Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2175/11.4TDLSB.L1-9
Relator: VITOR MORGADO
Descritores: FIGURA PÚBLICA
DIFAMAÇÃO COM PUBLICIDADE
LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: I – A circunstância de um cidadão adquirir determinado relevo como advogado e/ou como político – sendo, nesse sentido, uma figura pública – não o destitui do seu direito à honra e consideração, sem prejuízo de essa procurada exposição dever ser ponderada no âmbito da tutela de tal direito, quando em colisão com essoutro da liberdade de expressão alheia.  

II – Declarar o arguido (deputado regional) a um jornal diário que o assistente (líder histórico de um partido de extrema esquerda e advogado) é ‘um agente da CIA’, um ‘homem da CIA’, com consciência da falsidade dessa imputação, constitui uma ofensa à honra e consideração política e pessoal do visado, criminalmente punível como crime de difamação agravada.

III – A interpretação dominante que o TEDH tem vindo a fazer do artigo 10.º da CEDH – no sentido de que, no exercício do direito à liberdade de expressão, é permitida uma ofensa quase ilimitada do direito à honra das figuras públicas e particularmente dos políticos – não vincula os tribunais portugueses.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 9.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO

JC ..., nascido a 22/7/1962, deputado na Assembleia Legislativa Regional da Assembleia Regional da Madeira, foi pronunciado pela prática de factos considerados suscetíveis de o constituir na autoria material de um crime de difamação agravada previsto e punido pelos artigos 180°, 183°, nº 1 e 2, ambos do Código Penal e 30.° e 31°, da Lei 2/99, de 13/1.

Os ofendidos, AM ... e GP ..., enquanto assistentes, formularam PIC contra o arguido, enquanto demandado cível, pugnando pela condenação deste no pagamento da quantia de €1,00 (um euro), a título de danos não patrimoniais que enumeraram.

Na contestação que apresentou, o arguido pediu a sua absolvição, por entender que as expressões em causa foram utilizadas ao abrigo do seu direito de liberdade de expressão, num contexto de combate político, onde a ilicitude se encontra excluída, alegando que não teve intenção de ofender os assistentes na sua honra ou consideração.

A fls. 671, o ofendido AM ... desistiu da queixa que apresentou contra o arguido e do correspondente pedido cível, prosseguindo os autos quanto aos factos relativos ao assistente GP ....

A final da audiência de julgamento, foi proferida sentença em que se decidiu absolver o arguido da acusação e do pedido cível contra o mesmo deduzido.

                                                      *

Discordando do assim decidido, o assistente GP ... veio interpor recurso, que motivou nos termos condensados nas seguintes conclusões:

«1. A decisão proferida pelo Tribunal a quo é recorrível, o recorrente tem interesse e legitimidade para o recurso, que é tempestivo.

2. O Tribunal a quo não interpretou e aplicou o direito do modo mais correto, quer face aos factos dados como provados pela sentença impugnada, quer face ao direito vigente, pelo que se impõe a sua alteração, com a consequente condenação do arguido pela prática do crime que se encontra pronunciado.

3. Atenta a matéria de facto dada como provada sob as alíneas A), B), C), D), E) e F) da sentença recorrida, ocorre manifesta contradição entre aqueles factos dados como provados e a fundamentação da decisão, padecendo a sentença do vício da nulidade previsto no artigo 615°, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil (C.P.C.) aqui aplicável ‘ex vi’ art. 4°, do C.P.P..

4. A atividade política ou a circunstância de uma pessoa ser uma figura pública não pode servir de respaldo para a compressão da tutela penal do direito à honra, dignidade e respeito, ainda para mais quando, na verdade, na sentença recorrida, nenhum facto resultou provado no sentido de que as expressões imputadas ao arguido resultaram do debate, contexto, luta, crítica ou opinião política.

5 - As expressões proferidas pelo arguido e imputadas ao Assistente, nada têm que ver com combate político e não veiculam, encerram ou contêm, ainda que indiretamente, qualquer ideia, informação, pensamento ou mesmo facto político ou de natureza política.

6 - Da factualidade dada como provada subsumida à lei penal em vigor, resulta que o arguido, de facto e de direito, praticou o crime pelo qual se encontrava pronunciado, pelo que o Tribunal a quo deveria ter decidido pela sua condenação nos termos do disposto nos artigos 180°, 183°, nºs 1 e 2, ambos do Código Penal e artigos 30° e 31° da Lei 2/99 de 13 de janeiro.

7 - As expressões proferidas pelo arguido são totalmente desprovidas de sentido político, não encerrando qualquer juízo, comentário ou facto de natureza política, pretendendo atingir o Assistente na sua qualidade de pessoa, de cidadão nacional e, até, de Advogado.

8 - A conduta do arguido trata-se, inequivocamente, face à matéria dada como provada, de um ataque pessoal ao Assistente, ao nível da sua vida pessoal e profissional e não enquanto político ou figura política.

9 - Permitir face à lei penal que se diga de uma figura pública ou de um titular de um cargo público, que o mesmo é um agente espião de um serviço secreto estrangeiro e que persegue democratas, sem que tal afirmação consubstancie um facto verdadeiro, é abrir a porta à total compressão do direito à proteção da honra e da moral de qualquer pessoa, valor intrínseco das sociedades democráticas.

10 - A decisão recorrida violou diversas normas legais, nomeadamente, artigo 29°, nºs 1 e 2 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigo 10°, nºs 1 e 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, artigo 19°, nº2 e 3 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, artigos 26°, nºs 1, 2 e 3, 37° e 38° da Constituição da República Portuguesa e, ainda, artigos 180°, 183°, nºs 1 e 2, ambos do Código Penal e artigos 30° e 31° da Lei 2/99 de 13 de janeiro.

11 - Os artigos 180° e 183°, nºs 1 e 2, interpretados e aplicados no sentido da decisão recorrida, ou seja, de que é permitido a um cidadão imputar a outro cidadão factos ou juízos ofensivos da sua honra, sem que tal conduta seja considerada crime pelo facto de a vítima ser uma figura pública, constitui uma violação do disposto nos artigos 13°, nºs 1 e 2, e 26°, nº 1, ambos da Constituição da República Portuguesa.»

Terminou o assistente o seu recurso requerendo a revogação da sentença em causa e a sua substituição por outra que condene o arguido pelos crimes de que se encontrava pronunciado.

                                                      *

Também o Ministério Público assumiu o seu inconformismo, deduzindo recurso autónomo, cuja motivação condensou nas seguintes conclusões:

«1. O arguido JC ... foi pronunciado pelo cometimento de um crime de difamação agravada previsto e punido pelos artigos 180° nº 1, 183° nºs 1 e 2 do Código Penal  e 30° e 31° da Lei 2/99 de 13.01, por em síntese, em escrito publicado no número do dia 1-04-2011, no "Diário de Notícias" da Madeira o arguido numa notícia que versava um alegado plágio por parte do PTP (partido Trabalhista Português), do qual o arguido faz parte, de comunicados elaborados pelo PCTP /MRPP, liderado pelo assistente GP ..., o arguido referiu "o GP ... e o AM ... eram agentes da CIA e fizeram aquele partido para desacreditar o Partido Comunista”; referindo-se ao assistente GP ... declarou “Jardim continua a ir buscá-lo para fazer processos aos democratas na Madeira. O objetivo deles (PCTP/ MRPP) é serem um cavalo de Troia dentro do movimento operário e socialista" e descreve o assistente GP ... como "um homem da CIA e maçónico, que instrui os processos que o Dr. Jardim põe aos democratas."

