Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
208/13.9TELSB.G.L1-5
Relator: RICARDO CARDOSO
Descritores: BRANQUEAMENTO DE CAPITAIS
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
INQUÉRITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO O RECURSO DO MºPº E DECLARADO A NULIDADE DE INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA DO TRIBUNAL
Sumário: Portugal pune, no seu ordenamento interno ( artº 368º - A do Código Penal), o crime de branqueamento de capitais como um crime de acção autónomo “mesmo que as actividades que estão na origem dos bens a branquear se localizem no território de outro Estado-membro ou de um país terceiro,” porque o princípio da autonomia do crime de branqueamento de capitais é imposto pelo artigo 9º nº 5 da Convenção do Conselho da Europa relativo ao branqueamento de capitais, concluída em Varsóvia, em 16 de Maio de 2005, e vigente na nossa ordem jurídica interna, desde 1 de Agosto de 2010, no qual se afirma que deverá ser garantida a possibilidade de condenação por branqueamento, “independentemente de condenação anterior ou simultânea pela prática de infracção subjacente.”
2ª O que decorre também do disposto no artº 1º da Directiva nº 91/308/CEE, de 10 de Junho de 1991, baseado no artº 3º nº 3 da Convenção de Viena das Nações Unidas, e no artº 6º nº 2 alínea c) da Convenção de Estrasburgo do Conselho da Europa, resultando expressamente ressalvado do mesmo artigo artº 1º da Directiva nº 91/308/CEE, de 10 de Junho de 1991, que:

“Existe branqueamento de capitais mesmo que as actividades que estão na origem dos bens a branquear se localizem no território de outro Estado-membro ou de um país terceiro.”
3ª O artº 368º - A do Código Penal concretiza a consagração no ordenamento jurídico interno do princípio da privação dos criminosos do produto das suas actividades, - afirmado como o primeiro de três objectivos principais da Convenção da Nações Unidas de 1988, - “suprimindo, deste modo, o seu móbil ou incentivo principal, evitando, do mesmo passo, que a utilização desses fortunas ilicitamente acumuladas permita as organizações transnacionais invadir, contaminar e corromper as estruturas do Estado, as actividades e financeiras legítimas e a sociedade a todos os seus níveis.”
O artº 368º - A do Código Penal resulta do compromisso internacional de admissão no ordenamento jurídico interno, do reconhecimento do próprio Estado Português do seu próprio interesse nacional, sujeito aos princípios da nacionalidade e de defesa dos interesses nacionais, em evitar a invasão, contaminação e corrupção das estruturas do Estado, as actividades e financeiras legítimas e a sociedade a todos os seus níveis, punitivas do crime de branqueamento de capitais, mesmo que as actividades que estão na origem dos bens a branquear se localizem no território de outro Estado-membro da Comunidade Europeia ou de um país terceiro, do que resulta que o crime de branqueamento de capitais é punido em Portugal quando os seus actos sejam perpetrados no território nacional, por força do artº 4º alínea) do Código Penal.
5ª Não se trata, por isso, de uma questão de competência internacional dos tribunais portugueses em matéria penal, mas tão só da competência dos tribunais portugueses para perseguir um crime perpetrado no território nacional, nos termos dos artigos 4º alínea a) e 368º - A, ambos do Código Penal.
A verificação do crime de branqueamento de capitais pressupõe, efectivamente, uma ilicitude prévia, mas não depende de uma condenação pelo crime anterior, nem sequer da sua perseguição criminal, no país de origem das produzidas vantagens, bens ou direitos, porque assim resulta o princípio da autonomia do crime de branqueamento de capitais previsto no artº 368º A do Código Penal.
7ª Por isso, o crime de branqueamento de capitais é um crime de acção e autónomo em relação ao crime subjacente, pelo que não se verifica a excepção da incompetência internacional dos tribunais portugueses para perseguir o crime de branqueamento de capitais, perpetrado em Portugal, com fundamento em que os crimes precedentes ocorreram fora do território nacional, no caso em Angola, como ao entender aplicável o artº 5º do Código Penal.
A decisão recorrida encontra-se fulminada de nulidade insanável, por incompetência do tribunal nos termos do artº 119ª alínea e) do CPP, porque o juiz de instrução exorbitou flagrantemente o limite das suas competências em fase de inquérito expressamente previstas nos artºs 268º e 269º do CPP, o que fez ao pronunciar-se sobre o mérito da causa, formulando um juízo de apreciação de uma alegada insuficiência indiciária no caso concreto e ao declarar a incompetência do MºPº para a direcção do inquérito.
10ª A conclusão acabada de enunciar, segundo a qual o juiz de instrução em fase de inquérito declarou o MºPº “incompetente para julgar os crimes cometidos em Angola” é o corolário da demonstração da incompreensão pelo tribunal “a quo”, sobre o objecto dos autos que tinha perante si, os quais não versam sobre os crimes precedentes cometidos em Angola, mas, outrossim, sobre o crime de branqueamento de capitais perpetrado em Portugal.
11ª No processo penal, não são aplicáveis as normas relativas à competência internacional dos tribunais portugueses do Código de Processo Civil, por não haver lugar à aplicação do artº 4º do CPP, dada a inexistência de caso omisso que permita o recurso à sua aplicação, por contrariado pela previsão expressa dos artºs 32º e 33º, ambos do Código de Processo Penal, - o último dos quais prevê expressamente no seu nº 4 que, “Se para conhecer de um crime não forem competentes os tribunais portugueses, o processo é arquivado” - pelo que não pode ter lugar a “absolvição da instância”, a qual constituiria um verdadeiro encerramento do inquérito e despacho de arquivamento, inadmissivelmente proferidos por juiz de instrução em fase de inquérito.
12ª A apreciação jurisdicional da decisão de encerramento da fase de inquérito apenas pode ser tomada pelo Ministério Público, enquanto o despacho de arquivamento determinado pelo juiz de instrução, apenas é processualmente possível na fase de instrução, se o juiz de instrução for para o efeito convocado por quem tenha para tal legitimidade, nos termos dos artºs 286º e seguintes do Código de Processo Penal.
13ª Assim a declarada verificação da excepção de incompetência absoluta dos tribunais portugueses, nos termos das normas do processo civil invocadas na decisão recorrida, e a declaração de absolvição da instância da denunciada, padece de violação, por erro de interpretação, dos artº 4º, 32º e 33º nº 4 do Código de Processo Penal, enfermando ainda da nulidade insanável por incompetência do juiz de instrução em fase de inquérito para conhecer do mérito da causa, assim como para apreciar e declarar a alegada insuficiência indiciária do preenchimento do tipo do crime de branqueamento, como finalmente para se pronunciar sobre a incompetência do MºPº para perseguir tal crime, nos termos do artº 119º alínea d) do CPP.
14ª - Na fase de inquérito o juiz de instrução não tem poderes para impedir que o Ministério Público, o assistente ou outro sujeito processual, o convoquem a tomar posição sobre determinadas questões nos termos legalmente prescritos, não podendo deixar de apreciar todas as questões que, durante a fase de inquérito lhe venham a ser apresentadas, ainda que seja para se declarar incompetente para o efeito.
(Sumariado pelo relator).

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes desembargadores da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.

1. No Processo de Inquérito nº 208/13.9TELSB da Secção Única do Tribunal Central de Instrução Criminal, em que é Assistente R.M., e investigados W.S. e Outros, foi proferido despacho datado de 13 de Novembro de 2016, que julgou verificada a excepção por incompetência absoluta do tribunal por violação das regras de competência internacional e em consequência absolveu a requerente da instância

2. Não se conformando com esta decisão o MºPº dela interpôs recurso apresentando motivação da qual extrai as seguintes conclusões:

