Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRL00035974 | ||
Relator: | MARIA DA LUZ BATISTA | ||
Descritores: | PROCESSO CRIME PROVAS TRANSCRIÇÃO ÂMBITO ÓNUS JURÍDICO | ||
Nº do Documento: | RL200111100081909 | ||
Data do Acordão: | 10/11/2001 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | REJEIÇÃO DO RECURSO. | ||
Área Temática: | DIR PROC PENAL. | ||
Legislação Nacional: | CPP87 ART363 ART364 ART412 N3 N4 ART431. CPC95 ART712. | ||
Sumário: | A transcrição das provas a cargo do recorrente, é a que respeita à totalidade das provas produzidas em audiência de julgamento. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | PROC. 8190/00 Acordam em conferência os Juízes na Secção Criminal (9ª) do Tribunal da Relação de Lisboa: (A), (B) e (C), arguidos no processo comum (singular ) nº 98/96.4GEOER do 4º Juízo Criminal de Cascais onde se foram pronunciados pela prática, a primeira, em co-autoria, de um e os segundo e terceiro, também em co-autoria, de dois crimes de exploração ilícita de jogo pp. e pp. pelos arts. 108º, com referência aos arts. 1º, 3º nºs 1 e 4, e 4º nº 1 g) todos do Dec. Lei nº 422/89 de 2/12, submetidos a julgamento, vieram a ser absolvidos. Inconformado com a decisão absolutória veio o Mº Pº dela interpor recurso cuja motivação termina formulando as seguintes conclusões: 1. Os arguidos (A) e (B) tinham a exploração do bar-café da Sociedade Recreativa da (K) onde tinham para exploração as máquinas em causa, propriedade de Facovídeo - Fabrico e Comercialização de Máquinas de Diversão Lda. e do arguido (C). 2. Aquelas máquinas tinham sido alteradas por forma a que, actuando por meio de um comando, deixavam de proporcionar o jogo de "Tetris" e passavam a proporcionar um jogo do tipo "Poker". 3. Aquelas máquinas foram submetidas a peritagem e consideradas de jogo de fortuna e azar. 4. Os arguidos sabiam que os jogos desenvolvidos pelas máquinas eram qualificados de fortuna e azar. 5. O Mmo. Juiz incorreu num erro notório da apreciação da prova uma vez que existe clara contradição entre os factos trazidos à audiência de julgamento e os factos dados como provados, e consequentemente, a decisão plasmada na douta decisão. 6. Das declarações dos arguidos resulta que os mesmos sabiam ser a exploração daquelas máquinas ilegal uma vez que o arguido (C) trabalhava com máquinas de jogo desde 1986, importando e distribuindo as ditas máquinas, facto reforçado pelo seu registo criminal donde consta ter sido arguido em duzentos e vinte e três processos crime pela prática de jogo ilícito. 7. O arguido (B) tentou ocultar aquele jogo específico, o que evidenciou que o mesmo sabia tratar-se de um jogo ilícito, que procurou esconder das autoridades. 8. O facto de ter havido duas apreensões, uma em Janeiro e outra em Outubro de 1996, impunha aos arguidos que se informassem junto das autoridades sob o motivo da primeira apreensão para assim não voltarem a delinquir. 9. Este dever impunha-se sobretudo à arguida (A) uma vez que era a titular do contrato de exploração daquele estabelecimento desde Junho de 1995 e que já anteriormente tinha explorado outro café durante dois anos. 10. Não estamos perante condutas de "fraca coloração ética" nem em situação de neo-criminalização que ainda não tenha ganho a devida ressonância ético-social, pelo que se impõe a conclusão de que os arguidos sabiam ser a sua conduta penalmente censurável e não obstante não se coibiram de a praticar. 