Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3773/16.5T8FNC.L1-8
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: ATRIBUIÇÃO DA CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
CUMULAÇÃO DE PEDIDOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: O processo visando a atribuíção da casa de morada de família reveste a natureza de jurisdição voluntária, regendo-se pelo disposto no art. 990º do C.P.Civil.
Atenta essa especial natureza, não é, pois, lícito no mesmo formular pedido a que corresponda a tramitação comum - como o de condenação no pagamento de montante pecuniário - impondo-se, face à ocorrência de circunstância impeditiva da cumulação (art. 37º, nº1, ex vi art. 555º, nº1, CPC), a absolvição da instância, relativamente a tal pedido.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:

1.A... propôs, contra T..., acção especial, distribuída à comarca da Madeira - Juízo de Família e Menores do Funchal, pedindo seja declarada dissolvida a união de facto entre ambos, atribuindo-se ao requerente o direito de habitação da casa de morada de família e uso do seu recheio, e condenando-se a requerida a pagar-lhe a quantia de € 56.042,53, correspondente ao montante desembolsado pelo requerente, na amortização do empréstimo por aquela contraído para aquisição do imóvel, e na compra do respectivo recheio.

Deduziu a requerida oposição, impugnando o direito invocado pelo requerente, relativamente à casa de morada de família, bem como a existência do alegado débito - concluindo pela improcedência do pedido.

Efectuado julgamento, foi proferida sentença, na qual, julgando-se verificada a excepção dilatória de erro na forma do processo, se absolveu a requerida da instância, quanto ao pedido de condenação no pagamento do reclamado montante, declarando-se dissolvida a união de facto entre aquela e o requerente, e considerando-se improcedente o pedido de atribuição a este da casa de morada de família.

Inconformado, veio o requerente interpor o presente recurso de apelação, cujas alegações terminou com a formulação das seguintes conclusões :

