Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6314/16.0T8LSB.L1-7
Relator: DIOGO RAVARA
Descritores: FORNECIMENTO DE GÁS NATURAL
EXPLOSÃO EM EDIFICIO
DANOS PESSOAIS E PATRIMONIAIS
RESPONSABILIDADE CIVIL
ACTIVIDADE PERIGOSA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I- Na sequência da liberalização do setor do gás natural, compete às empresas distribuidoras o transporte e abastecimento de gás natural, e às empresas comercializadoras a sua venda, ou revenda.

II- Os clientes finais de gás natural adquirem o mesmo às empresas comercializadoras, mediante a celebração de contratos de fornecimento, não tendo qualquer relação contratual com as empresas distribuidoras.

III- A atividade das empresas de comercialização de gás não é de reputar uma atividade perigosa nos termos e para os efeitos previstos no art.º 493º, nº 2 do Código Civil.

IV- As empresas de distribuição e as empresas de comercialização de gás natural podem responder solidariamente com a empresa distribuidora, pelos danos causados a terceiros em consequência de explosões de gás em edifícios, nos termos previstos no art.º 509º do CC.

V- Não é possível imputar a uma empresa de comercialização de gás, nos termos previstos no art.º 509º do CC, os danos pessoais e patrimoniais sofridos por transeunte causados por explosão de gás em edifício, se não se logrou apurar a concreta causa da explosão, nem a origem do gás que explodiu, e no edifício em questão operam diversas empresas comercializadoras.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

1. Identificação das partes e objeto do processo[1]
Autor:  A
Réus:
- Lisboagás – Comercialização, S.A.,
- Condomínio do Prédio…
- D ,  E e F na qualidade de herdeiros de AR e de MR.
- G  
Pedido: Condenação dos réus a pagar ao autor as seguintes quantias:
- €381,53, a título de reembolso de despesas;
- €100.000,00 a título de compensação por danos morais;
- €25.500,00 (€1.500,00 euros mensais x 17 meses) a título de retribuição que deixou de auferir por força da sua impossibilidade de prestar trabalho, ou à cautela e subsidiariamente, a que o tribunal fixar após determinação da ITT/ITP;
- montante a liquidar em execução de sentença relativo ao dano biológico corporal e ao grau de incapacidade para trabalho que se apurarem após peritagem;
- juros vincendos sobre o montante em dívida desde a citação até efetivo e integral pagamento dos montantes em dívida
Causa de pedir: A ocorrência de um acidente que consistiu numa explosão de gás num edifício, no momento em que o autor circulava a pé na via pública, próximo desse mesmo edifício, do qual resultaram danos patrimoniais e não patrimoniais.

Posição dos réus: Contestações separadas, com impugnação de facto e de Direito.
Decisão da 1ª instância
Realizada audiência final, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Face ao exposto, declara-se a presente ação parcialmente procedente por provada e, em consequência:
- Absolvem-se os réus D, E e F; C e G dos pedidos contra si deduzidos;
- Condena-se a ré Lisboagás Comercialização, S.A. nos seguintes pedidos:
* €381,53 (trezentos e oitenta e um euros e cinquenta e três cêntimos) a título de compensação por despesas suportadas pelo autor com a sua recuperação física;
* €9.500 (nove mil e quinhentos euros) relativos a danos patrimoniais decorrentes por interrupção ou diminuição da sua capacidade de trabalho;
* €50.000 (cinquenta mil euros) a título de compensação pelo dano biológico sofrido;
* €50.000 (cinquenta mil euros) a título de compensação pelos danos patrimoniais correspondentes a dores físicas e sofrimento psicológico sofrido pelo autor.
- A todos os valores acima referidos acrescem juros moratórios à taxa legal para obrigações civis desde a data de citação e até integral pagamento. -
Custas por autor e ré sociedade, na proporção de 1/10 e 9/10, sem prejuízo de apoio judiciário.”
Recurso
A ré Lisboagás interpôs o presente recurso de apelação, cuja motivação culminou nas seguintes conclusões:
1ª A matéria de facto que foi relacionada sob os Temas da Prova encontra-se erradamente julgada, erro que se traduz, por um lado, i) na errada inclusão da matéria julgado por provada em contradição com a prova produzida e que por isso impunha a sua eliminação, julgando-os por não provados e, ii) na qualificação jurídica operada a partir de factos que não se encontram provados e noutros que se mostram contraditórios entre si ou com a própria prova produzida.
2ª A decisão proferida quanto à matéria de facto do relatório da motivação de facto da sentença está em contradição com a prova produzida ou carece de qualquer substrato probatório que a sustenta nos seguintes pontos:
3ª Na verdade, a sentença recorrida confunde as funções de fornecedor com as de comercializador de gás, sendo que a Recorrente apenas exerce as funções desta última qualidade, a de comercializadora do gás fornecido por terceira entidade, cabendo-lhe apenas funções da natureza administrativa como o seja o processamento da faturação do gás fornecido.
4ª Assim, ao contrário do decidido relativamente aos pontos de facto 91), 91) e 95) dos factos provados, em face da prova produzida ou existente nos autos, deveria tão só o Tribunal recorrido ter decidido como NÃO PROVADO QUE:
- «"A ré Lisboagás era a única fornecedora de gás a diversas frações do prédio dos autos na altura do evento (julho de 2013)";
- "A única entidade referida nas faturas de consumo de gás no momento da explosão dos autos era a ré Lisboagás Comercialização, S.A.";
- "A sociedade Lisboagás Comercialização, S.A. é fornecedora de gás em mercado regulado e sucessora legal de fornecedora de gás em mercado não livre."»
5ª Para aquilatar da divergência ou erro na apreciação da prova produzida, com vista à modificação da decisão de facto, impõe-se proceder à renovação e reapreciação da prova gravada, nomeadamente o depoimento das testemunhas:
- CA, administrador do Condomínio 3º Réu, prestado na audiência de julgamento do dia 8 de Fevereiro de 2021, cujo depoimento foi gravado através do sistema de gravação digital disponível na aplicação informática (pista "CA", com início às 10:48:42 e fim 11:27:29);
- MV, prestado na audiência de julgamento no dia 8 de Fevereiro de 2021, cujo depoimento foi gravado através do sistema de gravação digital disponível na aplicação informática (pista "MV", com início às 10:06:07 e fim 10:34:45).
6ª Depoimentos com base nos quais o MM° Julgador, erradamente fundou a sua convicção e julgamento relativamente aos mencionados pontos da matéria de facto impugnada e dos quais, se corretamente apreciados valorados e julgados, apenas resultaria demonstrado que:
- A Recorrente era apenas uma das entidades comercializadores do gás fornecido as frações do edifício à data do acidente;
- A Recorrente não era fornecedora de gás às frações do edifício;
- Existiam frações sem contratos de abastecimento de gás;
- Assim como existiam frações abastecidas com gás propano (gás de botija) e frações abastecidas com gás natural;
- A fração onde deflagrou a explosão estava sem fornecimento de gás há vários anos.
7ª Tão pouco foi produzida prova testemunhal nem documental relativamente ao ponto de facto 91), quer porque não foram juntas cópias de faturas representativas de todas as frações abastecidas por gás, quer porque não foram recolhidos depoimentos de todos os proprietários das frações abastecidas por gás que identificassem os respetivos comercializadores.
8ª Ora, não existindo prova, testemunhal nem documental nos autos, da qual resulte que a Recorrente era a fornecedora, ou pelo menos a única fornecedora de gás ao prédio, não poderia afirmar a sentença recorrida, como o fez, que à data do sinistro o gás existente na tubagem do prédio ou sequer da fração onde ocorreu o sinistro, pertencia à Recorrente.
9ª Com efeito, não há nenhum elemento de prova que habilitasse o Tribunal recorrido a concluir nos termos em que o fez e julgar como provado que todo o gás canalizado fornecido ao prédio era da Recorrente Lisboagás, já que esta entidade não fornece gás.
10ª Do mesmo modo, como a Recorrente Lisboagás não era a única comercializadora do gás fornecido às diversas frações do edifício, também não seria possível julgar provado o fato de que «seria a única entidade referida nas faturas de consumo de gás».
11ª Não decorrendo por isso demonstrada essa factualidade, encontra-se a matéria de facto incorretamente julgada.
12ª Assim, claramente o Meritíssimo Juiz a quo errou na apreciação da prova produzida e, consequentemente, errou na decisão de facto que proferiu quanto à matéria contida nos pontos 90), 91) e 95) do relatório da motivação, acabando por decidir em manifesta contradição com a prova.
13ª Razão pela qual, em face do alegado, deverá a decisão proferida quanto à matéria impugnada dos Factos 90), 91) e 95) ser modificada, julgando os mesmos NÃO PROVADOS.
14ª Alterado o sentido da decisão da matéria de facto relativamente aos pontos de facto impugnados, resulta inequivocamente prejudicada a premissa em que assentou a formação do sentido da decisão do direito aplicado quanto à responsabilidade objectiva da Recorrente, com fundamento em que esta seria a única fornecedora de gás ao prédio.
15ª Pois na ótica do Mmº Julgador tudo se passa como se a Recorrente fosse a única fornecedora do gás ao prédio e por isso a dona do gás existente na rede de abastecimento das frações do edifício, entendimento que não tem acolhimento ou fundamento na prova produzida.
16ª Sustenta a Sentença ora recorrida que: "Apurou-se que, à data da explosão, a infraestrutura pública de fornecimento de gás do prédio era detida e explorada por entidade terceira, Lisboagás GDL - Sociedade Distribuidora de Gás Natural de Lisboa, S.A."
17ª Contudo, trata-se de matéria que só poderia ser demonstrada por documento, nomeadamente pela cópia do protocolo ou contrato de instalação outorgado entre a entidade instaladora da rede e o Município de Lisboa, e o contrato de concessão ou exploração da rede, entre a entidade proprietária da rede com o Município de Lisboa e a entidade distribuidora de gás, prova esta que não foi produzida.
18ª Além disso, tal factualidade não consta do elenco do relatório da matéria de facto julgada como provada na sentença nem se trata de facto instrumental resultante da demonstração que qualquer outro facto, pelo que o Mmº Julgador não fundamenta nem esclarece os meios probatórios em que se fundamenta para concluir que à data da explosão, a infraestrutura pública de fornecimento de gás do edifício era detida e explorada pela Lisboagás GDL.
19ª Ou seja, o Tribunal a quo na fundamentação da decisão que profere relativamente à qualificação jurídica do litígio funda-se, por um lado, com base em factos incorretamente julgados e, por outro lado, com base num facto que nem sequer foi julgado nem integra o elenco dos factos relacionados na sentença como provados.
20ª Em suma, é manifestamente evidente que a factualidade dada como provada na sentença é insuficiente para fundamentar a solução de direito alcançada, ocorrendo, também por isso, erro de julgamento na qualificação da matéria de facto apurada.
21ª Igualmente resulta por elencar os meios de prova em que se baseou o Mmº Julgador para sustentar que: "qualquer gás retido em tubagens de frações sem fornecimento presente teve, necessariamente, origem em venda passada realizada pela Ré ou sociedade sua antecessora. Quer dizer que, em termos simples, qualquer que tenha sido a origem concreta da explosão, o gás natural incluído na mistura que deflagrou é um produto ou substância fornecido pela ré lisboa gás."
22ª Na verdade, da matéria de facto dada como provada não resultou provado que:
- A mistura que deflagrou é uma substância fornecida pela Recorrente;
- O gás deflagrado era gás de cidade, gás natural ou gás propano.
23ª Isto porque, como se disse já, decorreu da prova testemunhal produzida que algumas frações eram abastecidas por «gás de cidade», outras eram abastecidas por «gás de botija» (depoimento do administrador do condomínio réu), ou seja, gás propano, logo, num e noutro caso esse tipo de gás não era fornecido nem comercializado pela Recorrente, nem antes, nem durante, nem depois do sinistro, não tendo por isso sucedido a quem quer que fosse nesse abastecimento.
24ª Ficando por apurar nos autos, dado que o Autor neles não fez intervir todos os sujeitos detinham uma relação direta com o fornecimento de gás ao edifício, se o gás deflagrado era um não gás natural comercializado pela Recorrente ou por terceiro, dado que a Recorrente não era e nunca foi a fornecedora de gás ao edifício.
25ª Com especial relevância o facto de já em 2012, antes da data do sinistro, existirem fornecedores de mercado livre a operar no fornecimento de gás ao edifício, pelo que o gás deflagrado na explosão podia ser o fornecido por qualquer um deles.
26ª Certo e seguro é que não seria da Recorrente, pois que, não só esta não era a fornecedora com nem sequer a única comercializadora e, vários anos antes da data do sinistro, já não havia fornecimento de gás na fração onde o mesmo ocorreu (Vide facto 15 e 16), e o gás que pudesse eventualmente subsistir na rede poderia até ser gás de cidade ou gás propano abastecido por outra entidade e não comercializado pela Recorrente.
27ª Como se vê, sustentou o Tribunal a quo a sua decisão em factos que não integram o elenco dos factos provados, razão pela qual a factualidade dada como provada na decisão proferida é insuficiente para fundamentar a solução de direito alcançada, ocorrendo, também por isso, erro de julgamento na qualificação da matéria de facto apurada.
28ª Com efeito, não tendo sido dado como provado qual a origem do sinistro e da fuga de gás (Vide facto 18), nem mesmo o tipo de gás presente no sinistro, também não podia concluir pela responsabilidade objetiva da Recorrente.
29ª Donde resulta que a decisão recorrida efectuou uma errada interpretação dos factos e que conduziu a uma errada qualificação do direito, por errada interpretação e aplicação da lei, nomeadamente o disposto pelo art.º 341º, 342º e 509º, todos do CC.
30ª Motivos, pelos quais, se verifica que a decisão recorrida é injusta e causa agravo à Recorrente, impondo-se a sua modificação no sentido de julgar inteiramente improcedente por não provada a ação.
Rematou as suas conclusões sustentando que a sentença apelada deve “(…) ser (…) revogada na parte que julgou a ação procedente, determinando a sua total improcedência”.
O autor e ora apelado apresentou contra-alegações, que sumariou nos termos das seguintes conclusões:
I- Não resulta da análise da douta sentença recorrida, quando em confronto com a prova produzida, designadamente a testemunhal, qualquer erro de julgamento que importe um juízo contrário sobre a matéria factual ali dada como provada sob pontos 90., 91. e 95.
II- O alegado facto que a recorrente pretende fazer acrescer ao elenco da matéria provada de que a «à data da explosão, a infraestrutura pública de fornecimento de gás do prédio era detida e explorada por entidade terceira lisbogás gdl – sociedade distribuidora de gás natural de lisboa, s.a.» é inócuo para a solução jurídica adoptada na douta sentença recorrida, tendo aliás, sido devidamente ali sopesado.
III- Contrariamente ao que alega a recorrente, não ficou demonstrado que qualquer outro fornecedor de gás natural operasse no edifício dos autos à data em que ocorreu a explosão que vitimou o autor.
IV- O tribunal a quo fez uma competentíssima subsunção dos factos ao direito, fundamentando a sua decisão de forma clara, desenvolvida, desvelando o iter que calcorreou para concluir pela verificação, in caso, de responsabilidade civil pelo risco da recorrente, decorrente da sua venda de gás natural, nos termos do disposto em art.º 509.º do cód. civil.
Recebido o recurso neste Tribunal da Relação, o relator proferiu despacho determinando a realização de diligências complementares de prova, a saber:
- a obtenção de certidão de registo predial relativa a todas as frações autónomas do edifício dos autos;
- a prestação de informações pela empresa Lisboagás GDL – Sociedade Distribuidora de Gás Natural de Lisboa, S.A.; e
- a prestação de esclarecimentos pela ré e apelante Lisboagás Comercialização, S.A..
2. Objeto do recurso
Conforme resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[2]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art.º 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, excetuadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[3].
Assim, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
- A impugnação da decisão sobre matéria de facto – Conclusões 2ª a 13ª;
- Saber se os danos sofridos pelo autor, ora apelado podem ser imputados à ré Lisboagás Comercialização, S.A., ora apelante – Conclusões 14ª a 30ª.
3. Fundamentação
3.1. Os factos
3.1.1. Factos provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:[4]
1. No dia 2/7/2013, pelas 9h30m, ocorreu uma explosão no prédio sito no n.º ... da Rua …, Campolide, Lisboa;
2. O réu G era, nessa data, administrador do condomínio de tal prédio;
3. Tal explosão teve origem na fração de r/c, constituída por loja, que estava ocupada por oficina de estofador explorada pelo falecido AR;
4. Tal loja corresponde à fração A do prédio descrito sob o n.º …. da Conservatória do Registo Predial de Lisboa;
5. A aquisição da propriedade desta fração esteve registada desde 1979 a favor de MR, tendo sido inscrita a favor de Banco Santander Totta, S.A., por apresentação de 14/5/2015, em virtude aquisição a AR, E e D, herdeiros habilitados daquela;
6. AR, E e D foram habilitados como herdeiros de MR em procedimento junto da Conservatória de Registo Civil de Lisboa em 24/3/2015;
7. A aquisição da fração em causa (fração A, prédio …. da CRP de Lisboa) está registada a favor do R.  G desde 14/9/2018;
8. AR faleceu a 19/4/2019;
9. Era AR que tomava conta da oficina e tratava de todos os assuntos relativos à mesma quando esta estava em funcionamento;
10. MR nunca trabalhou na oficina e a esta não se deslocava com regularidade;
11. A ré Lisboagás - Comercialização, S.A. foi constituída em 24/7/2007 e tem o objeto de compra e venda de gás natural, em regime de comercialização de último recurso retalhista, bem como o exercício das atividades e a prestação dos serviços direta ou indiretamente relacionados;
12. A explosão ocorreu devido à presença de gás no interior de tal oficina;
13. A oficina compõe uma fração integrada no condomínio, com entrada autónoma para a rua;
14. À data da explosão, a oficina encontrava-se encerrada ao público, deslocando-se AR à mesma de forma esporádica;
15. Na oficina onde teve início a explosão há uma tubagem de gás natural, não havendo, à data, fornecimento de gás contratado;
16. O respetivo contador havia sido retirado por serviços da empresa fornecedora de gás e gestora da rede, em data não concretamente apurada, anterior em anos à explosão;
17. Aquando da retirada do contador foi feita uma selagem do tubo de entrada de gás na fração, comprimindo, por achatamento, as respetivas pontas;
18. A explosão ocorreu em consequência de uma fuga de gás natural fornecido ao prédio, com origem não concretamente apurada;
19. A torneira de abertura e corte de gás à fração onde ocorreu a explosão (loja), situada no hall de entrada do prédio, encontrava-se aberta;
20. O acesso a tal torneira está protegido por uma campânula de metal, também conhecida por “olho de boi”;
21. A ignição da explosão deu-se quando AR acedeu ao interior da fração acionou o dispositivo de ligação do quadro elétrico;
22. Nesse momento, produziu-se um arco voltaico que provocou a ignição da mistura explosiva de gás que se encontrava no interior da oficina;
23. À data da explosão, CL vivia na fração correspondente ao r/c esquerdo, antiga casa de porteira, que fora arrendada pelo condomínio.
24. Alguns dias antes da explosão, CL detetou sinais de uma infiltração de água por cima da porta da casa de banho desta fração, da qual deu conhecimento ao réu G, administrador do condomínio;
25. O réu G, na qualidade de administrador, solicitou a realização de intervenção na parede da fração com vista a identificar e reparar a infiltração de água;
26. Para o efeito, contratou com pessoa não concretamente apurada a picagem da parede da fração em causa (antiga casa da porteira);
27. Na sequência de tal intervenção de picagem foi furado um cano de abastecimento de gás existente no interior de tal fração;
28. A fração em causa, casa de porteira, mantendo canalização de gás, desde data não apurada situada entre final da década de oitenta e a década de noventa do século XX, que não era abastecida de gás canalizado;
29. A fração era, desde a altura antes referida, abastecida por gás de botija comprado por quem lá residia;
30. A infiltração de água detetada e a picagem na parede fração referida (casa de porteira) ocorreu numa parede não confinante entre esta fração e a fração A (onde se deu a explosão);
31. CL informou o réu G que havia sido furado um cano de gás em tal intervenção;
32. O réu administrador do condomínio, na sequência de tal comunicação, não solicitou intervenção de técnicos da empresa de gás;
33. O antes referido sucedeu em virtude de o réu G ter conhecimento de inexistir fornecimento de gás canalizado a tal fração há muitos anos e não ter atribuído importância a tal ocorrência;
34. Aquando do cancelamento do serviço de fornecimento de gás à fração A (oficina/loja) e à casa de porteira, deslocaram-se técnicos a tais locais, que procederam ao corte de fornecimento;
35. No momento da explosão, o autor A circulava a pé pela Rua …;
36. Quando a explosão se deu o autor falava ao telemóvel e caminhava em frente do n.º … da Rua …, no passeio oposto ao identificado prédio;
37. A força da explosão projetou o autor contra a parede;
38. E projetou diversos materiais, designadamente pedaços de betão das paredes, vidros, pedaços de metal e madeira do edificado onde ocorreu;
39. alguns desses materiais foram embater no corpo do autor, na face, no antebraço esquerdo, na mão esquerda, no abdómen e na perna esquerda;
40. Na sequência da explosão, o autor ficou atordoado e prostrado, conseguindo arrastar-se para a esquina da rua para fugir ao fogo que se iniciou e procurando proteger-se de outras explosões que pudessem ocorrer;
41. Após o que, perdendo as forças, ficou caído no chão, impossibilitado de se deslocar pelos seus próprios meios;
42. Gritou por socorro e dois moradores da área foram ter com ele, falaram-lhe e seguraram-lhe a cabeça;
43. Ficou imobilizado no chão tempo não concretamente apurado, aproximado de trinta minutos, até que chegasse a ambulância de assistência médica, que estava retida por viaturas dos bombeiros que combatiam o fogo que se iniciara no local;
44. O autor sentiu nesse período grande desorientação, receio pela sua vida;
45. Sentiu também fortes dores físicas;
46. Foi depois o autor conduzido ao Hospital São José em Lisboa apresentando queimadura/esfacelo com lesão grave dos dedos da mão, escoriações várias do membro inferior esquerdo e queimadura de cílios, com ligeira hiperemia conjuntival;
47. Foi submetido a cirurgia plástica sob anestesia geral, tendo-lhe sido feita a limpeza de feridas da face, feita a remoção de vários estilhaços de vidro e sutura;
48. Sofreu também o autor seccionamento do músculo extensor comum dos dedos, bem como a secção do músculo tricípite braquial, tendo sido efetuadas intervenções definidas como miotenorrafia para solução do 1° problema e miofarria para resolução do segundo;
49. O autor foi ainda submetido a uma tenorrafia de banda lateral do extensor do 4.º dedo da mão esquerdo, a sutura de ferida do dorso do 5° dedo da mão esquerda, penso e imobilização com tala gessada;
50. Permaneceu internado no Hospital de S. José entre o dia 2/7/2013 e o dia 8/7/2013;
51. Após o internamento hospitalar, o autor manteve seguimento de consulta externa na cirurgia plástica;
52. Cumpriu programa de fisioterapia em Medicina Física e de Reabilitação, o que o obrigou a diversas deslocações ao hospital entre setembro de 2013 e agosto de 2014;
53. Em 13/8/2013, o autor apresentava ainda na face cicatrizes hiperpigmentadas, aderentes, indolores à palpação, e no antebraço e mão esquerdos, cicatrizes aderentes, dolorosas, com alterações sensitivas ao contacto associado a edema da mão, diminuição das amplitudes articulares e força muscular a nível do cotovelo, punho, mão;
54. Em 15/11/2014, o autor concluiu o processo de reabilitação no Hospital de S. José, apresentando défice de mobilidade e força muscular dos dedos D3D4D5;
55. O autor foi acompanhado nos serviços de Psicologia Clínica da Saúde do Hospital de São José entre janeiro de 2014 e data não concretamente apurada do ano de 2015;
56. Em consequência do acidente sofreu trauma psicológico, com sequelas a nível psicológico e manifestações de ansiedade;
57. Em consequência das lesões sofridas o autor ficou com cicatriz na face posterior do terço proximal do braço de 5cm de comprimento e 1 cm de espessura;
58. Ficou com cicatriz cirúrgica no bordo lateral do terço distal do braço, medindo 5cm de comprimento e 3 mm de espessura;
59. E ficou com cicatriz no bordo medial do terço médio do antebraço com 2,5 cm de comprimento e a espessura de 3 mm;
60. Ficou ainda com cicatrizes cirúrgicas nos 4.º e 5.º dedos da mão direita, com o comprimento de 1,5cm e 3cm, respetivamente;
61. Ficou ainda com uma cicatriz no terço distal da coxa, com 3cm de comprimento;
62. As cicatrizes antes referidas correspondem a um dano estético de grau 4, numa escala de 1 a 7;
63. O autor recuperou mobilidade total dos membros, incluindo braços e dedos, mantendo dor no antebraço direito em caso de flexão completa dos dedos e tendo perdido força muscular nos movimentos de pinça utilitária e pinça em gancho (movimentos com utilização do polegar);
64. O autor esteve absolutamente impedido de trabalhar, com incapacidade absoluta para tanto. em resultado das lesões, entre 2/7/2013 e 8/7/2013;
65. Em virtude das lesões e da perturbação psíquica que sofreu, o autor manteve-se incapaz de desenvolver qualquer trabalho até final de agosto de 2013;
66. Nesta altura, de forma gradual, retomou a sua atividade de designer gráfico;
67. O trabalho de desenho gráfico exige uso intensivo dos membros superiores e das mãos;
68. O autor, sendo destro, usava e usa habitualmente a mão afetada pelo evento para trabalhar (mão esquerda), em particular nas tarefas de desenho em computador com uso do teclado;
69. O autor recuperou a sua capacidade de exercício de todas as tarefas inerentes à sua atividade profissional, tendo perdido rapidez e eficiência em tarefas que impliquem usem continuado da mão esquerda e perdido também resistência ao cansaço;
70. As dores físicas e os sofrimentos psíquicos sofridos pelo autor entre a data das lesões e a do termo da recuperação (15/11/2014) corresponde a um quantum doloris avaliado em grau 4 (escala de 1 a 7);
71. A lesões determinaram uma afetação permanente na integridade física e psíquica do autor de 7 pontos;
72. Em consequência de tais lesões, o autor despendeu com taxas hospitalares, tratamentos médicos e consultas necessárias para a sua recuperação quantia não concretamente apurada e não inferior a €174,75;
73. Em deslocações para tratamentos médicos quantia não inferior a €91,60;
74. Em medicamentos e produtos farmacêuticos quantia não inferior a €115,18;
75. O autor é técnico licenciado de desenho gráfico;
76. Em 2/7/2013 o autor prestava serviços de desenho gráfico no atelier de IP, sito na Calçada dos …, Rua …, nº ….., em Campolide, Lisboa;
77. Nessa altura o autor e IP estavam a iniciar uma parceria na área do design gráfico;
78. No mês de junho de 2013 o autor prestara serviços para tal atelier sendo remunerado com o valor global líquido de €1636 (mil seiscentos e trinta e seis) - doc. n.º 15, junto à petição inicial;
79. Até tal data o autor realizara diversos trabalhos, na área de design;
80. Em 31/7/2013 o autor comunicou à administração fiscal o encerramento da sua atividade para efeitos tributários;
81. No ano de 2012 o autor declarou fiscalmente de rendimentos de trabalho, ou de serviços prestados, o total de €14.016,53;
82. Encontra-se atualmente desempregado, com um rendimento mensal médio de subsídio aproximado de 900 euros;
83. Este rendimento é aproximado do que auferia após ter cessado a sua relação com uma agência de comunicação e publicidade, último trabalho que desenvolveu;
84. Na sequência das lesões sofridas, o autor perdeu confiança e autoestima pessoal por período não concretamente apurado, tendo ultrapassado gradualmente tais sequelas;
85. Teve dificuldade em dormir e descansar durante período não concretamente apurado;
86. As dificuldades de autoestima e de sono foram sendo gradualmente ultrapassado pelo autor, que faz atualmente uma vida normal;
87. Na sequência da explosão, foram chamados e deslocaram-se ao local técnicos de gás, identificados como pertencendo à “Lisboagás”;
88. Não existia fornecimento de gás natural à fração de r/c onde se deu a explosão (loja);
89. Como não existia fornecimento de gás natural à fração habitacional de r/c, arrendada pelo condomínio (casa de porteiro);
90. A ré Lisboagás era a única fornecedora de gás a diversas frações do prédio dos autos na altura do evento (julho de 2013);
91. A única entidade referida nas faturas de consumo de gás no momento da explosão dos autos era a ré Lisboagás Comercialização, S.A.;
92. Nas faturas constava um número de telefone para contactos em caso de emergência ou falha de fornecimento, estabelecendo tal número contacto com serviços da sociedade Lisboagás GDL - Sociedade Distribuidora de Gás Natural de Lisboa, S.A.;
93. Quem estabelecesse contacto telefónico com tal número, em razão do referido nos dois pontos anteriores, fazia-o na convicção de estar a contactar a sociedade Lisboagás Comercialização, S.A.;
94. No ano 2013 e até data não concretamente apurada não anterior ao ano 2020, as sociedades Lisboagás Comercialização, S.A. e Lisboagás GDL - Sociedade Distribuidora de Gás Natural de Lisboa, S.A. eram integrantes do mesmo grupo económico Galp e integralmente detidas, direta ou indiretamente, pela sociedade Galp, SGPS, S.A.;
95. A sociedade Lisboagás Comercialização, S.A. é fornecedora de gás em mercado regulado e sucessora legal de fornecedora de gás em mercado não livre.
3.1.2. Factos não provados
O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos[5]:
a) Que tenha sido feita soldagem da ponta dos tubos de gás situados na fração A, aquando do seu fecho e selagem;
b) Que o cheiro a gás, nos dias que antecederam a explosão, era percetível a qualquer pessoa que passasse no hall de entrada do edifício;
C) Que os técnicos que procederam ao corte de fornecimento e retirada de contador à fração A, no momento em que foram feitos, pertencessem a Lisboagás Comercialização, S.A.;
d) Que tais técnicos que se deslocaram ao prédio e procederam ao corte do fornecimento permitiram que continuasse a circular gás nos tubos sitos no interior da oficina;
e) Que os técnicos que se deslocaram ao prédio após a explosão para realizarem o corte pertencessem a Lisboagás Comercialização, S.A.;
f) Que o autor tenha estado completamente impossibilitado de trabalhar até ao dia 15-11-2014;
g) Que até tal data se tenha visto privado de qualquer rendimento;
h) Que as lesões que o autor sofreu dificultam o desempenho de tarefas de índole pessoal, como relativas a realização de higiene pessoal ou pequenas tarefas de cozinha;
i) Que o autor continue a ter ataques de ansiedade sempre que ao seu redor ocorre um qualquer ruído mais forte;
j) Que tenha sido o furo realizado na tubagem da fração de porteira que permitiu a saída gás que restava na tubagem, nomeadamente na oficina onde se deu a explosão; 
k) Que o corte preventivo do gás para a fração do r/c já se encontrava efetuada em 2/7/2013.
3.2. Os factos e o direito
3.2.1. Da impugnação da decisão sobre matéria de facto
3.2.1.1. Considerações gerais
Dispõe o art.º 662º n.º 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Por seu turno estatui o art.º 640º n.º 1 do mesmo código que quando seja impugnada a decisão sobre matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
O n.º 2 do mesmo preceito concretiza que, sempre que o recorrente se baseie no teor de depoimentos prestados, incumbe-lhe, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso. A observância desse ónus pressupõe a indicação do início e fim das passagens dos depoimentos tidas por relevantes, podendo o recorrente, se assim o entender, proceder à transcrição dessas passagens. Tal indicação não tem necessariamente que constar das conclusões, mas deve constar da motivação do recurso. No sentido exposto cfr., entre muitos outros, os acs. RC de 17-12-2017 (Isaías Pádua), proc. 320/15.0T8MGR.C1; e STJ 06-12-2016 (Garcia Calejo), p. 437/11.0TBBGC.G1.S1.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância.
Sumariando os ónus impostos pelo citado preceito, ensina ABRANTES GERALDES[6]:
“(…) podemos sintetizar da seguinte forma o sistema que agora vigora sempre que o recurso de apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso, e síntese nas conclusões;
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Relativamente aos pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
d) (…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente;
f) (…).”
3.2.1.2. O caso dos autos
No caso em apreço, a apelante impugnou a decisão sobre matéria de facto no tocante aos pontos 90., 91., e 95. dos factos provados, sustentando que os mesmos devem ser julgados não provados[7].
Lidas as alegações de recurso e as respetivas conclusões, afigura-se cristalino que a apelante observou todos os mencionados ónus.
Importa, pois, apreciar do seu mérito, pelo que passamos a analisar cada um dos pontos de facto invocados.
3.2.1.2.1. Ponto 90. dos factos provados – art.º 10 das alegações, e conclusão 5ª
O ponto 90. dos factos provados tem a seguinte redação:
“90.   A ré Lisboagás era a única fornecedora de gás a diversas frações do prédio dos autos na altura do evento (julho de 2013).”
Da leitura da motivação da decisão sobre matéria de facto, constante da sentença apelada consta, no que tange à matéria factual vertida neste ponto 90., o seguinte:
«A situação do prédio e das instalações de gás, seja nas áreas comuns ou nas frações de rés-do-chão (a loja onde se deu a explosão e a fração indicada como Casa da Porteira), elementos relevantes para estabelecimento do contexto de fornecimento, foi também apurada com base nos depoimentos das testemunhas CA e PC.
O primeiro destes, CA, proprietário de uma fração e administrador do condomínio desde abril de 2014, mostrou conhecimento sobre o contexto de fornecimento de gás ao prédio, das instalações existentes e das empresas fornecedoras.
Foi capaz de situar o momento de desativação de gás à casa de porteira muitos anos antes, a inexistência de fornecimento na loja onde se deu a explosão e a situação das ligações na zona de entrada e escadas (campânulas/olhos de boi e torneiras abertas).
Depôs, com sinceridade e verosimilhança que, no prédio, ninguém alguma vez sentiu cheiro a gás. Depois também com sinceridade e credibilidade que em 2013 (data da explosão) e 2014 (ano em que assumiu administração do condomínio) havia várias frações sem fornecimento de gás, mas que todo o gás canalizado fornecido ao prédio nessa altura era da “Lisboagás”.[8] Do mesmo modo, afirmou, credivelmente, do completo desconhecimento, pessoal e de qualquer pessoa no prédio, incluindo na faturação, de qualquer segmentação de sociedades Lisboagás (de fornecimento e de detenção das instalações).
Foi capaz de afirmar, credivelmente, que a torneira geral de gás à fração (loja) onde se deu a explosão, protegida por olho de boi, mostrava-se aberta, sendo fechada e selada com uma fita azul apenas depois da explosão e de serem chamados técnicos da “Lisboagás”.
Depôs também que na loja da explosão o fornecimento de gás há muito fora interrompido, tendo sido retirado o contador e comprimidos/achatados os tubos terminais na canalização da fração. 
Na casa da porteira, também não existia fornecimento, mas foi retirado o contador ficando aberto o tubo, permitindo perceber que os procedimentos técnicos ao nível residencial eram diversos quando cessavam os fornecimentos.
Depôs também credivelmente que em 2013 a loja onde se deu a explosão estava fechada e AR apenas se deslocava à mesma esporadicamente, sendo que esteve aberta ao público até alguns anos após o ano 2000.
Foi relevante também o que declarou quanto à participação dos técnicos de gás após o acidente e o facto de se apresentarem como integrando a “Lisboagás”».
A apelante discorda deste entendimento, considerando que os factos aqui vertidos devem considerar-se não provados.
Para tanto sustenta, no essencial que do depoimento da testemunha CA não podem extrair-se as conclusões que do mesmo retirou o Tribunal a quo.
Mais invocou o depoimento da testemunha MV.
O autor opôs-se à pretendida alteração, contrapondo outros trechos dos mesmos depoimentos.
Os trechos transcritos por apelante e apelado, que se indicam por ordem cronológica, são os seguintes:
Depoimento de CA.
“00:00:34
CA:
«Eu sou, portanto, proprietário da … da fracção onde resido decorrente da herança que tive dos meus pais.»
00:00:42
Juiz:
«Essa fracção corresponde a que … a que andar?»
00:00:44
CA:
«3.º direito.»
00:00:45
Juiz:
«3.º direito. O Senhor vive … vive lá?» 
00:00:48
CA:
«Sim, sim.» 
00:00:50
Juiz:
«Há quantos anos?»
00:00:52
CA:
«Portanto, com alguns intervalos de saída, mas, portanto, desde 58.»
00:00:57
Juiz:
«Desde 58, sim, senhor. Aqui, como sabe, estamos aqui a tratar dum … dum evento de 2013, portanto …»
00:01:03
CA:
«Sim, sim.»”
“00:05:22
Advogado:
«Mas espere aí, antes de irmos para a explosão, essa … esses buracos não chegaram a ser tratados, mas foram buracos era para reparar a água e esse técnico que lá foi o que é o Sr. G disse quanto ao que ele … ao que ele fez exactamente?»
00:05:52
CA:
«Portanto, ele na altura fez a perfuração dum tubo que era de tubo do gás, mas do gás que existia … o prédio tem … tem todo canalização de gás desde 58, não é, e foi feito esse buraco que atingiu o cano do gás, mas o gás já estava cortado há imensos anos, quer dizer, já … ainda antes da porteira sair já não havia gás porque na altura havia numa primeira fase gás de cidade, depois foi substituído por gás de … o gás natural, mas o gás natural é só a partir de 2000 e o gás de cidade era anterior, portanto e foi desactivado dessa referida casa da porteira nos anos 80, 80 e poucos, não sei precisar a data, mas foi … portanto, foi muito antes de … do ano 2000, muito antes e o gás natural foi introduzido, salvo erro, nos princípios do ano 2000, portanto, continua a fornecer a maioria do prédio, mas a casa da porteira nunca teve gás, portanto.»
CA - 00:06:00
(...) O prédio tem todo canalização de gás, desde 58, não é? E foi feito esse buraco que atingiu o cano do gás. Mas o gás já estava cortado há imensos anos, quer dizer... já.... ainda antes da porteira sair já não havia gás. Porque na altura havia numa primeira fase gás de cidade, depois foi substituído por gás de... pelo gás natural, mas o gás natural é só a partir de 2000, e o gás de cidade era anterior, portanto. E foi desativado nessa referida casa da porteira nos anos 80,80 e poucos, não sei precisar a data, mas_ foi, portanto, foi muito antes do ano 2000, muito antes. E o gás natural foi introduzido, salvo erro, nos princípios do ano 2000. Portanto que continua a fornecer a maioria do prédio, mas a casa da porteira nunca teve gás, portanto. (realce e sublinhado nosso)
Mandatário:
Gás de cidade?
CA:
Diga?
Mandatário:
Não tem gás de cidade, quer dizer, ...
CA:
Sim, o prédio tinha o chamado gás de cidade, sôtor.
MMº Juiz:
Ou melhor dizendo, gás canalizado. Tinha gás botija é isso?
CA:
Certo. Sim, exatamente MM° Juiz:
.... Natural, depois.
CA:
Mas por exemplo, quem residiria na fração da casa da porteira, antiga casa da porteira, tinha bilhas de gás... - 00:07:26”
“00:12:35
CA:
«Eu contactei com a Lisboagás no sentido de …»
00:12:38
Advogado:
«Para ver se estava seguro debaixo do prédio, suponho.»
00:12:40
CA:
«Não, eu … portanto, isso … isso foi feito logo a seguir, portanto, à situação do … do sinistro, não é, foi feita a convocatória duma … duma empresa de gás que veio lá para certificar que … que estava tudo em condições e depois há uma entidade reguladora ou uma entidade delegada, portanto, que faz essa certificação, portanto, para … para reabertura do gás que foi feita talvez sei lá no dia seguinte, penso eu, se bem me lembro …»
00:13:10
Advogado:
«Sim, isso foi logo a seguir.» 
00:13:12
CA:
«Pois. Posteriormente, a minha ida à Lisboagás foi no sentido de, portanto, de algum modo certificar que estava tudo em condições e o que é em condições, portanto, segundo parece, a Lisboagás quando procede ao corte de … de … duma instalação de gás, portanto, fecha a conduta e sela e … e aquilo que eu queria era de algum modo que se fizesse a selagem daquilo e portanto, a Lisboagás foi lá e verificou que estava tudo em condições e aplicou uma … portanto, a tal selagem que é uma fita auto-adesiva, autocolante, portanto, para ficar a indicação de que aquelas fracções estão sem gás.»”
Depoimento da testemunha MV.
Mandatária da R.: - 00:07:07
Trabalhando na Comercializadora terá acesso ao sistema de gestão comercial dos clientes...
MV:
Sim, sim.
Mandatária da R.:
E para esta morada em concreto sabe, esta morada se quiser até lhe posso dizer, mas deixe-me só, para a morada em concreto....
MV:
Creio que seria a rua …, não é?
Mandatária da R.:
Número …, exatamente.
MV:
Sim...
Mandatária da R.:
Sabe se para a loja existia algum contrato de fornecimento de gás natural celebrado com a Lisboagás comercialização?
MV:
Não, porque nós no nosso sistema não temos a loja sequer identificada nesse prédio. A informação que temos disponível no nosso sistema de gestão comercial nem sequer tem a loja como fazendo parte.
Mandatária da R.:
Em data alguma, ou seja, nunca teve um contrato celebrado com a Lisboagás?
MV - 00:08:14
Não, não. Quando nós olhamos para o prédio, não temos lá a loja. Temos várias frações e a loja não consta. Logo eu deduzo que nunca terá tido contrato connosco.
(...)
Mandatária da R. - 00:24:06
Se não existia nenhum contrato de fornecimento e se é inequívoco que não existia para aquela morada,
MV:
Sim
Mandatária da R.:
Se pudéssemos equacionar que não ... não .... não resulta claro, mas a existir gás naquela tubagem, ou no ramal que pudesse existir para aquela morada, esse gás era da comercializadora? Se não existia contrato de fornecimento?
MV:
Nós não conseguimos nunca dizer isso. Porque nós, neste momento, temos vários comercializadores a operar no mesmo prédio.
MM° Juiz
Oh Sotora, isso para mim é... Pronto, eu percebi, havendo contrato, a pergunta é essa, havendo contrato, o gás é da comercializadora? neste contexto....
MV:
Sim no prédio neste momento não havia contrato ...
MM° Juiz
É evidente para todos que não havia contrato de fornecimento daquela fração, portanto.
Mandatário
É admitido ab initio...
Digno Juiz de Direito
É admitido ab initio, sim portanto isso nem está em...
Mandatária da R.
Era só para esclarecer se não tinha...
MM° Juiz
Não. isso estava claro doutora
MV - 00:25:30
Mas só para deixar claro. No mesmo prédio podemos ter vários comercializadores em simultâneo ok? Não há uma exclusividade. O cliente contrata com a comercializadora que entende, exceto com a de último recurso porque já não pode. Mas, portanto, no prédio pode haver vários comercializadores. É mesmo assim ok? É assim que funciona.
(...)
Mandatário - 00:26:59
Na pesquisa que efetuou e que critério é que adotou para verificar que ligações é que existiam. Foi por data?
MV:
Não, nós fazemos a pesquisa pela morada. Quando pesquisamos uma morada, conseguimos ver, um dos ecrãs que temos é todos os fornecimentos do prédio
Mandatário
Conseguiu perceber à data de 2013 qual era o número de frações que ...?
MV:
Não, isto não nos ...
MM° Juiz
O que consultou foi agora não foi?
MV:
Também não foi agora, foi em 2016, ok? Que foi quando nos solicitaram as informações.
Mandatário
Mas não fez essa apreciação
MV:
Ninguém ...
Mandatário
Em 2013, se é que tem conhecimento, porque está na área, está nesse ramo, quantas mais operadoras é que forneciam naquela área?
MV - 00:27:55
Em 2013 já havia mercado livre. Nós começamos a ter fornecimentos em mercado livre por volta de 2012. Portanto em 2013 já havia alguns clientes em mercado livre. Não tanto como há agora obviamente, mas já havia alguns sim.”
Ouvidos todos os depoimentos prestados em audiência final, temos que concluir, como fez a apelante que no depoimento de parte que prestou, em momento algum CA declarou “que todo o gás fornecido ao prédio nessa altura era da Lisboagás”. Uma tal afirmação não pode extrair-se nem dos excertos transcritos, nem de qualquer outro passo do depoimento da referida testemunha.
Com efeito, e desde logo, CA nunca afirmou que todo o gás fornecido ao prédio nessa altura era da Lisboagás, na medida em que havia residentes do prédio que utilizavam gás de botija (mais precisamente os inquilinos da antiga casa da porteira) – 07:21 – 08:15.
Portanto, a ter sido proferida, uma tal afirmação apenas se poderia reportar ao gás canalisado.
Depois há que ter presente que da afirmação que o Tribunal a quo imputou a CA foi extraída outra conclusão que o mesmo depoimento não sustenta: a de que a “Lisboagás” em questão era a ré.
Com efeito, como abundantemente resulta dos autos, à data existiam duas sociedades comerciais com denominações sociais que incluíam o termo “Lisboagás”: a Lisboagás Comercialização, S.A., ré dos presentes autos, que se dedicava e dedica à compra e venda de gás natural, em regime de comercialização de último recurso retalhista, e a Lisboagás GDL – Sociedade Distribuidora de Gás Natural de Lisboa, S.A.[9], que como decorre é a sociedade gestora da rede de gás natural em Lisboa.
Aliás, o Tribunal a quo também consignou expressamente que o mesmo CA “afirmou, credivelmente, do completo desconhecimento, pessoal, e de qualquer pessoa no prédio, incluindo na faturação, de qualquer segmentação e sociedades Lisboagás (de fornecimento e de detenção das instalações)”.
Como claramente explicou a testemunha MV, a última sociedade referida é a distribuidora de gás natural em Lisboa, e, entre outras funções, vende gás às empresas comercializadoras, como a ré, as quais, por sua vez, vendem o gás aos clientes finais (20:20 – 22:10).
Ora, o depoente CA demonstrou claramente desconhecer tal distinção, falando da Lisboagás para se referir quer à ré, quer à Lisboagás GDL.
Por outro lado, a testemunha MV, embora sem precisar, referiu que “em 2013 já havia alguns clientes em mercado livre” (27:55 – 28:05).
Finalmente, há que conjugar estes meios de prova com a prova complementar obtida nesta instância.
Assim, das certidões de registo comercial relativas ao prédio dos autos e respetivas frações[10], resulta que o primeiro é um edifício composto de rés-d-chão com 3 lojas e casa da porteira, 3 andares e quintal, compreendendo doze frações autónomas:
- Fração A – Loja com entrada pelos nºs ..-A e ..-B
- Fração B – Loja com entrada pelo nº .. C
- Fração C - Loja com entrada pelo nº .. D
- Fração D – 1º andar direito
- Fração E - 1º andar frente
- Fração F - 1º andar esquerdo
- Fração G - 2º andar direito
- Fração H - 2º andar frente
- Fração I - 2º andar esquerdo
- Fração J – 3º andar direito
- Fração L - 3º andar frente
- Fração M – 3º andar esquerdo
- Fração N – R/C com entrada pelo nº ..
De acordo com a informação prestada pela Lisboagás GDL – Sociedade distribuidora de gás natural, S.A.[11], à data do acidente dos autos (02-07-2013), “só foram identificados contratos de fornecimento de gás ativos relativos ao n.º .. do prédio sito na Rua … (e não para os n.ºs ..-A a ..-D)”.
Mas relativamente às frações da casa da porteira, 1º, 2º, e 3º andares do prédio dos autos informou que as sociedades comercializadoras que tinha contratos de fornecimento ativos eram as seguintes:
R/C - Casa de Porteira – Sem contrato de fornecimento ativo;
1º Dto: Lisboagás Comercialização, S.A.
1º Frte: Lisboagás Comercialização, S.A.
1º Esq.: Lisboagás Comercialização, S.A.
2º Dto: EDP Comercial, S.A.
2º Frte: Galp Power, S.A.
2º Esq.: Lisboagás Comercialização, S.A.
3º Dto: Galp Power, S.A.
3º Frte: Lisboagás Comercialização, S.A.
3º Esq.: Lisboagás Comercialização, S.A.
Portanto, desta informação resulta que à data do acidente dos autos:
- as frações correspondentes aos 1ºs andares direito, frente, e esquerdo, ao 2º esq., e aos 3ºs andares frente e esquerdo eram abastecidas de gás no âmbito de contratos de fornecimento celebrados com a ré;
- as frações correspondentes ao 2º direito, 2º frente, e 3º frente eram abastecidas de gás no âmbito de contratos de fornecimento celebrados com outras empresas comercializadoras.
Note-se que atualmente a Lisboagás GDL – Sociedade distribuidora de gás natural de Lisboa, S.A. não tem atualmente qualquer relação societária com a ré, razão pela qual não vemos qualquer motivo para não atribuir fidedignidade e relevância a esta informação.
Por outro lado, as partes foram notificadas deste documento, e nenhuma delas impugnou o seu valor probatório.
Pertinente se mostra ainda a circunstância de a ré, nos esclarecimentos prestados, ter assumido posição coincidente com a manifestada pela Lisboagás GDL, no tocante às frações relativamente às quais havia celebrado contratos de fornecimento d gás natural[12].
Finalmente diremos que resultando das declarações prestadas por CA na audiência final que o mesmo reside no 3º andar direito do prédio dos autos, resultando da certidão de registo comercial referente a esta fração que à data do acidente o mesmo era proprietário dessa fração, e resultando da informação prestada pela Lisboagás GDL, Lda que nessa data o referido CA era cliente da GALP Power, Lda, resulta também evidente que o mesmo não poderia ter afirmado que a Lisboagás (qualquer que ela fosse) era a única fornecedora de gás no prédio. A menos que faltasse à verdade, o que não se mostra verosímil, porque o Tribunal a quo considerou tal depoimento credível, conclusão que subscrevemos.
Neste contexto, e ponderando todos os elementos de prova aludidos, concluímos que o ponto 90. dos factos provados deve ser alterado, passando a ter a seguinte redação:
À data referida em 1., das várias frações autónomas que compunham os 1º, 2º, e 3º andares do prédio ali identificado:
a) As correspondentes ao 1º dto, 1º frte, 1º esq., 2º esq, 3º frte e 3º esq. eram abastecidas de gás canalizado (natural) no âmbito de contratos de fornecimento de gás celebrados com a ré;
b) A correspondente ao 2º dto era abastecida de gás canalizado (natural) no âmbito de contratos de fornecimento de gás celebrado com a EDP Comercial, S.A.;
c) As correspondentes ao 2º frte, e ao 3º dto eram abastecidas de gás canalizado (natural) no âmbito de contratos de fornecimento de gás celebrados com a GALP Power, S.A.
Consequentemente decide-se igualmente aditar ao elenco de factos não provados uma nova alínea com o seguinte teor:
que à data referida em 1. todas as frações do prédio ali identificado fossem abastecidas de gás canalizado (natural) no âmbito de contratos de fornecimento de gás natural celebrados com a ré.
3.2.1.2.2. Ponto 91. dos factos provados
O ponto 91. dos factos provados tem a seguinte redação:
“91. A única entidade referida nas faturas de consumo de gás no momento da explosão dos autos era a ré Lisboagás Comercialização, S.A.;”
Da leitura do trecho da sentença que contém a motivação a decisão sobre matéria de facto avulta, quanto ao facto em questão, e em primeiro lugar, o seguinte excerto, reportado ao depoimento de parte prestado por CA, e já transcrito supra:
“(…) afirmou, credivelmente, do completo desconhecimento, pessoal, e de qualquer pessoa no prédio, incluindo na faturação, de qualquer segmentação e sociedades Lisboagás (de fornecimento e de detenção das instalações)”.
Igualmente relevante se afigura o seguinte excerto da motivação da decisão sobre matéria de facto, agora reportado aos depoimentos das testemunhas MV e RC:
“Relevante foi a circunstância declarada relativa à apresentação das faturas e ao contacto da sociedade de distribuição, nos exatos termos dados por provados.”
A apelante discordou do entendimento manifestado pelo Tribunal a quo, considerando que o facto em apreço deve ser julgado não provado.
Para tanto alegou, por um lado, que não era a única comercializadora de gás fornecido às diversas frações do edifício, e, por outro, que sendo a faturação suportada documentalmente, a prova do facto vertido neste ponto 91. só poderia fazer-se mediante a junção de cópias de faturas referentes ao fornecimento de gás relativamente a todas as frações com contratos de fornecimento ativos.
O apelado opôs-se à pretendida alteração, sustentando que a inexistência da menção a quaisquer outras entidades, designadamente qualquer alusão à Lisboagás GDL – Sociedade Distribuidora de Gás Natural de Lisboa, S.A. nas faturas emitidas à data da explosão nos autos, pela Lisboagás – Comercialização, S.A. constitui um facto que é do conhecimento comum para qualquer cliente com contrato com a aludida sociedade.
Apreciando, diremos que a alteração da redação do ponto 90., nos termos supra expostos, impõe desde logo a alteração da redação deste ponto 91., de modo a restringir o seu âmbito às faturas emitidas pela ré (posto que o teor das faturas emitidas por outras sociedades comercializadoras de gás natural nunca esteve em discussão, seja nos articulados, seja na audiência final).
Não obstante, e quanto ao mais, diremos que inexiste qualquer disposição legal que disponha que a prova do teor das faturas emitidas pelas empresas comercializadoras de gás se faça apenas por meio de documento, pelo que a prova desse facto pode fazer-se por meio de testemunhas.
Acresce que se é verdade que a testemunha MV afirmou que o nº de telefone que consta das faturas emitidas pela ré corresponde à linha de emergências e avarias da Lisboagás, GDL, também reconheceu que do mesmo documento não consta a informação de que tal número de telefone diz respeito a uma linha gerida por entidade diversa da ré (06:55 – 07:05).
Assim sendo, decide-se alterar a redação deste ponto de facto nos seguintes termos:
“91.     À data referida em 1., a única entidade referida nas faturas de consumo de gás relativas a contratos de fornecimento celebrados com a ré Lisboagás Comercialização, S.A. era a mesma ré.”
3.2.1.2.3. Ponto 95. dos factos provados
O ponto 95. dos factos provados tem a seguinte redação:
“95. A sociedade Lisboagás Comercialização, S.A. é fornecedora de gás em mercado regulado e sucessora legal de fornecedora de gás em mercado não livre.”
Da leitura do trecho da sentença que contém a motivação a decisão sobre matéria de facto não colhemos nenhuma informação segura quanto à forma como o Tribunal a quo formou a sua convicção no tocante ao transcrito ponto de facto.
A apelante considera que os factos aqui vertidos devem considerar-se não provados, sustentando que não é fornecedora de gás natural, e que quem o fornece é a Lisboagás, GDL, S.A. .
O apelado pugnou pela manutenção deste ponto de facto, com a redação que lhe foi conferida pelo Tribunal a quo.
Apreciando, diremos que a questão suscitada pela apelante diz respeito à interpretação da expressão “fornecedora”, e à sua compaginação com o seu objeto social, confrontado com o objeto social da Lisboagás GDL – Sociedade Distribuidora de Gás Natural de Lisboa, S.A..
Cremos que uma tal expressão “fornecedora” não se afigura descabida, na medida em que a ré celebra com os seus clientes contratos de fornecimento de gás, sendo certo que resultou claro de toda a prova produzida, e é pacífico entre as partes que a Lisboagás GDL não outorga quaisquer contratos com os clientes finais.
Portanto, a Lisboagás, GDL não fornece os clientes finais.
Aliás, a testemunha arrolada pela apelante, MV declarou expressamente que a Lisboagás, GDL vende gás à ré que, por sua vez, o revende aos clientes (00:00 – 07:15, e 20:20 - 22:10); e a testemunha RC, também arrolada pela ré, disse que a ré celebra com contratos de fornecimento com clientes finais (02:00 – 03:20), e reconheceu que mediante tais contratos se obriga a fornecer-lhes gás (09:30 – 09:45).
Contudo, a afirmação constante da 1ª parte deste ponto 95., tal como se mostra redigida, revela-se redundante face ao que consta do ponto 11. dos factos provados, onde se consignou que a ré “foi constituída em 24/7/2007 e tem o objeto de compra e venda de gás natural, em regime de comercialização de último recurso retalhista, bem como o exercício de atividades e a prestação dos serviços direta ou indiretamente relacionados”.
Daqui resulta de modo claro que a ré tem por objeto a venda de gás a clientes finais, razão pela qual a mencionada 1ª parte nada acrescenta de novo, podendo e devendo ser suprimida.
No que respeita à segunda proposição constante do mesmo ponto 95., é de questionar se a mesma contém um verdadeiro facto, ou uma afirmação conclusiva que configura matéria de Direito.
Uma tal questão traz à colação a clássica distinção entre factos e Direito.
Neste particular, cremos poder afirmar com segurança que se acha há muito estabilizado o entendimento de que as alegações genéricas, abstratas, vagas, imprecisas e conclusivas não podem ser consideradas factos; e que os juízos conclusivos que constituem ou podem constituir de matéria de Direito devem ser tratados de modo análogo.
Não obstante, em apesar de em abstrato, a distinção entre factos e Direito poder parecer clara e inequívoca, o certo é que a experiência demonstra que por vezes a fronteira que divide os dois conceitos nem sempre assume contornos evidentes.
Com efeito, já ANSELMO DE CASTRO[13] ensinava que “a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é facto ou juízo de facto, num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são flutuantes.”
Por outro lado, nem todos os juízos conclusivos constituem necessariamente matéria de Direito.
Acresce que as expressões de cariz normativo, poderão integrar a matéria de facto da decisão judicial se corresponderem a conceitos imbuídos na linguagem comum e não tiverem relação direta com o thema decidendum ou seja, se não tiverem relação direta com o pedido ou elementos integradores da causa de pedir.
Finalmente, há que considerar que o Código de Processo Civil de 1961, continha um preceito - o art.º 646º, nº 4 - que determinava que se deveriam considerar não escritas as respostas do tribunal sobre questões de direito ou sobre factos que só possam provar-se por documentos ou que se achem plenamente provados, não versando expressamente sobre juízos conclusivos, e que o CPC 2013 não contém disposição semelhante.
Sobre esta questão se pronunciou o ac. STJ 29-04-2015 (Fernandes da Silva), p. 306/12.6TTCVL.C1.S1, nos seguintes termos:
«Dispunha o n.º 4 do art.º 646.º do C.P.C./1961 (disposição que não foi mantida, ao menos em termos de directa correspondência, na disciplina homóloga da nova Codificação[14]) que se têm por não escritas as respostas do Tribunal sobre questões de direito … assim como as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
Não se contemplava a circunstância de se tratar – …como, em parte, no caso – de matéria (respostas de facto) vaga, genérica e conclusiva.