2. Submetido a julgamento o arguido foi absolvido do cometimento do citado crime, por em suma ter sido considerado pela Mmª. Juiz a quo que a factualidade dada como provada referente à conduta do arguido não é apta a integrar a prática daquele crime considerando que as expressões proferidas pelo arguido JC ... e publicadas na sobredita publicação periódica madeirense se inserirem no âmbito do ''direito à liberdade de expressão e em contexto de luta política” e que o arguido exerceu tais direitos à luz do disposto nos artigos 25° e 37° nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa e da jurisprudência do TEDH à luz da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

3. A liberdade de expressão na variante do direito de crítica não é um direito ilimitado, absoluto, sem restrições, pois a própria lei lhe estabelece garantias efetivas contra a sua utilização abusiva e contrária à dignidade humana (artigos 37° e 18° nº 2 da CRP), como refere o Professor Costa Andrade "uma coisa é criticar a obra, outra muito distinta é agredir pessoalmente o autor, dar expressão a uma desconsideração dirigida à pessoa do seu criador' (in Liberdade de Imprensa e Inviabilidade Pessoal, Uma perspetiva Jurídico-criminal, p. 238 e seguintes).

4. A interpretação da jurisprudência do TEDH à luz do preceituado no artigo 10° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, em particular o nº 2 do preceito, reconhece que o exercício da liberdade de expressão está sujeito a restrições, não deixando o Estado Português de poder atuar ao nível do direito interno vigente em matéria de honra e bom nome decorrente do tipo penal em causa – artigo 180° do Código Penal.

5. Não obstante o disposto no artigo 449° nº 1 alínea g) do Código de Processo Penal, afigura-se-nos que não existe uma vinculação imperativa, uma obrigatoriedade direta para os Tribunais Portugueses na observância da jurisprudência do TEDH.

6. No contexto da Constituição da República Portuguesa, qualquer ponderação jurídica sobre o conflito entre a liberdade de expressão, opinião e crítica, ainda que de índole estritamente política, por um lado e, o direito ao bom nome e reputação, por outro lado, não pode assumir, como seu postulado axiológico, uma ideia apriorística de prevalência de um sobre o outro, pois, no rigor dos princípios consagrados na Lei Fundamental, não existem razões preponderantes que, salvo melhor entendimento, permitam acolher o entendimento de que o direito ao bom nome e reputação "é menos intenso na esfera política do que na esfera pessoal” (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, p. 466 e Acórdão da Relação de Lisboa de 08.05.2014, Relatora a Senhora Juiz Desembargadora Ondina Alves, acessível em www.dgsi.pt).

7. O legislador optou por consagrar um limite à liberdade de expressão nos casos em que essa liberdade ponha em causa a honra de terceiros, única explicação para a necessidade de criminalizar as condutas lesivas deste bem jurídico, admitindo, contudo, que o crime de difamação possa não ser punível desde que se verifiquem duas condições cumulativas: (a) que a imputação seja feita para realizar interesses legítimos e (b) que o agente faça prova da verdade da imputação, ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a considerar verdadeira, exceto quando se trate de imputação referente à intimidade da vida privada e familiar, sem prejuízo do disposto no artigo 31° nº 2 do Código Penal.

8. Face ao ordenamento jurídico interno, o direito de expressão deve ceder, em regra, perante o direito à honra, com exceção daquelas situações em que a prossecução de um interesse legítimo e a verdade dos factos justifiquem a imputação, ou em que a gravidade da situação mereça a sua denúncia pública, sendo apodítico que não se verifica neste caso.

9. No caso em apreço, as expressões proferidas pelo arguido traduzem-se na imputação de factos – o de o assistente GP ... ter sido agente da CIA e de ser contratado por Jardim para instaurar processos contra os democratas da Madeira – não se vislumbrando qual o interesse legítimo por parte do arguido para tal imputação, sendo que o mesmo não provou a verdade de tal imputação nem apresentou qualquer motivação da qual se extraia a sua boa fé para a considerar verdadeira.

10. Traduzem-se também na expressão de um juízo de apreciação e valoração pessoais negativo que ultrapassa o âmbito da crítica objetiva, visando o núcleo essencial das qualidades morais do assistente, pois que, caso fosse verdade tal imputação, tornaria o assistente num traidor à Pátria e em alguém de baixo carácter, falso e hipócrita.

11. A consideração efetuada pela Mmª Juiz a quo de que as expressões em causa foram proferidas em contexto de luta política, salvo o devido respeito, não é procedente, por um lado, pelo momento em que o arguido as proferiu, pois nem sequer se encontravam agendadas eleições, por outro lado, pelo contexto em que as produziu, interpelado por um jornalista do Diário de Notícias da Madeira por alegadamente o seu partido PTP ter plagiado um comunicado emitido pelo PCTP /MRPP.

12. O arguido não imputou ao assistente GP ... ser agente da CIA e ser procurado por Alberto João Jardim para fazer processos aos democratas da Madeira, no âmbito de um debate político, na rádio ou televisão, em que cada um deles argumentasse e contra-argumentasse sobre o que cada um dizia, ou seja, no livre debate de ideias associado ao combate ou luta política.

13. Atenta a factualidade dada como provada na douta sentença [a autoria das expressões "o GP ... e o AM ... eram agentes da CIA e fizeram aquele partido para desacreditar o Partido Comunista”, "Jardim continua a ir buscá-lo (ao assistente GP ...) para fazer processos aos democratas na Madeira' e "um homem da CIA", por parte do arguido JC ..., em declarações prestadas a um jornalista do Diário de Notícias da Madeira; que tais expressões, devidamente assinaladas como tendo sido proferidas pelo arguido, foram publicadas no dia 01.04.2011 no Diário de Notícias da Madeira, na peça jornalística que versava sobre um alegado plágio por parte do PTP de comunicados elaborados pelo PCTP/MRPP; que o arguido sabia que as expressões que utilizou eram aptas a ofenderem a honra e consideração do assistente na qualidade de ativista e dirigente político; que o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente causando comprovadamente humilhação e enxovalho político e pessoal no assistente] consideramos que o arguido JC ..., ao contrário do que é entendido pela Mmª. Juiz para afastar a subsunção de tal factualidade ao crime de difamação agravada, ao proferir as expressões citadas, não teve outro intuito senão o de atacar a honra e dignidade do assistente GP ..., na qualidade de pessoa, de advogado e de político -líder histórico do PCTP /MRPP.

14. Em momento algum, no decurso da audiência de discussão e julgamento, a Defesa do arguido demonstrou que um determinado e concreto acontecimento, ou facto histórico da vida real, situado concretamente no tempo e no espaço, servisse de fundamento para a imputação do facto do assistente GP ... ser agente da CIA ou contratado por Jardim, sendo inclusivamente invocado pela Defesa que, nos combates políticos travados entre arguido e assistente na Região Autónoma, os resultados eleitorais do partido do primeiro tinham sido superiores aos do segundo.

15. No caso em concreto das expressões comprovadamente proferidas pelo arguido, este imputa ao assistente o crime de traição à Pátria (espião da CIA) e de uma conduta hipócrita perante os cidadãos portugueses, ao defender publicamente, sendo este um facto notório, uma ideologia marcadamente de esquerda revolucionária, totalmente contrária à política externa dos Estados Unidos da América e distanciada dos princípios da social-democracia, assumidos no nosso país pelo PSD em que milita Alberto João Jardim, para depois, na sua atividade profissional de advogado e com intuitos lucrativos, defender princípios e valores diametralmente opostos àqueles que invoca serem os seus (Jardim continua a ir buscá-lo para fazer processos aos democratas da Madeira).

16. Os elementos objetivos do crime de difamação agravada, previsto e punido pelos artigos 180°, 183°, nºs 1 e 2, ambos do Código Penal, e 30° e 31° da Lei 2/99, de 13.01, mostram-se verificados, afigurando-se-nos ser um ilícito punível por não integrar as causas de justificação especial previstas nas alíneas a) e b) do nº 2 do artigo 180° do Código Penal.

17. O arguido não exerceu legitimamente um direito de crítica objetiva, sustentado em base factual consentânea com a nossa Constituição, pois os factos que imputam ao assistente de ser agente da CIA e de ser contratado por Alberto João Jardim para pôr processos aos democratas da Madeira, atentam objetivamente contra a dignidade do assistente como pessoa, no seu carácter, na sua personalidade, mas também como líder do PCTP/MRPP, atingindo por isso o núcleo das qualidades morais fundamentais exigíveis a quem é líder de um partido político e dados os valores que tem defendido publicamente ao longo de tantos anos.

18. É facto notório que o assistente GP ... enquanto líder do PCTP /MRPP ao longo dos anos tem adotado uma postura contra a política dos Estados Unidos da América, ideológicas e programáticas dos partidos nacionais situados à sua direita, designadamente o PSD a que pertence Alberto João Jardim.

19. Vir dizer que o assistente foi agente da CIA e que aceita ser contratado por Jardim para perseguir os democratas da Madeira é apelidá-lo de hipócrita, de alguém que publicamente repudia valores e ideologias políticas, mas que em privado defende alguém sem carácter e desonesto.

20. No que concerne ao elemento subjetivo do crime de difamação, exige-se o dolo em qualquer das modalidades previstas no artigo 14º do Código Penal, não se colocando, por isso, a exigência de um dolo específico ou "animus difamandi vel injuriandi", como aliás é entendido na douta sentença recorrida.

21. Resulta da prova produzida em julgamento que o arguido JC ... deputado na Assembleia Regional da Madeira, com consciência do sentido, valor e alcance das palavras e imputações que fez, previu e quis proferir as expressões que proferiu, imputando factos e juízos de valor ao assistente GP ... objetivamente ofensivos, desapoiados de base factual concreta ou sólida, sabendo que tais expressões seriam lidas por uma generalidade indefinida de destinatários, os leitores do Diário Nacional da Madeira, não podendo deixar de prever e querer atingir o assistente na sua honra e dignidade pessoal e profissional, o que aconteceu.

22. Nesta conformidade, por se mostrarem verificados os elementos objetivos e subjetivos do tipo, não resultando da prova produzida, pelos motivos acima sumariamente expostos, o apuramento de quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, impunha-se a condenação do arguido JC ... pela prática do crime de que vinha pronunciado.

23. Ao não fazê-lo ([1]), absolvendo o arguido, incorreu a Mmª. Juiz a quo, salvo o devido respeito, em erro na qualificação jurídica dos factos, porquanto o circunstancialismo provado é, por si só, em nosso entender, merecedor de censura penal, por integrar o crime de difamação agravada previsto e punido pelos artigos 180° nº 1, 183° nºs 1 e 2 do Código Penal e 30° e 31° da Lei 2/99 de 13.01, restando assim, por força da decisão de absolvição, violados estes dispositivos legais.»

Finaliza o Ministério Público o seu recurso pedindo que a sentença recorrida seja revogada e substituída por acórdão que condene o arguido JC ... pela prática de um crime de difamação agravada, previsto e punido pelos artigos 180° nº 1, 183° nºs 1 e 2 do Código Penal e 30° e 31° da Lei 2/99 de 13.01.

                                                      *

O arguido não deduziu resposta a qualquer dos recursos.

Cumpre decidir.

                                                      *

II – FUNDAMENTAÇÃO

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar ([2]), sem prejuízo das de conhecimento oficioso.

Partindo da decisão da matéria de facto da 1ª instância – que não foi posta em causa e que, previamente, se reproduzirá – e considerando as conclusões dos recursos interpostos, as principais questões a decidir são as de saber:

- se a sentença recorrida está inquinada por contradição entre os factos provados nos pontos A a F e a fundamentação de direito (recurso do assistente);

- se a factualidade provada consubstancia um crime de difamação agravada, por o comportamento do arguido, além de difamatório, não se encontrar suficientemente justificado por se inserir no exercício do direito de expressão.

                                                      *

A decisão da matéria de facto (transcrição):

«De relevante para a discussão da causa, resultou o seguinte circunstancialismo fáctico:

Prov. - A. Em escrito publicado no número do dia 1-04-2011, no "Diário de Notícias" da Madeira o arguido numa notícia que versava um alegado plágio por parte do PTP (Partido Trabalhista Português), do qual o arguido faz parte, de comunicados elaborados pelo PCTP/MRPP, liderado pelo assistente GP ..., o arguido referiu "o GP ... e o AM ... eram agentes da CIA e fizeram aquele partido para desacreditar o Partido Comunista."

Prov. - B. Referindo-se ao assistente GP ..., referiu "Jardim continua a ir buscá-lo para fazer processos aos democratas na Madeira. O objetivo deles (PCTP/MRPP) é serem um cavalo de Troia dentro do movimento operário e socialista."

Prov. - C. O arguido descreve o assistente GP ... como “um homem da CIA e maçónico, que instrui os processos que o Dr. Jardim põe aos democratas.”

Prov. - D. O arguido sabia que as expressões que utilizou eram suscetíveis de serem ofensivas da honra e consideração de GP ..., na qualidade de ativista e dirigente político, facto ao qual o arguido não era alheio e que não o impediu de afirmar os referidos factos, ciente da sua falsidade.

Prov. - E. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente.

Prov. - F. Em consequência da atuação do arguido, o assistente GP ... sentiu-se humilhado e enxovalhado, quer a nível político, quer a nível pessoal.

Prov. - G. Foi interpelado sobre o conteúdo da referida notícia pelos seus amigos e até terceiros.

Prov. - H. Por sentença transitada em julgado em 25-11-2005 o arguido foi condenado pela prática, em 01-03-2003, de um crime de difamação agravada na pena de 230 dias de multa e um crime de difamação na pena de 120 dias de multa, sendo que em cúmulo jurídico das penas em apreço o arguido foi condenado na pena única de 250 dias de multa à taxa diária de €4,00.

Prov. - I. Por sentença transitada em julgado em 20-05-2008 o arguido foi condenado pela prática em 19-04-2002 de um crime de difamação na pena de 200 dias de multa à taxa diária de €4,00.

Prov. - J. Por sentença transitada em julgado em 29-06-2009 o arguido foi condenado pela prática em 02-05-2004 de um crime de difamação agravada na pena de 300 dias de multa à taxa diária de €5,00.

Prov. - K. Por sentença transitada em julgado em 26-07-2010 o arguido foi condenado pela prática em 02-01-2006 de um crime de difamação na pena de 18 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período.

Prov. - L. Por sentença transitada em julgado em 08-07-2013 o arguido foi condenado pela prática em 2002 de dois crimes de difamação agravada na pena única de um ano e seis meses de prisão suspensa na sua execução por igual período.

Matéria de facto N. Prov. –

A. Inexiste.

Tudo o que em contrário tenha sido dado como provado, bem como todos os factos conclusivos e de direito que se mostrem alegados, os quais não podem, por lei, ser considerados.

Motivação da matéria de facto

Uma vez que o arguido esteve ausente da audiência de julgamento o Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações do assistente, nos depoimentos das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento e na análise da prova documental junta aos autos.

Os factos dados como provados resultaram das declarações do assistente que confirmou o teor da notícia em causa nestes autos e constante do Apenso A destes autos, bem como a repercussão que a referida notícia teve no seu meio profissional, partidário e até pessoal.