O presente recurso tem como objecto a decisão na qual a juiz a quo decidiu julgar improcedente o pedido de atribuição da casa de morada de família, feito pelo requerente, determinando que o mesmo deixe de habitar a casa de morada de família, no prazo de 30 dias, a contar do trânsito em julgado da sentença.
Absolvendo a requerida da instância quanto ao pedido de condenação no pagamento de € 56.042,53, a título de devolução de empréstimo feito pelo requerente, bem como do valor do recheio do imóvel que constitui a casa de morada de família.
Na sentença proferida há um manifesto erro na valoração da prova com a consequente má interpretação e aplicação da lei aos factos.
Desde logo, a sentença recorrida sofre de vício de nulidade nos termos do disposto no nº1, al. d), do art. 615° do CPC, pela não apreciação do pedido de condenação da requerida na devolução do empréstimo feito pelo requerente bem como do valor do recheio da casa de morada de família.
Porquanto, a sua apreciação conjunta revela-se indispensável a um correcto entendimento e julgamento do litígio pois estamos perante pedidos conexos, relativos a um mesmo objecto.
Sendo indispensável para a justa composição do litígio (e há interesse relevante) a sua apreciação conjunta.
Embora os pedidos correspondam a formas de processo diferentes, não seguem uma tramitação manifestamente incompatível, havendo todo o interesse na sua apreciação conjunta, porque está em causa a atribuição do direito de habitação na casa de morada de família que embora esteja registada em nome da requerida também foi paga pelo aqui recorrente.
A decisão proferida vai contra o previsto quer na letra quer no espírito da lei, nomeadamente nos arts. 555° e 37º do C.P.C, que têm subjacente o principio da adequação e da economia processual.
E não faz jus dos critérios de decisão em processos de jurisdição voluntária, onde o tribunal deve orientar e decidir por critérios de oportunidade e conveniência e não por critérios de legalidade estrita.
Além disso, a sentença recorrida fez uma errónea - porque incompleta - análise de todos os factos constantes dos autos.
O art. 3º al. a) da Lei 7/2001, de 11/5 (em conjugação com o nº4, que por sua vez remete para o art. 1793º do C.C.) determina que as pessoas que vivem em união de facto nas condições previstas na presente lei têm direito a protecção da casa de morada de família, quer aquela seja um bem comum quer seja própria do outro cônjuge, considerando as necessidades de cada um dos cônjuges.
Em conformidade com o exposto, solicitou o recorrente a protecção da casa de morada de família conferida pela lei.
E fê-lo porque, considerando as suas necessidades e da ex-companheira, é quem mais carece daquela protecção da casa de morada de família.
Segundo Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, o tribunal deve atribuir o direito de arrendamento da casa de morada de família ao cônjuge que mais precise dela, necessidade que deve ser aferida, por exemplo, pela sua situação económica liquida, interesses dos filhos, idade e estado de saúde dos cônjuges, da localização da casa em relação aos seus locais de trabalho, da possibilidade de disporem de outra casa para residência etc.
Contudo, na sentença proferida apenas foram atendidos e valorados factos puramente económicos, o que não se aceita.
Estando perante interesses imateriais, o juiz deve olhar ao caso concreto e procurar a solução mais justa, que melhor serve os interesses em causa, e não olhar apenas a critérios materiais, como a situação económica das partes, conforme o fez.
Na avaliação da necessidade da casa de morada de família deve o tribunal ter em conta não só a situação patrimonial do casal ou ex-casal mas também as demais "razões atendíveis", como a idade, o estado de saúde e capacidade profissional de cada um dos ex-unidos de facto.
Ora, no caso em apreço justifica-se a atribuição da casa de morada de família ao recorrente, pelo facto de apresentar uma idade avançada (65 anos), por estar reformado e sofrer de doença crónica do foro psiquiátrico - perturbação do humor bipolar, necessitando de acompanhamento psiquiátrico e medicação permanente, sendo incapaz de manter um nível de funcionamento pessoa1 e social adequado/"normal".
Já a requerida apresenta-se com 48 anos, em situação profissional activa e com uma maior autonomia pessoal e social em comparação com o requerente.
Reunindo melhores condições para diligenciar por uma nova habitação para viver, como alias já fez.
Destarte, resulta de todos os factos presentes nestes autos uma maior necessidade do requerente à habitação da casa de morada de família.
E esta necessidade da habitação é uma necessidade actual e concreta.
Face ao exposto, deverá a sentença ser revogada, por padecer de erro de julgamento e violar a lei, pois que não teve em conta todos os factos que resultam do processo.
Afastando um principio fundamental que é o da justiça.
O recorrente demonstrou e provou a sua situação, encontrando-se em condições de beneficiar do direito de morada na casa de família, nos termos do art. 1793° do C.C, pelo que se impõe decisão diversa da ora recorrida.
Nestes termos deve ser dado provimento ao presente recurso e, anulada e/ou revogada a sentença recorrida, substituindo-se por outra que declare procedente o pedido de habitação na casa de morada de família e uso do recheio pelo requerente e a requerida condenada no pagamento da quantia de € 56.042,53, a titulo de devolução de empréstimo, bem como o valor do recheio do imóvel que constitui a casa de morada de família.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2.Em 1ª instância, foi dada como provada a seguinte matéria factual :