Foi-se consolidando, porém, na produção jurisprudencial – … por se ter admitido que assume feição de recorte jurídico a operação de escrutinar se determinada proposição de facto tem ou não natureza conclusiva –, o entendimento de que ”… não porque tal preceito contemple expressamente a situação de sancionar como não escrito um facto conclusivo, mas (…) porque, analogicamente, aquela disposição é de aplicar a situações em que em causa esteja um facto conclusivo, as quais, em rectas contas, se reconduzem à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos, objecto de alegação e prova, e desde que a matéria se integre no thema decidendum.
(…)
a proposição será conclusiva (na tríplice perspectiva dilucidada) se exprimir uma valoração jurídico-subsuntiva essencial, devendo ser expurgada, por isso.”»
Em sentido semelhante, sustentando que do atual nº 4 do art.º 607º do CPC2013 se deve extrair uma leitura idêntica à que resultava do art.º 646º, nº 4 do CPC1961 vd. tb., entre outros, o ac. STJ 28-09-2017 (Fernanda Isabel Pereira), p. 809/10.7TBLMG.C1.S1, bem como o ac. STJ 01-10-2019 (Fernando Samões), p. 109/17.1T8ACB.C1.S1.[15]
Não obstante, este entendimento foi objeto de crítica por parte de MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA[16] que, em comentário ao último aresto citado sustentou que “A chamada "proibição dos factos conclusivos" não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil (não importando agora discutir se alguma vez teve). Se o tribunal considerar provados os factos que preenchem uma determinada previsão legal, é absolutamente irrelevante que os apresente com a qualificação que lhes é atribuída por essa previsão. Por exemplo: se o tribunal disser que a parte atuou com dolo, porque, de acordo com o depoimento de várias testemunhas, ficou provado que essa parte gizou um plano para enganar a parte contrária, não se percebe por que motivo isso há de afetar a prova deste plano ardiloso (nem também por que razão a qualificação do plano como ardiloso há de afetar a sua prova).
O exemplo acabado de referir também permite contrariar uma ideia comum, mas incorreta: a de que factos juridicamente qualificados não podem constituir objeto de prova.
(…)
A referida "proibição dos factos conclusivos" também não corresponde às modernas correntes metodológicas na Ciência do Direito, que não se cansam de referir que a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito é totalmente artificial, dado que, para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos. Para o direito, não há factos, mas apenas factos jurídicos, tal como, para a física ou a biologia, não há factos, mas somente factos físicos ou biológicos. Os factos são sempre um Konstrukt, pelo que os factos jurídicos são aqueles factos que são construídos pelo direito. Em conclusão: o objeto da prova não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto.”
O ac. STJ 22-03-2018 (Abrantes Geraldes), p. 1568/09.1TBGDM.P1.S1 parece ter-se aproximado deste entendimento, sem que contudo se possa concluir que o sufragou totalmente.
Seja como for, cremos que muitas vezes o problema não se reconduz à questão de saber se determinada expressão ou inciso verbal inserto em determinado ponto de facto deve ser pura e simplesmente suprimido, na medida em que muitas vezes é possível substituir afirmações conclusivas e/ou de Direito por formulações factuais desprovidas das mencionadas conotações.
É claro que uma tal alteração só será possível se a prova carreada para os autos o permitir. Mas também parece evidente que quando tais condições se achem reunidas, nada obsta à alteração da decisão sobre matéria de facto, e a sentença ganhará em rigor e clareza sem prejuízo de qualquer direito das partes.
No caso vertente, a afirmação de que determinada entidade é sucessora legal de outra só pode ser considerada uma conclusão a retirar dos efeitos de certo diploma legal. Trata-se, por isso de matéria de Direito pelo que, sem necessidade de outras considerações, se conclui que esta segunda proposição deve pura e simplesmente ser suprimida.
Assim sendo, conclui-se que também esta proposição de facto deve ser suprimida.
Termos em que se determina a total eliminação do ponto 95. dos factos provados.
3.2.1.2.4. Recapitulação
Face ao decidido nos pontos que antecedem, o elenco de factos provados e não provados a considerar na apreciação do mérito da presente apelação é o seguinte:
Factos provados
1. No dia 2/7/2013, pelas 9h30m, ocorreu uma explosão no prédio sito no n.º .. da Rua …, Campolide, Lisboa;
2. O réu G era, nessa data, administrador do condomínio de tal prédio;
3. Tal explosão teve origem na fração de r/c, constituída por loja, que estava ocupada por oficina de estofador explorada pelo falecido AR;
4. Tal loja corresponde à fração A do prédio descrito sob o n.º 1835 da Conservatória do Registo Predial de Lisboa;
5. A aquisição da propriedade desta fração esteve registada desde 1979 a favor de MR, tendo sido inscrita a favor de Banco Santander Totta, S.A., por apresentação de 14/5/2015, em virtude aquisição a AR, E e D, herdeiros habilitados daquela;
6. AR, E e D foram habilitados como herdeiros de MR em procedimento junto da Conservatória de Registo Civil de Lisboa em 24/3/2015;
7. A aquisição da fração em causa (fração A, prédio 1835 da CRP de Lisboa) está registada a favor do R. G desde 14/9/2018;
8. AR faleceu a 19/4/2019;
9. Era AR que tomava conta da oficina e tratava de todos os assuntos relativos à mesma quando esta estava em funcionamento;
10. MR nunca trabalhou na oficina e a esta não se deslocava com regularidade;
11. A ré Lisboagás - Comercialização, S.A. foi constituída em 24/7/2007 e tem o objeto de compra e venda de gás natural, em regime de comercialização de último recurso retalhista, bem como o exercício das atividades e a prestação dos serviços direta ou indiretamente relacionados;
12. A explosão ocorreu devido à presença de gás no interior de tal oficina;
13. A oficina compõe uma fração integrada no condomínio, com entrada autónoma para a rua;
14. À data da explosão, a oficina encontrava-se encerrada ao público, deslocando-se AR à mesma de forma esporádica;
15. Na oficina onde teve início a explosão há uma tubagem de gás natural, não havendo, à data, fornecimento de gás contratado;
16. O respetivo contador havia sido retirado por serviços da empresa fornecedora de gás e gestora da rede, em data não concretamente apurada, anterior em anos à explosão;
17. Aquando da retirada do contador foi feita uma selagem do tubo de entrada de gás na fração, comprimindo, por achatamento, as respetivas pontas;
18. A explosão ocorreu em consequência de uma fuga de gás natural fornecido ao prédio, com origem não concretamente apurada;
19. A torneira de abertura e corte de gás à fração onde ocorreu a explosão (loja), situada no hall de entrada do prédio, encontrava-se aberta;
20. O acesso a tal torneira está protegido por uma campânula de metal, também conhecida por “olho de boi”;
21. A ignição da explosão deu-se quando AR acedeu ao interior da fração acionou o dispositivo de ligação do quadro elétrico;
22. Nesse momento, produziu-se um arco voltaico que provocou a ignição da mistura explosiva de gás que se encontrava no interior da oficina;
23. À data da explosão, CA vivia na fração correspondente ao r/c esquerdo, antiga casa de porteira, que fora arrendada pelo condomínio.
25. Alguns dias antes da explosão, CA detetou sinais de uma infiltração de água por cima da porta da casa de banho desta fração, da qual deu conhecimento ao réu G, administrador do condomínio;
25. O réu G, na qualidade de administrador, solicitou a realização de intervenção na parede da fração com vista a identificar e reparar a infiltração de água;
26. Para o efeito, contratou com pessoa não concretamente apurada a picagem da parede da fração em causa (antiga casa da porteira);
27. Na sequência de tal intervenção de picagem foi furado um cano de abastecimento de gás existente no interior de tal fração;
28. A fração em causa, casa de porteira, mantendo canalização de gás, desde data não apurada situada entre final da década de oitenta e a década de noventa do século XX, que não era abastecida de gás canalizado;
29. A fração era, desde a altura antes referida, abastecida por gás de botija comprado por quem lá residia;
30. A infiltração de água detetada e a picagem na parede fração referida (casa de porteira) ocorreu numa parede não confinante entre esta fração e a fração A (onde se deu a explosão);
31. CL informou o réu G que havia sido furado um cano de gás em tal intervenção;
32. O réu administrador do condomínio, na sequência de tal comunicação, não solicitou intervenção de técnicos da empresa de gás;
33. O antes referido sucedeu em virtude de o réu G ter conhecimento de inexistir fornecimento de gás canalizado a tal fração há muitos anos e não ter atribuído importância a tal ocorrência;
34. Aquando do cancelamento do serviço de fornecimento de gás à fração A (oficina/loja) e à casa de porteira, deslocaram-se técnicos a tais locais, que procederam ao corte de fornecimento;
35. No momento da explosão, o autor A circulava a pé pela Rua …;
36. Quando a explosão se deu o autor falava ao telemóvel e caminhava em frente do n.º … da Rua …, no passeio oposto ao identificado prédio;
37. A força da explosão projetou o autor contra a parede;
38. E projetou diversos materiais, designadamente pedaços de betão das paredes, vidros, pedaços de metal e madeira do edificado onde ocorreu;
39. alguns desses materiais foram embater no corpo do autor, na face, no antebraço esquerdo, na mão esquerda, no abdómen e na perna esquerda;
40. Na sequência da explosão, o autor ficou atordoado e prostrado, conseguindo arrastar-se para a esquina da rua para fugir ao fogo que se iniciou e procurando proteger-se de outras explosões que pudessem ocorrer;
41. Após o que, perdendo as forças, ficou caído no chão, impossibilitado de se deslocar pelos seus próprios meios;
42. Gritou por socorro e dois moradores da área foram ter com ele, falaram-lhe e seguraram-lhe a cabeça;
43. Ficou imobilizado no chão tempo não concretamente apurado, aproximado de trinta minutos, até que chegasse a ambulância de assistência médica, que estava retida por viaturas dos bombeiros que combatiam o fogo que se iniciara no local;
44. O autor sentiu nesse período grande desorientação, receio pela sua vida;
45. Sentiu também fortes dores físicas;
46. Foi depois o autor conduzido ao Hospital São José em Lisboa apresentando queimadura/esfacelo com lesão grave dos dedos da mão, escoriações várias do membro inferior esquerdo e queimadura de cílios, com ligeira hiperemia conjuntival;
47. Foi submetido a cirurgia plástica sob anestesia geral, tendo-lhe sido feita a limpeza de feridas da face, feita a remoção de vários estilhaços de vidro e sutura;
48. Sofreu também o autor seccionamento do músculo extensor comum dos dedos, bem como a secção do músculo tricípite braquial, tendo sido efetuadas intervenções definidas como miotenorrafia para solução do 1º problema e miofarria para resolução do segundo;
49. O autor foi ainda submetido a uma tenorrafia de banda lateral do extensor do 4.º dedo da mão esquerdo, a sutura de ferida do dorso do 5° dedo da mão esquerda, penso e imobilização com tala gessada;
50. Permaneceu internado no Hospital de S. José entre o dia 2/7/2013 e o dia 8/7/2013;
51. Após o internamento hospitalar, o autor manteve seguimento de consulta externa na cirurgia plástica;
52. Cumpriu programa de fisioterapia em Medicina Física e de Reabilitação, o que o obrigou a diversas deslocações ao hospital entre setembro de 2013 e agosto de 2014;
53. Em 13/8/2013, o autor apresentava ainda na face cicatrizes hiperpigmentadas, aderentes, indolores à palpação, e no antebraço e mão esquerdos, cicatrizes aderentes, dolorosas, com alterações sensitivas ao contacto associado a edema da mão, diminuição das amplitudes articulares e força muscular a nível do cotovelo, punho, mão;
54. Em 15/11/2014, o autor concluiu o processo de reabilitação no Hospital de S. José, apresentando défice de mobilidade e força muscular dos dedos D3D4D5;
55. O autor foi acompanhado nos serviços de Psicologia Clínica da Saúde do Hospital de São José entre janeiro de 2014 e data não concretamente apurada do ano de 2015;
56. Em consequência do acidente sofreu trauma psicológico, com sequelas a nível psicológico e manifestações de ansiedade;
57. Em consequência das lesões sofridas o autor ficou com cicatriz na face posterior do terço proximal do braço de 5 cm de comprimento e 1 cm de espessura;
58. Ficou com cicatriz cirúrgica no bordo lateral do terço distal do braço, medindo 5 cm de comprimento e 3 mm de espessura;
59. E ficou com cicatriz no bordo medial do terço médio do antebraço com 2,5 cm de comprimento e a espessura de 3 mm;
60. Ficou ainda com cicatrizes cirúrgicas nos 4.º e 5.º dedos da mão direita, com o comprimento de 1,5cm e 3 cm, respetivamente;
61. Ficou ainda com uma cicatriz no terço distal da coxa, com 3 cm de comprimento;
62. As cicatrizes antes referidas correspondem a um dano estético de grau 4, numa escala de 1 a 7;
63. O autor recuperou mobilidade total dos membros, incluindo braços e dedos, mantendo dor no antebraço direito em caso de flexão completa dos dedos e tendo perdido força muscular nos movimentos de pinça utilitária e pinça em gancho (movimentos com utilização do polegar);
64. O autor esteve absolutamente impedido de trabalhar, com incapacidade absoluta para tanto. em resultado das lesões, entre 2/7/2013 e 8/7/2013;
65. Em virtude das lesões e da perturbação psíquica que sofreu, o autor manteve-se incapaz de desenvolver qualquer trabalho até final de agosto de 2013;
66. Nesta altura, de forma gradual, retomou a sua atividade de designer gráfico;
67. O trabalho de desenho gráfico exige uso intensivo dos membros superiores e das mãos;
68. O autor, sendo destro, usava e usa habitualmente a mão afetada pelo evento para trabalhar (mão esquerda), em particular nas tarefas de desenho em computador com uso do teclado;
69. O autor recuperou a sua capacidade de exercício de todas as tarefas inerentes à sua atividade profissional, tendo perdido rapidez e eficiência em tarefas que impliquem usem continuado da mão esquerda e perdido também resistência ao cansaço;
70. As dores físicas e os sofrimentos psíquicos sofridos pelo autor entre a data das lesões e a do termo da recuperação (15/11/2014) corresponde a um quantum doloris avaliado em grau 4 (escala de 1 a 7);
71. A lesões determinaram uma afetação permanente na integridade física e psíquica do autor de 7 pontos;
72. Em consequência de tais lesões, o autor despendeu com taxas hospitalares, tratamentos médicos e consultas necessárias para a sua recuperação quantia não concretamente apurada e não inferior a €174,75;
73. Em deslocações para tratamentos médicos quantia não inferior a €91,60;
74. Em medicamentos e produtos farmacêuticos quantia não inferior a €115,18;
75. O autor é técnico licenciado de desenho gráfico;
76. Em 2/7/2013 o autor prestava serviços de desenho gráfico no atelier de IP, sito na Calçada dos …, Rua …, …, em Campolide, Lisboa;
77. Nessa altura o autor e IP estavam a iniciar uma parceria na área do design gráfico;
78. No mês de junho de 2013 o autor prestara serviços para tal atelier sendo remunerado com o valor global líquido de €1636 (mil seiscentos e trinta e seis) - doc. n.º 15, junto à petição inicial;
79. Até tal data o autor realizara diversos trabalhos, na área de design;
80. Em 31/7/2013 o autor comunicou à administração fiscal o encerramento da sua atividade para efeitos tributários;
81. No ano de 2012 o autor declarou fiscalmente de rendimentos de trabalho, ou de serviços prestados, o total de €14.016,53;
82. Encontra-se atualmente desempregado, com um rendimento mensal médio de subsídio aproximado de 900 euros;
83. Este rendimento é aproximado do que auferia após ter cessado a sua relação com uma agência de comunicação e publicidade, último trabalho que desenvolveu;
84. Na sequência das lesões sofridas, o autor perdeu confiança e autoestima pessoal por período não concretamente apurado, tendo ultrapassado gradualmente tais sequelas;
85. Teve dificuldade em dormir e descansar durante período não concretamente apurado;
86. As dificuldades de autoestima e de sono foram sendo gradualmente ultrapassado pelo autor, que faz atualmente uma vida normal;
87. Na sequência da explosão, foram chamados e deslocaram-se ao local técnicos de gás, identificados como pertencendo à “Lisboagás”;
88. Não existia fornecimento de gás natural à fração de r/c onde se deu a explosão (loja);
89. Como não existia fornecimento de gás natural à fração habitacional de r/c, arrendada pelo condomínio (casa de porteiro);
90. À data referida em 1., das várias frações autónomas que compunham os 1º, 2º, e 3º andares do prédio ali identificado:
a) As correspondentes ao 1º dto, 1º frte, 1º esq., 2º esq, 3º frte e 3º esq. eram abastecidas de gás canalizado (natural) no âmbito de contratos de fornecimento de gás celebrados com a ré;
b) A correspondente ao 2º dto eram abastecidas de gás canalizado (natural) no âmbito de contratos de fornecimento de gás celebrado com a EDP Comercial, S.A.;
c) As correspondentes ao 2º frte, e ao 3º dto eram abastecidas de gás canalizado (natural) no âmbito de contratos de fornecimento de gás celebrados com a GALP Power, S.A.
91. À data referida em 1., a única entidade referida nas faturas de consumo de gás relativas a contratos de fornecimento celebrados com a ré Lisboagás Comercialização, S.A. era a mesma ré.
92. Nas faturas constava um número de telefone para contactos em caso de emergência ou falha de fornecimento, estabelecendo tal número contacto com serviços da sociedade Lisboagás GDL - Sociedade Distribuidora de Gás Natural de Lisboa, S.A.;
93. Quem estabelecesse contacto telefónico com tal número, em razão do referido nos dois pontos anteriores, fazia-o na convicção de estar a contactar a sociedade Lisboagás Comercialização, S.A.;
94. No ano 2013 e até data não concretamente apurada não anterior ao ano 2020, as sociedades Lisboagás Comercialização, S.A. e Lisboagás GDL - Sociedade Distribuidora de Gás Natural de Lisboa, S.A. eram integrantes do mesmo grupo económico Galp e integralmente detidas, direta ou indiretamente, pela sociedade Galp, SGPS, S.A.;
Factos não provados
a) Que tenha sido feita soldagem da ponta dos tubos de gás situados na fração A, aquando do seu fecho e selagem;
b) Que o cheiro a gás, nos dias que antecederam a explosão, era percetível a qualquer pessoa que passasse no hall de entrada do edifício;
c) Que os técnicos que procederam ao corte de fornecimento e retirada de contador à fração A, no momento em que foram feitos, pertencessem a Lisboagás Comercialização, S.A.;
d) Que tais técnicos que se deslocaram ao prédio e procederam ao corte do fornecimento permitiram que continuasse a circular gás nos tubos sitos no interior da oficina;
e) Que os técnicos que se deslocaram ao prédio após a explosão para realizarem o corte pertencessem a Lisboagás Comercialização, S.A.;
f) Que o autor tenha estado completamente impossibilitado de trabalhar até ao dia 15-11-2014;
g) Que até tal data se tenha visto privado de qualquer rendimento;
h) Que as lesões que o autor sofreu dificultam o desempenho de tarefas de índole pessoal, como relativas a realização de higiene pessoal ou pequenas tarefas de cozinha;
i) Que o autor continue a ter ataques de ansiedade sempre que ao seu redor ocorre um qualquer ruído mais forte;
j) Que tenha sido o furo realizado na tubagem da fração de porteira que permitiu a saída gás que restava na tubagem, nomeadamente na oficina onde se deu a explosão; 
k) Que o corte preventivo do gás para a fração do r/c já se encontrava efetuada em 2/7/2013.
l) Que à data referida em 1. todas as frações do prédio ali identificado fossem abastecidas de gás canalizado (natural) no âmbito de contratos de fornecimento de gás natural celebrados com a ré.
3.2.2. Do mérito do recurso
3.2.2.1. Da responsabilidade civil extracontratual: considerações gerais
Estabelece o art.º 483º, nº 1 do C.C.: “Aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito doutrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Interpretando este preceito, a doutrina dominante tem entendido, de modo convergente, que a responsabilidade civil delitual depende da verificação dos seguintes pressupostos[17]:
1. Um facto - comportamento voluntário do lesante;
2. A ilicitude e a culpa;
3. A imputação do facto ao lesante;
4. O dano; e
5. O nexo de causalidade e adequação entre o facto e o dano.
Por facto deverá entender-se todo o comportamento voluntário ou forma de conduta humana.
A ilicitude poderá resultar, da violação de direito(s) de outrem (máxime direitos absolutos), ou de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
Mas, para uma conduta ser ilícita, a lesão desse direito de tutela erga omnes deve resultar de factos voluntários contrários ao direito.
Quanto à culpa, dispõe o art.º 487º do CC que na falta de outro critério legal, pela ela deve ser aferida pela diligência de um bom pai de família, isto é, pela diligência de uma pessoa sem especiais qualidades, qualificações ou perícia.
O dano consiste na “ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica”.[18]
O nexo de causalidade e adequação exprime uma relação de causa e efeito entre a conduta do lesante e o dano sofrido pelo lesado, apreciada não apenas de um ponto de vista naturalístico, mas numa perspectiva jurídica – vd. art.ºs 562º, 563º, e 566º do CC[19].
Ainda no âmbito da imputação delitual cumpre salientar que o Código Civil contém normas especiais que regulam determinadas situações e eventos. Entre eles, e com relevância para a análise da situação dos autos destaca-se o art.º 493º, que, sob a epígrafe “danos causados por coisas, animais ou atividades”, dispõe como segue:
“1. Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
2. Quem causar danos a outrem no exercício de uma atividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, exceto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.”
Não obstante o suporá exposto, estabelece ainda o nº 2 do já citado art.º 483º do CC que “só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei”.
Reporta-se esta disposição aos casos de responsabilidade objetiva, ou pelo risco relevando, no caso dos autos, o art.º 509º do CC, que, sob a epígrafe “Danos causados por instalações de energia elétrica ou gás” estabelece como segue:
“1. Aquele que tiver a direção efetiva de instalação destinada à condução ou entrega da energia elétrica ou do gás, e utilizar essa instalação no seu interesse, responde tanto pelo prejuízo que derive da condução ou entrega da eletricidade ou do gás, como pelos danos resultantes da própria instalação, exceto se ao tempo do acidente esta estiver de acordo com as regras técnicas em vigor e em perfeito estado de conservação.
2. Não obrigam a reparação os danos devidos a causa de força maior; considera-se de força maior toda a causa exterior independente do funcionamento e utilização da coisa.
3. Os danos causados por utensílios de uso de energia não são reparáveis nos termos desta disposição.”
3.2.2.2. Da responsabilidade da ré Lisboagás Comercialização, Lda pela ocorrência do acidente dos autos
Como resulta do relatório supra, o autor interpôs a presente ação contra várias pessoas singulares, o condomínio do prédio em que ocorreu a explosão dos autos, e a sociedade comercial ora apelante.
A sentença apelada julgou a ação parcialmente procedente, condenando a ora apelante a pagar determinadas quantias ao autor, a título de indemnização, e absolvendo os demais réus.
Não tendo a sentença apelada sido objeto de recurso, no seu segmento absolutório, resta em discussão apenas a responsabilidade da ora apelante pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo autor.
A sentença apelada considerou a ré responsável pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo autor, no âmbito da responsabilidade pelo risco consagrada no art.º 509º do CC, com a seguinte fundamentação:
“A relação da situação dos autos com a ré Lisboagás assenta em configuração legal diversa.
A sua responsabilidade assente em culpa não tem também suporte na alegação ou prova dos autos. Nada existe de apurado que permita afirmar que, por ação ou omissão, sem cuidado devido, foi esta ré causadora do facto lesivo. 
Existem possibilidades factuais que poderiam levar a concluir por uma efetiva culpa, havendo elementos que indicam que o desligamento do fornecimento de gás terá sido feito defeituosamente no interior da fração A, com mera retirada de contador e achatamento de tubagens, feita antes da segregação de negócios e, portanto, por serviços da ré ou de sua antecessora legal.
Ligada a esta está a possibilidade de a abertura da torneira geral de gás da fração “A”, existente em parte comum, apenas ter sido selada por técnicos após a explosão. 
Estes dois elementos conjugados tornam a cadeia de eventos mais provável, dentro de diversas possibilidades configuráveis, como sendo a do tamponamento das tubagens no interior da fração ter sido feito defeituosamente, ou ter cedido com o tempo, permitindo a saída de gás para o interior da loja, sendo este material gasoso proveniente da tubagem comum (aberta) ou, com menor probabilidade, atenta a força da explosão, libertando gás retido na tubagem desde a altura do corte de fornecimento.
Tivesse sido apurada, com um grau mínimo de certeza, que foi esta a causa que determinou o evento e este seria subjetivamente imputável, pelo menos em parte, a negligência da ré Lisboagás.
Não sendo esse o caso, porque não se saiu das meras possibilidades de curso do evento, nenhuma culpa lhe pode ser assacada.
Há, todavia, um facto que é indesmentível – uma explosão de gás ocorreu, um transeunte foi pela mesma atingido e sofreu danos com ela.
A tutela de riscos associados a atividades, independentemente de apuramento de culpas, faz-se na ordem jurídica, além de uma cada vez mais extensa regulamentação técnica, por meio de estatuição de responsabilidade pelo risco.
No caso de fornecimento de energia elétrica ou de gás existe previsão específica – o art.º 509.º do CC que, sob a epígrafe “danos causados por instalações de energia eléctrica ou gás” regula esta matéria. Refira-se, a propósito e antes de entrar na apreciação do fundo desta questão, que esta ré não questiona, como não poderia deixar de ser, a existência deste fundamento de responsabilidade. Simplesmente, estrutura a sua defesa dizendo que a entidade responsável pelo risco de fornecimento de gás não é a própria, antes a sociedade gestora da rede. 
A responsabilidade, nesta perspetiva, seria não da sociedade ré Lisboagás Comercialização, S.A. e antes da sociedade Lisboagás GDL – Sociedade Distribuidora de Gás Natural de Lisboa, S.A.
Quid juris?
Esta posição tem suporte na literalidade do art.º 509.º.
Assim, no n.º 1, o legislador recorre ao conceito, que usa noutros lugares paralelos, de “direção efetiva” e aponta-o à “instalação destinada à condução ou entrega da energia eléctrica ou do gás”. Conciliando este preceito com a segregação legal entre entidades detentoras e gestoras das redes e entidades comercializadoras de energia (caso da ré), operada em Portugal, em cumprimento de obrigações comunitárias, pelo Decreto-Lei n.º 521/99, de 10/12 e pela Portaria n.º 362/2000, de 20/6, dir-se-á que esta defesa encontra, prima facie, acolhimento.
Diga-se, avançando, que não está em causa a responsabilidade da sociedade gestora da rede. Esta cabe, indubitavelmente, na letra e no sentido da lei. A questão a apreciar nestes autos, sendo tal entidade terceira aos autos, é se a norma em causa exclui, nas relações externas, a responsabilidade da entidade comercializadora. 
Dito de outro modo, se o legislador, numa interpretação racional e atualista da norma em causa, estabelece que, perante terceiros lesados, a entidade comercializadora pode opor a segmentação de negócio, sem prejuízo da responsabilidade última nas relações internas entre sociedades.
Esta questão pode ser apresentada de outro modo e mais simplesmente, por meio de uma questão – o risco tutelado pelo art.º 509.º é apenas o decorrente do funcionamento da rede ou também da própria matéria, energia ou substância fornecida?
Avançando, há um primeiro elemento que deve ser analisado – a substância que deflagrou, naquilo que tinha de matéria explosiva, foi fornecido pela ré Lisboagás. 
Em termos simples, o gás que explodiu foi fornecido e chegou ao prédio levado pela ré. 
Assim, voltando à questão, responsabilidade pelo risco estatuída pelo art.º 509.º comporta a substância, matéria ou energia em si mesmo considerada ou apenas os riscos relativos à rede?  Mesmo perante o lesado, deve entender-se que o risco relativo à matéria ou energia está atribuído à entidade gestora da rede? Ou deve entender-se que não está sequer abrangido pela esfera de proteção desta norma? 
O sentido literal do preceito, como acima referido, parece apontar no sentido sustentado pela ré Lisboagás – a responsabilidade pelo risco é da gestora da rede.
O primeiro e muito evidente argumento contra esta tese decorre de uma interpretação histórica. Em 1966, quando foi aprovado o Código Civil, não existia qualquer segregação entre entidades fornecedoras e entidades gestoras de redes de gás e eletricidade.
Para o legislador de então, o risco estava indissociavelmente ligado à rede e à matéria ou energia fornecida – havendo um acidente, a responsabilidade pelo risco seria, muito simplesmente, da companhia que o explorasse.
Não é despiciendo salientar, a propósito, que o regime económico que então vigorava, obviamente decorrente do político, era de existência de monopólios claros e abertos no fornecimento de energia. A conclusão que se retira de uma interpretação histórica, ainda comportada na literal, é que a lei pretendeu, indistintamente, abranger os riscos decorrentes de problemas da própria rede (mau estado, fugas imprevistas, danos originados por intervenção humana indeterminada) como os riscos decorrentes da própria matéria ou energia.
O que o legislador pretendeu, vertendo apenas ao fornecimento de gás, foi estabelecer uma regra que, havendo uma lesão causada em alguém, por explosão, intoxicação, envenenamento ou outra, o lesado apenas tem que provar a causa do evento e os danos que provocou. Não teria que alegar ou provar com toda a precisão se o evento lesivo teve origem num furo na tubagem “x” ou numa falta de manutenção da ligação “y”. O risco tutelado é indissociável e, portanto, não poderia o fornecedor monopolista de gás isentar-se de responsabilidade de um evento dizendo, por exemplo, que a instalação estava em perfeito estado e o problema estava apenas no gás que forneceu propriamente dito. 