11. A douta sentença viola as disposições dos arts. 16º nº 1 do Código Penal e 108º, com referência aos arts. 1º, 3º nºs 1 e 4, e 4º nº 1 g) todos do Dec. Lei nº 422/89 de 2 de Dezembro, pois, ao considerar que os arguidos actuaram sem dolo o Mmo. Juiz, incorrendo no erro do art. 16º nº 1 do CP, fez errada interpretação dos normativos citados, implicando a sua correcta interpretação a condenação daqueles pelo crime referido, pelo que, entende, deve ser admitida a renovação da prova e revogada sentença recorrida na parte que, por erro, considerou excluído o dolo dos arguidos, condenando-se os mesmos pelos crimes de que vinham acusados. Todos os arguidos responderam, (A) e (B) sustentando que o recurso deve ser rejeitado por não respeitar as disposições do art. 412º nº 3 b) e nº 4 do CPP, e, assim não se entendendo, deverá improceder por inatacável a sentença recorrida face à profusa prova recolhida, e o arguido (C) sustentando também, em suma, que, não se podendo extrair da prova produzida que soubesse que as máquinas em causa desenvolviam um jogo de fortuna ou azar, não se está perante violação de qualquer das normas citadas, tendo sido feita correcta interpretação da Lei, deve improceder o recurso, indeferindo-se por manifesta desnecessidade a renovação da prova mantendo-se a decisão que o absolveu. Nesta instância, o Exmo. Senhor Procurador Geral Adjunto, na vista que teve dos autos, nada opôs ao seu prosseguimento para julgamento. Foram colhidos os vistos. Cumpre decidir. Não obstante o sentido da decisão que passaremos a proferir e o disposto no art. 420º nº 3 do CPP, no caso, para maior clareza, transcreveremos a matéria de facto considerada provada e não provada na decisão recorrida, e - com particular relevância para a mesma - a respectiva motivação: Factos provados: "1 - Durante um período de tempo localizado entre Junho de 1995 e início de 1997 os arguidos (A) e marido, (B), tinham a exploração do bar-café da sociedade recreativa da (K), retirando proventos dessa actividade comercial. 2 - No dia 31 de Janeiro de 1997 os aludidos arguidos tinham, para exploração, na sociedade da (K), as (duas) máquinas apreendidas (conforme) fls. 5, ambas descritas como "máquina de vídeo, tipo Poker, sendo uma com o nº de registo 18108/92 e examinadas conforme relatórios que fazem a fls. 14 a 22 aqui dados por reproduzidos. 3 - O arguido (C) é o legal representante da sociedade "Facovídeo, Fabrico e Comercialização de Máquinas de Diversão, Ldª" empresa proprietária de máquinas de jogos que explora em diversos locais. 4 - Tais máquinas estavam destinadas a um jogo de diversão chamado "Tretris" o qual tem como tema um jogo que consiste na simulação de um puzzle em que "o jogador através de botões existentes no exterior da máquina tenta arrumar as peças que vão aparecendo no écran." 5 - Porém, as referidas máquinas haviam sofrido uma alteração a qual consistia em fornecer um jogo tipo "Poker", sendo necessário para tal primeiro ligar as máquinas, por intermédio de controle remoto por infravermelhos com três botões, um dos quais tem como função mudar o jogo para a variante "Poker". 6 - Desde data indeterminada que as máquinas se encontravam no interior da sociedade e que vinham sendo exploradas em conjunto pelos arguidos (A), (B) e (C), e consequentemente, o dinheiro pago pelos jogadores era dividido, na proporção de metade para o dono das máquinas e a outra metade para os arguidos concessionários do bar da sociedade da (K). 7 - No dia 29 de Outubro de 1996 cerca das 20 horas encontrava-se no bar da sociedade da (K) a máquina descrita e examinada a fls. 42 e 43 do apenso (NUIPC 827/96.6GEOER) e sobre a mesma um cartaz com vários números. 8 - A referida máquina continha várias bolas de plástico, cada uma delas com três rifas no seu interior, podendo qualquer destas estar, ou não, numerada, e funcionava da seguinte forma: expelia uma bola mediante a introdução de uma moeda de cem escudos; o jogador, depois de verificar se a rifa estava ou não numerada, deveria conferir o número com os exibidos no supra mencionado cartaz e, existindo coincidência, tinha direito a um prémio cuja qualidade era aferida por uma outra indicação existente por baixo do número anteriormente referido; tal prémio podia variar entre os duzentos e os cinco mil escudos ou consistir apenas num porta chaves. 9 - Naquela mesma ocasião, (D) encontrava-se a jogar na máquina apreendida nos autos a fls. 19 do mesmo apenso, registada como máquina Pinball Action Super Vídeo e propriedade da "Facovídeo - Fabrico e Comercialização de Máquinas de Diversão Ldª". 10 - Tal máquina estava destinada a um jogo de diversão chamado "Tetris" com tema idêntico aos das outras máquinas "Tetris" supra referidas. 11--Também esta máquina tinha sofrido uma alteração de modo a fornecer um outro jogo do tipo "'Poker". Este jogo de "Poker" tinha o nome de "P. Block". Ligada a máquina à electricidade o jogo de "Tetris" só aparecia no écran depois de accionado um comando remoto. Para iniciar o jogo "P.Block" tornava-se necessário introduzir na máquina uma moeda de cem escudos e manobrar dois comandos adstritos à mesma. Então o jogo fluía, proporcionando inicialmente um crédito de dez pontos correspondentes aos cem escudos da moeda introduzida. Os diversos comandos da máquina funcionavam como retenção de um ou mais quadrados, cada um da sua cor, sendo cada cor numerada de 1 a 13. O seu funcionamento, em tudo igual a uma máquina de casino e melhor descrito a fls. 47 a 51 do apenso, está programado para dar prémios monetários até 500.000$00, em função das apostas feitas pelo jogador. Através do pressionar dos diversos botões o jogador não consegue determinar a sequência do jogo, que é completamente aleatória, e por esta forma podem ou não surgir sequências reais, numéricas, de cor, fullen, trios, pares, não estando assim a máquina sujeita a perícia do jogador. 12 - Desde data indeterminada que esta última máquina (referida de 9 a 11) se encontrava na citada sociedade e vinha sendo explorada em conjunto pelos arguidos (B) e (C). 13 - Ao adquirir e colocar no bar da sociedade da (K) as máquinas referidas em 2 e 9 o arguido (C) desconhecia que as mesmas pudessem ser consideradas como desenvolvendo jogos de fortuna ou azar . Estava convencido que a utilização obedecia a todas as normas em vigor. 14 - Os arguidos (A) e (B) aceitaram a colocação e exploração das máquinas em causa na convicção de que nenhuma delas desenvolvia um jogo considerado de fortuna ou azar, que tal exploração era permitida e não carecia de qualquer licença, conforme lhe tinha sido assegurado por (C). 15 - Assim como acederam na exploração da máquina identificada em 7 e 8 igualmente convencidos de que tal exploração era permitida por Lei, não carecia de qualquer licença e o jogo que desenvolvia não se encontrava restrito aos casinos. 16 -- A arguida (A) estudou até à instrução primária. Trabalhou como empregada de quartos num hotel explorou um café durante dois anos, depois o bar da sociedade destes autos e, presentemente, novamente um estabelecimento de café. Retira rendimentos de cerca de 200.000$00 por mês. 17- O arguido (B) trabalhou como "caixeiro" e ficou desempregado. 18 - O arguido (C) detém participação social e é gerente da sociedade "Facovídeo, Lda". Casado, tem dois filhos a seu cargo. Factos não provados: " - que os arguidos soubessem que as máquinas em causa desenvolvessem um jogo qualificado como de fortuna ou azar; - que os arguidos soubessem que a exploração das máquinas em causa só era permitida, em certas condições, nos casinos das zonas de jogo legalmente reconhecidas e autorizadas; - que tenham agido deliberada, livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta integrava um crime". Quanto a motivação de facto refere o Tribunal Colectivo ter formado a sua convicção na ponderação, "em conjunto segundo as regras da experiência comum", nos elementos seguintes: " - declarações dos arguidos, expondo os acontecimentos de uma forma convincente, segura e isenta; - depoimentos das testemunhas (E), (F), (G), (H) (fls. 23 a 25) e (D). - teor dos documentos (...) de fls. 5, 9, 13 a 22, 33 a 39 e 231 destes autos e 3 a 16, 19 e 40 a 53 do apenso. O elenco da matéria de facto não provada deriva dos meios de prova acima referidos, designadamente das declarações dos arguidos, conjugadas com os documentos referenciados e a ausência de prova concludente quanto à sua realidade". Decidindo: Prévia à apreciação de qualquer recurso é a demarcação do seu âmbito. É pacífica e constante a jurisprudência, designadamente do STJ, no sentido de que, sem prejuízo de questões de conhecimento oficioso, o âmbito dos recursos se define pelas conclusões extraídas, pelo recorrente, das motivações por ele apresentadas. Das conclusões das motivações apresentadas pelo recorrente verificamos que o mesmo, invocado as declarações dos arguidos, põe em causa a matéria de facto dada como provada na medida em que esta reconduz a actuação dos arguidos a erro sobre as circunstâncias de facto nos termos do art. 16º nº 1 do CP, que entende ter sido violado, considerando que daquelas declarações (em vista também do depoimento da primeira testemunha de acusação - cfr. motivações a fls. 311 "in fine") se extraiu uma conclusão logicamente inaceitável, havendo por isso erro notório na apreciação da prova. À impugnação daquela matéria se reconduz a questão objecto do recurso. Ora da análise dos termos - determinantes da demarcação desse objecto - em que a questão é colocada, logo teremos de concluir pela manifesta improcedência do recurso. Assim vejamos: Numa primeira abordagem da questão colocada, poderia, à primeira vista, parecer estar-se perante invocação do vício previsto no art. 410º nº 2 c) do CPP: considerando, quer nas suas conclusões quer no texto da motivação, existir "erro notório na apreciação da prova", o recorrente refere que o mesmo "tem de resultar do texto da decisão recorrida" e pede a renovação da prova - o que poderia levar a situar o erro invocado no âmbito da previsão do art. 410º nº 2 c) do CPP. Porém, em vista do restante texto das conclusões e mais claramente ainda do texto das motivações, designadamente nos primeiros parágrafos do seu ponto 3, vemos que o ataque do recorrente à decisão não se atém aos limites do vício previsto neste preceito. Assim, logo no segundo parágrafo das suas motivações o recorrente refere que, tendo o erro notório na apreciação de prova, regra geral, de resultar do texto da decisão recorrida, "no caso vertente, procedeu-se à gravação da prova pelo que o recurso não se confina aos factos provados mas a toda a prova produzida em audiência de julgamento". Conforme resulta "expressis verbis" do estatuído no art. 410º nº 2 c) do Código Penal os vícios nele previstos têm que resultar da própria decisão recorrida na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos (com excepção de documentos com força probatória plena). O erro tem assim de aferir-se do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum (sem recurso, por exemplo, a declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou instrução), tendo ainda que resultar desse texto de forma tão patente que não escape à observação do homem de formação média (erro notório). Por outro lado, o erro notório na apreciação da prova previsto no art. 410º nº 2 do CPP não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a do recorrente. Se se invoca, como é o caso, "contradição entre os factos trazidos à audiência de julgamento e os factos dados como provados"; considerando-se ter-se extraído de determinados meios de prova declarações dos arguidos e depoimento da primeira testemunha - uma conclusão que se considera inaceitável, o alegado erro na apreciação de prova em questão não se enquadra na previsão do art. 410º nº 2 c ): como se refere no douto Acórdão do STJ de 13 de Fevereiro de 1991, AJ nºs 15/16, fls. 7, "se o recorrente alega vícios da decisão recorrida a que se refere o nº 2 do art. 410º do CPP fora das condições previstas nesse procedimento admitido por Lei conforme decorre do disposto no art. 364º nº 4 do CPP. Admite a Lei que o funcionário a quem incumbe redigir a acta possa redigi-Ia usando meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum, bem como socorrer-se de gravação magnetofónica ou audiovisual (art. 101º nº 1 do CPP). Também relativamente à reprodução/documentação das declarações a lei admite se utilizassem meios técnicos idóneos, entre eles a gravação magnetofónica ou audiovisual (art. 364º nº 4 do CPP). Contudo, nas situações vindas de referir há que atentar no seguinte: - quanto à elaboração da acta, quando se utilizem meios estenográficos, estenotípicos ou outros diferentes da escrita comum, a Lei impõe que se proceda a transcrição a efectuar no prazo mais curto possível pelo respectivo funcionário, ou, na sua impossibilidade ou falta, por pessoa idónea, devendo o Juiz que presidiu à audiência, antes da assinatura, certificar-se da conformidade da "transcrição (art. 101º nº 2); - relativamente à reprodução/documentação das declarações através da utilização de gravação audiovisual, impõe também a Lei a sua transcrição quando - como acontece no caso "sub judice" - haja sido interposto recurso e o recorrente impugne a matéria de facto (art. 412º nº 4 do CPP). Neste último caso nada diz a Lei - o citado art. 412º nº 4 - quanto à entidade que deve proceder à transcrição. Tem sido grande a polémica desenvolvida à volta desta questão: há quem defenda que a gravação incumbe ao Tribunal onde se efectuou o julgamento e há quem entenda que incumbe ao recorrente levar a cabo essa transcrição. Não valerá a pena enumerar os arestos que recentemente têm sido publicados num sentido e noutro, nem debater a questão: no caso, o Tribunal chamou a si essa tarefa, ordenando a transcrição conforme despacho de fls. 330. Importa porém analisar as condições a que deve obedecer essa transcrição e se as mesmas foram observadas. Como se refere no Ac. da Relação de Coimbra de 31/05/2000 - CJ 3/00, fls. 43), cujo posicionamento, conforme adiante exporemos, seguimos de perto - e de cujo texto faremos, com a devida vénia, parciais transcrições, a problemática da gravação da prova e respectiva transcrição está intimamente relacionada com os poderes de cognição do Tribunal - designadamente os poderes de modificação da decisão de facto, matéria a respeito da qual rege o art. 431º do CPP. Contrariamente ao que acontece em processo civil, onde se parte do pressuposto que a matéria de facto é decidida "ponto por ponto" ou " facto por facto", este preceito "pressupõe uma decisão única, de facto e de direito, quer do ponto de vista formal, quer material; sendo que a decisão e facto incide sobre toda a factualidade objecto do processo, como um todo, e não como factos individuais e autónomos". Assim, se, conforme decorre da redacção do art. 712º do CPC (que prevê impugnação e apreciação parcelares da decisão proferida sobre matéria de facto), em matéria cível "o tribunal de recurso apenas pode conhecer dos pontos ou factos concretamente impugnados", tudo o mais sendo intocável, "o art. 431º está redigido em termos de uma apreciação total da decisão proferida sobre a matéria de facto, no sentido de que o Tribunal de recurso pode não só alterar os pontos ou questões de facto concretamente postos em causa pelo recorrente, como pode também alterar os não contestados...". Tal decorre do princípio da verdade material e do que a Lei determina, designadamente no art. 402º nº 1 do CPP ao estipular que o recurso interposto de uma sentença abrange toda a decisão recorrida, "sendo que o art. 403º no seu nº 1 apenas permite limitação do recurso a uma parte da decisão quando a parte recorrida puder ser separada da parte não recorrida, por forma a tomar possível uma apreciação e uma decisão autónomas, o que manifestamente não sucede quanto ao recurso da decisão recorrida sobre matéria de facto" ... "pois que aquela decisão constitui um todo único e incindível", e, não obstante a Lei até imponha ao recorrente a especificação dos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, é sobre ela que a impugnação incide (corpo do nº 3 do art. 412º do CPP). Tem assim de concluir-se, como