1.-A... e T... viveram em comunhão de cama, mesa e habitação de 1995 a Fevereiro de 2016 na Estrada do Aeroporto, edifício C..., ...°G, Q..., C..., 9125-087 Santa Cruz, e nunca casaram entre si.
2.-Em Fevereiro de 2016, a requerida deixou de residir na casa identificada no facto anterior.
3.-Desde Fevereiro de 2016, o requerente e a requerida deixaram de viver em comunhão de cama, mesa e habitação, não mais tendo retomado a vida em comum.
4.-No dia 1/6/95,  no 2° Cartório Notarial do Funchal, foi outorgada escritura pública de compra e venda com mútuo oneroso, com hipoteca, respeitante à fracção autónoma melhor identificada nos factos provados n°s 1 e 5, na qual figuram como primeiros outorgantes, na qualidade de vendedores, J... e A... e como segunda outorgante T..., aqui requerida.
5.-A aquisição da fracção autónoma identificada em 1 está registada em nome da requerida, T..., pela ap. 6, de 1995/07/13, encontrando-se tal fracção descrita na Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz (Madeira) sob o nº 634/19890621-G, freguesia do Caniço.
6.-Aquando da compra do imóvel identificado nos factos anteriores, a requerida contraiu junto do Banif, um mútuo no valor de Esc 12.000.000$00, pelo prazo de 20 anos, e sobre o qual recaiu uma hipoteca para garantia do capital mutuado, mútuo esse que se encontra actualmente liquidado.
7.-A requerida, por intermédio da sua advogada, enviou ao requerente, em Fevereiro de 2016, carta registada com aviso de recepção, em que comunicava que tinha saído definitivamente de casa e mantinha o propósito de não retomar a vida em comum; o imóvel sito em Estrada do Aeroporto, edifício C..., ...°G, Q..., C..., pertence-lhe por compra efectuada por escritura pública de 1/6/95, registada a seu favor; e propôs as seguintes alternativas (concedendo o prazo de resposta de 10 dias e informando que a ausência de resposta será entendida como a manifestação de vontade do requerente em desocupar o imóvel) : a compra pelo requerente do imóvel pelo seu valor patrimonial, a desocupação do imóvel para ser posto à venda a terceiros, ou o arrendamento do imóvel pelo requerente pelo período de 5 anos mediante a renda mensal de € 1.000, acrescidos dos custos com os consumos, seguros e condomínio.
8.-O requerente não respondeu à carta mencionada no facto anterior.
9.-No dia 14/3/2016, a requerida enviou a seguinte mensagem para o telemóvel do requerente : “Decorrido o prazo para informares o que pretendias fazer, sem que o fizesses,  ficou claro que deixaste de habitar o apartamento. Consequentemente, e por mera cortesia, venho informar que os contadores serão desligados dentro de uma semana ".
10.-O requerente instaurou uma providência cautelar, que correu os seus termos no Tribunal de Santa Cruz - Instância Local - Secção de Competência Genérica, sob o nº 171116.4T8SCR, pedindo que fosse fixado o direito, ainda que provisório, de habitação da casa de morada de família identificada supra e uso do respectivo recheio, até ser proferida uma decisão no processo principal a instaurar, a qual foi decretada por sentença datada de 10/5/2016.
11.-O requerente está aposentado e aufere pensão de reforma, no valor líquido mensal de € 1.610,80.
12.-No ano de 2015, o requerente declarou na Administração Fiscal ter auferido o rendimento ilíquido de € 28.610,32.
13.-A aquisição da fracção autónoma destinada a escritório descrita na Conservatória do Registo Predial  do Funchal sob o nº 164/19910125-H, da freguesia da Sé - Funchal, está registada em nome do requerente, A..., pela ap. 40, de 2006/09/26.
14.-O requerente é titular, desde 28/6/2010, de um veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca BMW, matrícula 6...-......-...8, cilindrada 1995, a gasóleo.
15.-A requerida é professora na Escola Básica e Secundária de Santa Cruz e aufere o vencimento líquido mensal de € 1.377,78.
16.-No ano de 2015, a requerida declarou na Administração Fiscal ter auferido o rendimento ilíquido de € 26.835,10.
17.-A requerida é titular, desde 18/8/2009, de um veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Peugeot, matrícula ...8-......-6..., cilindrada 1397, a gasolina.
18.-O requerente e a requerida não têm filhos em comum.

3.Nos termos dos arts. 635º, nº4, e 639º, nº1, do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente. 
As questões a decidir centram-se, assim, na apreciação do declarado erro na forma do processo e do pedido de atribuíção da casa de morada de família.
O presente processo, visando a atribuíção da casa de morada de família, reveste a natureza de jurisdição voluntária, regendo-se pelo disposto no art. 990º do C.P.Civil.
Atenta essa especial natureza, não é, pois, lícito no mesmo formular pedido a que corresponda a tramitação comum - como o de condenação no pagamento de montante pecuniário, formulado pelo requerente, ora apelante.
Assim sendo, e face à ocorrência de circunstância impeditiva da cumulação (art. 37º, nº1, ex vi art. 555º, nº1, CPC), impor-se-ia, como decidido, a absolvição da instância, relativamente a tal pedido.
No tocante à atribuíção da casa de morada de família, dispõe o art. 1793º do C.Civil, aplicável nos termos do art. 4º da Lei 7/2001, de 11/5, que o tribunal pode dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges a casa de morada da família, quer essa seja comum quer própria de outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.
No caso, da matéria dada como provada (que, na ausência de impugnação, se tem de considerar assente), claramente resulta, nomeadamente em face do confronto entre a situação económica de cada uma das partes, não ter o apelante logrado, sequer minimamente, provar circunstancialismo susceptível de conduzir ao reconhecimento do direito invocado.
Concluindo-se, como decidido, pela improcedência do correspondente pedido, terão, igualmente nesta parte, de improceder as alegações respectivas.

4.Pelo acima exposto, se acorda em negar provimento ao recurso, confirmando-se, em consequência, a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.



Lisboa, 28.9.2017



Ferreira de Almeida - relator
Catarina Manso - 1ª adjunta
Alexandrina Branquinho - 2ª adjunta
Decisão Texto Integral: