Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10873/2003-3
Relator: ANTÓNIO SIMÕES
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
MEDIDAS DE COACÇÃO
PRISÃO PREVENTIVA
OBRIGAÇÃO DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/11/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Sumário: A medida de coacção adequada, e pela qual deverá ser substituída a de prisão preventiva é a de “...obrigação de permanência na habitação sujeita a fiscalização electrónica e à obrigação de não estabelecer contactos com menores de 14 anos, condicionada a execução desta medida à verificação que cabe efectuar na 1 º instância...”
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:

1. (A), identificado a fls. 71, foi apresentado no dia 4.11.2003 à Mmª. Juiz do Tribunal Judicial de Sintra, na sequência de ter sido detido em cumprimento de mandado emitido pela Polícia Judiciária.
Efectuado que foi o interrogatório a que se refere o artº.141º do CPP, a Mmª. Juiz determinou que o arguido fosse sujeito a prisão preventiva.
Fundamentou o decidido pela forma que segue:

«Pelas razões que decorrem da douta promoção que antecedem que na íntegra subscrevemos, consideramos encontrar-se o arguido indiciado pela prática de pelo menos três crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo artigo 172°, n°s 1 e 2 do Código Penal, dos quis apenas foi formalizada queixa quanto à ofendida (M).
Com efeito, estão já referenciadas pelos menos 3 menores que foram abusadas sexualmente pelo arguido, sendo que para tanto ter-se-á o arguido utilizado das relações familiares e correspondente proximidade com as vítimas, sendo os crimes em causa de natureza muito grave e provocando justificado alarme na população, desde logo a que rodeia as próprias vitimas.
A diversidade de menores abusadas e as declarações das próprias vítimas permitem concluir pela efectiva verificação de sério perigo de continuação da actividade criminosa por parte do arguido, sendo certo que o mesmo não assume os factos de forma relevante ao mesmo tempo que não lhe é conhecida qualquer disfunção que afaste ou diminua a sua culpa.
São pois absolutamente adequadas as considerações tecidas pelo Digno Magistrado do Ministério Público a propósito do caso dos autos, reflectindo também as mesmas o nosso entendimento sobre o caso em apreço.
Atentos os perigos de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas e de continuação da actividade criminosa que " in casu" se verificam, julgamos ser justificada e proporcional a aplicação ao arguido de medida detentiva, nos exactos termos promovidos, por ser a única proporcional e adequada ao caso concreto.»

Uma vez que a Mmª. Juiz se louva nas razões expendidas na promoção da Dª. Magistrada do Mº.Pº. formulada no acto, transcrevem-se ainda os termos dessa promoção:

«Os autos indiciam a prática por parte do arguido de, pelo menos 3 crimes de abuso sexual de menores sendo que relativamente à ofendida (M), actualmente com 8 anos já foi exercido por parte dos seus representantes legais direito de queixa.
Relativamente às duas ofendidas (J) e (L) atendendo que à data em os actos de cariz sexual foram cometidos consigo pelo arguido, as mesmas não detinham o direito de queixa, por serem menores, e já depois de terem atingido os 16 anos ainda não exerceram tal direito o certo é que o titular do processo poderá ainda prosseguir com o procedimento criminal caso venha a ser decidido tal posição, processual ao abrigo do disposto no artigo 178, n°4 do Código Penal isto sem prejuízo da pertinente análise da sucessão dos regimes penais dos crimes sexuais.
Existem já elementos objectivos que apontam com segurança que a menor (M) apresenta rompimento não recente do hímen, o que é compatível com a sua versão dos factos de que já há muito que do arguido vem a manter com ela relações sexuais, no caso cópula vaginal.
O arguido não assume tais actos refugiando-se numa versão pouco credível e mais desculpabilizadora, no seu entender, negando que alguma vez tivesse introduzido o seu pénis na vagina das vítimas.
Estando já referenciadas pelos menos 3 menores que foram abusadas sexualmente pelo arguido e que o mesmo terá utilizados as suas relações familiares e proximidade com as vitimas, é de recear a continuação da actividade criminosa por parte do arguido relativamente a jovens do sexo feminino menores e portanto mais indefesas que entrem na sua esfera de contactos. Perigo este que nos parece real.
Acresce que uma vez descoberta a prática dos factos tal provoca alarme social uma vez que os familiares, amigos e vizinhos das vitimas ficarão como é natural preocupados com a repetição de tais actos sobre outros menores o que como é sabido costuma espalhar-se com grande rapidez (sempre com prejuízo para as vitimas que assim se vêem sujeitas à chamada dupla vitimização).
A gravidade objectiva dos crimes cometidos é patente tratando-se de crimes puníveis com pena de prisão de 3 a 10 anos. E a conduta do arguido não é justificada por qualquer patologia conhecida antes sendo de crer que as circunstância que rodearam a prática dos crimes é especialmente censurável, revelando dolo intenso uma vez que muitas vezes vitimizou sexualmente as menores com familiares por perto.
Nesta conformidade, entende-se que a única medida de coacção, susceptível de acautelar os referidos perigos que no caso se fazem sentir, é a aplicação ao arguido da medida de prisão preventiva, o que se promove, ao abrigo do disposto nos artigos 191° a 1930, 1960, n°1, 202° n° 1 a), todos com referência ao 204° al. c) do Código de Processo Penal.»

2. Deste despacho interpôs o arguido recurso que motivou, extraindo da motivação as seguintes conclusões:

«I. O Arguido encontra-se privado da sua liberdade, desde 4/11/2003, por, nessa data e em sequência de 1° Interrogatório Judicial lhe ter sido aplicada a medida de coacção de prisão preventiva.
II. Fundamentos de facto e de direito invocados:
a) Indícios da prática pelo Arguido de 3 crimes de abuso sexual, previsto e punido pelo Artigo 172° n.° 1 e 2 do Código Penal.
b) b) A não assunção da culpa por parte do Arguido;
c) A utilização de relações de familiaridade e proximidade com as alegadas vítimas;
d) As declarações das alegadas vítimas;
e) Apontando tais fundamentos de facto para a existência de perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e perigo de continuação da actividade criminosa, nos termos do Artigo 204° alínea c) do CPP;
f) A natureza grave do crime indiciado, doloso e punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos, nos termos do artº.202º, 1 a) do CPP.
III. Fundamentos do recurso interposto:
A Meritíssima Juiz de Instrução na, aliás mui douta decisão proferida,
a) Não cumpriu o disposto no Artigo 97° n.° 4;
b) Não aplicou o disposto no Artigo 193°;
c) Aplicou incorrectamente o Artigo 202° n.° 1 alínea a), todos do Código de Processo Penal,
d) Violando o disposto no Artigo 28° n.° 2 e 32°n.° 2, ambos da Constituição da República Portuguesa.
IV. Não cumprimento do disposto no Artigo 97° n.° 4 do Código de Processo Penal:
Enquanto que a verificação da existência dos perigos enunciados no Artigo 204° constitui fundamento de aplicação de qualquer medida de coacção, a existência de fortes indícios da prática de um crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos constitui uma condição, sine qua non, de aplicação, não apenas da prisão preventiva, mas também das medidas de coacção previstas nos Artigos 200° e 201° do CPP. Não representa um fundamento em si mesmo.
Sendo assim manifestamente insuficiente a fundamentação de facto que decidiu pela aplicação da prisão preventiva ao caso concreto.
No fundo, o Arguido ficou sem saber porquê a prisão preventiva (e não uma das outras duas referidas).
V. Não observância das regras constantes do Artigo 193° do Código
de Processo Penal:
Não foram respeitados os princípios da adequação e proporcionalidade da aplicação das (medidas?) de coacção nem o princípio da subsidiariedade da prisão preventiva.
O Tribunal da Relação de Évora expõe de forma clara e sucinta tal matéria:
"Em obediência aos princípios da adequação e da proporcionalidade (Artigo 193° do CPP), (...) só é possível aplicar-se a medida de coacção de prisão preventiva depois de percorrer o respectivo catálogo, por ordem crescente de gravidade (Artigo 197° a 202° do CPP); e de julgar, em face das circunstâncias do caso, inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coacção (princípio da subsidiariedade da prisão preventiva." (A c. da Relação de Évora, de 90-03-13, BMJ, 395-693).
VI. Aplicação incorrecta do Artigo 202° do Código de Processo Penal:
Face aos fundamentos invocados existiam outras medidas de coacção adequadas e proporcionais às exigências cautelares do processo, excluindo a prisão preventiva, como adiante se demonstrará.
Colocando a (mera) hipótese (porque os desconhecemos) que os indícios nos autos são fortes indícios, da prática do crime, ainda assim se dirá que a aplicação da prisão preventiva tinha alternativa, em função dos fundamentos, de facto e de direito, invocados no douto despacho de que ora se recorre.
VII. "0 Arguido vem indiciado da prática de 3 crimes de abuso sexual", quando á data da aplicação da medida de coacção apenas existem fortes indícios da prática de um crime.
Independentemente dos indícios constantes dos autos (os quais obviamente desconhecemos), 'a verdade é que, à data de aplicação da medida de coacção (e quanto se presume, até à data de hoje), apenas foi apresentada uma queixa contra o Arguido.
A medida de coacção deve ser aplicada face a fundamentos concretos e actuais à data da sua aplicação, e não com base em expectativas que venham a ser apresentadas mais duas queixas, ou que o Ministério Público venha a utilizar a faculdade que lhe é conferida pelo Artigo 178° n.° 2 do Código Penal.
VIII. "O Arguido não assumiu a sua culpa". Tal não deve ser fundamento de aplicação de prisão preventiva (ou de qualquer outra medida de coacção), até porque o Arguido prestou declarações sobre os factos com os quais foi confrontado, tendo assumido alguns deles com relevância penal, e negado outros com igual relevância.
Não é possível retirar daí que o Arguido assumiu uma posição censurável, sem comprometer o "Direito ao Silêncio" que lhe é consagrado pelo Artigo 61 ° n.° 1 alínea c), enquanto Arguido.
Pesa ainda mais tal argumento fundamentar a aplicação de uma medida de coacção numa fase processual em que apenas há indícios
A versão dos factos do Arguido não deve ser menosprezada, muito menos em fase de plena investigação, só pelo facto de... ser Arguido. Valha-nos, pelo menos o Princípio da presunção de inocência!
IX. O invocado perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, contido no Artigo 204° alínea c); a interpretação feita é inconstitucional
A existência de alarme social devido à natureza do crime indiciado e de o Arguido ter utilizado relações de proximidade com as alegadas vítimas, fundamentou o referido perigo.
A prisão preventiva não pode ser imposta ao Arguido como forma provisória de acalmar os ânimos ou conter o alarme social.
Esta interpretação é inconstitucional por violação do Princípio da Inocência consagrado no Artigo 32° n.° 2 da CRP.
Acalmar os ânimos, num âmbito mais ou menos restrito, à custa da liberdade de alguém, é efectuar a sua pré-condenação sem que este tenha sido declarado culpado. Neste sentido Acórdão da Relação de Lisboa, que refere ainda que o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, não pode ser entendido com relação a um comportamento passado do Arguido e à reacção que tal comportamento possa ter na comunidade, mas sim relativamente a um possível comportamento futuro.
Termos em que, tal argumento, não justifica a aplicação, ao Arguido da prisão preventiva.
X. Perigo de continuação da actividade criminosa, invocado com base nas declarações das alegadas vítimas.
As medidas previstas no Artigo 200°, alíneas a) e d) do Código de Processo Penal, seriam certamente adequadas e proporcionais. Face aos fundamentos invocados, com o devido respeito, que é muito, parece que a proibição de contactos com as alegadas vítimas, seus familiares ou afins (mesmo, em ultima ratio, de contacto com crianças), aliada à proibição de permanência no local onde o crime foi, alegadamente cometido, (Foros de Amora), onde residam as alegadas vítimas e seus familiares, exclui a "oportunidade" de o Arguido praticar crimes desta natureza, ao mesmo tempo que diminui a (possível) sensação de insegurança da comunidade mais próxima.
XI. Perante a hipotética insuficiência das medidas atrás referidas (por dar alguma liberdade de movimentos ao Arguido, embora com muita dificuldade), sempre se dirá que a medida de coacção mais grave a aplicar neste caso concreto, seria a prisão domiciliária, mesmo que com vigilância electrónica, prevista no Artigo 201º do Código de Processo Penal.
XII. De todo o exposto, ao aplicar a prisão preventiva em detrimento de uma das outras duas atrás mencionadas, também adequadas, proporcionais e suficientes para satisfazer as necessidades do Processo Penal, foi violado o Princípio de subsidiariedade e de excepcionalidade da aplicação desta medida, consagrado no Artigo 28° nº. 2 da CRP.
XIII. O Arguido foi privado do exercício de direitos fundamentais, compatíveis com as exigências cautelares do processo, como o Direito ao Trabalho e de assistência à sua esposa com quem vive.
XIV. Deveria ter sido ponderada a situação social do Arguido, que trabalha há 30 anos na empresa NISSAN, auferindo cerca de € 1.300 mensais. Vive com a sua esposa, tem um filho, adulto, que lhe têm dado todo o apoio desde a sua prisão, apesar da natureza do crime em causa. Sendo certo que na sua vida quotidiana sempre tem sido um indivíduo com um comportamento, dito, normal, de trabalhador, marido e pai.»

Pede seja revogada a medida de coacção vigente, sendo também ponderada a sua substituição por medida menos gravosa.

3. O recurso foi admitido através do despacho certificado a fls.34 e a Dº. Magistrada do Mº.Pº. junto do Tribunal de 1ª instância usou do direito de resposta, concluindo no sentido do improvimento, após formular as conclusões que seguem:

«Existem fortes indícios da prática pelo arguido, de pelo menos 3 crimes de abuso sexual, previsto e punido pelo Artigo e 172 n°2 do Código Penal, bem sustentado em provas materiais, documentais e testemunhais, revelando-se insuficiente para prevenir os perigos previstos no art.° 204 do C.P.P., e já referidos, qualquer outra medida de coacção que não seja a prisão preventiva.
Na verdade, existe perigo de perturbação `da tranquilidade pública e muito claramente perigo de continuação da actividade criminosa.
O despacho da Mma. Juiz de Instrução, utilizando uma técnica remissiva que a lei e a Constituição lhe consentem, respeita princípios de adequação e proporcionalidade, pelo que foi legal e conforme á lei e á Constituição, que lhe comete o dever de defender a integridade moral e física das pessoas, bens jurídicos que arguido violou de forma reiterada -art.25° e art.º 27 n°1 e n° 3 a) e b) da C.R.P.»

3.1. Também nesta instância foi expendida pela Dª. Magistrada do Mº.Pº. posição idêntica à manifestada junto do Tribunal de 1ª instância.
Foi cumprido o disposto no artº.417º, 2 do CPP, não tendo sido apresentada contra-alegação.

4. Factos mais relevantes:

a) no dia 24.9.2003, (P), na qualidade de pai de (M), referida como criança com 8 anos de idade, apresentou na PJ “denúncia oral” contra o arguido.
Aí refere, dentre o mais, que sua filha, dois dias antes, tinha informado a mãe de que o arguido, em diversas circunstâncias e lugares e de há cerca de três anos até aquela data, vinha a desenvolver actividade de natureza sexual com a (M), introduzindo o pénis entre os membros inferiores e na vagina da criança, acrescentando que soubera através da médica que a observou no Hospital de D. Estefânia que o hímen se mostrava perfurado;

b) consta dos autos por cópia, documentação de origem hospitalar onde é referido exame ginecológico confirmativo da não integridade do hímen (fls.54), bem como a inexistência de lacerações ou equimoses;

c) prestaram declarações os progenitores da (M) e também esta, narrando com larga soma de pormenores a continuada actividade sexual do arguido numa casa de família na Amora – o arguido será casado com uma prima da mãe da criança – numa casa de férias em Alvoco, no automóvel e no chão de um pinhal, aludindo ainda a uma tentativa de penetração do pénis na sua vagina, na presença da sua irmã que tem cerca de dois anos de idade e seguia no banco de trás do automóvel onde isto ocorreu. Situa o início destas ocorrências antes de sua mãe ficar grávida da irmã, que vai fazer três anos, indicando que o arguido a levou a colocar a sua mão no pénis dele e que algumas vezes lhe introduziu o pénis na vagina e no ânus;

d) Admitindo-se que, em consequência de referências constantes do depoimento do pai da (M), a investigação dirigiu-se no sentido de identificar e ouvir outras intervenientes na actividade sexual do arguido.

E foram então ouvidas:

- a menor (presentemente, com 17 anos de idade) (L), residente no prédio onde vivem os avós da (M), refere ter sido convidada pela família desta para ir passar férias e fins de semana na Amora e em Seia e que o arguido a apalpou na zona genital em duas ocasiões, ao que parece quando teria cerca de 13 anos de idade (depoimento de fls. 67/68)

- a menor (presentemente, com 17 anos de idade) (J), que se identificou como sobrinha por afinidade do arguido, refere que, entre os 10 e os 14 anos de idade, na Amora e em Seia, o arguido introduziu o pénis na sua vagina por diversas vezes (estima que tal aconteceu umas 10 vezes), tendo assim procedido em casa, no interior de um automóvel e junto a um poço existente na casa sita na Amora;

e) aquando do interrogatório a que foi submetido, o arguido negou contactos sexuais com a menor (L).
Admitiu ter colocado o pénis “entre as pernas” da (M) e da (J), recusando a ocorrência de qualquer penetração.
Os actos que admitiu e qualificou de “brincadeiras” situou-os há cerca de 4/5 meses quanto à (M) e, há muito tempo, no início da puberdade da (J), quanto a esta.

5. Os factos que acabam de ser sumariados consubstanciam a forte indiciação de que o arguido cometeu um crime de abuso sexual de criança que tem como sujeito ofendido a ainda impúbere (M), p. e p. pelo artº.172º, 2 do Cód.Penal, a que corresponde a medida penal abstracta de 3 a 10 anos de prisão.
Não surge obstáculo algum ao exercício da acção penal quanto a tal crime, uma vez que foi objecto de queixa por quem de direito.

5.1. Há ainda fortes indícios de que o arguido cometeu factos integradores do mesmo ilícito penal que tem como sujeito ofendido a menor (J) e ainda indícios do mesmo jaez da prática de factos integradores do crime p. e p. pelo artº. 172º, 1 do Cód.Penal, a que corresponde a medida penal abstracta de prisão de 1 a 8 anos, no tocante à menor (L).
Quanto a estes factos, em relação aos quais não foi exercido o direito de queixa e atenta a idade actual das indiciadas vítimas, tudo indica que não poderão ser objecto de perseguição penal.

6. Passando à apreciação dos termos do recurso apresentado, cabe percorrer os itens enunciados nas conclusões respectivas, o primeiro dos quais é constituído pela imputada falta de fundamentação da decisão recorrida determinante da prisão preventiva do arguido.
Assim que o recorrente, doutamente critica o exposto na decisão que quer ver revogada enquanto qualifica como condição da aplicação da medida de coacção a existência de fortes indícios da prática de crime doloso punível com pena de prisão superior a 3 anos e não como fundamento em si.
Será como diz, mas nada no teor da decisão recorrida permite concluir que do mesmo modo não foi entendido pela Mmª. Juiz de Sintra.

6.1. Pretende o recorrente que a referência fundamentante à gravidade do crime causadora de justificado alarme na população é destituída de relevo fáctico e violadora do princípio constitucional da inocência. Por essa via, teria sido violado o artº.204º, c) do CPP, ali interpretado de forma não consentida pela CRP (artº.32º, 2).
Na sua perspectiva, assim se acalmam os ânimos, num âmbito mais ou menos restrito, à custa da liberdade de alguém, efectuando uma pré-condenação. E acrescenta, citando douto aresto desta relação, que tal requisito legal se reporta a possível comportamento futuro do arguido e não aos factos já cometidos.
Poderá, em tese, o alegado neste ponto ter algum fundamento válido, admitindo-se que seja excessiva, no tocante a grandes aglomerados populacionais, como é o caso, a existência de um real perigo de perturbação da tranquilidade pública relativamente a uma situação como a vertente.
Algumas dúvidas nos deixa de facto o fundamento aqui em causa como suficientemente pesado para sustentar a decretada prisão preventiva.

6.2. Invocando ainda o princípio da inocência, o recorrente refuta a validade e adequação da referência feita no despacho recorrido ao facto de o arguido não ter assumido a sua culpa, apontando-a como violadora do direito ao silêncio que lhe é conferido pelo artº.61º, 1, c) do CPP.
Aqui se afirma que, não sendo a não assunção dos factos cometidos um fundamento válido para determinar a prisão preventiva ou qualquer medida de coacção, pode ser, num dado contexto processual, um elemento importante para a avaliação da personalidade do arguido, também nesta matéria expressamente como tal referida na lei (artº.204º, c) do CPP).
Não será de silêncio o caso, porquanto o arguido respondeu ao interrogatório a que foi submetido; daí, que não se entenda a razão da invocação desse direito.
E acrescenta-se que, embora de forma não inteiramente explícita e clara, o despacho recorrido que foi proferido na sequência de o arguido ter declarado que participara em “brincadeiras” com duas das crianças que vitimara, se reporta seguramente a tal arrepiante qualificativo.
Mesmo a aceitar-se como verdadeiro o que declarou e atrás foi resumido, a posição assumida no interrogatório é de molde a justificar uma menção justificante da apreciação feita e que vai direita à personalidade do recorrente.
Não se menospreza aqui a versão dos factos do arguido, tal como se defende na motivação. Dá-se-lhe o devido relevo que, no caso, admita-se sem rebuços, bastante desfavorece quem diz que brincou com menores de tenra idade, colocando-lhe continuadamente o pénis entre as pernas.

6.3. Crê-se que a referência à forte indiciação da prática de três crimes p. e p. pelo artº.172º, 1 e 2 do Cód.Penal constante do despacho recorrido padece de alguma imprecisão.
Com efeito, são diversas as tipologias criminais previstas nesses dois normativos e diversas as medidas penais que cominam.
Mandaria o rigor que fosse feita menção à existência de fortes indícios da prática de factos integrantes de um crime p. e p. pelo artº.172º, 1 do Cód.Penal de que foi vítima a menor (L) e de crimes p. e p. pelo art.º. 172º, 2 do mesmo diploma legal, de que foram vítimas as menores (M) e (J)
Deverá neste ponto anotar-se, que a possibilidade de vir a ser imputado apenas um crime continuado ao arguido ou de este vir apenas a ser condenado nesses termos, não é neste momento processual mais do que uma possibilidade, porquanto caberá ainda proceder ao enquadramento dos factos no preceituado no artº.30º nº.2 do Cód. Penal.
Tendo em conta a existência dos obstáculos já aludidos à perseguição penal, decorrentes do disposto no artº.178º do Cód. Penal quanto aos factos que se indiciam como vitimadores das referidas (L) e (J), nem por isso é menor a adequação da sua invocação em sede de ponderação da aplicação da medida de coacção.
Com efeito, sendo certo que não é um juízo condenatório que está em causa, a tomada em conta das situações de abuso anteriores tem um indesmentível interesse para a avaliação da ocorrência do sério risco de continuação da actividade criminosa, a aferir em razão da natureza e circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido.

6.4. Pretende o recorrente que a Mmª. Juiz não fez uso dos princípios da adequação e proporcionalidade, nem percorreu o caminho excludente imposto pelo artº.202º, 1 (corpo) do CPP.
Impõe o artº.193º nº.1 do CPP genericamente, que as medidas de coacção devem ser adequadas às exigências cautelares e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
Especificamente aludindo à prisão preventiva, o nº.2 do mesmo preceito legal dispõe que esta medida de coacção apenas pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras, determinação que é repetida no corpo do nº.1 do artº.202º do CPP.
E, no ordenamento constitucional, ainda a prisão preventiva, é qualificada expressamente como medida de natureza excepcional e acentuada a sua subsidiariedade face às menos gravosas, dando expressão ao princípio segundo o qual a restrição da liberdade deve ser limitada ao mínimo necessário (cf. artº. 28º, 2 da CRP).
São, pois, ajustadas as considerações feitas na douta motivação aos princípios de adequação, proporcionalidade e subsidiariedade.
Nem por isso se poderão considerar como inteiramente ajustadas no caso concreto que, por um lado, é constituído por um historial de abuso sexual de crianças significativo e, por outro lado, merece do arguido o qualificativo de “brincadeiras”. Este qualificativo é suficientemente demonstrativo de que desvaloriza essa vertente do seu comportamento e assim não permite senão um bem fundado prognóstico de que persistirá em tais actividades.
E a prisão preventiva é meio seguro para obviar à não repetição de tão graves atentados, gravidade que pode facilmente e, se necessário, ser aferida pela consideração da pena aplicável.
Sendo embora assim, aceita-se que medida menos gravosa pode ainda acautelar de forma eficaz o risco de persistência criminosa, qual seja a obrigação de permanência na habitação controlada através de meio electrónico já disponível e conjugada com a obrigação de não estabelecer contacto com menores até aos 14 anos de idade (art.s 200º, 1, d) e 4 e 201º do CPP).
A escolha de medida menos gravosa é privilegiada pela lei face à prisão preventiva (artº.202º, 1 – corpo do CPP), sendo que esta é ainda considerada estritamente necessária, até quando, ou se não estiverem assegurados os requisitos da aplicação de vigilância electrónica contidos nos artºs 2º e 3º da Lei nº.122/99 de 20 de Agosto.
Procurou-se nesta instância agilizar os procedimentos necessários à verificação da existência desses requisitos, o que não se mostrou viável em tempo considerado razoável. Por isso se impõe que as diligências iniciadas sejam concluídas na 1ª instância, aí cabendo avaliar da existência dos requisitos de consentimento e viabilidade exigidos pelo normativo acima referido.
E consequência com o que se vem afirmando e ponderado o disposto no artº.3º, 4 da Lei nº.122/99, o recorrente manter-se-à sob prisão preventiva.
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Nestes termos se dá provimento ao recurso, fixando como medida de coacção adequada a obrigação de permanência na habitação sujeita a fiscalização electrónica e à obrigação de não estabelecer contactos com menores até aos 14 anos de idade, condicionada a execução desta medida à verificação que cabe efectuar na 1ª instância, nos termos atrás referidos.
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Sem tributação.
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Lisboa, 11/02/04

António Simões
Miranda Jones
Varges Gomes