“1. O presente recurso é interposto do despacho proferido pelo M.mo juiz de instrução junto do Tribunal Central de Instrução Criminal, de fls. 3284 a 3306, através do qual julgou verificada a exceção de incompetência absoluta por violação das regras de competência internacional e, em consequência, absolveu W. da instância.
A forma de aferição da competência dos tribunais portugueses quanto ao crime de branqueamento.
2. A definição da competência dos tribunais portugueses é legalmente estabelecida através da tipificação de determinados elementos de conexão que se têm que verificar no caso concreto.
3. No ordenamento jurídico-penal, as "regras de competência" devem ser buscadas na conjugação das normas materiais e adjetivas materiais que, contidas respetivamente no Código Penal e no Código de Processo Penal, determinam os casos em que aos factos é aplicável a lei penal e processual penal portuguesas (art. 4o, do Código Penal, e art. 6o, do Código de Processo Penal), sendo o relevante elemento de conexão, em primeira mão, o território onde ocorre o facto tipificado como crime.
4. O crime de branqueamento trata-se de um crime comum, de um crime de execução vinculada e de um crime de mera atividade, uma vez que se esgota (consuma-se) com o empreendimento da própria ação descrita no tipo legal, independentemente da ocorrência de qualquer resultado.
5. A consumação do crime de branqueamento ocorre, assim, no momento em que se verificam os atos de transferências de vantagens, que consubstanciam também o próprio ato de dissimulação da sua natureza e titularidade.
6. O tipo legal do crime de branqueamento compreende as seguintes ações: (1) converter, (2) transferir, (3) auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, direta ou indiretamente, (4) ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos (cf. art. 368°-A, n°s 2 e 3, do Código Penal).
7. Uma das características genericamente apontadas pela doutrina e jurisprudência ao crime de branqueamento é a circunstância de se tratar de um crime de conexão, um pós-delito, já que exige, na sua construção típica, a ocorrência de um facto ilícito típico precedente que tenha gerado as vantagens que serão objeto da atuação delituosa que o integra (a designada predicated offense) - cf. art. 368°-A, n° 1, do Código Penal.
8. Perante este quadro típico, e recuperando o que supra se explanou quanto ao modo como se mostra estabelecido jurídico-penalmente o modo de aferição da competência dos tribunais portugueses, reconduzível à afirmação de que, em princípio, é a geografia dos factos praticados (aqueles que hajam sido praticados, para além do mais, em território português) o elemento de conexão determinante para este efeito, no que concerne ao crime de branqueamento, tendo presente a sua estrutura típica importa averiguar onde ocorreram aquelas condutas objetivas descritas no art. 368°-A, n.°s 2 e 3, do Código Penal: os atos de conversão, transferência, auxílio ou facilitação a alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, e os atos de ocultação ou de dissimulação da verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos.
9. A concretização de alguma destas condutas em território português, no que agora interessa, determina assim a competência dos tribunais portugueses para delas conhecer, já que, nos termos dos art.s 4o, do Código Penal, e 6o, do Código de Processo Penal, a lei penal e a lei processual penal portuguesas são-lhes aplicáveis.
A ilegalidade, a nulidade e inconstitucionalidade da decisão recorrida.
10. Apesar de no despacho recorrido se afirmar que "a punição pelos crimes de branqueamento [abrange] expressamente os casos em que os factos que integram a infração principal tenham sido praticados fora do território nacional" e que, "quanto ao crime de branqueamento, as regras de aplicação da lei penal portuguesa permanecem inalteradas, sendo necessário que os atos de conversão, transferência ou ocultação ocorram, ao menos parcialmente, em território português", o M.mo juiz a quo enceta outro tipo de considerações que, face ao quadro legal supra descrito, surgem despropositadas e contrárias à lei, porque extravagantes ao nível de análise necessário à definição da competência dos tribunais portugueses.
11. Ao invés de fazer assentar a decisão proferida na circunstância (verificável ou não) de alguma das condutas típicas do crime de branqueamento (os atos de conversão, transferência, auxílio ou facilitação a alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, e os atos de ocultação ou de dissimulação da verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos) ter ocorrido em território português para daí extrair uma conclusão quanto à competência dos tribunais portugueses, na decisão ora colocada em crise recorre-se a um conjunto de argumentos que, pela sua substância, envolvem uma leitura deturpada das funções do juiz de instrução e do Ministério Público na fase do inquérito e, deste modo, determinam uma ilegal, nula e inconstitucional conclusão.
12. Com efeito, o exercício efetuado na decisão recorrida de análise das circunstâncias fácticas que possam ter rodeado o facto ilícito típico reconduz-se, inexoravelmente, a um ato que visa averiguar se o mesmo ocorreu e se o mesmo se revela tipicamente relevante para efeitos do crime de branqueamento. Trata-se, no fundo, de um raciocínio que, face à tipologia criminal do branqueamento, se integra numa atividade dirigida à investigação da existência de um crime (o crime de branqueamento), à determinação dos seus agentes e da sua responsabilidade.
13. Essa atividade reconduz-se, materialmente, a um ato de inquérito (cf. art. 262°, n.° 1, do Código de Processo Penal) que se revela absolutamente desenquadrado da atividade legalmente atribuída ao juiz de instrução criminal nesta fase processual (cf. art. 17o, do mesmo diploma legal).
14. A atividade dirigida à investigação da existência de um crime mostra-se legal e constitucionalmente reservada ao Ministério Público [cf. art.s 263°, n° 1, 262°, n° 1, 53°, n° 2, do Código de Processo Penal, Io, 2o, 3o, n° 1, al. c), e 75°, n° 1, do Estatuto do Ministério Público, e art. 219°, n°s 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa].
15. A decisão proferida pelo tribunal a quo é, nestes termos ilegal, por não se conformar com os limites legalmente estabelecidos à atividade do juiz de instrução em fase de inquérito.
16. Além disso, a decisão sob recurso mostra-se impeditiva de o Ministério Público exercer o seu poder decisório quanto ao encerramento do inquérito, tendo esta atividade sido, afinal, desenvolvida à sua revelia pelo M.mo juiz a quo.
17. Ora, tratando-se de caso de falta de promoção do processo pelo Ministério Público, a decisão mostra-se, além disso, ferida de nulidade insanável, nos termos do que dispõe o art. 119°, al. b), do Código de Processo Penal.
18. Em obediência ao preceituado no artigo 32°, n.° 5, da Constituição da República Portuguesa, a estrutura acusatória do processo penal português implica a cisão entre as funções daquele que investiga daquele que julga.
19. Num processo de estrutura acusatória, o poder judicial está, sob pena de perder a sua imparcialidade e de agir ilegitimamente ex officio, vinculado pelo pedido do Ministério Público ou do assistente. "Arvorar-se o juiz em paladino da pretensão punitiva, sem o Ministério Público, seria voltar a um sistema inquisitório puro (...), [sendo que] qualquer intervenção do juiz à revelia do Ministério Público, para se pronunciar sobre a justiça do caso e antes mesmo do exercício da acção penal, seria inadmissível" (José Souto de MOURA, "Inquérito e Instrução", in CEJ (org.), Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, Coimbra, Almedina, 1995, p. 115).
20. Por seu turno, o art. 219°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa, definindo as funções e estatuto do Ministério Público, densifica, do ponto de vista orgânico, uma das dimensões da estrutura acusatória do processo penal, ao consagrar esta magistratura como aquela a quem compete, entre o demais, o exercício da ação penal orientada pelo princípio da legalidade. Concomitantemente, tal norma constitucional proclama a autonomia do Ministério Público, seja em relação aos demais órgãos de poder do Estado, seja em relação à magistratura judicial.
21. Tais referentes constitucionais foram densificados legalmente no Estatuto do Ministério Público [cf. art.s Io, 2o, 3o, n.° 1, al. c), e 75°, n.° 1], assim como no Código de Processo Penal, onde se estabeleceu que compete ao Ministério Público dirigir o inquérito [cf. art.s 53°, n.° 2, al. b), e 263°, n.° 1], enquanto atividade dirigida à investigação da existência de um crime, à determinação dos seus agentes e da responsabilidade destes (cf. art. 262°, n.° 1, do Código de Processo Penal).
22. O Ministério Público surge assim, na estrutura processual penal portuguesa, como o dominus da fase de inquérito, cabendo-lhe a sua direção e a tomada de decisões com vista à prossecução da sua finalidade: a decisão sobre a acusação ou o seu arquivamento.
23. Neste contexto, a intervenção jurisdicional na fase de inquérito é contida, prendendo-se com aqueles atos que, nos termos do art. 269°, do Código de Processo Penal, estejam na disponibilidade decisória do juiz de instrução, ou com aqueloutros que devam ser pessoalmente praticados por aquele (cf. art. 268°, do mesmo diploma legal).
24. Qualquer interpretação das normas processuais penais, designadamente dos art.s 17°, 53°, n.° 2, al. b), 262°, n.° 1, 263°, n.° 1, 268° ou 269°, do Código de Processo Penal, que admita uma intervenção judicial conformadora do destino do processo tem subjacente uma matriz essencialmente inquisitória que colide com a malha constitucional positivada.
25. Os fundamentos em que assenta a decisão recorrida, mais do que razões atinentes ao elemento de conexão determinante em termos processuais penais da competência dos tribunais portugueses, consubstanciam uma análise, de cariz decisório, quanto à verificação in casu de um dos requisitos objetivos típicos do crime de branqueamento: a exigência do crime subjacente gerador de vantagens.
26. A decisão proferida, sustentada nas invocadas razões, assume-se como uma decisão de encerramento do processo, in casu, de encerramento do inquérito, a fase em que o mesmo se encontra, considerando que lhe subjaz, ainda que tal não tenha sido expressamente invocado, um juízo de insuficiência indiciária assente na circunstância de, no entender do M.mo juiz de instrução, se não verificar um dos requisitos típicos do ilícito, a existência de um facto típico precedente penalmente relevante para efeitos da qualificação dos factos como crime de branqueamento.
27. Ora, tal atividade é constitucionalmente vedada ao juiz de instrução, sendo violadora dos art.s 32°, n.° 5, e 219°, n.°s 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, uma interpretação dos art.s 17°, 53°, n.° 2, al. b), 262°, n.° 1, 263°, n.° 1, 268° ou 269°, do Código de Processo Penal, que admita uma conformação do processo em fase de inquérito pelo juiz de instrução à revelia do poder decisório do Ministério Público.
28. Não se inscreve, de igual modo, nas funções do juiz de instrução na fase de inquérito apreciar a competência ou a incompetência do Ministério Público para a direção do inquérito.
29. Na prossecução da sua atividade judiciária, como já se referenciou, o Ministério Público atua com autonomia, quer em relação aos demais poderes do Estado, quer em relação à magistratura judicial, impedidos de qualquer ingerência na materialidade do exercício da ação penal no caso concreto, seja no que respeita às diligências a realizar visando prosseguir as finalidades do inquérito, seja no que concerne ao ato decisório de encerramento do inquérito, o momento para que se dirige toda a atividade empreendida nesta fase processual.
30. É, igualmente, ao Ministério Público que, neste contexto de autonomia e com vinculação a critérios estritos de legalidade, cabe, face a uma notícia de crime, determinar a sua competência para a direção do inquérito e para o exercício da ação penal.
31. A plasticidade da fase de inquérito, em que não se mostra estabilizado o objeto do processo e em que se admite uma dinâmica diversa daquela mais estanque característica das subsequentes fases processuais, implica uma idêntica flexibilidade na abordagem da questão da competência do Ministério Público para a direção do inquérito e para o exercício da ação penal, porquanto a mesma pode vir a ser colocada e respondida em termos muito diversos consoante os diferentes estádios de desenvolvimento da atividade investigatória empreendida.
32. Pode, aliás, suceder que as finalidades de inquérito possam ser alcançadas apenas através do desenvolvimento de competências próprias do Ministério Público, sem que seja chamado a intervir, por desnecessidade em função daquelas finalidades, o juiz de instrução, bastando para isso que a investigação não envolvesse a realização de diligências de inquérito dependentes da intervenção daquele sujeito processual (cf. art. 268° e 269°, do Código de Processo Penal).
33. Ora, na decisão sob recurso não foram tomadas em consideração estas circunstâncias, tendo, através da mesma, o M.mo juiz a quo declarado, ainda que implicitamente, o Ministério Público português carecido de "competência para a prossecução da investigação".
34. Não é admissível, por força das regras processuais penais definidoras da competência do juiz de instrução e do Ministério Público [cf. art.s 17°, 53°, n.° 2, al. b), 263°, n.° 1, 262°, n.° 1, e 267°, do Código de Processo Penal, das normas estatutárias desta magistratura (Io, 2o, 3o, n.° 1, al. c), e 75°, n.° 1, do Estatuto do Ministério Público] e, bem assim, do estatuto constitucional reservado ao Ministério Público (cf. art. 219°, da Constituição da República Portuguesa), que o juiz de instrução possa, em fase de inquérito, determinar a carência, ou não, de competência do Ministério Público para prosseguir com determinado inquérito.
35. A convocação do art. 4o, do Código de Processo Penal e do regime adjetivo civil envolve, conforme decorre do seu teor, a constatação de caso omisso.
36. In casu, não se surpreende caso omisso que permita a convocação de tal norma e, por esta via, do regime processual civil, já que o art. 33°, n° 4, do Código de Processo Penal, dispõe que, se para conhecer de um crime não forem competentes os tribunais portugueses, o processo é arquivado.
37. Tal norma não pode ser isoladamente lida e aplicada sem que se tome em consideração toda a unidade do sistema jurídico em que se insere (cf. art. 9o, n.° 1, do Código Civil), sendo evidente que se mostra vedado ao juiz de instrução determinar o arquivamento do processo enquanto o mesmo se mantiver na fase de inquérito.
38. A apreciação jurisdicional da decisão de encerramento de inquérito tomada pelo Ministério Público apenas é processualmente possível na fase de instrução se o juiz de instrução for para o efeito convocado por quem tenha para tal legitimidade, nos termos dos art.s 286°, e ss., do Código de Processo Penal.
39. O mesmo se diga da figura da "absolvição da instância", a que se recorreu na decisão aquo.
40. O juiz de instrução não tem poderes para impedir que o Ministério Público (ou o assistente ou outro sujeito processual) o convoque a tomar posição sobre determinadas questões nos termos legalmente prescritos, não podendo deixar de apreciar todas as questões que, durante a fase de inquérito lhe venham a ser apresentadas, ainda que seja para se declarar incompetente para o efeito.
41. É, deste modo, ilegal a decisão do M.mo juiz a quo, por violação do disposto no art. 17°, do Código de Processo Penal.
42. O Mmo. juiz a quo excedeu, em conclusão, os seus poderes, violando as normas ínsitas aos art.s 4o, 17°, 53°, n.° 2, al. b), 263°, n.° 1, 262°, n.° 1, e 267° do Código de Processo Penal, e Io, 2o, 3o, n.° 1, al. c), e 75°, n.° 1, do Estatuto do Ministério Público, através de uma interferência na atividade do Ministério Público, comprometendo irremediavelmente a acusatoriedade do processo.
43. Nestes termos, violou o princípio do acusatório e a autonomia do Ministério Público, consagrados, respetivamente, no art. 32°, n° 5, e 219°, da Constituição da República Portuguesa, ao interpretar os art.s 17°, 53°, n.° 2, al. b), 262°, n.° 1, 263°, n.° 1, 268° ou 269°, do Código de Processo Penal, por forma a admitirem uma conformação do processo em fase de inquérito pelo juiz de instrução à revelia do poder decisório do Ministério Público.
A competência dos tribunais portugueses para conhecer dos factos em causa nos presentes autos.
44. Os presentes autos, no que respeita à suspeita WS, tiveram origem no enquadramento de uma denúncia, de declarações prestadas nos autos e de elementos recolhidos através de comunicações de possíveis manobras de branqueamento por parte de uma instituição financeira sediada em Portugal que sustentam a suspeita de que a mesma terá beneficiado, irregularmente, de fundos pertencentes ao Estado angolano, por via da atividade negocial exercida em nome daquele, sem que para o efeito se encontrasse mandatada, circunstâncias decorrentes da ligação existente entre esta e o Presidente da República de Angola.
45. A prática dos enunciados factos é passível de enquadramento na tipicidade dos crimes de corrupção ou tráfico de influência, ou prevaricação, previstos, respetivamente, pelo disposto nos art.s 374° e 335°, do Código Penal, e nos art.s 18°, e 1 Io, da Lei n.° 34/87, de 16-07.
46. O conjunto deste relato sustenta a suspeita de que W., se encontraria a utilizar o sistema financeiro português para proceder à introdução camuflada na economia legítima, de quantias por si obtidas através do desenvolvimento de atividade económica e negocial, em Angola, por via do exercício de influência indevida junto dos órgãos decisores do governo angolano.
47. Tal factualidade é passível, em abstrato, de consubstanciar a comissão, em Portugal, do crime de branqueamento, p. e p. pelo disposto no art. 368°-A, do Código Penal.
48. O objeto dos presentes autos prende-se com a análise dos movimentos financeiros que foram detetados, em instituições de crédito a operar em território português, envolvendo, entre outros, WS.
49. Nos termos do disposto no n.° 4 do art. 368°-A, do Código Penal, o crime de branqueamento é punido ainda que os factos que integram a infração subjacente tenham sido praticados fora do território nacional, ou ainda que se ignore o local da prática do facto ou a identidade dos seus autores.
50. Tal imposição de transterritorialidade resulta da vinculação do direito português a regras europeias, especificamente, à Diretiva n.° 91/308/CEE, do Conselho, de 10 de Junho de 1991, relativa à prevenção da utilização do sistema financeiro para efeitos de branqueamento de capitais, que, no seu art. Io estabelece que ocorrem manobras de branqueamento ainda quando as atividades que geraram os bens detetados nessas manobras se tenham desenvolvido no território de outro Estado membro ou em país terceiro.
51. Esta forma de construir o crime de branqueamento não atribui, contudo, à jurisdição Portuguesa um princípio de universalidade para a perseguição deste tipo de crime, já que na conformação do crime de branqueamento, como já se referenciou, há que atender ao local da prática das manobras típicas e à localização do agente que as desenvolveu, sendo certo que o que se visa perseguir são essas manobras e não os atos ilícitos que estão na origem dos fundos
52. No caso dos presentes autos, o objeto do inquérito trata-se precisamente de factos autónomos e distintos dos da prática daqueles consubstanciadores de factos ilícitos típicos alegadamente ocorridos em Angola: os movimentos financeiros detetados que refletem, com elevada probabilidade, face às suas características, a intenção de ocultar a sua real origem e dissimular a sua natureza ilícita.
53. A punição pelo crime de branqueamento pressupõe a existência prévia da ocorrência de facto ilícito típico, mas não necessariamente a verificação de um facto ilícito típico punível anterior, não sendo necessária a verificação prévia de um crime, de uma condenação pela sua prática ou até da sua perseguição criminal, sendo irrelevante a existência de um despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, quanto a determinados factos, considerando que tal despacho, não só não tem, pela sua natureza não jurisdicional, a virtualidade de produzir caso julgado, como assenta em fundamentos de cariz não definitivo, suportados na ausência de prova.
54. A necessidade de se verificar um nexo de causalidade entre a prática do facto ilícito típico precedente e a obtenção da vantagem não significa que o crime de branqueamento não seja legalmente conformado como um crime autónomo que visa dar proteção a um específico bem jurídico.
55. A autonomia do crime de branqueamento em relação à predicated offense constata-se, desde logo, na circunstância de o objeto da atividade descrita tipicamente pela prescrição penal serem apenas e só as vantagens tipicamente relevantes nos termos definidos no art. 368o-A, n.° 1, do Código Penal.
56. Os bens jurídicos tutelados pela incriminação do branqueamento são colocados em crise através das condutas tipificadas como consubstanciando o respetivo tipo, independentemente do local onde foi praticado o facto ilícito típico que gerou as vantagens seu objeto, sendo a conduta igualmente lesiva de tais bens jurídicos quer o facto que originou as vantagens tenha sido cometido em território nacional (ou nas suas extensões juridicamente admissíveis) quer tenha o mesmo sido praticado no estrangeiro.
57. A jurisprudência portuguesa pronunciou-se recentemente nesse sentido. No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-06-2014 [(Raul Borges), proc. n.° 14/07.0TRLSB.S1, disponível em www.dgsi.ptl concluiu-se que "[o] crime de branqueamento de capitais é estruturalmente autónomo da criminalidade subjacente", que "[desde] que se tenha verificado a prática do crime base e sejam praticados atos subsumíveis ao tipo de branqueamento, este ganha autonomia, no sentido de que o respetivo agente será penalmente perseguido mesmo nos casos em que por exemplo, o autor do crime base seja penalmente inimputável, morra, ou o procedimento criminal por tal crime se encontre prescrito" e que «[pode] haver "crime de branqueamento", mesmo que os fatos subjacentes não sejam criminalmente puníveis».
58. A decisão em apreço ignorou por completo a realidade que subjaz à criminalização de manobras de branqueamento e a construção dogmática que determinou, olvidando a autonomia plena do crime de branqueamento em relação ao ilícito subjacente, ocupando-se, erroneamente como supra já se explanou, em averiguar da existência, ou não, deste último ilícito.
59. Em conclusão, a decisão sob recurso é ilegal, na medida em que obliterando a autonomia do crime de branqueamento em relação ao facto precedente não se revela em conformidade com o que dispõem conjugadamente os art.s 368°-A, n.° 4, 4o, al. a), do Código Penal, e o art. 6o, do Código de Processo Penal.
60. Por tudo o exposto, nos presentes autos, por força dos princípios da autonomia e da territorialidade (cf. art. 4o, do Código Penal, e 6o, do Código de Processo Penal), o Estado português tem assim competência para a investigação e punição deste crime (cf. art. 219°, da Constituição da República Portuguesa) e o Ministério Público tem o dever de promover o respetivo processo penal (cf. art.s 48° e 262°, n° 2, do Código de Processo Penal).
Pelo exposto o presente recurso merece provimento, devendo ser o despacho recorrido revogado, porquanto exorbitante das competências do juiz de instrução, em violação da Constituição da República Portuguesa e da lei, devendo ser determinado ao M.mo juiz a quo que o substitua por outro que se limite a apreciar a questão que lhe foi colocada, a competência dos tribunais portugueses para conhecer dos factos em apreço no presente inquérito, mais se determinando que decida, pelas razões expostas, por indeferir o requerimento que lhe foi apresentado, declarando os tribunais portugueses competentes para conhecer dos factos em causa nos presentes autos.”

3. Admitido o recurso com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo, a requerida/suspeita W. respondeu pugnando pela improcedência do recurso, formulando as seguintes conclusões:

“1) Proficuamente, o processo intelectual de articulação de ideias do MP procura habilmente desviar as atenções do thema decidendum do presente recurso aparentando dolosamente a ignorância da lei em prejuízo da ora recorrida;
2) As questões que o MP coloca e as suas discordâncias com o douto despacho a quo assentam na deliberada confusão relativamente a questões absolutamente distintas: isto é, por um lado, i) o conhecimento oficioso pelo JIC da excepção de incompetência absoluta por violação das regras de competência internacional e as suas consequências jurídicas, com ii) o poder consagrado ao MP de arquivar inquéritos nos termos previstos no art.º 277 º do CPP e, por outro lado, iii) os critérios de determinação da competência internacional do MP e dos Tribunais portugueses para prosseguir investigações, com iv) a autonomia do crime de branqueamento de capitais.
3) Na presente contenda não se trata de discutir qual a entidade com competência para proceder, ou não, ao arquivamento do inquérito, ou dissertar sobre a estrutura típica do crime de branqueamento de capitais, mas tão só em saber se o MP e os Tribunais portugueses são, ou não, competentes para prosseguir investigações em Portugal.
4) Não se descortina, por qualquer forma processualmente compreensível, como pode conflituar o conhecimento oficioso pelo JIC da excepção de incompetência absoluta por violação das regras de competência internacional e as suas consequências jurídicas (absolvição da instância), com o poder consagrado ao MP de arquivar inquéritos nos termos previstos no art.º 277 º do CPP.
5) Como ensina o Prof. Germano Marques da Silva, «o arquivamento pode revestir cinco modalidades: a) por inexistência de crime, por o arguido o não ter praticado ou por inadmissibilidade do procedimento; b) por insuficiência de prova sobre a existência de crime ou de quem foram os seus agentes; c) por opção do Ministério Público com a concordância do juiz, encontrando-se expressamente prevista na lei a possibilidade de dispensa da pena; d) em razão de o arguido ter cumprido as injunções e regras de conduta que lhe tenham sido impostas como condição da suspensão provisória do processo; e) em consequência da falta de acusação pelo assistente nos crimes particulares.» - in Curso de Processo Penal III, 2ª ed., Editorial Verbo, 2000 , pág. 10.
6) «(…) O sistema português de repartição de competências entre os tribunais assenta num conjunto de regras (…) tendentes a assegurar que a decisão é tomada pelo juiz mais bem colocado para aferir o mérito da causa e, assim, alcançar a decisão mais justa, garantindo, do mesmo passo, a segurança jurídica indispensável ao funcionamento do sistema judiciário. (…) O problema da competência tem, na realidade, uma incidência material efectiva, ligando-se, aliás, ao problema metodológico da decisão justa, numa vertente institucional: está em causa saber quais as condições que o ordenamento jurídico deve criar para a realização da justiça pelos tribunais (…). O tribunal deve assegurar a sua competência absoluta, apreciando-a antes do julgamento do mérito: dispondo dos elementos que lhe permitem concluir pela sua falta de competência para apreciar a acção, deve julgar-se incompetente e recusar-se a conhecer do mérito da causa (…).» - cfr. cit. Miguel Teixeira de Sousa no Ac. do TRL, de 24-10-2013, Proc. nº 278361/10.6YIPRT.L1-2 (Ondina Carmo Alves).
7) Significa isto dizer, aliás, de uma forma simples, que o JIC, durante o inquérito, não tem efectivamente poderes para ordenar o arquivamento do inquérito, mas tem poderes para verificar se pode haver inquérito, isto é, se ocorrem, ou não, situações susceptíveis, como sucede in casu, de consubstanciar as denominadas excepções de conhecimento oficioso o que, a verificar-se, como no caso dos autos se verifica - a incompetência absoluta dos tribunais portugueses - acarreta a imediata absolvição da recorrida da instância e assim o naufrágio do inquérito.
8) Ao contrário do que o MP ambiciona fazer crer, a lei, e bem assim a ética e a moral, não foram tão longe na determinação do âmbito de poder do MP. E a explicação é simples: a vingar o entendimento do MP o que sucederia à luz do princípio da segurança jurídica? Se assim fosse, seria reconhecer-lhe um poder de controlar a legalidade e igualmente admitir-se uma margem de reserva, de discricionariedade, permitindo-lhe injustificadas e intransponíveis arbitrariedades e restrições aos direitos fundamentais dos cidadãos, que representam os valores básicos do Estado de Direito.
9) Estamos, pois, no caso sub judice, perante a extinção do inquérito não por decisão de arquivamento do JIC, mas em consequência de uma excepção - incompetência internacional dos Tribunais portugueses - cuja declaração impede a promoção da acção penal e que constitui um limite legal aos poderes do MP. A promoção da acção penal tem limites legais e o MP está obrigado a aceitar as consequências da lei, independentemente de considerar que o resultado é ou pode ser limitador dos seus poderes.
10) Aliás, muito se estranha a pretensão agora estruturada quanto à recorrida porquanto surpreendentemente desalinhada com a douta resposta da autoria de S. Exa. o Procurador da República titular do inquérito no recurso igualmente emergente dos presentes autos de inquérito, em que foi recorrente o cidadão angolano L.F.N. (proc. n.º 208/13.9TELSB-D.L1, 9ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa), onde declara, categoricamente, o seguinte: «(…) [O] juiz de instrução é competente para conhecer da competência territorial do tribunal na fase de inquérito, quando seja suscitada a prática de um acto jurisdicional e seja deduzida a sua incompetência por alguns dos sujeitos processuais” (Paulo Pinto de ALBUQUERQUE, ob. Cit., loc. Cit.).
Ora, se assim é, então caberia ao M.mo juiz a quo ter conhecido da incompetência deduzida pelo recorrente, uma vez que se está perante um inquérito onde já existiu intervenção jurisdicional.
(…) Ainda assim, e uma vez que a norma ínsita no art. 32º, do Código de Processo Penal, admite o conhecimento oficioso da incompetência do tribunal, tendo sido a mesma suscitada, (…) deveria (…) o M.mo juiz a quo pronunciar-se acerca do mérito da questão deduzida (…).»
11) Em todo o caso e para a decisão neste âmbito, sobre o tema da competência do JIC, neste inquérito decidiu o Ac. TRL de 24 de Setembro de 2015 (Antero Luís), proc. n.º 208/13.9TELSB-B.L1, 9ª secção, relativamente ao ali recorrente o cidadão angolano M.H.J.: «(…) Não nos parece curial que, estando em causa, alegadamente, direitos liberdades e garantias dos cidadãos, se possa argumentar com a autonomia de um órgão do Estado, neste caso o Ministério Público, para se poder defender a inexistência de sindicância jurisdicional desse mesmo órgão, no que respeita à sua actuação no processo criminal, de que tem o domínio. O que está em causa no recurso não é a autonomia do Ministério Público mas, antes, se a sua actuação é conforme ao direito e se com a mesma foram violados os direitos do suspeito (…).»
12) Outrossim os fundamentos do douto Ac. do TRL de 2 de Junho de 2016 (Margarida Vieira de Almeida), proc. n.º 208/13.9TELSB-D.L1, 9ª secção, igualmente emergente dos presentes autos de inquérito, em que foi ali recorrente o cidadão angolano L.F.N.: «(…) das normas contidas no art. 32º do Código de Processo Penal resulta que a incompetência do tribunal é por este conhecida e declarada oficiosamente e pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido e pelo assistente até ao trânsito em julgado da decisão final. Ora, se assim é, então caberia ao M.mo Juiz a quo ter conhecido da incompetência deduzida pelo recorrente, uma vez que se está perante um inquérito onde já existiu intervenção jurisdicional (…).»
13) Atendendo às incidências constitucionais e processuais que a excepção de incompetência tem na esfera jurídica da recorrida - ofensa ao direito à igualdade (art. 13º da CRP), de acesso ao Direito e tutela jurisdicional efectiva (art. 20º da CRP), ao bom nome e reputação (art. 26º da CRP), à propriedade privada (art.52º da CRP), à aplicação da lei criminal (art. 29º e 32º da CRP), e violação dos arts. 4º a 6º do CP e 32º do CPP e 96º, 97º e 99º do Código de Processo Civil -, não poderia o JIC deixar de apreciar e declarar a incompetência internacional do MP e dos Tribunais portugueses para prosseguir investigações no presente inquérito, repondo assim a Justiça e da Lei.
14) Com efeito, o presente inquérito emergiu de certidão extraída do inquérito n.º 142/12.0TELSB em consequência do instituto da separação de processos.
15) O aludido inquérito, por sua vez, teve origem na averiguação preventiva n.º 85/11, baseada numa queixa, e aditamento posterior, apresentados por A.P., cidadão de nacionalidade angolana, ex-embaixador da República de Angola junto das Organizações Internacionais, em Genebra, exonerado em consequência de práticas criminosas, do exercício daquela função, que culminaram na respectiva condenação, em 15 de Março de 2000, pelo Tribunal Supremo da República de Angola, pelo crime de apropriação ilegítima de bens, na pena de 4 (quatro) anos de prisão maior, no pagamento de Kz 1.500,00 de imposto de justiça e na obrigação de indemnizar o Estado Angolano em USD 1.259.251,17 (um milhão, duzentos e cinquenta e nove mil, duzentos e cinquenta e um dólares e oitenta e sete cêntimos), quantia esta de que fraudulentamente se apropriou.
16) Na referida queixa e no respectivo aditamento o identificado A.P. imputa genericamente à ora recorrida e aos demais denunciados, sem a mínima especificação de quaisquer factos concretos, a prática de “corrupção” em Angola.
17) Posteriormente à apresentação, em Portugal, da queixa subjacente ao presente inquérito e com vista a procurar acusar alguns dos ali denunciados pela prática dos alegados factos que deram origem aos presentes autos – pelo crime precedente do branqueamento de capitais previsto na lei portuguesa alegadamente praticado em Angola (“corrupção”) – ou seja, já no decurso da investigação inerente aos presentes autos, o aqui assistente, R.M., apresentou em Angola duas queixas-crime visando alguns dos cidadãos denunciados em Portugal pelo identificado A.P..
18) A recorrida não foi visada nas referidas participações apresentadas em Angola pelo aqui assistente e, em Portugal, nas denúncias que deram origem aos presentes autos foi feita apenas uma imputação genérica e abstracta de prática de “corrupção em Angola”.
19) Tais factos – embora não especificados - ocorridos em Angola consubstanciariam em tese o crime precedente do branqueamento de capitais especificamente exigido pela lei portuguesa, ou seja, é manifesto que os factos que deram origem aos presentes autos têm Angola e unicamente Angola como o lugar definido da sua alegada consumação.
20) Tais participações, como aliás está demonstrado nos presentes autos, deram origem na Procuradoria-Geral da República de Angola aos correspectivos autos de inquérito n.ºs 04/2012 e 06-A/2012, que foram ambos objecto de doutos despachos de arquivamento cujas certidões estão há anos juntas aos presentes autos.
21) Está demonstrado nos presentes autos, relativamente à ora recorrida, que foram dados a conhecer à Procuradoria-Geral da República de Angola, através de Carta Rogatória, inscrita a fls. 470 e segs, os factos alegadamente praticados em Angola, tendo o MP angolano tomado a decisão de não abrir inquérito.
22) Advirta-se, entretanto, que até ao presente a ora recorrida nunca foi constituída arguida nos presentes autos.
23) Quanto à questão da estrutura típica do crime de branqueamento de capitais pouco ou nada há a dizer, a não ser obviamente que o crime de branqueamento de capitais é estruturalmente autónomo da criminalidade subjacente, mas não o é geneticamente. A lei é clara na definição dos critérios: exige como pressuposto genético ou sine qua non da investigação e condenação do crime de branqueamento a prévia concretização de um ilícito, que tenha produzido vantagens, sendo que só a partir daqui o branqueamento ganha, então, autonomia, não obstante o “ilícito” precedente não ter sido punido, ou já não seja punível.
24) «A competência internacional dos tribunais portugueses determina-se de acordo com as regras dos artigos 5º e 6º do Código Penal. A incompetência internacional constitui, no rigor das qualificações, ausência de jurisdição dos tribunais portugueses, cuja verificação faz cessar o procedimento – “o processo é arquivado”.» - cfr. ponto 4 da anotação ao art. 34º do CPP de S. Exa. Juiz Conselheiro Henriques Gaspar , in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, p.117.
25) Cortejando os ensinamentos do douto Tribunal da Relação de Lisboa, em 26 de Março de 2015, no âmbito do processo 147/13.3TELSB-9, de que foi Relatora a Exma. Sra. Dra. Juiz Desembargadora Margarida Vieira de Almeida, onde bem é sublinhada a anotação do Prof. Pinto de Albuquerque ao art.º 5.º do CP, «1. a aplicação espacial do direito penal a factos cometidos fora do território nacional assenta em cinco princípios: da nacionalidade, da defesa dos interesses nacionais, da universalidade, da administração supletiva da lei nacional e da aplicação convencional.»
26) No caso vertente, o Estado Português apenas poderia actuar de acordo com o princípio da universalidade, ou da protecção de bens jurídicos comuns a toda a humanidade, a saber, nos crimes de escravidão, (artº 159º), tráfico de pessoas (160º), rapto (161º), abuso sexual de crianças e de menores dependentes (artºs 171º e 172º) de lenocínio de menores e de pornografia de menores (175º e 176º), danos contra a natureza, poluição e de poluição de perigo comum.
27) Nos termos do disposto no nº 1 do art. 6º do CP (restrições à aplicação da lei portuguesa), «A aplicação da lei portuguesa a factos praticados fora do território nacional só tem lugar quando o agente não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação.»
28) Entender-se de forma diversa seria permitir que o assistente, em conluio com MP, tentasse, como tentou, pelo recurso às jurisdições portuguesa e angolana, obter uma decisão que lhe fosse favorável.
29) Ora, uma vez que o branqueamento «para assumir relevância típica, terá de ser uma vantagem “proveniente” do crime subjacente e, como tal de origem ilícita» - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-07-2013 (Rui Gonçalves), proc. n.º 1/05.2JFLSB.L1-3, disponível em www.dgsi.pt;
30) E comprovado que está que os factos que deram origem aos presentes autos têm definido o seu lugar de consumação em Angola e que as queixas-crime apresentadas pelo assistente em Angola já foram objecto de arquivamento em Angola, onde a recorrida, cidadã nacional angolana, reside, exerce funções e é contribuinte fiscal, resulta inequívoca a incompetência do Estado português para investigar e perseguir criminalmente a recorrida por tais factos.
31) Conforme Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13-04-2011 (Rui Gonçalves), proc. n.º 250/06.6PCLRS.L1-3, disponível em www.dgsi.pt: «A excepção de caso julgado materializa o disposto no art. 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.) quando se estabelece como princípio a proibição de reviver processos já julgados com resolução executória afirmando “Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”. Por isso, o caso julgado é considerado como uma causa de extinção da acção penal (…).»
32) «(…) A Constituição proíbe rigorosamente o duplo julgamento (…), mas é obvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar tanto a condenação de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido pela prática da infracção, como a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do “mesmo crime”(…).
XV. Quanto ao âmbito de protecção subjectivo destas garantias penais, trata-se obviamente de direitos universais, (…), pelo que não há lugar para os reservar para as pessoas de nacionalidade portuguesa, excluindo os estrangeiros. Todas as pessoas, pelo facto de o serem, gozam destas garantias (…).» - Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao art. 29º, nº 5 da CRP, in CRP anotada, vol. I, Coimbra Editora, 2007, p. 497 e 498, notas XI e XV.
33) A essência da questão diz respeito à forma ilegal e discriminatória como o MP, em detrimento da recorrida – cidadã angolana, aliás, membro da bancada parlamentar do MPLA na Assembleia Nacional da República de Angola, e residente em Angola, país Independente e Soberano onde é sujeito passivo fiscal –, pretende continuar a investigar em Portugal os factos integradores do “crime precedente” alegadamente praticados em Angola quando está documentalmente provado nos presentes autos o arquivamento, em Angola, dos processos emergentes de queixas apresentadas na Procuradoria-Geral da República de Angola pelo aqui assistente e, relativamente à ora recorrida, a posição da Procuradoria-Geral da República de Angola de não abrir inquérito quanto aos mesmos factos, situação que vem aliás reforçar a falta de fundamento jurídico-legal ou de qualquer relevância criminal dos presentes autos.
34) Nos termos do art. 185º da Constituição da República de Angola: «1. O Ministério Público é o órgão da Procuradoria-geral da República essencial à função jurisdicional do Estado, sendo dotado de autonomia e estatuto próprio.»
35) Nos termos do art. 1º da Lei Orgânica da Procuradoria-Geral da República e do Ministério Público, de Angola (Lei nº 22/12 de 14 de Agosto), a Procuradoria-Geral da República de Angola goza de autonomia administrativa e financeira e também política.
36) O Art.º 1.º da Constituição da República de Angola prescreve que «Angola é uma República soberana e independente, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade do povo angolano, que tem como objectivo fundamental a construção de uma sociedade livre, justa, democrática, solidária, de paz, igualdade e progresso social.».
37) Soberania quer dizer, antes de tudo, autonomia, isto é, a capacidade de se dotar das suas próprias normas, da sua própria Constituição e ordem jurídica, com exclusão da aplicação de quaisquer outras, com excepção das resultantes nos casos admitidos pela sua Lei Suprema e Fundamental e a ela conformes.
38) Independente significa dizer, em primeira linha, a soberania política em sentido político formal, mas também a auto-determinação, ou seja, independência política em sentido material - não sujeição a nenhum outro país - fundamentando assim o conceito de independência nacional, proclamada no dia 11 de Novembro de 1975, data em que entrou em vigor a primeira Lei Constitucional da história de Angola.
39) De harmonia com o disposto nos artºs 4º do CPP e 96º do Código de Processo Civil, «determinam a incompetência absoluta do Tribunal: a) a infracção das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras da competência internacional (…).»
40) «A incompetência absoluta (…) deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal (…)» (artº 97º do CPC) e implica a absolvição da instância (artº 99º do CPC).
41) Bem andou o Tribunal a quo ao decidir que «tendo em conta (…) a estreita relação entre os actos de branqueamento e o facto ilícito precedente e tendo estes factos precedentes, alegadamente, sido consumados num outro país soberano que, apesar de já ter tomado conhecimento dos alegados ilícitos subjacentes, não exerceu investigação quanto aos mesmos, faz com que os tribunais portugueses, neste caso o Mº Pº, careçam de competência para a prossecução da investigação (…).» e em consequência absolvendo a ora recorrida da instância.
42) Em conformidade com o decidido no douto Ac. do TRL de 2 de Junho de 2016 (Margarida Vieira de Almeida), proc. nº 208/13.9TELSB-D.L1, 9ª secção, igualmente emergente dos presentes autos de inquérito em que foi ali recorrente o cidadão angolano L.F.N., ao expressamente «…Declarar a incompetência internacional dos Tribunais Portugueses em matéria Penal, definida nos art.ºs 4.º a 6.º do Código Penal, para abrir inquérito por factos praticados por um cidadão nacional de outro País, L.F.N., nesse mesmo País, com as consequências legais dela resultantes – absolvição da instância.»
43) Ainda que esqueçamos, por mera hipótese de raciocínio, que os alegados factos que deram origem aos presentes autos têm definido como lugar da sua consumação Angola, que a recorrida é cidadã nacional angolana, reside em Angola, não é sujeito passivo fiscal residente em Portugal (é naturalmente contribuinte fiscal em Angola), ainda assim, o panorama não se altera, antes se intensificam os paradoxos e as ofensas aos direitos da ora recorrida, que são aqui particularmente intensos, porquanto o MP bem sabe e não ignora que nos presentes autos inexiste a prática de qualquer ilícito prévio ou crime precedente.
44) Atenta a natureza dos presentes autos, o que está em causa, em abstracto, é o esclarecimento de quaisquer suspeitas em torno de investimentos efectuados pelos visados em Portugal, designadamente pela ora recorrida, que pudessem ter origem em crimes precedentes.
45) Encontra-se documentalmente provado nos presentes autos que a recorrida não possui quaisquer antecedentes criminais, nem contra si corre qualquer processo-crime em Angola, o que determina a improcedência de qualquer imputação relativa ao crime de branqueamento.
46) Estando demonstrado que a recorrida não tem antecedentes criminais em Angola por crimes precedentes de branqueamento de capitais descritos no art. 368º-A do CP português, nem processos-crime em investigação, de tal facto emerge automaticamente uma impossibilidade objectiva de verificação do tipo inerente àquele crime, pelo que não há, nem pode haver, crime de branqueamento de capitais.
47) O Art.º 14.º da Constituição da República de Angola dispõe que: «O Estado respeita e protege a propriedade privada das pessoas singulares ou colectivas e a livre iniciativa económica e empresarial exercida nos termos da Constituição e da lei.»
48) E, o Art.º 38.º da referida LEI, prescreve o seguinte: «1. A iniciativa económica privada é livre, sendo exercida com respeito pela Constituição e pela lei. 2. A todos é reconhecido o direito à livre iniciativa empresarial e cooperativa, a exercer nos termos da lei. 3. A lei promove, disciplina e protege a actividade económica e os investimentos por parte de pessoas singulares ou colectivas privadas, nacionais e estrangeiras, a fim de garantir a sua contribuição para o desenvolvimento do País, defendendo a emancipação económica e tecnológica dos angolanos e os interesses dos trabalhadores.»
49) Dos “Impedimentos” previstos no Art.º 149.º da Constituição da República de Angola resulta clara e inequivocamente que a recorrida, e todos os cidadãos angolanos sujeitos ao referido comando constitucional (Deputados), não podendo exercer funções de gerência ou administração enquanto no exercício das funções de Ministros e deputados, podem ser e continuar a ser sócios / accionistas de empresas privadas em quaisquer geografias como aliás também acontece em Portugal e nos restantes países europeus.
50) A recorrida não está inibida de deter participações sociais em quaisquer empresas e de desenvolver os seus negócios de acordo com as leis Angolanas.
51) A pendência dos presentes autos constitui um estigma verdadeiramente injustificado e uma frontal e flagrante ofensa aos parâmetros constitucionais da segurança, certeza e credibilidade no tráfico jurídico português (art. 2º da CRP), da igualdade (art. 13º da CRP), da força jurídica dos preceitos constitucionais e da inadmissibilidade de restrições aos direitos, liberdades e garantias (art. 18º da CRP), do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva (art. 20º da CRP), do direito de defesa (art. 32º da CRP) e da presunção de inocência (art. 32º, nº 2 da CRP), o que é intolerável num Estado de Direito Democrático.
52) A pendência do presente inquérito, manifestamente ilegal face ao exposto e à soberania de Angola, constitui mais uma abusiva e ilegal tentativa de privatização dos autos por parte do MP português, que procura, ostensivamente, e com a devida urbanidade, de forma até vexatória para a actividade judiciária, garantir protagonismo, poder e influência, servindo interesses políticos e/ou outros, quando bem sabe e não ignora é incompetente para investigar eventuais crimes que tivessem sido praticados em Angola. Tais interesses são incompatíveis com os direitos fundamentais que a mão longa do Estado português estende também a cidadãos estrangeiros, como a recorrida.
Termos em que, em face do exposto, requer a Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, se dignem negar provimento ao presente recurso, mantendo-se o douto despacho recorrido.”



4.1. Neste Tribunal da Relação o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto em extenso e fundamentado parecer pronunciou-se formulando as seguintes conclusões:

“1. No caso em apreço, tal como “lei expressa” o consagra claramente nº 4 do artº 386º A do Código Penal, os tribunais portugueses têm competência nacional ou internacional para investigar o crime de branqueamento de capitais.
2. O crime de branqueamento de capitais tem autonomia relativa aos crimes subjacentes, sendo, por isso, irrelevante que estes tenham sido praticados fora do território nacional, para efeitos de ser reconhecida a competência dos tribunais portugueses.
3. A jurisdição nacional (competência internacional em matéria penal) alarga-se por força de lei expressa, de tratados e de convenções a que Portugal se tenha obrigado.
Termos em que se opina no sentido da procedência do recurso.”

4.2. Respondeu a recorrida WS. pugnando pela improcedência do recurso e confirmação do despacho recorrido que julgou verificada a excepção por incompetência absoluta do tribunal por violação das regras de competência internacional e em consequência absolveu a ora recorrida da instância, alegando o seguinte:

“O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto junto desse Venerando Tribunal, ao abrigo do disposto no Art. 416º, nº 1 do CPP, emitiu o douto Parecer inscrito a fls. …, pugnando pelo provimento do presente recurso porquanto entende que no presente inquérito «(…) os tribunais portugueses têm competência nacional e internacional para investigar o crime de branqueamento de capitais».
E para evidenciar essa constatação, não obstante concluir que sem crime precedente não há crime de branqueamento, no referido douto parecer aduz duas ordens de razões: porque quanto aos ilícitos subjacentes, pela interpretação normativa do nº 4 do Art. 386º-A do Código Penal, resulta «(…) irrelevante que estes tenham sido praticados fora de território nacional, para efeitos de ser reconhecida a competência dos tribunais portugueses», e porque «(…) deverá ser garantida a possibilidade de condenação por branqueamento, independentemente de condenação anterior ou simultânea pela prática de infracção subjacente.».
Com o devido respeito, parece-nos ser de inteira justiça e com o consequente apoio legal não perfilhar a interpretação ali preconizada pelo MP. Aliás, não podemos deixar de referir que relativamente à autonomia do branqueamento e aos critérios de competência internacional dos Tribunais portugueses em matéria penal são surpreendentes as opções do MP comparativamente ao que esse mui douto Tribunal já anteriormente e muito bem decidiu, entre outros, nos Acórdãos de 18-07-2013 (Rui Gonçalves), proc. n.º 1/05.2JFLSB.L1-3; de 26-03-2015 (Margarida Vieira de Almeida), processo nº 147/13.3TELSB-9; de 2 de Junho de 2016 (Margarida Vieira de Almeida), proc. n.º 208/13.9TELSB-D.L1, 9ª secção, igualmente emergente dos presentes autos de inquérito em que foi ali recorrente o cidadão angolano L.F.N., disponíveis em www.dgsi.pt.
Seja como for, cremos que a ciência do Direito nos diz que, como de seguida demonstraremos, para tal conclusão muito contribuiu o equívoco em que o Digno Magistrado do MP junto do TRL incorre ao comparar a autonomia do crime de branqueamento de capitais com os critérios de determinação da competência internacional do MP e dos Tribunais portugueses para prosseguir investigações, ignorando, desde logo, a norma inscrita no Art. 6º do CP; e outrossim a confusão entre o jus puniendi do Estado Português com o jus imperii do Estado Angolano, ignorando, desde logo, a norma inscrita no Art. 7º da Constituição da República Portuguesa.
E, olvidando também que, por várias vezes, a Assembleia da República portuguesa chumbou a consagração legal do denominado “crime de enriquecimento ilícito” que, como está bom de ver, é o alicerce legal que falta, porque inexiste, na construção jurídica inscrita no douto parecer em questão ao redor dos tratados internacionais que refere.
Equívocos e esquecimento que contribuíram para a citada conclusão mas que, sinceramente, não convencem a recorrida, tratando-se antes de uma absurda e injustificada tentativa de controlo e manipulação do Inquérito à custa dos direitos de cidadania da ora recorrida.
Confiamos já cabalmente demonstrado nesta sede recursiva, para além do mais, que no presente inquérito nem o MP português, nem os Tribunais portugueses têm competência para prosseguir investigações em Portugal.
Assim, e sem prejuízo do que ficou dito em sede de resposta ao recurso do MP ao abrigo do nº 1 do Art. 413º do CPP, para o efeito que ora nos ocupa, em linhas necessariamente breves, são três os pontos essenciais que, face à lei portuguesa em vigor e aplicável, nos merecem reflexão:
I. são pressupostos da punição do crime de branqueamento de capitais a prática de uma infracção principal (crime precedente) e a existência de vantagens dela provenientes;
II. materialmente, os critérios de atribuição de competência internacional dos Tribunais Portugueses em matéria Penal encontram-se plasmados nos termos conjugados dos arts. 4º a 6º do CP;
III. o jus puniendi do Estado Português não prevalece sobre o jus imperii de outro Estado soberano, in casu o Estado Angolano.
Quanto aos pressupostos do crime de branqueamento de capitais.
Encontra-se documentalmente provado nos presentes autos que a recorrida – sujeito passivo fiscal residente em Angola - não possui quaisquer antecedentes criminais, nem contra si corre qualquer processo-crime, o que obviamente determina a impossibilidade de demonstrar a verificação do facto típico e ilícito precedente que a norma do Art. 368º-A do CP português exige como elemento do tipo e, sendo isto impossível, é evidente que não há, nem pode haver, crime de branqueamento de capitais.
Doutra banda, pese embora, no que concerne aos seus direitos de propriedade, rendimentos, de acções ou de qualquer outra espécie de bens e valores, tenha direito à reserva de intimidade da sua vida privada e de ter o direito a ser e continuar a ser sócia / accionista de empresas privadas em quaisquer geografias (Art. 149º da Constituição de Angola), nos presentes autos resulta a origem dos fundos movimentados na sua conta é, absolutamente lícita, decorrente de participações societárias.
Explicando melhor, como o MP bem sabe e não ignora, ao invés do que alega no parecer, decerto por erro de “copy paste” de parecer relativo a outro qualquer recurso, dos documentos juntos aos presentes autos não resta a menor dúvida sobre a legítima proveniência dos capitais transaccionados, tanto assim é que não se encontram apreendidas quaisquer quantias ou arrestados quaisquer bens da recorrida à ordem dos autos.
Verificada a inexistência da prática de qualquer ilícito prévio ou crime precedente e a inexistência de qualquer vantagem adquirida ilicitamente resulta inequívoca a inutilidade do prosseguimento da investigação nos presentes autos.
Quanto à competência internacional dos Tribunais Portugueses
Efectivamente, nos termos arquitectados pelo nº 4 do art. 386º-A, a punição do crime de branqueamento de capitais «(…) tem lugar ainda que os factos que integram a infracção subjacente tenham sido praticados fora do território nacional (…)».
Em nossa modesta opinião, a norma sindicada visa atribuir autonomia à investigação das vantagens adquiridas ilicitamente, mas, na realidade, tal autonomia não tem a virtuosidade de se reflectir sem qualquer fronteira, pelo que apenas com uma leitura deturpada daquele normativo se poderia concluir que o mesmo pretende substituir-se aos critérios de determinação da competência internacional, aliás material, dos Tribunais Portugueses em matéria penal.
Isto é, por maioria de razão, a autonomia das “vantagens” verifica-se quando existe uma condenação judicial pela prática do crime precedente ou quando não há condenação anterior nas situações de prescrição, de inimputabilidade penal, de desconhecimento acerca da prática do ilícito prévio, assegurando a tutela penal nos casos em que o Estado onde ocorreu a prática do ilícito precedente não tenha tomado posição sobre esses mesmos factos; mas nunca quando existe uma absolvição judicial da prática do crime precedente, nem quando existe uma decisão de não abrir inquérito quanto aos factos precedentes, como in casu.
Assim, quanto a este desígnio, também não resta muito a dizer a não ser, obviamente, reiterar o sentido da doutrina e jurisprudência maioritária entre nós: «a competência internacional dos Tribunais Portugueses em matéria Penal é a definida nos artºs 4º a 6º do Código Penal, (Cons. Maia Gonçalves, anot.7 ao artº 19º do CPP), e obedece aos princípios da nacionalidade, defesa dos interesses nacionais, universalidade, administração supletiva da lei e da aplicação convencional (…).» cfr. douto Acórdão do TRL, de 26 de Março de 2015, no âmbito do processo 147/13.3TELSB-9, do qual foi Relatora a Exma. Sra. Dra. Juiz Desembargadora Margarida Vieira de Almeida.
E no caso dos autos, tratando-se de uma investigação em Portugal por factos integradores do “crime precedente” alegadamente praticados em Angola, pela recorrida, que é cidadã angolana, aliás, membro da bancada parlamentar do MPLA na Assembleia Nacional da República de Angola, e residente em Angola, país independente e soberano onde é sujeito passivo fiscal, o Estado Português apenas poderia actuar de acordo com o princípio da universalidade, mas, ainda assim, apenas poderia actuar relativamente a certas categorias de crimes: de escravidão, (artº 159º), tráfico de pessoas (160º), rapto (161º), abuso sexual de crianças e de menores dependentes (artºs 171º e 172º) de lenocínio de menores e de pornografia de menores (175º e 176º), danos contra a natureza, poluição e de poluição de perigo comum.
O MP bem sabe e não ignora que nem o MP português, nem os Tribunais portugueses têm competência para abrir e/ou prosseguir investigações em Portugal por supostos factos praticados por qualquer cidadão angolano, em Angola, e muito menos, quando neste País – que é soberano e independente - os processos onde se investigavam os factos que deram origem aos presentes autos foram arquivados e tais arquivamentos estão documentalmente comprovados.
Aliás, é por essa razão que o nº 1 do art. 6º do CP estabelece que «a aplicação da lei portuguesa a factos praticados fora do território nacional só tem lugar quando o agente não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação.»
Certo é como diz o MP, parafraseando e bem o Prof. Alberto dos Reis: «(…) é necessário assegurar, até ao extremo limite da hierarquia judicial, a observância das normas relativas à competência absoluta dos tribunais…são interesses de ordem pública (…), como se impõe (…) acautelar com rigor a observância do princípio ne bis in idem (…).»
Entendemos as marcas que o repatriamento ocorrido em 1975 possa ter deixado na sociedade portuguesa. A história colonial magoa. Porém, digamo-lo sem preâmbulos, não podemos permanecer alheados da realidade: aceitemos, de uma vez por todas, o corte com o passado e o fim do colonialismo português pois, desde o dia 10 de Novembro de 1975, Angola é uma República Soberana e Independente!
Ora, conscientes dos princípios da igualdade soberana entre os Estados e da independência de todos os Estados e do princípio da não ingerência, aliás com dignidade Constitucional (art. 7º da CRP), no que ao direito criminal subjaz não se perfila como compaginável que o Estado português, ou qualquer Estado que vigore sobre a égide da democracia, tenha um intento de concretização do seu “ius puniendi” num quadro de acção e de intervenção processual onde outro Estado tenha praticado actos ao abrigo do seu “ius imperii”.
Ou seja, no caso dos autos, não pode o MP continuar a ignorar as decisões da Procuradoria-Geral da República de Angola - em representação do Estado Angolano, País soberano e independente, repetimo-lo – de arquivamento dos inquéritos onde se investigaram os factos integradores do “crime precedente” alegadamente praticados em Angola e, quanto à recorrida, a decisão de não abrir inquérito quanto aos mesmos factos.
Trata-se verdadeiramente de um abuso de tal ordem que a postura do MP português, que bem sabe e não ignora ser incompetente para investigar factos supostamente ocorridos em Angola, é de todo incompreensível. É que a promoção da acção penal tem, entretanto, limites legais e o MP está obrigado a aceitar as consequências da lei.
Vale a pena trazer à colação o disposto no Art.º 8.º do Código Civil que consagra o dever de julgar em obediência à lei e que aqui damos por integralmente reproduzido.
E tais limites são compreensíveis. Na verdade, a tese subjacente ao douto parecer do MP, ao determinar que «o crime de branqueamento de capitais (art. 368º-A do Código Penal) tem autonomia relativamente aos ilícitos subjacentes, sendo, por isso, irrelevante que estes tenham sido praticados fora de território nacional, para efeitos de ser reconhecida a competência dos tribunais portugueses», permitiria o seguinte resultado: «(…) conduziria à existência de um ”ius puniendi” estadual sem qualquer fronteira e fomentador por isso em larga medida de conflitos internacionais de carácter jurídico-penal (…)» - cfr. Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Tomo I, Parte Geral, 9º capítulo, pág. 213.
Escusado, portanto, seria dizer que este absurdo resultado, só por si, impossibilitaria a tão almejada preservação da paz internacional e poria em risco a própria sobrevivência dos Estados Democráticos.
Por tudo o que se deixa dito, nenhuma razão encontramos para a pendência dos presentes autos relativamente à ora recorrida, não merecendo censura o douto despacho recorrido porquanto claro, coerente e amplamente ancorado na Lei.
Termos em que, em face do exposto, requer a Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores, se dignem negar provimento ao presente recurso, mantendo-se integralmente o douto despacho recorrido inscrito a fls. 3285 a 3306, pelo qual o Exmo. Sr. Juiz de Instrução junto do Tribunal Central de Instrução Criminal julgou verificada a excepção de incompetência absoluta por violação das regras de competência internacional e em consequência absolveu a ora recorrida da instância.”

5. Foram colhidos os vistos e realizada conferência.

6. As questões que o recorrente suscita para apreciação deste tribunal são duas:
- A de saber se o Tribunal Central de Investigação Criminal e os tribunais portugueses têm competência para investigar o crime de branqueamento de capitais, no caso em que os crimes precedentes foram praticados fora do território nacional, no caso em Angola;
- Da apreciação do mérito da causa, por considerar haver insuficiência indiciária do preenchimento do tipo de crime de branqueamento de capitais sobredito, como por considerar haver falta de legitimidade do MºPº para perseguir o mesmo e quanto à absolvição da instância proferida com fundamento em caso omisso com recurso às normas do Código de Processo Civil por despacho do juiz de instrução criminal em fase de inquérito.

7.2.1.
Perscrutados os autos apura-se em resumo o seguinte:

I.
a)
Os presentes autos tiveram origem numa certidão extraída do inquérito nº 142/12.0TELSB, na sequência de uma primeira denúncia de A.P., contra pessoa determinada, entre eles, M.H.J., L.F.N., F.C., M.M. e outros.
Em segunda denúncia de 16 de Junho de 2011, o mesmo A.P. solicita que seja feito um aturado inquérito às actividades económicas e financeiras em Portugal e investigar as relações das instituições portuguesas com o já referido M.H.J., I.S., e a aqui investigada, WS., o que deu origem a uma averiguação preventiva (85/11).
Do referido processo de inquérito constam denúncias relativas a transacções de avultadas somas envolvendo bancos e instituições financeiras portuguesas realizadas por personalidades politicamente expostas e empresários de origem angolana.
Dos elementos apresentados pelo Assistente RM., assim como das averiguações policiais “as suspeitas saem também reforçadas quando se referem ao Banco BESA (Banco Espírito Santo de Angola) e ao seu presidente, A.S., (…) como estando envolvido na prática de branqueamento de capitais, entre outros crimes,” pelo que se iniciaram investigações relativas aos suspeitos I.C.M., A.N. e C.J.S., todos do Banco Privado Atlântico Europa, M.H.J.e L.F.N..

Foi expedida carta rogatória para o Senhor Procurador-Geral de Angola, solicitando que informe se na Procuradoria-Geral de Angola corre algum processo-crime contra:
I.S.;
W.;
M.H.J.;
J.L.S;
F.A:;
EF;
AJ;
VL;
FM;
MM;
JM;
AJM;
MLS;
KP;
FC:
FPS;
SD;
HP;
E
WR.
Na carta rogatória consta a informação de ter sido declarado o segredo de justiça, artº 86º nº 3 do Código de Processo Penal.

I.
b)
Da informação recolhida relativa à denunciada WS. resultou o seguinte:
Da Informação patrimonial consta:
1 - Um prédio urbano, em Alcabideche, Cascais, no valor referenciado ao ano de 2009 de € 1.518.490,00 (Um milhão quinhentos dezoito mil quatrocentos noventa euros);
2 - Um prédio urbano, em Oeiras e S. Julião da Barra, no valor, referenciado ao ano de 2010, de € 222.891,21 (duzentos vinte e dois mil oitocentos noventa e um euros e vinte e um cêntimos);
3 - Outro terreno urbano, também na mesma localidade, no valor, referenciado ao ano de 2010, de € 225.812,13 (duzentos vinte cinco mil oitocentos doze euros e treze cêntimos);
4 – Duas viaturas automóveis (uma de marca Mercedes-Benz e outra de marca Audi).

Do detalhe de Declaração do Modelo I, mais resultou o seguinte:
- A aquisição de um prédio urbano, , (referido em 1 supra) no valor do contrato global de € 2,650.000,00 (dois milhões seiscentos cinquenta mil euros), registado em 2010, o qual figura como ter sido – entretanto - dado sem efeito, em circunstâncias que importa ainda apurar;
- Aquisição de um prédio urbano (referido em 3 supra) no valor do contrato global de € 248.500,00 (duzentos quarenta e oito mil e quinhentos euros);
- Aquisição de um prédio urbano (referido em 2 supra) no valor do contrato global de € 260.00,00 (duzentos sessenta mil euros).

I.
c)
Quanto à denunciada, ora investigada, WS., mais se apurou de início o seguinte:

A mesma era detentora de contas bancárias junto do Banco Santander Totta, sendo uma delas creditadas no valor de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) e outra creditada em 19 de Outubro de 2010 por uma transferência de USD 800.000 (oitocentos mil dólares americanos) provenientes do BPN (Banco Português de Negócios).
Como justificação para os fundos, foi invocada a atribuição de um “success fee” pela empresa “WI, SA”, da qual a denunciada é administradora.

Foram registados no DCIAP os seguintes procedimentos:
PA 1148/2010, - comunicação do Banco Santander Totta, SA - activo.
Na mesma comunicação mostra-se referenciado HP, marido da denunciada WS.
PA 1206/2010 – comunicação do Banco Santander Totta, Sa – apensado ao anterior.
Neste é referenciado o cidadão angolano W.R., Presidente do Conselho de Administração da empresa angolana “WI, SA”, da qual a denunciada é administradora.
PA 929/2010 – comunicação do Banco Santander Totta, SA – apensado ao primeiro.

I.
d)
Perscrutados os autos apura-se que os mesmos resultam de sucessivas denúncias de factos susceptíveis de preencher os tipos penais dos crimes de:
1. Associação criminosa p. e p. pelo artº 299º do Código Penal e branqueamento de capitais p. e p. pelo artº 386º - A do Código Penal, praticados no território nacional, tendo como crimes precedentes crimes de corrupção, fiscais e outros alegadamente praticados em Angola;
2. Como ainda, crimes de tráfico de influência p. e p. pelo artº 335º do Código Penal, ao qual é aplicável a lei penal portuguesa ainda que tenha sido praticado fora do território nacional, por força do artº 5º nº 1 alínea a) do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei nº 5/2003, de 22 de Agosto;
3. Corrupção activa com prejuízo do comércio internacional praticada por portuguesas ou estrangeiros, p. e p. pelo artº 7ª da Lei nº 20/2008, de 21 de Abril, ao qual também é aplicada a lei penal portuguesa “independentemente do local onde tenham sido praticados”, conforme artº 3º alínea a) do referido diploma legal.