A interpretação deve também ser feita na presunção de o legislador ter consagrado as melhores soluções na estatuição de regras.
 Este é o sentido histórico da norma e é também o seu sentido racional atualista.
O risco decorrente da rede e da matéria ou energia nela conduzida são indissociáveis. Por isso, estão ambos incluídos na tutela desta norma.
Este exercício interpretativo não permite, porém, responder às questões acima referidas de legitimidade substantiva da entidade fornecedora. Uma coisa é concluir-se que o risco é indissociável, outra afirmar-se que, em caso de separação de entidades, a responsabilidade por esse risco, perante terceiros, é de ambas.
Para responder a esta questão, que é central nestes autos, tem que se alargar o horizonte de interpretação e análise, chamando à colação elementos instrumentalmente apurados.
Em primeiro lugar, deve ter-se em conta que a finalidade das regras que impõem separação de negócio entre distribuidores/gestores de rede e vendedores/comercializadores, são a proteção dos consumidores e a garantia de um mercado concorrencial, permitindo acesso de diversos intervenientes. Trata-se, assim, de uma matéria totalmente estranha à questão da responsabilidade pelo risco. Neste sentido, uma interpretação conforme à Constituição e orientada pelo princípio da confiança impõe que, perante o lesado, que tenha que se entender que existe uma responsabilidade solidária pelo risco decorrente do fornecimento de gás entre entidade fornecedora e entidade gestora.
O princípio da confiança não pode admitir, perante um dano verificado, que seja oposta ao lesado a discussão da responsabilidade entre as entidades económicas que segmentaram o negócio.
No caso, o que se provou é que, à data, a única fornecedora de gás ao prédio, que não à fração onde a explosão ocorreu, era a ré, sucessora do mercado monopolista. Por consequência, também se pôde concluir, qualquer que tenha sido o exato curso de eventos que a substância gasosa que explodiu foi fornecida pela ré ou por sua antecessora legal.
Assim, tenha a explosão sido originada por acumulação de material retido em tubagem da fração desde o tempo do fornecimento, seja proveniente de gás fornecido a outra fração, o material gasoso explosivo que deflagrou no interior da fração A foi levado ao prédio pela ré. 
Neste contexto, interpretando o art.º 509.º conforme o princípio constitucional da confiança, deve entender-se que a ré responde por tal risco.
A esta conclusão poderia objetar-se que, ganhando maturidade o mercado concorrencial, poderia o prédio dos autos, ou qualquer outro, ter cinco, dez, ou mais, fornecedores de energia, o que poderia impor exatamente a interpretação legal oposta – a responsabilidade deve ater-se à entidade gestora de rede, sob pena de incerteza ou desproporcionalidade.
Não se entende que seja assim. 
O princípio deve continuar a vigorar. Perante o lesado, serão responsáveis solidários, à luz da confiança constitucional aplicada à interpretação deste art.º 509.º do CC, fornecedor e distribuidor.
Não se conseguindo apontar uma causa concreta de um sinistro, haverá apenas um alargamento subjetivo de solidariedade, por inclusão de novos responsáveis fornecedores.
Assim se assegura confiança, assim se estabelece coerência na ordem jurídica e assim se estimula, por fim, os fornecedores a impulsionarem os distribuidores para que assegurem a segurança da rede. Além deste elemento interpretativo, por referência ao princípio da confiança e que se traduz na conclusão de a segregação de negócios de distribuição e comercialização existir para proteção do mercado e dos consumidores, não para exonerar de responsabilidade o fornecedor, pelo menos na relação com os lesados diretos e sem prejuízo de regresso para com a entidade gestora, há um outro elemento relevante a considerar - na altura do facto, ambas as sociedades pertenciam ao mesmo grupo económico – grupo Galp.
Além deste elemento organizacional, na sua relação com consumidores, e com terceiros, a sociedade distribuidora não era publicamente reconhecida e reconhecível.
Assim, segundo se apurou, as faturas de fornecimento faziam apenas referência à ré e continham indicação de um telefone de contacto “para emergências ou questões técnicas” que, uma vez acionado, levaria a contactar a entidade terceira, gestora da rede.
Nesse, ou noutro caso (como sucedeu aquando do corte de fornecimento subsequente à explosão), os técnicos que apareciam no local vinham apenas identificados como pertencendo à “Lisboagás”. Estes elementos começam por reforçar grandemente a conclusão antes retirada quanto ao princípio da confiança.
Não se trata apenas de uma situação de potencial complexidade numa estrutura empresarial, trata-se de uma verdadeira inexistência de conhecimento da sociedade gestora da rede, seja para o próprio consumidor ou para terceiros.
Uma coisa é haver normas que impõem segregação de negócio, outra o seu respeito. 
O consumidor e o terceiro lesado não são agentes reguladores do mercado e não têm qualquer obrigação de investigar a estrutura do negócio e seu modelo. O que é exigível ao consumidor, e ao terceiro lesado, é que se relacionem juridicamente com a entidade que se lhes apresente como contraparte juridicamente relevante. 
No caso, para o lesado, a sociedade gestora de rede é absolutamente desconhecida, como era para os próprios consumidores. Diga-se que não foi sequer alegado que a ré sociedade tenha prestado tal informação ao lesado ou que a mesma estivesse publicamente acessível em algum lugar. 
Por isso, com toda a naturalidade, o lesado demandou a empresa “de gás” que reconheceu e, também por isso, uma interpretação da norma que retirasse a sociedade fornecedora da esfera de responsabilidade pelo risco seria fortemente atentatória do princípio da confiança.
Num outro prisma, atenta a relação económica de grupo, pode questionar-se se a ré não terá assumido, com os comportamentos acima referidos (de, em síntese, se apresentar publicamente como entidade de gestão da rede) posição de verdadeira corresponsável pela rede.
Como salientado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/5/2015 - Lopes do Rego – dgsi.pt, não existe na ordem jurídica nacional um princípio geral de tutela da aparência, mas podem ocorrer situações excecionais em que a tutela da confiança do terceiro de boa-fé imponham a vinculação do representado.
O comercializador que, na sua fatura, apresenta um contacto do distribuidor, sem o identificar, e está a agir como seu representante de forma absolutamente impossível de detetar pelo consumidor ou por terceiro.
A entidade distribuidora, por seu lado, ao enviar agentes, técnicos ou outros, sem fazer uma separação clara e patente da entidade comercializadora, está também a aceitar tal comportamento, pelo menos de forma negligente, não podendo desconhecer a forma como a sua posição de entidade gestora da rede é (des)conhecida dos clientes e, por consequência, também de terceiros.
Como é referido no aresto citado, a não vinculação simultânea de representante e representado poderá, num caso destes, constituir uma insuportável lesão do princípio da boa-fé, constituindo um verdadeiro venire contra factum proprium a pretensão de exoneração do representante num contexto deste tipo. Acresce, nesta linha de raciocínio, que não tendo a tutela da aparência uma consistência geral, não deixa de ter consagrações na ordem jurídica nacional, que permitem possa ser convocado este lugar paralelo em situações equiparáveis. 
A consagração do princípio da tutela de terceiros de boa fé em caso de representação aparente está prevista, designadamente, pelo art.º 23.º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 187/86, a propósito do contrato de agência e no 30.º n.º 3 da Lei do Contrato de Seguro, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, a propósito da mediação de seguros.
Também ao nível doutrinal e jurisprudencial tem sido entendido que a representação aparente é vinculativa para o representado em determinadas circunstâncias.
Sustentando o alargamento geral desta solução, para tutela de terceiros de boa-fé em caso de representação aparente, seja em responsabilidade contratual ou extracontratual, pode ver-se acórdão da Relação de Lisboa 25/11/2011 (Maria Manuela Gomes – dgsi.pt).
Ao nível da mediação de seguros, pode ver-se Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de abril de 2014 – Pedro Romano Martinez, Jurismat, Portimão, n.º 5, p. 27 e seguintes e acórdão da Relação de Coimbra 7/4/2017 (Felizardo Paiva – trc.pt)
Num lugar próximo, Jorge Sinde Monteiro fala em culpa da organização, independentemente de responsabilidade pessoal direta –cf.  “Ofensa ao crédito ou ao bom nome, “culpa da organização” e responsabilidade da empresa” – Revista de Legislação de Jurisprudência, Ano 139º, 2009, Coimbra Editora, p. 117. 
A situação dos autos pode ser também enquadrada como uma situação em que esta construção jurídica é aplicável, caso se entenda que a entidade de gestão de rede, do mesmo grupo económico, assume os riscos do negócio de gás como representante aparente da entidade comercializadora, ou vice-versa, isto é, que é a comercializadora a representante da gestora da rede.
Pertencendo ambas à mesma organização empresarial económica, não sendo patente e conhecida a existência da sociedade distribuidora, que é até ocultada na documentação comercial, a tutela de terceiros de boa-fé impõe que deva entender-se que atuam ambas no interesse uma da outra e agregadas num interesse superior do grupo económico.
Assim, ainda que a representação deva considerar-se aparente, por inexistência de qualquer elemento de concessão de poderes específicos para tanto, os atos e omissões de cada uma e a respetiva posição jurídica, ainda que no domínio de responsabilidade civil objetiva, deve vincular as duas entidades agregadas no mesmo conjunto empresarial.
Esta solução jurídica pode ser convocada, ainda que, como acima referido, se deva entender que não é necessário sequer chamá-la diretamente, uma vez que a simples interpretação racional e atualista do art.º 509.º impõe uma responsabilidade solidária pelo risco das sociedades fornecedora e gestora de rede perante terceiro lesado.
A responsabilidade última poderá ser da gestora de rede, sendo esta uma questão que não se trata, porque estranha aos autos e emergente das relações internas entre responsáveis solidários.
Chegando a esta conclusão, i.e., que a ré Lisboagás pode ser responsabilizada por este evento, a título objetivo, deve voltar-se, agora com maior precisão, à questão da imputação objetiva do evento à ré. Ainda que não tivesse gás contratado com a fração onde se deu a explosão, estabelecido que todo o gás fornecido ao prédio o foi por si, está estabelecido o vínculo objetivo suficiente para estabelecer uma relação causalmente adequada entre o risco protegido pela norma e a posição jurídica da ré. Caso a solução jurídica decorra a existência de uma representação aparente da entidade gestora da rede, face ao pressuposto apurado, a solução será, mutatis mutandis, a mesma – a responsabilidade pelo risco de funcionamento da rede de gás, verificada uma explosão sem apuramento de qualquer falta pessoal do proprietário do local onde ocorra, é imputável ao risco da atividade relacionada com a rede de gás.
Assim, em conclusão, a ré Lisboagás é objetivamente responsável pelos danos causados ao autor com o facto dos autos.”
Concordamos, no essencial, no enquadramento teórico que o Tribunal a quo expôs no trecho citado, pelo que, nos escusamos de tecer considerações suplementares quanto a esta matéria, com exceção de uma ressalva.
Consiste esta na ponderação da eventual responsabilidade da apelante, nos quadros da responsabilidade aquiliana, no âmbito do disposto no art.º 493º, nº 2 do CC.
Com efeito, não se afigura descabido questionar se a atividade desenvolvida pela ré deve ou não ser qualificada como atividade perigosa, e por isso suscetível de fazer funcionar a presunção de culpa consagrada no referido preceito.
Como resulta dos autos, a apelante é uma empresa comercializadora de gás natural, dedicando-se, por isso à celebração de contratos de fornecimento de gás natural, com clientes finais, consumidores desse gás.
Note-se que ao contrário da posição sustentada pela ré nas suas alegações de recurso, a utilização do termo fornecer reportada à atividade da mesma junto dos seus clientes justifica-se plenamente, face ao nomen iuris do tipo de contrato que com estes celebra: contrato de fornecimento.
Como é sabido, o contrato de fornecimento é uma figura expressamente referida e no art.º 230º do Código Comercial, mas cujos exatos contornos não são definidos, seja pelo mencionado diploma, seja por qualquer outro.
A doutrina e a jurisprudência tendem a definir este tipo contratual como aquele pelo qual o fornecedor se obriga a vender ao cliente[20], a pedido deste, quantidades indeterminadas de determinado(s) bem(ns), quantidades essas que se vão determinando mediante os pedidos do cliente.[21]
No caso específico do contrato de fornecimento de gás natural, essas quantidades são determinadas pela utilização, pelo cliente, do gás fornecido, e medidas pelo contador.
O contrato de fornecimento de gás natural é, pois, o contrato mediante o qual uma empresa comercializadora de gás natural se obriga a vender o dito combustível a um consumidor – vd art.ºs 37º, nº 3, 39º, nº 3, e 39º-A, nº 1 todos do DL nº 30/2006, de 15-02[22].
É certo que o contrato de fornecimento de gás natural tem uma particularidade: a empresa fornecedora não produz nem armazena gás natural, antes o adquire à sociedade distribuidora de gás natural – vd. art.º 35º do DL nº 140/2006, de 26-07[23].
Na cidade de Lisboa opera, na qualidade de distribuidora, a Lisboagás GDL – Sociedade distribuidora de gás natural, S.A..
Aqui chegados, importa aferir como se articulam as relações contratuais entre as sociedades distribuidoras e as sociedades comercializadoras de gás natural.
E fazendo-o, poderíamos afirmar, de modo algo simplista, que as sociedades comercializadoras compram gás às sociedades distribuidoras, que revendem aos clientes / consumidores – vd. art.ºs 37º, nº 3 e 39º do DL 30/2006, e 77º do Regulamento de Relações Comerciais do Setor do Gás Natural.[24]
Porém, as sociedades comercializadoras não adquirem o gás às sociedades distribuidoras em momento anterior ao consumo do mesmo pelo cliente final.
Expliquemo-nos.
A implementação de um regime concorrencial na comercialização do gás natural pressupõe que num determinado edifício, podem coexistir diversas empresas comercializadoras, abastecendo diversos apartamentos, andares, ou frações autónomas.
Um tal desiderato poderia ser alcançado de duas formas:
a) Cada empresa comercializadora teria as suas próprias condutas;
b) Todas as empresas comercializadoras partilhariam as mesmas condutas.
O modelo português de abastecimento de gás natural corresponde à segunda das opções técnicas. Esta opção impossibilita, obviamente, qualquer diferenciação quanto à propriedade do gás até ao mesmo passar nos contadores das diversas unidades integradoras do edifício[25].
Por isso mesmo, a lei distingue entre sociedades distribuidoras e sociedades comercializadoras.
As sociedades distribuidoras “levam” o gás natural aos clientes finais, mas quem vende o mesmo gás aos clientes são as sociedades comercializadoras.
As condutas de gás são, assim, responsabilidade das empresas distribuidoras, até ao enlace com os respetivos edifícios. A partir deste local, a responsabilidade pela manutenção das condutas de gás incide em primeira linha, sobre os proprietários dos edifícios, sendo certo que no caso da propriedade horizontal, tal responsabilidade se reparte entre o condomínio e os proprietários das frações autónomas.
