modo, não sendo os apelados os cultivadores dessas parcelas, ainda que algum direito de natureza real subsistisse ao benfeitor após a extinção dos contratos de colonia, não estaria o mesmo na titularidade daqueles, mas de quem efetivamente cultiva.
- Ao regular os aspetos concretos da extinção dos contratos de colonia, para resolver as situações existentes, o Dec. Regional 13/77/M, de 18/10, usou como expediente a atribuição de um direito potestativo ao colono, considerado a parte mais fraca, de compelir o senhorio a vender-lhe o solo, tendo estipulado prazo para exercer esse direito e previsto ajudas para as situações de carência económica.
- Não obstante, no caso em apreço, tal direito não foi exercido, devendo as eventuais benfeitorias existentes nas parcelas reger-se pelas normas do C.Civil, nomeadamente, as do art. 216º e segs.
- Não sendo os apelados quem efetivamente cultiva as parcelas, tal facto, só por si, é suficiente para fazer cessar a relação de colonia.
- A decisão recorrida não poderá deixar de cumprir a lei, declarando a extinção da colonia sobre as parcelas em questão.
- Ao declarar a nulidade parcial da escritura de compra e venda referenciada nos autos, a decisão a quo viola o disposto nos arts. 62º, nº1, da C.R.P., e 1306º, nº1, do C.Civil, porquanto importa uma limitação ao direito de propriedade do dono do solo não permitida pelas referidas normas.
- As soluções propostas pela decisão a quo são inaceitáveis, pois que deixariam os donos do solo dependentes da boa vontade dos benfeitores para poder dispor daquilo que é seu, sendo certo que são aqueles quem paga os impostos dos prédios e estes quem tem o domínio útil e deles retira todos os proveitos.
- Tais soluções são também impraticáveis, face às inúmeras situações por resolver e ao facto de, há muito, donos do solo e benfeitores se terem afastado, em muitas situações por vontade deliberada destes.
- Para além disso, ao declarar a nulidade da dita escritura, a decisão a quo atropela um dos princípios orientadores da extinção do regime e dos contratos de colonia que foi a imprescindível rentabilidade da empresa agrícola.
- Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, determinando-se a nulidade da sentença proferida e ordenando-se seja proferida sentença em que se declare extinta a situação de colonia nas parcelas de terreno mencionadas nos autos, mantendo-se válida a escritura de compra e venda quanto às mesmas.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
2. Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual :
A) No inventário nº 32/84, que correu termos no …º Juízo do Tribunal de Santa Cruz, cuja sentença homologatória transitou em julgado em 26/1/87, aberto por morte de F... e A..., avós do A. marido, falecidos respectivamente em 23/12/81 e 26/4/84, e, posteriormente, por morte do pai do A. marido M..., falecido a 7/5/86, foram adjudicados aos AA. duas porções de benfeitorias rústicas, identificadas nas verbas 5 e 6 da relação de bens, uma com a área de 1 240 m², inscrita na matriz cadastral sob o art. 41º/26 da secção AM, localizada ao sítio do Poço do Gil, freguesia e concelho de Machico, a confrontar do Norte com M..., Sul e Oeste com M..., Leste com P... e outra com a área de 530 m² inscrita na matriz cadastral sob o art. 41º/6 da secção AM, localizada ao dito sítio do Poço do Gil, a confrontar do Norte com J..., Sul com M..., Leste com a Vereda e Oeste com M..., ambas implantadas sobre os respectivos terrenos que são parte descrito na Conservatória do Registo Predial de Machico sob o nº 04724/051130 da freguesia de Machico (al. A).
B) De acordo com a relação de bens junta no referido inventário, as aludidas porções de benfeitorias estavam, por lapso, anteriormente identificadas como sendo localizadas ao sítio do Paraíso, quando na verdade, cadastralmente, sempre estiveram com a localização correcta no sítio do Poço do Gil (al. B).
C) Daquele inventário consta que as ditas benfeitorias estavam feitas sobre terreno de C..., familiar das RR. C... e A..., e faziam parte do já extinto antigo art. rústico 3 133º da freguesia de Machico (al. C).
D) Por sua vez, este antigo art. rústico 3 133º estava descrito na Conservatória do Registo Predial de Machico sob o nº 00952/130694, da freguesia de Machico, sem inscrição em vigor, embora erradamente identificado como sendo localizado ao referido sítio do Paraíso, razão pela qual também foi, nesta parte, mal identificado no aludido inventário (al. D).
E) As aludidas benfeitorias encontram-se actualmente inscritas em nome do A. marido (al. E).
F) No seguimento das operações de medição cadastral, efectuadas entre 1955-1965 e com a entrada em vigor a matriz cadastral nos anos 80, foi indicado como dono e legítimo possuidor das sobreditas benfeitorias rústicas o avô dos AA., F... (al. F).
G) E o método de recolha da informação efectuada pelos técnicos do Instituto de Geografia e Cadastro - Delegação da Madeira - era feito principalmente com base em prova testemunhal, tendo-se concluído na altura que aquele ascendente era seu dono (al. G).
H) No dia 22/11/2005, por escritura pública de compra e venda, outorgada no Cartório Notarial do Dr. Manuel Figueira de Andrade, exarada a fls. 51 a 53, do Livro 12-A, C... e A... venderam a F... e mulher, A..., um prédio rústico colonizado, com área global de 12 240 m², localizado ao Sítio do Poço Gil, freguesia e concelho de Machico, que confronta a Norte com J..., M... e outro, Sul com J..., A..., A... e outros, Leste com J..., inscrito na matriz sob os arts. 41º/5, 41º/6, 41º/7, 41º/8, 41º/9, 41º/10, 41º/11, 41º/13, 41º/14, 41º/15, 41º/16, 41º/17, 41º/18, 41º/19, 41º/21, 41º/22, 41º/23, 41º/24, 41º/25, 41º/26, 41º/27, 41º/28, 41º/29, 41º/30, 41º/32, 41º/51, 41º/52, 41º/54, 41º/55, 41º/56, todos da secção AM, não descrito na Conservatória do Registo Predial de Machico (al. H).
I) O preço de venda acordado entre os RR. pela totalidade do prédio foi de € 67 046,10, com isenção de IMT (al. I).
J) O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Machico sob o nº 04724/051130, da freguesia de Machico, foi desanexado do descrito sob o nº 00952/130694, da freguesia de Machico, que correspondia ao antigo art. rústico sob o art. 3 133º, sem inscrição em vigor (al. J).
L) As parcelas de terreno inscritas sob os arts. 41º/6 e 41º/26, ambas da secção "AM" têm, respectivamente, a área de 530 m² e 1 240 m² (al. L), dos factos assentes).
M) As benfeitorias em causa sempre foram tratadas e cultivadas desde meados da década de 50 pelo referido F... e mulher A... (art. 1º).
N) Eram estes que amanhavam as terras dos aludidos prédios rústicos, plantando as mais diversas culturas tais como vinha, batata-doce, "semilha", nespereiras, couve, favas, bem como cortavam o mato para os animais que sobre ele criavam (gado bovino) e adubavam a terra (art. 1º).
O) Para poderem amanhar o prédio, arrotearam as terras, limparam as silvas e mato (art. 1º).
P) Para guardar as alfaias agrícolas e acomodar os animais escavaram na rocha uma furna (art. 1º).
Q) Para protecção e delimitação das terras, construíram os muros de pedra arrumada a mão, que se desenvolve em socalcos pela totalidade das mencionadas parcelas (art. 1º).
R) Para proceder à rega das culturas existentes no prédio limpavam e mantinham os regos de condução da água, pagando todas as despesas para tais regas, a que corresponde o cadastro nº 4047, tomadoiro nº 3845, regadeira nº1, da Levada de Machico - Caniçal, do Ramal da Graça Nova, e que se encontrava desde a década de 1950/60 em nome de F... e em 1987 passou para o nome do A. marido (art. 1º).
S) Realizaram assim os referidos F... e mulher A... as benfeitorias necessárias e acima descritas para amanho da terra e criação de gado, benfeitorias estas sem as quais não eram possível a exploração da terra (art. 1º).
T) Com efeito, os ditos F... e mulher, A..., cultivavam a terra, retirando dela todos os frutos e utilidades próprios da actividade agrícola e suportavam os encargos desta exploração, realizando tais actos à vista de toda gente e com conhecimento da generalidade das pessoas da terra, sem oposição de quem quer que seja, há mais de 20 anos, sem haver interrupção do uso e fruição, tudo como se estivessem no exercício de um direito próprio, sem ofender a propriedade de outrem, sendo reconhecidos como únicos e legítimos donos das benfeitorias rústicas, implantadas sobre o referido prédio (art. 1º).
U) Por sua vez, os AA. receberam tais benfeitorias rústicas, pelos óbitos dos avós F... e mulher e do pai M..., continuando, por si e por intermédio de procuradores, a praticar os actos descritos em O) a T), nos termos em que já vinha sendo exercida pelos antecessores (art. 9º).
V) As RR. C... e A... só venderam ao R. F... o prédio identificado na escritura, por este se ter disposto a comprar a área de 12 240 m² (art. 14º).
X) Quando o R. F... contactou as RR. C... e A... com o propósito de lhes comprar uma área global de 5 000 m², foi-lhe respondido pelas mesmas que só venderiam a totalidade do prédio 41º, da secção AM, ou pelo menos a parte que aquele acabou por comprar, já que esta correspondia à divisão do prédio que as suas comproprietárias haviam acordado entre si (art. 15º).
Z) A parcela 41º/ 6 vale, pelo menos, € 32,23 ao m², por ter acesso directo ao caminho existente, sendo que a parcela 41º/26 vale, pelo menos, € 10 ao m², por não ter acesso a estrada (art. 16º, da base instrutória).
3. Nos termos dos arts. 635º, nº4, e 639º, nº1, do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente.
A questão a decidir centra-se, pois, na apreciação da declarada nulidade parcial da venda efectuada pelas 1ªs aos 2ºs RR.
Tratando-se as demais de questões não apreciadas na decisão recorrida, as quais - uma vez que não foi apresentada contestação, pela R. em cujo lugar vieram a ser habilitados - se tem de entender vedado, aos ora apelantes, suscitar em sede do presente recurso.
Tem sido entendimento corrente que a extinção do regime da colonia, decretada pela Lei 77/77, de 29/9, determinando ficassem cristalizadas as situações preexistentes, impede a transmissão isolada de um dos direitos reais daquela integrantes.
“A partir da Lei 77/77, de 29 de Setembro, deverá entender-se que o legislador restringiu fortemente a aplicação das normas de direito costumeiro e dos usos na regulamentação dos contratos de colónia que persistam. A extinção da colónia, decretada pelo referido diploma, não permite a transmissão voluntária e isolada de um dos direitos reais - o do dono ou o do colono - mediante negócio jurídico (compra e venda, arrendamento, p.e.) celebrado "inter vivos", o qual ficará ferido de nulidade. Decretada a extinção da colónia, as situações preexistentes ficaram cristalizadas, para se proceder à consolidação da propriedade, não sendo lícito ao colono modificar o prédio pela realização de novas benfeitorias” (ac. STJ, de 4/7/1996 - SJ199607040001572).
“A extinção da colonia, decretada pela Lei n.º 77/77 de 29-09, veio inviabilizar a transmissão voluntária e isolada de um dos direitos reais, seja do dono, seja do colono, mediante negócio jurídico celebrado inter vivos” (ac. STJ, de 24/6/2010 - Proc. 592/03.2TCFUN.Sl, www.dgsi.pt).
No caso concreto, nem os AA. ou os seus antecessores, enquanto colonos, nem os RR. ou os anteriores proprietários do terreno, exerceram, no prazo para o efeito legalmente concedido (art. 13° Dec. Reg. 13/77/M, de 18/10), o respectivo direito de remição, relativamente às parcelas sujeitas ao regime de colonia.
Sendo que, conforme resulta da matéria provada, tais parcelas se acham incluídas no prédio objecto da venda em causa.
Como decidido, terá, pois, de entender-se não ser lícito às anteriores proprietárias do prédio transmitir o seu direito, sem que essa transmissão abrangesse o direito de colonia, pois só assim se consolidaria a propriedade plena num só titular.
E, em tais termos, se haverá de concluir que, por se tratar de negócio contrário à lei, se mostra, nessa parte, a venda ferida de nulidade - improcedendo as alegações dos apelantes.

4. Pelo acima exposto, se acorda em negar provimento ao recurso, confirmando-se, em consequência, a decisão recorrida.

Custas pelos apelantes.
13.9.2018