naquele aresto, que "a Lei não permite a interposição de recurso com limitação a parte ou partes da decisão de facto proferida, no sentido de ao Tribunal de recurso ficar vedado o conhecimento da parte ou partes não impugnadas, tanto mais que, se assim fosse, forçar-se-ia o tribunal de recurso a incorrer, eventualmente, no vício previsto na alínea b) do nº 2 do art. 410º (contradição insanável) do CPP"... podendo "a modificação de um só facto ocasionar uma colisão frontal - insanável - com ... outros factos constantes da decisão impugnada". Ora, se o tribunal de recurso reaprecia toda a decisão, e por conseguinte todos os factos que nela se deram como provados e não provados, não pode estar limitado às provas indicadas pelo recorrente, quer em nome, também, do princípio da verdade material, quer porque não há no processo penal qualquer ónus formal quanto à produção da prova. De novo citando o douto Acórdão acima indicado, o Tribunal recorrido "terá de ter acesso também às (provas) indicadas pelo recorrido (provas que a Lei processual civil manda o recorrido transcrever mas que a lei processual penal não impõe sejam transcritas por aquele), bem como todas as demais provas produzidas em julgamento". De conformidade com tudo o exposto temos de concluir que em processo penal a transcrição da prova gravada tem de ser total (atente-se ainda em que os arts. 363º e 364º nº 4 do CPP se referem a "reprodução integral" e nada inculca que o art. 412º nº 4 do mesmo diploma, ao determinar que há lugar a transcrição, não se refira a transcrição integral). Nos autos não se mostra feita transcrição integral da prova produzida em audiência, apenas tendo sido transcritos os depoimentos, dos três arguidos e da testemunha (E). Tal inviabiliza, nos termos vindos de expor, uma tomada de decisão, com a amplitude que deve ter - a que atrás se referiu - sobre a matéria de facto. Assim, não dispondo dos demais depoimentos produzidos, o tribunal não pode, como cumpre, avaliar do "peso" das declarações e depoimentos que foram transcritos no conjunto da prova a atender, sendo evidente no caso que, para decidir quanto aos aspectos da matéria de facto postos em causa, o Tribunal "a quo", como aliás é referido na motivação de facto acima transcrita, na formação da sua convicção teve em conta e apreciou criticamente, para além dos transcritos, outros depoimentos, tudo ponderando, em vista ainda dos documentos que se mencionam, "em conjunto, segundo as regras da experiência comum". Não dispondo daqueles depoimentos, este Tribunal não pode agora avaliar, da relevância das declarações e depoimento transcritos, no conjunto dos demais depoimentos, para a conclusão que o recorrente pretende deles dever ter sido extraída, não sendo possível aferir, por exemplo, em que medida esses outros depoimentos não inviabilizam essa conclusão, ou se, pelo contrário, os que foram transcritos sobre eles devem prevalecer nos termos pretendidos pelo recorrente ou em quaisquer outros. Por outras palavras, sem a totalidade dos elementos de prova produzidos - que, no caso, foram, no seu conjunto, atendidos na decisão o que o Tribunal tomou a respeito - o Tribunal de recurso não pode avaliar da verosimilhança, probabilidade ou possibilidade de cada um desses elementos relativamente à verdade material. Para a reapreciação da matéria de facto - que, como se disse, deve abranger a totalidade da decisão - este Tribunal tem pois que dispor de todos os elementos que informaram a decisão que é posta em causa, seja qual for a medida dessa impugnação. A omissão da transcrição integral inviabiliza assim o necessário exame global da matéria de facto, tendo como consequência, segundo entendimento que perfilhamos, o não conhecimento do recurso respeitante a essa matéria. Isto sem prejuízo, porém, quer da apreciação de matéria de direito que eventualmente tenha sido também posta em causa, quer dos vícios do art. 410º nº 2 do CPP, estes - tal