 Paralelamente, todo o gás natural que se encontra nas condutas a montante dos contadores é da propriedade das sociedades distribuidoras.
A dupla transmissão do direito de propriedade sobre o gás natural, decorrente das relações contratuais entre a sociedade distribuidora e sociedade comercializadora, e subsequentemente, entre a sociedade comercializadora e o cliente final pressupõe dois momentos lógicos que, contudo, acontecem no mesmo momento temporal: o momento em que o gás passa no contador do cliente consumidor de gás.
Nesta conformidade, podemos concluir que muito embora a distribuição de gás natural possa ser considerada uma atividade perigosa, o mesmo não se poderá afirmar relativamente à atividade da comercialização, visto que as empresas comercializadoras não têm qualquer obrigação legal de velar pela integridade das condutas de gás natural em nenhum dos seus segmentos, sem sequer são proprietárias dos contadores.
Não é, por isso, viável equacionar a responsabilidade da apelante nos termos previstos no art.º 493º, nº 2 do CC.
Resta-nos, por isso, apreciar a eventual responsabilidade da apelante pelo risco, à luz do disposto no art.º 509º do CC.[26]
Neste particular, como já referimos, não temos qualquer divergência com o entendimento manifestado pelo Tribunal a quo no tocante ao enquadramento teórico exposto na sentença apelada.
Concentrar-nos-emos, por isso, em sindicar a sua aplicação prática ao caso dos autos, em função da matéria de facto, tal como a mesma resulta em consequência das alterações determinadas no ponto 3.2.1. do presente aresto.
E fazendo-o, verificamos que o Tribunal a quo considerou a apelante responsável pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo autor em consequência da explosão dos autos, nos quadros da responsabilidade pelo risco consagrada no art.º 509º do CC, assente nas seguintes premissas:
i - A ré era a única fornecedora de gás a diversas frações do prédio dos autos na altura do evento (julho de 2013);
ii - A ré é a sucessora legal de fornecedora de gás em mercado não livre;
iii - Todo o gás que existia nas condutas de gás do prédio dos autos pertencia à ré.
A primeira premissa supra enunciada assentava no ponto 90. dos factos provados que, na sequência da impugnação da decisão sobre matéria de facto foi alterado, passando a ter a seguinte redação:
À data referida em 1., das várias frações autónomas que compunham os 1º, 2º, e 3º andares do prédio ali identificado:
- As correspondentes ao 1º dt, 1º frte, 1º esq., 2º esq, 3º frte e 3º esq. eram abastecidas de gás canalizado (natural) no âmbito de contratos de fornecimento de gás celebrados com a ré;
- A correspondente ao 2º dto era abastecida de gás canalizado (natural) no âmbito de contratos de fornecimento de gás celebrado com a EDP Comercial, S.A.;
- As correspondentes ao 2º frte, e ao 3º dto eram abastecidas de gás canalizado (natural) no âmbito de contratos de fornecimento de gás celebrados com a GALP Power, S.A.
Consequentemente, não resultou provado que à data referida em 1. todas as frações do prédio ali identificado fossem abastecidas de gás canalizado (natural) no âmbito de contratos de fornecimento de gás natural celebrados com a ré – al. l) dos factos não provados, aditada por este Tribunal no âmbito da impugnação da decisão sobre matéria de facto.
Destes pontos de facto resulta que à data do acidente dos autos a ré, na qualidade de sociedade comercializadora de gás natural (de último recurso), e no âmbito de contratos de fornecimento de gás natural, fornecia gás natural a algumas das frações autónomas do prédio dos autos, ou seja, a parte delas, e não a todas.
Aqui chegados podemos então concluir que ao contrário do afirmado na sentença apelada, a ré não era a única fornecedora de gás ao prédio dos autos, já que como se afere do ponto 90 dos factos provados, na redação que lhe foi conferida por este Tribunal, para além da ré também a GALP Power, S.A. e a EDP Comercial, S.A. forneciam gás a frações autónomas do mesmo prédio.
A este propósito é igualmente relevante salientar que muito embora a GALP Power, S.A. seja efetivamente uma empresa do grupo GALP, que opera no âmbito do mercado livre, a EDP Comercial, S.A. não integra tal grupo de empresas.
Por outro lado, e em face do já exposto, forçoso será igualmente concluir que a afirmação vertida na sentença apelada de que todo o gás existente nas condutas do prédio dos autos à data do acidente era da ré não pode subsistir.
Com efeito, do já exposto só pode concluir-se que:
- o gás natural existente nas condutas do prédio dos autos a montante dos contadores era propriedade da Lisboagás, GDL, S.A.;
- o gás existente nas mesmas condutas a jusante dos contadores era propriedade dos clientes finais titulares dos respetivos contratos de fornecimento de gás natural;
- se porventura existisse gás de cidade (ou seja, gás comercializado antes da migração para o gás natural), inexistem factos que permitam afirmar que o mesmo fosse propriedade da ré.
Depois, também não pode subscrever-se a afirmação de que a ré era a sucessora da empresa exploradora da atividade de abastecimento de gás canalizado no período em que vigorou um sistema de mercado monopolista.
Com efeito, e por um lado, essa afirmação constitui uma afirmação conclusiva, de natureza jurídica, que constava do ponto 95. dos factos provados, o qual foi suprimido na sequência da impugnação da decisão sobre matéria de facto.
Por outro lado, o Tribunal a quo também não esclareceu quais as concretas disposições legais em que assentou tal conclusão. Da análise do processado não resulta que qualquer das partes alguma vez tenha invocado normas ou preceitos que sustentem tal conclusão. E, analisada a legislação vigente na matéria, este Tribunal também não logrou localizar qualquer preceito que habilite esse juízo.
Em consequência, consideramos indemonstrado que a ré seja sucessora legal de empresa fornecedora de gás em regime monopolista.
Finalmente, também não podemos concordar com o entendimento de que a ré alguma vez tenha sido responsável pela manutenção das condutas de gás do edifício dos autos.
Ainda assim, tal não significa que não concordemos com a conclusão, vertida da sentença apelada de que, em abstrato, “perante o lesado, serão responsáveis solidários, à luz da confiança constitucional aplicada à interpretação deste art.º 509.º do CC, fornecedor e distribuidor”.
Porém, a sentença apelada faz assentar tal conclusão no indemonstrado pressuposto de que a ré seria a única fornecedora de gás ao edifício dos autos e que “qualquer que tenha sido o exato curso dos eventos (…) a substância que explodiu foi fornecida pela ré ou por sua antecessora legal”, sustentando que “tenha a explosão sido originada por acumulação de material retido em tubagem da fração desde o tempo do fornecimento, seja proveniente de gás fornecido a outra fração, o material gasoso explosivo que deflagrou no interior da fração A foi levado ao prédio pela ré”.
Como emerge do que vimos expondo, face à factualidade apurada, tal como resultou em consequência da impugnação da decisão sobre matéria de facto, os pressupostos destas conclusões resultaram indemonstrados.
Não é, por isso, possível, estabelecer um nexo de causalidade e adequação entre qualquer comportamento da ré e a explosão dos autos, tal como não é possível imputar à ré qualquer responsabilidade pela manutenção das condutas de gás do prédio dos autos.
Em consequência não é possível imputar à ré a responsabilidade pelo ressarcimento dos danos sofridos pelo autor em resultado da explosão dos autos.
Termos em que se conclui pela procedência da presente apelação, e consequente revogação da sentença apelada com a absolvição da ré de todos os pedidos.
3.2.3. Das custas
Nos termos do disposto no art.º 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
A interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático da interpretação.
Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito.
No sentido amplo, as custas tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. art.ºs 529º, nº1, do CPC e 3º, nº 1, do RCP).
Já em sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (art.ºs 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP).
O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. art.ºs 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ.
Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os art.ºs 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (art.ºs 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (art.ºs 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
Tecidas estas considerações, resta aplicar o preceito supracitado.
E fazendo-o diremos que no caso em apreço, face à procedência da apelação, forçoso é concluir que quer as custas relativas à tramitação da causa em primeira instância, quer as respeitantes à presente apelação (na modalidade de custas de parte) devem ser suportadas pelo apelado.
Tecidas estas considerações, resta aplicar o preceito supracitado.
E fazendo-o diremos que no caso em apreço, face à total improcedência da presente apelação, as custas deveriam ser suportadas pela apelante.
Não obstante, por via do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido, e que inclui a modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo[27], a mesma acha-se dispensada de as pagar.
Tal dispensa não constitui uma situação de isenção, porquanto aquele benefício pode ser revogado nos termos previstos no Regime de Acesso ao Direito e aos Tribunais[28] (vd. art.ºs 10º e 13º do referido diploma).
Daí que se justifique a condenação do apelante em custas, embora com ressalva do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido[29].
4. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em:
a) Alterar a decisão sobre matéria de facto, nos termos expostos na fundamentação do presente acórdão;
b) Julgar a apelação procedente, revogando a sentença apelada, na parte em que condenou a apelante[30], e absolvendo a apelante de todos os pedidos;
Custas relativas à tramitação da causa em primeira instância e na presente apelação (na modalidade de custas de parte) pelo apelado, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.

Lisboa, 06 de dezembro de 2022
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa
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[1] Seguimos de perto o relatório da sentença apelada, ao qual acrescentámos as referências respeitantes às incidências subsequentes.
[2] Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117
[3] Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 119
[4] Expurgámos do elenco dos factos provados a referência a documentos constante do parêntesis 5., 6., 8., 11., 46., 48., 50., 52., 54., 56., 80., 81., que contêm referência a meios de prova, e que apenas relevam enquanto elementos motivadores da convicção do Tribunal a quo. O lugar adequado a tais referências e, pois, a motivação da decisão sobre a matéria de facto, e não o elenco de factos provados.
[5] A sentença recorrida não organizou o elenco de factos não provados por números ou alíneas. Por considerarmos que tal omissão dificulta a apreciação do presente recurso, organizámos o referido elenco por alíneas.
[6] “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Edição, Almedina, 2018, pp. 165-166.
[7] Conclusões 1ª a 13ª.
[8] Acentuado e sublinhado nossos.
[9] Cfr. pontos 11. e 95. dos factos provados.
[10] Refª 19244136, de 17-11-2022.
[11] Refª 604063, de 07-11-2022.
[12] Refª 603078, de 28-10-2022.
[13]  “Direito Processual Civil Declaratório”, III, Almedina, 1982, pp. 268-269.
[14] Embora o STJ ressalve o entendimento de que idêntica norma se deve extrair do art.º 607.º, nº 4 do CPC2013.
[15] Sobre a mesma matéria, mas fazendo eco de leituras diversas do art.º 607º, nº 4 do CPC, vd. ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, e LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, Almedina, 2018, pp. 720-722.
[16] Blog do IPPC, entrada de 05-02-2018, intitulada “Jurisprudência (784), disponível em  https://blogippc.blogspot.com/2018/02/jurisprudencia-784.html.
[17] Cfr., entre outros, ANTUNES VARELA “Das Obrigações em Geral” - Vol. I, 10.ª ed., ALMEDINA, 2000, p. 526; e ALMEIDA COSTA, “Direito das Obrigações”, 12ª ed., 8ª reimpr., Almedina, 2020, pp. 557 ss.
[18] A definição é de ALMEIDA COSTA, ob cit., p. 591.
[19] Cfr., ALMEIDA COSTA, ob cit, pp. 760 ss.
[20] Definido no art.º 3º, al. f) do DL nº 30/2006, como “o cliente que compra gás natural para consumo próprio”.
[21] Para uma análise detalhada da figura vd., entre muitos outros, o ac. RL 27-02-2018 (Higina Castelo), p. nº 22131/15.2T8LSB.L1-7 e a doutrina ali referenciada.
[22] Diploma que conforme estipulado no seu art.º 1º, n.º 1, “estabelece as bases gerais da organização e do funcionamento do Sistema Nacional de Gás Natural (SNGN), bem como as bases gerais aplicáveis ao exercício das atividades de receção, armazenamento e regaseificação de gás natural liquefeito (GNL), de armazenamento subterrâneo de gás natural, de transporte, de distribuição e de comercialização de gás natural e de organização dos respetivos mercados.” Este diploma foi alterado pelos DLs nºs 66/2010, de 11-06; 77/2011, de 20-06; 74/2012, de 26-03; 112/2012, de 23-05; e 230/2012, de 26-10. Tais diplomas visaram a transposição das Diretivas 2003/55/CE e 2009/73/CE. O referido DL, com as referidas alterações estava em vigor à data do acidente dos autos (02-07-2013), vido a ser revogado pelo DL nº 62/2020, de 28-08, o qual procedeu à transposição da Diretiva 2019/692.
[23] Alterado pelos DLs nºs 65/2008, de 09-04; 66/2020, de 06-11; 231/2012, de 26-10; e 38/2017, de 31-03. Como se refere no art.º 1º, nº 1 deste diploma, o mesmo “estabelece os regimes jurídicos aplicáveis às atividades de transporte, de armazenamento subterrâneo de gás natural, de receção, armazenamento e regaseificação de gás natural liquefeito (GNL) e de distribuição de gás natural, incluindo as respetivas bases das concessões, bem como de comercialização de gás natural e de organização dos respetivos mercados”. Também este diploma veio a ser revogado pelo já referido DL nº 62/2020.
[24] Disponível em https://agnatural.pt/folder/documento/ficheiro/regulamento-de-relacoes-comerciais-do-setor-gn-2013_1cb5daa4a3521c748996c2add335a6cb2d771724.pdf . Este Regulamento veio a ser revogado pelo Regulamento das Relações Comerciais dos Setores Elétrico e Gás, de 2020, disponível em https://www.erse.pt/ebooks/regulamentos-manuais-guias/eletricidade/regulamento-de-relacoes-comerciais-do-setor-eletrico-e-do-setor-do-gas/.
[25] Apartamentos, andares, ou frações autónomas.
[26] Em sentido diverso, considerando que a responsabilidade prevista no art.º 493º, nº 2 do CC é subsidiária daqueloutra consagrada no art.º 509º do mesmo código, vd. ac. RC 04-04-2017 (Sílvia Pires), p. 1347/15.7T8GRD.C1.
[27] Cfr. doc. nº 16 junto com a petição inicial.
[28] Aprovado pela Lei nº 34/2004, de 29-07, alterada pela Lei 47/2007, de 28-08, pela Lei nº 40/2018, de 08-08, pelo DL nº 120/2018, de 27-12, e pela Lei nº 2/2020, de 31-03.
[29] Em sentido diverso, considerando inexistir fundamento para condenação em custas da parte que beneficia de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais custas, vd. cfr. SALVADOR DA COSTA “Condenação das partes no pagamento de custas sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam”, disponível em:
https://drive.google.com/file/d/1CiQm3I6JPXJrGXv6PxJAyJ7dtBIfMgat/view.
[30] Mantendo-se a sentença apelada no tocante à absolvição dos demais réus.