Descreveu com isenção e credibilidade o seu estado psíquico em consequência das afirmações proferidas pelo arguido na referida notícia.

Mais esclareceu que todos os factos propalados pelo arguido eram falsos, já que não é maçónico, nem nunca representou o Dr. Alberto João Jardim em nenhum processo judicial. A sociedade de advogados da qual faz parte patrocinou em diversos processos o Vice-Presidente do governo regional da Madeira, na data da prática dos factos, o Dr. JS ..., nos quais JC ... surgia como arguido.

As declarações do assistente foram confirmadas pelo depoimento de Ana Paula Leal, advogada e sócia do mesmo escritório de advogados do que o arguido. A mesma descreveu o estado psíquico e os incómodos que o assistente sofreu com a referida notícia, sendo que mereceu total credibilidade deste tribunal atento o relacionamento próximo que mantém com o assistente. Esta testemunha foi perentória ao referir que a notícia em causa foi comentada dentro do local de trabalho do assistente e mesmo descreveu um episódio em que o arguido foi abordado por um transeunte na rua devido ao teor desta notícia.

Igualmente, PL ..., advogado, tendo trabalhado no mesmo escritório do que o assistente confirmou o estado do assistente em consequência da notícia, a sua tristeza e revolta.

Atentas as expressões constantes na notícia em causa, o arguido não podia deixar de saber que as mesmas não correspondiam à verdade, bem como eram uma pura provocação política feita no intuito de contra-atacar o rosto do partido PCTP/MRPP – o assistente GP ... - colocando em causa que o mesmo seguisse as ideologias que pugna no seu partido.

Teve-se em conta o CRC do arguido a fls. 659 a 668

                                                      *

A) A invocada contradição entre a matéria de facto provada e a fundamentação jurídica

Sustenta o assistente, designadamente na conclusão 3ª do seu recurso, que, “atenta a matéria de facto dada como provada sob as alíneas A), B), C), D), E) e F) da sentença recorrida, ocorre manifesta contradição entre aqueles factos dados como provados e a fundamentação da decisão, padecendo a sentença do vício da nulidade previsto no artigo 615°, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil (C.P.C.) aqui aplicável ‘ex vi’ art. 4°, do C.P.P..»

Face ao enquadramento legal dado pelo recorrente ao vício suscitado, importa fazer uma prévia advertência: como resulta do artigo 4º do Código de Processo Penal, as normas do processo civil só se aplicam em processo penal quando, cumulativamente, haja casos omissos, as disposições do Código de Processo Penal não possam aplicar-se por analogia e aquelas normas do processo cível se harmonizem com o processo penal.

Ora, desde logo, não se nos afigura que exista qualquer caso omisso, uma vez que o vício invocado é enquadrável na alínea b) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal: aí se prevê que o recurso pode ter como fundamento a contradição insanável da fundamentação, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida.

Na tese do assistente, existe contradição entre a factualidade provada e a fundamentação da decisão, ou seja, existirá antinomia entre os fundamentos de facto e os de direito.

Porém, mesmo existindo essa oposição entre as duas premissas do silogismo decisório, sempre se dirá que a mesma não será insanável nesta fase de recurso, como adiante melhor veremos.

Assim, sem necessidade de outras considerações, entendemos que deve improceder, enquanto tal, o vício formal invocado.

                                                      *       

B) A questão da tipicidade da conduta do arguido

Na sentença recorrida, o Tribunal a quo, depois de ter entendido que as demais expressões proferidas pelo arguido carecem de relevância penal, reconheceu que a expressão “o GP ... (…) era[] agente[] da CIA”, atento o quadrante político do assistente e toda a ideologia que defende, é suscetível de ofender a sua honra.

No entanto, entendeu que esta expressão, pela forma como foi proferida e no contexto em que o foi – de conflito político e de luta política, entre adversários políticos que disputam o mesmo eleitorado, sendo ambos figuras públicas – é atípica e não preenche o tipo em análise, sendo mais uma provocação feita pelo arguido ao assistente.

Concretizando mais os argumentos usados na sentença recorrida, extrata-se a seguinte passagem:

Nem se diga que o ataque perpetrado pelo arguido na referida notícia ao assistente extravasou a mera crítica política, ou que na data em causa não estava em causa nenhuma luta política, como defendeu o assistente e o M.P..

A época em causa foi muito conturbada politicamente com a demissão de José Sócrates cerca de um mês antes da saída da notícia e com todos os partidos a posicionarem-se para novas eleições. Acresce que da própria notícia em análise é possível extrair-se que as expressões utilizadas pelo arguido foram feitas em contra-ataque à acusação feita pelo PCTP/MRPP de que o partido liderado pelo arguido estava a plagiar os comunicados do PCTP/MRPP.

Como se vê, a sentença recorrida não deixou de antecipar o seu posicionamento perante os principais argumentos invocados pelos ora recorrentes.

Na verdade, recorde-se, na conclusão 4ª do seu recurso, o assistente alega que “a atividade política ou a circunstância de uma pessoa ser uma figura pública não pode servir de respaldo para a compressão da tutela penal do direito à honra, dignidade e respeito, ainda para mais quando, na verdade, na sentença recorrida, nenhum facto resultou provado no sentido de que as expressões imputadas ao arguido resultaram do debate, contexto, luta, crítica ou opinião política.”

Por sua vez, o Ministério Público, na conclusão 6ª do seu recurso, alega que “no contexto da Constituição da República Portuguesa, qualquer ponderação jurídica sobre o conflito entre a liberdade de expressão, opinião e crítica, ainda que de índole estritamente política, por um lado e, o direito ao bom nome e reputação, por outro lado, não pode assumir, como seu postulado axiológico, uma ideia apriorística de prevalência de um sobre o outro, pois, no rigor dos princípios consagrados na Lei Fundamental, não existem razões preponderantes que, salvo melhor entendimento, permitam acolher o entendimento de que o direito ao bom nome e reputação é menos intenso na esfera política do que na esfera pessoal’ (…)”.

Cumpre apreciar.

Pelo menos aparentemente, as posições antagónicas sustentadas, por um lado, pelo Tribunal recorrido e, por outro, pelos recorrentes não põem em causa o acervo fáctico fixado pela 1ª instância.

Na verdade, aquelas posições correspondem a duas correntes doutrinais e jurisprudenciais de algum modo opostas, mormente quando está em confronto a tutela, por um lado, do direito à honra e, por outro, dos direitos à liberdade de expressão e/ou de informação.

Importa, no entanto, referir que, na defesa das respetivas posições, quer o Tribunal recorrido, quer os recorrentes fazem apelo a factos – mesmo que se dê de barato que são notórios e que, portanto, não precisem de alegação pelas partes nem de prova (cfr. artigo 514º do Código de Processo Civil vigente à data dos factos e artigo 412º do atual) – que não se encontram plasmados na factualidade dada como provada, nem se pede que à mesma se aditem.

É o que sucede, por exemplo, com a afirmação feita na sentença recorrida – na parte do enquadramento jurídico dos factos – de que “A época em causa foi muito conturbada politicamente com a demissão de José Sócrates cerca de um mês antes da saída da notícia e com todos os partidos a posicionarem-se para novas eleições” ([3]) e com as asserções feitas, por exemplo, na conclusão 15ª das alegações do Ministério Público.

Ainda assim, estamos com a sentença recorrida na parte em que considerou que o comportamento do arguido é, de algum modo, enquadrável ou, pelo menos, relacionável com as atividades políticas desenvolvidas, até então, por ele próprio (JC ...) e pelo assistente GP ....
Aqui chegados, não podemos deixar de reconhecer a complexidade das questões levantadas pela sindicabilidade penal do direito à honra, quando este se mostre confrontado com as causas de justificação específicas previstas no nº 2 do artigo 180º do Código Penal e designadamente quando em conflito com outros direitos que também gozem de proteção legal, como sucede com o direito à liberdade de expressão, mormente em contexto de debate político. 
Desde logo, a tutela penal da honra cederá quando “a imputação for feita para realizar interesses legítimos” e “o agente provar a verdade da mesma imputação ou tiver fundamento sério para, em boa fé, a reputar verdadeira” (n.º 2 do art.º 180.º do Código Penal). Assim, a difamação não é punível desde que se verifiquem, cumulativamente, pelo menos, duas condições: que a imputação do facto desonroso seja feita para realizar interesses legítimos; e que o agente prove a verdade da imputação ou tenha fundamento sério para a considerar verdadeira ([4]).
Como facilmente se intui e melhor se verá, na douta sentença absolutória, entendeu-se que a conduta do arguido era atípica – sobretudo na parte em que o mesmo produziu a afirmação de que o assistente era agente da CIA, que considerou objetivamente injuriosa – por esta via excetiva/justificativa ([5]).
Concretizando, na sentença, o Tribunal recorrido esforçou-se louvavelmente por contextualizar factualmente a atuação do ora arguido ([6]), de uma forma bastante mais ampla do que a referida na acusação.
Conforme se extrai, ‘grosso modo’, do acima vertido, segundo a decisão impugnada, o ora arguido terá atuado no papel de membro destacado e ativo de um partido político, em confronto com uma posição pública de um outro partido de que o assistente era, então, dirigente máximo.

Ora, se estamos com a sentença impugnada na parte em que nesta se entende que o aqui arguido agiu na sua qualidade de político ativo e engajado em objetivos, ao reagir à antecedente acusação de plágio de comunicados, já não comungamos inteiramente da conclusão, que aí se extrai, de que as expressões que utilizou não se podem considerar, objetiva e subjetivamente, típicas, difamatórias da pessoa do assistente.

Pressuposto da referida intervenção penal é a tutela constitucional do direito fundamental “ao bom nome e reputação” de qualquer pessoa (artigo 26º, nºs 1 e 2 da CRP).

Importa, porém, proceder à compatibilização desse direito com o também direito fundamental da “liberdade de expressão e informação” (artigo 37º da CRP).

Mas, envolvendo o exercício da liberdade de expressão, reconhecido a qualquer pessoa, deveres e responsabilidades, entre eles, no domínio dos direitos de personalidade, o respeito pelo bom nome e reputação da pessoa visada, há a obrigação de evitar expressões gratuitamente ofensivas ou desproporcionadas atento o contexto em que são proferidas.

Atento o disposto no artigo 37º, nº 3, da CRP, incumbe aos tribunais judiciais, o controlo da crítica excessiva, arbitrária, gratuita ou desproporcionada, na medida em que seja ofensiva do bom nome e da reputação da pessoa, mesmo quando se trata de político ([7]).

Os direitos fundamentais em jogo (por um lado o direito ao bom nome e reputação e, por outro, o direito de expressão), que têm peso igual na hierarquia dos valores protegidos constitucionalmente ([8]), estando sujeitos a determinadas restrições (no caso da liberdade de expressão, estando as limitações também previstas no artigo 37º nº 3 da CRP), não podem ser considerados como direitos absolutos.

Em caso de conflito entre dois direitos fundamentais, com efeito, há que introduzir limites aos mesmos, de forma a preservar o núcleo essencial de cada um deles, com o fim de alcançar a necessária composição dos interesses em conflito (‘harmonização’ ou ‘concordância prática’ dos bens em colisão, a sua ‘otimização’[9]).

De entre os direitos pessoais garantidos pelo artigo 26º da CRP, o direito ao bom nome e à honra é, assim, normalmente entendido como um dos limites a outros direitos, nomeadamente o de liberdade de expressão e informação.

Mesmo quando estejam em causa cidadãos com alguma proeminência, seja no domínio da ciência, das artes ou da política, não se veem razões legais ou constitucionais para que não se concretize essa ponderação de valores ([10]).

Aliás, a este propósito e em anotação ao artigo 26º da CRP, referem os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira: “(…)Tal como sucede em relação a outros direitos  o âmbito do direito ao bom nome e reputação não é menos intenso na esfera política do que na esfera pessoal, devendo ser harmonizado e balanceado com a liberdade do debate político e com a liberdade de crítica política, que são inerentes à democracia. Neste aspeto, o TEDH tem adotado um critério assaz liberal na proteção da liberdade de expressão e opinião e do direito de crítica política em desfavor do bom nome e reputação política dos titulares de cargos políticos ou dos agentes políticos. No contexto constitucional português, os direitos em colisão devem considerar-se como princípios suscetíveis de ponderação ou balanceamento nos casos concretos, afastando-se qualquer ideia de supra ou infravaloração abstrata ([11]).
Esta ideia da igual dignidade constitucional de ambos os direitos e de estarmos em presença de uma colisão de direitos constitucionais é igualmente defendida pelo Prof. Jónatas Machado, o qual entende que a colisão deve ser superada através do princípio da proporcionalidade ou proibição do excesso, com salvaguarda do conteúdo essencial de cada direito em colisão. ([12])
Como refere o Prof. Costa Andrade, “Muitos dos bens jurídicos pessoais que acabam de atrair a tutela penal revelam uma vocação ostensivamente conflitual. Na expressiva formulação de Eser, estes bens jurídico-penais são invariavelmente portadores duma “imanente colisão de valores” ([13]).
Idêntica perceção foi tida pelo legislador constituinte, ao estabelecer no próprio artigo 37º da Constituição da República Portuguesa, por um lado a extensão alargada do exercício de tais direitos (nº 2) e, por outro, a possibilidade de serem consagradas infrações cometidas no exercício de tais direitos, as quais ficam submetidas “(…) aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respetivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente” (nº 3) e que a todas as pessoas é assegurado “(…) o direito a indemnização pelos danos sofridos” (nº 4).
Deste modo, é a própria Constituição que considera que o direito de expressão e informação tem limites, os quais, sendo ultrapassados, dão lugar a eventual responsabilidade criminal e civil, tal como o legislador ordinário veio depois a densificar nas leis ordinárias.
Uma vez que os direitos em causa têm igual dignidade constitucional e estando ambos em colisão, esta deverá ser resolvida na ponderação concreta do caso, tentando a «(…) sua harmonização, procurando otimizá-las de forma a que cada uma possa produzir os seus máximos efeitos. É o que nos diz o artigo 335º do CC, ao estabelecer que ‘havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes’» ([14]).
Nem em sentido contrário vai a opinião do Prof. Costa Andrade, o qual considera que “(…) a eminente e igual dignidade constitucional dos valores em confronto (honra e liberdade de expressão e de imprensa) cometem a equacionação e superação dos problemas a uma ponderação global de interesses na perspetiva do caso concreto”, devendo “reconhecer-se uma presunção de licitude às ofensas típicas que resultem da discussão de questões de interesse comunitário”, havendo sempre de “valorar-se como ilícitas as ofensas exclusivamente motivadas pelo propósito de caluniar, rebaixar e humilhar o ofendido” ([15])
A já citada Mestre Iolanda de Brito elege, como critérios a utilizar em tal ponderação em matéria de colisão entre o direito à honra e à liberdade de expressão, a prossecução de um interesse público, a verdade/falsidade do facto imputado e a gravidade do juízo de valor. Idêntico critério de prossecução de interesse público, já foi utilizado, jurisprudencialmente, pelo Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão de 3/3/2005, para ponderação entre os mesmos direitos em conflito, tendo decidido que “A liberdade de expressão não pode (e não deve) atentar, contra o direito ao bom nome e reputação, salvo quando estiver em causa um interesse público que se sobreponha àqueles e a divulgação dos factos seja feita de forma a não exceder o estritamente necessário a tal salvaguarda” ([16])
Eis-nos, afinal, ‘de regresso’ à causa de exclusão da ilicitude legislativamente plasmada nos nº 2 do artigo 180º do Código Penal, que acaba por enunciar os critérios a ter em conta para ponderação dos direitos em colisão, quando exclui da punibilidade as condutas enquadráveis em tais pressupostos.
Aplicando as anteriores considerações ao caso concreto dos autos, alguma distinção há que fazer entre as duas imputações feitas.
O arguido alegou na sua contestação que agiu no uso do seu direito de liberdade de expressão (o que, configurando o uso de um direito, não significa, necessariamente, a realização de um interesse legítimo), mas não invocou a verdade das imputações feitas através do órgão de comunicação social Diário de Notícias da Madeira.
Ainda assim, no que respeita à imputação de que “Jardim continua a ir buscá-lo para fazer processos aos democratas na Madeira”, não sendo exatamente verdadeira, uma vez que o assistente afirma que ‘nunca representou o Dr. Alberto João Jardim em nenhum processo judicial’, certo é que o mesmo assistente admite que ‘a sociedade de advogados da qual faz parte patrocinou em diversos processos o Vice-Presidente do governo regional da Madeira, na data da prática dos factos, o Dr. JS ..., nos quais JC ... surgia como arguido’.

Nesta parte, poderá, assim, obtemperar-se que o arguido imputou ao assistente factos que, não sendo verdadeiros, continham em si um fundo de verdade. Para além disso, nem seria particularmente deslustroso da reputação pessoal e profissional do demandante exercer o mandato judicial sob mandato de uma pessoa que não comungaria propriamente dos seus ideais políticos ou de quem seria mesmo opositor político.

   Já quanto à imputação feita pelo arguido de que o assistente era ‘agente da CIA’, ‘um homem da CIA’, não só se mostra redondamente falsa, como particularmente infamante para quem se apresentava como o rosto visível do denominado Partido Comunista dos Trabalhadores Portugueses/Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado (significado da sigla PCTP/MRPP): um indivíduo com estofo de traidor do seu país (espião de um país estrangeiro) e da classe social de cujos interesses se intitulava representante.

Por outro lado, estas imputações mostravam-se completamente desajustadas e desenquadradas do tema político a que supostamente visavam responder (o alegado plágio de comunicados), apresentando-se como mera vindicta política, mas também pessoal.

Tudo isto significa que, não só o arguido não provou (nem tentou provar) a verdade das imputações mais gravemente difamatórias, como se patenteia que não quis realizar qualquer interesse legítimo.
Como refere o Prof. Jónatas Machado, a norma que consagra o direito à liberdade de expressão “(…) deve ser corretamente entendida, de acordo com o efeito recíproco de mútuo condicionamento entre normas protetoras de diferentes bens jurídicos, sob pena de invocação do exercício da liberdade de expressão ou de informação acabar por neutralizar pura e simplesmente o ilícito em causa.
Deve lembrar-se que a violação do núcleo essencial do direito ao bom nome e à reputação dificilmente poderá ser legitimada com base no exercício de um outro direito fundamental” ([17]).
Não pode, pois, o direito à liberdade de expressão aniquilar ou esmagar o direito à honra e consideração do ofendido, pois a isso se opõe, desde logo, o artigo 18º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa, que limita a restrição dos direitos, liberdades e garantias, as quais não podem “(…) diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais”.

Se do ponto de vista doutrinal este entendimento é prevalecente, o mesmo parece acontecer do ponto de vista jurisprudencial, ainda que existam já numerosas posições divergentes, mesmo ao nível do S.T.J., do que, de resto, se faz eco a sentença recorrida.

Nem se diga que desconhecemos que a posição que adotámos tem vindo a ser contrariada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), que dá primazia à liberdade de expressão, como o próprio S.T.J. reconhece em alguns dos seus acórdãos. No acórdão de 12/3/2009, o S.T.J. reconhece que o “(…) TEDH tem vindo a firmar jurisprudência no sentido de, sob reserva do n.º 2 do artigo 10.º da CEDH, a liberdade de expressão ser válida não só para as informações consideradas como inofensivas ou indiferentes, mas também para aquelas que contradizem, chocam ou ofendem” ([18]).
Porém, como se refere neste mesmo acórdão, o TEDH reconhece à luz do artigo 10º, número 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, (CEDH) que o exercício da liberdade de expressão está sujeito “a restrições e sanções”, podendo o Estado Português, ao nível do direito interno, estabelecer tais restrições e sanções, como acontece com o artigo 180º do Código Penal e também no artigo 484º do Código Civil.
É verdade que existem várias decisões do TEDH que permitem uma crítica e ofensa quase ilimitada do direito à honra, estribando-se no direito à liberdade de expressão. O TEDH considera que “a liberdade de expressão constitui um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática” a qual é caracterizada ainda pelo “pluralismo, tolerância e espírito de abertura”, sendo uma “das condições primordiais do seu progresso e do desenvolvimento de cada um” ([19]).
Esta leitura da CEDH por parte do TEDH conflitua, a nosso ver, com o direito interno português e a interpretação que a maioria da doutrina e da jurisprudência fazem da colisão de direitos constitucionais com igual dignidade abstrata.
Porém, em nosso entender, tal jurisprudência comunitária não é vinculativa dos tribunais portugueses.
Como já referimos os direitos em colisão têm igual dignidade constitucional. O artigo 16º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, impõe uma interpretação dos direitos, liberdades e garantias em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a qual tutela, em termos paritários, ambos os direitos (artigos 12º e 19º da DUDH).
No plano da hierarquia das normas, as normas constitucionais aparecem no topo da pirâmide, seguidas das normas convencionais internacionais regularmente ratificadas pelo Estado Português, as quais vigoram no direito interno e se sobrepõem a essas mesmas normas na hierarquia ([20]). A Constituição da República Portuguesa no artigo 8º, nº 4 estatui que as “disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”. Exige-se assim, o respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático, que é exatamente o que está em causa no caso vertente.
Na verdade, esta jurisprudência do TEDH pode ser violadora, em nossa modesta opinião, da própria Constituição da República Portuguesa, na medida em que a mesma não permite, no seu artigo 18º, nº 3, a restrição dos direitos, liberdades e garantias, como são os direitos pessoais, de modo a diminuir o conteúdo essencial dos preceitos constitucionais que os consagram. A jurisprudência do TEDH está, verdadeiramente, a hierarquizar, em termos abstratos, os direitos, liberdades e garantias previstos na Constituição da República Portuguesa, o que a mesma não permite por força da sua igual dignidade constitucional.
Para além deste impedimento constitucional, existe ainda um impedimento legal, isto é, ao nível da legislação ordinária.
Com efeito, apesar do disposto no artigo 449º, nº 1, al. g) do Código de Processo Penal e 696º, al. f) do Código de Processo Civil, que permitem, como fundamento do recurso de revisão, a existência de uma decisão vinculativa do Estado Português por uma instância internacional, nem por isso se pode considerar que a jurisprudência do TEDH é vinculativa para os Tribunais portugueses. Ainda que a decisão seja vinculativa para o Estado Português, os Tribunais nacionais têm sempre que aferir se essa mesma decisão é inconciliável com a condenação ou suscita graves dúvidas sobre a sua justiça.
Impõe-se ainda, antes de concluirmos a qualificação jurídica, fazer referência à eventual relevância jurídica de o assistente ser uma figura pública.
A grande maioria, para não dizer a generalidade da doutrina e jurisprudência entende que quando estão em causa figuras públicas, os limites da crítica admissível são mais amplos, admitindo-se, no âmbito de controvérsias políticas e públicas, o uso de linguagem forte, exagerada, violenta e mordaz ([21]).
Esta diferente amplitude tem na base um interesse público de maior escrutínio exigido pela sociedade democrática sobre as figuras públicas, as quais devem suportar uma maior tolerância da crítica, levando, como refere o Prof. Faria Costa a uma “erosão externa da honra”.
Mas, como refere Iolanda Brito, “mesmo em relação às figuras públicas há limites que não podem ser ultrapassados, ainda que no domínio da esfera pública. A tolerância à crítica tem que conhecer barreiras, sob pena de se negar, de uma forma intolerável, a proteção da honra das figuras públicas, o que poderia acarretar diversas consequências negativas, nomeadamente afastar as mais dignas da vida pública”. Esta proteção é especialmente exigida, “se uma figura pública pauta o seu comportamento público por padrões de correção, urbanidade, honestidade e lealdade merece uma maior proteção da sua honra do que a figura pública que assume uma conduta pouco compatível com aqueles padrões” ([22]).
Não resulta da factualidade provada que o assistente se incompatibilize com tais padrões.

Pelo exposto, não temos dúvidas em afirmar que o arguido cometeu o crime de difamação agravada previsto e punido pelos artigos 180° nº 1, 183° nºs 1 e 2 do Código Penal e artigos 30°/1 e 31°/4 da Lei 2/99, de 13 de janeiro, que lhe vinha imputado, dando-se, pois, no fundamental, razão aos recorrentes.

                                                      *

C) A espécie e a medida da pena

O crime de difamação agravada previsto e punido pelos artigos 180° nº 1, 183° nºs 1 e 2 do Código Penal é punível com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa não inferior a 120 dias (isto é, com pena de multa de 120 a 360 dias) ([23]).

Como sucede com a generalidade de pequena criminalidade ([24]), decorre da própria estatuição típica a alternatividade entre as duas penas principais do nosso ordenamento jurídico penal.   

A pena tem sempre o fim de servir para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência da norma violada – e, assim, no ordenamento jurídico-penal. É o instrumento, por excelência, destinado a revelar perante a comunidade que a ordem jurídica é sólida, apesar de todas as violações da mesma que tenham lugar ([25]).

É necessário ainda que tal pena possa lograr a socialização ou advertência individual e a segurança ou inocuização.

São, assim, as finalidades relativas de prevenção, geral e especial, que justificam a intervenção do sistema penal e conferem fundamento e sentido às suas reações específicas. Isto é, como sustenta Jorge de Figueiredo Dias ([26]), as referidas finalidades da punição são exclusivamente preventivas, não finalidades de compensação da culpa.

Segundo o critério de escolha da pena expresso no atual artigo 70º do Código Penal – onde se estabelece que, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade – o tribunal deve dar preferência à pena de multa sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Verifica-se que, anteriormente à prática dos presentes factos, o arguido havia já sido condenado 4 diferentes vezes, com trânsito em julgado, por crimes de difamação ou de difamação agravada, a última das quais em pena de prisão suspensa na sua execução. Entretanto, foi novamente condenado, com trânsito em julgado, em nova pena de prisão suspensa na sua execução (pena única, resultante de cúmulo), por mais dois crimes de difamação agravada.

Resulta bem patente que mormente as necessidades de prevenção especial são especialmente prementes, não permitindo a opção pela pena de multa.

Consequentemente, entendendo-se que a pena de multa não é já suficiente para afastar o arguido da criminalidade, opta-se pela pena de prisão.

                                    *

É, pois, dentro dos limites desta pena privativa da liberdade – de um mês a 2 anos de prisão – que se deverá encontrar a medida justa e adaptada ao caso concreto.

Figueiredo Dias ([27]) propõe um critério de determinação da medida da pena que se nos apresenta como o mais consentâneo com o disposto nos artigos 40º e 71º da atual versão do Código Penal Português. Entende que as finalidades de aplicação de uma pena residem, primordialmente, na necessidade de tutela dos bens jurídicos, que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da vigência da norma infringida (prevenção geral positiva ou de integração), e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa. Este entendimento, aliás, encontra expresso acolhimento nos nºs 1 e 2 do artigo 40.º da versão do Código Penal emergente da reforma de 1995.

É a estes vetores que se deve atender para a determinação da medida concreta da pena, tal como o fez, por exemplo, o S.T.J., em acórdão de 24/05/1995, publicado na Col.Jur./S.T.J., ano III, tomo II, página 210.

Assim, continuando a seguir Figueiredo Dias ([28]), importa encontrar uma medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias. Abaixo dessa medida, é possível encontrar outros pontos em que aquela tutela é ainda efetiva e consistente. Isto até se atingir um limiar mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Entre aquela medida ótima de tutela dos bens jurídicos e este limiar mínimo, atuam pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena.

A culpa, por seu turno, constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas, sendo certo que, atualmente, a doutrina e a jurisprudência entendem que, no juízo de culpa, deve predominar a culpa pelo facto. Escreve-se, a este propósito, no acórdão da Relação de Coimbra de 17/01/1996 [Col.Jur., ano XXI, tomo I, página 40 ([29])], na esteira da orientação doutrinal defendida por Anabela Miranda Rodrigues ([30]): “parte-se, assim, de uma conceção de culpa, referida ao facto, em que a personalidade do agente só releva para a culpa na medida em que se exprime no ilícito típico e o fundamenta”; e “o juízo de culpa é sempre um juízo de desvalor sobre o agente em razão do seu comportamento num certo momento, qual seja o do cometimento do ilícito típico.”

Para aferir do grau das exigências de prevenção que, no caso, se fazem sentir e da medida da culpa, importa, como já se deixou aflorado, atender aos fatores exemplificativamente positivados de determinação da medida da pena. Estes fatores são enumerados, de modo não exaustivo, no nº 2 do artigo 71º do Código Penal.

In casu, os fatores a ponderar são, fundamentalmente, os seguintes:

- o grau de ilicitude, que deve considerar-se médio, se se olhar, nomeadamente, à imputação ao assistente da qualidade de agente da CIA, mas, por outro, à qualidade de figura pública do ofendido;

- as necessidades de prevenção geral positiva, que se mostram de alguma relevância, atendendo a que, apesar de tudo, importa obviar à proliferação de ofensas à honra através dos meios de comunicação social;

 - a intensidade da culpa do arguido, que se manifestou na sua modalidade mais comum, mas também mais grave – o dolo direto;

- a existência de um elevado número de antecedentes criminais da mesma natureza apontam para elevadas necessidades de prevenção especial

O grau de culpa, só por si, suporta uma pena superior a um ano e meio de prisão.

As necessidades de prevenção geral (não elevadas) fazem descer a “fasquia” superior punitiva para a proximidade do meio da pena (um ano de prisão).

As muito altas necessidades de prevenção especial (cinco condenações por crimes idênticos) não têm qualquer efeito de contração da pena, que se fixa em 1 ano de prisão.

                                                     *

Atendendo à medida concreta da pena de prisão, deve colocar-se a possibilidade de aplicação de uma eventual pena de substituição.

A substituição por multa prevista no artigo 43º/1 do Código Penal é afastada pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes.

A suspensão de execução da pena de prisão (artigo 50º e seguintes do Código Penal) constitui pena de substituição que já deu mostras de não ser suficiente para afastar o arguido da criminalidade. Aliás, este encontrava-se, inclusivamente, à data do cometimento dos factos objeto destes autos, no período de suspensão de uma pena de um ano e seis meses de prisão por crime idêntico.

A substituição da pena por prestação de trabalho a favor da comunidade, para além de desadequada, é ilegal, por inexistir a necessária aceitação prévia pelo arguido (cfr. nº 5 do artigo 58º do Código Penal).

A aplicação dos regimes de permanência na habitação e de semidetenção são igualmente ilegais, por inexistir prévio consentimento do arguido (cfr. artigos 46º/1 e 44º/1 do mesmo diploma).

A única forma de cumprimento da pena que pode substituir o cumprimento integral e efetivo da pena de prisão aplicada é a prisão por dias livres, que não carece do consentimento do arguido e se adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição (artigo 45º/1 do Código Penal).

Assim, nos termos dos nºs 2, 3 e 4 do mencionado artigo 45º do Código Penal, o cumprimento da pena de prisão será efetuada por 72 períodos correspondentes a fins de semana, com a duração mínima de 36 horas e a máxima de 48 horas, cada um.

                                                     *

III- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes desta 9ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento aos recursos interpostos pelo assistente GP ... e pelo Ministério Público e, revogando a sentença da 1ª instância, em condenar o arguido JC ... na pena de 1 (um) ano de prisão, a cumprir por dias livres correspondentes a fins de semana, em 72 (setenta e dois) períodos com a duração mínima de 36 (trinta e seis) horas e a máxima de 48 (quarenta e oito) horas, cada um.

                                                     * 

Sem custas (o arguido não deduziu oposição aos recursos).

      *

Lisboa, 26 de janeiro de 2017

Vítor Morgado

Maria do Carmo Ferreira

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[1] Assim no original.
[2] Tal decorre, desde logo, de uma atenta interpretação do disposto no nº 1 do artigo 412º e nos nºs 3 e 4 do artigo 417º. Ver também, nomeadamente, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 3ª edição (2009), página 347 e jurisprudência uniforme do S.T.J. (por exemplo, os acórdãos. do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, página 196, e de 4/3/1999, CJ/S.T.J., tomo I, página 239).
[3] O que não significa, porém, que seja correto afirmar – como o faz o assistente na conclusão 5º do seu recurso – que, “na sentença recorrida, nenhum facto resultou provado no sentido de que as expressões imputadas ao arguido resultaram do debate, contexto, luta, crítica ou opinião política”, pois do ponto A da factualidade provada resulta o enquadramento do texto publicado na atividade política dos sujeitos processuais. Nem só em período eleitoral ou pré-eleitoral existe atividade política ou mesmo debate político. 
[4] Neste sentido, aliás pacífico, veja-se, por todos, José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, página 919.
[5] Via esta que vem sendo trilhada pela doutrina e pela jurisprudência, com especial incidência nos casos em que o ‘interesse legítimo’ que se contrapõe à tutela penal da honra é o da liberdade de informação – setor cujas especificidades são salvaguardadas pela chamada Lei de Imprensa, Lei nº 2/99, de 13/1, entretanto sucessivamente alterada. Mas o juízo de valor desonroso pode ver a sua ilicitude igualmente afastada/justificada perante o exercício de outros direitos constitucional e legalmente protegidos, como os direitos à liberdade de expressão, à liberdade de criação artística, à liberdade de exercício de direitos políticos (com potencial incidência nos presentes autos), etc.
                                                                                               
[6] Dizemos ‘louvavelmente’, na medida em que, como bem refere Faria Costa – na obra, tomo e edição citados na nota anterior, página 916 – “(…) o cerne da determinação dos elementos objetivos se tem sempre de fazer pelo recurso a um horizonte de contextualização”. Já não será tão ‘louvável’ quando o fez por recurso a factos ou circunstâncias não dadas expressamente como provadas.
[7] Neste sentido, veja-se texto do acórdão da Relação do Porto de 25/2/2009, proferido no recurso 0817143 Maria do Carmo Silva Dias, acedível em www.dgsi.pt. 
[8] Sobre a igual valência normativa do direito à honra e do direito de informação ver José Francisco Faria Costa, Direito Penal da Comunicação, alguns escritos, Coimbra Editora, 1998, p. 55.
[9] Jorge Figueiredo Dias, “Direito de Informação e Tutela da Honra no Direito Penal da Imprensa Português”, in RLJ, ano 115º (1982), página 102.
[10] Em sentido idêntico, veja-se o excelente acórdão desta Relação de Lisboa de 12/5/2016, proferido no recurso 2544/10.7TDLSB.L1-9, relatado por Antero Luís, acedido em www.dgsi.pt, cuja argumentação, em termos genéricos, durante alguns parágrafos, seguiremos.
[11] In Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4ª edição, Coimbra Editora,  página 466.
[12] In Liberdade de Expressão, Boletim da Faculdade de Direito, Stvdia Ivridica 65, pág 709 e segs.  
[13] In Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Uma perspectiva Jurídico-Criminal, pág. 28.
[14] Mestre Iolanda A.S. Rodrigues de Brito, in Liberdade de Expressão e Honra das Figuras Públicas, Coimbra Editora, pág. 182.
[15] Em “Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal”, página 299.
[16] Proc. 04B4789, in www.dgsi.pt
[17] Obra citada, página 768.
[18] Proferido no recurso nº 2972/08 - 2.ª Secção, acedível em www.dgsi.pt.
[19] Veja-se, entre outros, o acórdão do TEDH de 28/9/2000, no caso Lopes Gomes da Silva c. Portugal, consultável na RMP nº 84, Out/Dez 2000, páginas 179-191.
[20] Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “Constituição Portuguesa Anotada”, vol. I, Coimbra Editora, 2005, págs. 91 a 96; Ireneu Cabral Barreto, in “A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada”, Coimbra Editora, 2005, págs. 31 e 32; Iolanda A.S. Rodrigues de Brito, in “Liberdade de Expressão e Honra das Figuras Públicas”, Coimbra Editora, 2010, págs. 103 a 109, nestes dois últimos casos especificamente para a CEDH.
[21] Neste sentido Iolanda Brito, obra citada, páginas 91 e 92; no mesmo sentido, os acórdãos pela mesma citados, de vários tribunais de Relação
[22] Obra citada, páginas 258 e 259.
[23] No caso concreto, os artigos 30°/1 e 31°/4 da Lei 2/99, de 13 de janeiro, limitam-se a corroborar a punibilidade do arguido nos termos gerais do Código Penal. Com efeito, tratando-se de declarações de um agente não jornalista corretamente reproduzidas pelo jornal, prestadas por pessoa devidamente identificada, só esta pode ser responsabilizada. Não se aplica a agravação prevista no nº 2 do artigo 30º, visto que a lei penal geral comina agravação específica em razão do meio de comissão.
[24] E até de alguma média, após a revisão do Código Penal de 1995, operada através do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de março.
[25] Ver Figueiredo Dias, in “Temas Básicos da Doutrina Penal”, páginas 74 e seguintes.
[26] In Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, Aequitas, 1993, página 331.
[27] Fundamentalmente, na obra Direito Penal Português, Parte Geral, II, As consequências jurídicas do crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993. Vejam-se, sobre esta questão da medida da pena, designadamente, páginas 227 e seguintes.
[28] Obra e local citados na nota anterior.
[29] Relatado por Oliveira Mendes.
[30] In A determinação da medida da pena privativa da liberdade, páginas 478 e seguintes.