como a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada - de conhecimento oficioso. No caso vertente só a verificação da existência de algum dos vícios do art. 410º do CPP imporia o prosseguimento do processo, desde logo por que tal verificação é de conhecimento oficioso. A inverificação e qualquer desses vícios é, em face dos elementos disponíveis nos autos, evidente. Não obstante, porque o recorrente fez menção a erro notório na apreciação da prova (ainda que, conforme atrás expusemos em vista da sua motivação, pelo alcançe que dá a esse erro e termos em que o invoca, essa invocação não se possa situar dentro dos contornos do vício do art. 410º nº 2 c) do CPP, demandando reapreciação da matéria de facto muito mais ampla do que a que cabe dentro dos apertados limites deste preceito) teceremos a respeito, ainda que breves, algumas considerações. Neste contexto, cingindo-se a apreciação, como atrás se disse, aos termos da decisão recorrida e tão só, vejamos: O primeiro daqueles vícios - insuficiência da matéria de facto para a decisão - verifica-se quando, da factualidade vertida na decisão em recurso se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição, ou seja, quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida ou quando o Tribunal recorrido, podendo e devendo fazê-Io, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que a dada por assente não permite, por insuficiente, a aplicação do direito ao caso. Como se refere no CPP anotado de Simas Santos e Leal Henriques, 2ª ed. Vol. 2º, fls. 737, "tal insuficiência deve ser de tal ordem que deixe patente a impossibilidade de um correcto juízo de subsunção entre a matéria de facto apurada e a norma penal abstracta chamada à respectiva qualificação...". O segundo - contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão - existe quando, e sempre dentro dos termos da decisão, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir - que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta, (no segundo caso) ou quando, segundo esse mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente dada a colisão entre os próprios fundamentos invocados. Quanto ao erro notório na apreciação da prova, que, como atrás se disse - e como aliás acontece com os demais vícios previstos no art. 410º - teria de decorrer do texto da decisão recorrida, existe "quando se tira de um facto provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum..."; assim também "quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as "legis artis", como quando o Tribunal se afasta infundadamente dos juízos dos peritos". Ora, ponderando, segundo as regras da experiência comum e em referência a este quadro conceptual, os termos da decisão recorrida, é patente a inverificação de qualquer destes vícios: a matéria de facto que o tribunal recorrido, em sua livre convicção, considerou assente, é suficiente para justificar a decisão assumida; não existe qualquer contradição insanável da fundamentação nem entre esta e a decisão e não decorre do texto da sentença em apreço, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, que tenha existido erro notório na apreciação da prova conforme ficou definido. É pois patente a inverificação de qualquer dos vícios do art. 410º nº 2 do CPP, não se vislumbrando também qualquer nulidade insanável. Em tal conformidade e em conclusão temos que, não podendo conhecer da questão seu objecto, por questão prévia atrás referida (transcrição não integral da prova oralmente produzida) inviabilizar o amplo exame da matéria de facto, essencial à reapreciação de matéria desta natureza que se pretende, sendo patente a inverificação de qualquer dos vícios do art. 410º nº 2 do CPP, ou de nulidade insanável, é manifesto que o recurso não pode proceder. Em tal conformidade e por tudo o exposto, decidem, ao abrigo do disposto no art. 420º do CPP, rejeitar o recurso. Sem tributação. Lisboa, 11 de Outubro de 2001 |