II.
Com estes pressupostos, em 19 de Novembro de 2013, o MºPº requereu ao Tribunal Central de Instrução Criminal, a aceitação da competência para os presentes autos, assim como a sua sujeição ao segredo de justiça e a confirmação do estatuto de assistente de R. (já decidida nos autos de onde estes foram separados).

III.
Sobre esta promoção recaiu o despacho judicial, datado de 22 de Novembro de 2013, que reconheceu que:
1º O objecto inicial dos presentes autos se fundou nos referidos crimes de associação criminosa e de branqueamento de capitais, praticados em território nacional, tendo como crimes precedentes crimes de corrupção, fiscais e outros alegadamente praticados em Angola, e a investigação se centrou na “averiguação das circunstâncias em que ocorreram transacções de fundos envolvendo bancos e instituições financeiras portuguesas, realizadas por personalidades politicamente expostas e empresários de origem angolana.”
2º Posteriormente por impulso do assistente RM., com a junção de novos nomes e factos, assim como um importante acervo documental, designadamente relatórios das organizações não-governamentais “Global Witness Report” e “Humans Rights Watch”, as diligências “corroboraram a existência dos indícios participados pelo denunciante”, versando “infracções económico-financeiras, indiciariamente cometidas de forma organizada e de dimensão transaccional e internacional” susceptíveis de integrarem a prática de crimes de associação criminosa e branqueamento de capitais.
3º Após diligências e perícias a investigação alargou o seu âmbito aos crimes de tráfico de influência p. e p. pelo artº 335º do Código Penal, (ao qual é aplicável a lei penal portuguesa ainda que tenha sido praticado fora do território nacional, por força do artº 5º nº 1 alínea a) do Código Penal, na redacção introduzida pela Lei nº 5/2003, de 22 de Agosto), e de corrupção activa com prejuízo do comércio internacional praticada por portuguesas ou estrangeiros, p. e p. pelo artº 7ª da Lei nº 20/2008, de 21 de Abril, (ao qual também é aplicada a lei penal portuguesa “independentemente do local onde tenham sido praticados”, conforme artº 3º alínea a) do referido diploma legal).
Após o reconhecimento de tais factos, considerando a complexidade dos autos, o tipo de crimes, a sua dispersão territorial face à indiciada actuação dos seus agentes, o despacho aceitou o reconhecimento “da competência do Tribunal Central de Instrução Criminal para praticar os actos jurisdicionais até à eventual remessa do processo para julgamento – ex vi das disposições conjugadas dos artºs 46º nº 1, 47º nºs 1 e 3, ambos da Lei nº 60/98, de 27 de Agosto, com referência aos artigos 79º e 80º nº 1 da Lei nº 3/99, a que corresponde o artº 112º da Lei nº 58/08, de 28 de Agosto e artº 17º do CPP”.
O despacho termina com a validação da declaração de segredo de justiça e com o reconhecimento do estatuto de assistente de R..

IV.
Em 25 de Março de 2014, coligidos os elementos bancários, assim como efectuados os cruzamentos bancários, visando a averiguação do crime de branqueamento de capitais e determinação da origem nacional ou estrangeira dos mesmos, relativos às contas do investigado M.H.J., a perícia realizada concluiu que se mostrava necessária a obtenção dos documentos de suporte, ou no caso em que estes não existam, dos respectivos registos informáticos, relativamente às contas dos seguintes bancos:
1. Banco Comercial Português;
2. BPI – Banco Português de Investimento;
3. BIG – Banco de Investimento Global;
4. Banco Privado Atlântico-Europa;
5. Banco Espírito Santo;

Informava também, quanto à pretendida colaboração do Banco Espírito Santo de fornecimento verificava-se que o banco em resposta solicitava que lhes fosse enviada cópia do extracto “assinalando os movimentos em causa”, que se encontrassem em poder dos investigadores.
Mais informava, finalmente, que se mostrava necessária a obtenção de outros elementos.
Informaram ainda, que o Banco Espírito Santo e o Barclays Bank, “não obstante o significativo período de tempo já decorrido, aqueles bancos ainda não enviaram alguns dos extractos de movimento que já lhes foram solicitados”, encontrando-se estes identificados (em Anexos).

V.
Por despacho de arquivamento do MºPº, datado de 12 de Agosto de 2014, embora reconhecendo que se encontra “ainda a correr grande número de perícia financeiras” e “não ser possível, em face da escassez de recursos, conseguir resposta célere relativamente a todas as perícias financeiras em curso”:
“Entendeu-se ir encerrando a investigação, logo que possível, por etapas, à medida que os relatórios base o permitam, para evitar que o processo se torne demasiado pesado”.
Mais explicou que, “uma vez obtido o relatório de perícia financeira perfunctoriamente feita ao investigado M.H.J., para evitar a multiplicação de diligências morosas com pedidos de documentação bancária e expedição de rogatórias, foi este notificado, para querendo e pelos seus próprios meios, justificar quaisquer dúvidas suscitadas no relatório pericial”.
Reconhecendo expressamente que:
“Quanto a algumas das importâncias creditadas, só por si o descritivo da operação constante dos extractos não é suficientemente esclarecedor quanto à origem nacional ou estrangeira das mesmas, pelo que na dúvida tais importâncias foram igualmente inventariadas, com vista à subsequente identificação relativamente aos créditos efectuados nas contas relacionados nos bancos Banco Comercial Português, BPI – Banco Português de Investimento, BIG – Banco de Investimento Global, Banco Privado Atlântico-Europa, e Banco Espírito Santo, (todos referidos na informação dos peritos conforme IV. supra);
Concluiu, no entanto, que:
“Todas as questões e dúvidas levantadas no relatório foram esclarecidas”, pelo que determinava o arquivamento.
Pelo que o titular do inquérito concluía que dos “completos esclarecimentos voluntariamente fornecidos” pelo investigado, “não permitem que soçobre a menor dúvida sobre a legítima proveniência dos capitais transaccionados, nomeadamente atendendo aos rendimentos deste e à inexistência de notícia fundamentada sobre qualquer crime precedente”, pelo que se encontrariam “identificadas e justificadas de forma lícita as origens dos movimentos bancários identificados nos mapas descritos”.

Mais determinou, além do arquivamento, o impedimento de acesso por terceiros “e por outros intervenientes processuais” de todas as informações bancárias, extractos bancários, esclarecimentos prestados, documentos juntos e o relatório pericial de onde constam os dados bancários do referido MHJ, ” por entender que contêm “informações sobre factos incluídos na reserva da vida privada deste”.
Finalmente, determinou, que “após eventual não oposição do superior hierárquico, extraia certidão das denúncias e das declarações de assistente e denunciante, etc…”.

VI.
Em apreciação hierárquica, por despacho do MºPº, datado de 15 de Setembro de 2014, onde examinando o referido despacho de arquivamento constatou o seguinte:

- Em 20 de Março de 2014 o Ilustre advogado de M.H.J.apresentou um requerimento onde manifestava a disponibilidade para prestar quaisquer esclarecimentos considerados necessários e fornecer esclarecimentos complementares.

- Em 25 de Março de 2014 foi junta aos autos uma perícia (a que já nos referimos supra em IV.) que analisou os extractos de movimentos relativos às contas de depósito à ordem das quais o referido investigado é titular ou co-titular, em relação às importâncias creditadas que vieram do estrangeiro, e em que só por si, o descritivo da operação constante dos extractos não é suficientemente esclarecedora quanto à origem nacional ou estrangeira das mesmas. Essa inventariação tinha em vista a “subsequente identificação cabal da sua origem”, tal como expressamente afirmado a fls. 1448 e seguinte.

- Em 29 de Maio de 2014, o titular do inquérito proferiu o seguinte despacho:
“Atendendo à disponibilidade manifestada e com vista a imprimir maior celeridade à despistagem do alegado branqueamento de capitais, notifique o mandatário de M.J.do teor do relatório pericial (…) e do ponto 1 de fls 1448 e 1449 para, querendo juntar suportes bancários e sumária justificação dos movimentos”.

- Em 11 de Agosto de 2014 o investigado apresentou os suportes bancários solicitados através de requerimento com o objectivo de “justificar os movimentos identificados”.

- Foi assim que, no dia seguinte à apresentação daqueles suportes bancário - foi imediatamente proferido o despacho de arquivamento (a que já aludimos em V. supra), pelo qual o titular do inquérito concluía que dos “completos esclarecimentos voluntariamente fornecidos” pelo investigado:
“não permitem que soçobre a menor dúvida sobre a legítima proveniência dos capitais transaccionados, nomeadamente atendendo aos rendimentos deste e à inexistência de notícia fundamentada sobre qualquer crime precedente”, pelo que se encontrariam “identificadas e justificadas de forma lícita as origens dos movimentos bancários identificados nos mapas descritos”.

Procedendo ao exame do despacho de arquivamento em sede hierárquica foi o mesmo revogado, por o mesmo resultar de uma “apreciação sem análise crítica que a matéria exigia”, e da apreciação substantiva do requerimento apresentado pelo investigado, resultar que não se encontram justificados os movimentos que o titular do inquérito considerou justificados com base em “operação cambial”, uma vez dessa forma se pode apenas justificar o destino do dinheiro, mas é insuficiente para clarificar a sua origem.
Por outro lado foram descritos dezenas de movimentos, a título exemplificativo, cujos documentos apresentados se mostraram insuficientes para justificar e identificar a origem inicial do dinheiro transferido, pelo que faltando realizar diligências com vista ao apuramento de tais situações, se não encontravam reunidos os pressupostos de arquivamento do inquérito, sendo finalmente ordenado o prosseguimento do inquérito.

VII.
Em 26 de Novembro de 2014, nova perícia revelou que foram detectadas e inventariadas “operações que não haviam sido incluídas na inventariação” anterior e cuja documentação de suporte se mostrava também necessária obter, sendo ainda detectadas faltas em extractos de movimentos já enviados pelo BCP, sendo ainda necessário ordenar a sua obtenção junto do Novo Banco, do Banco Comercial Português e outros.

Em 2 de Fevereiro de 2015 os peritos informam ter sido detectada uma transferência, em 18 de Maio de 2009, da importância de € 7.728.388,00 (sete milhões setecentos vinte oito mil trezentos oitenta e oito euros) efectuada pelo Banco Bai Europa para a conta da “GALRAY” do BES-SFE, pela qual o cliente (apenas identificado como “ZIMBO”) do Banco Sul Atlântico, (para o qual o Banco Bai Europa presta serviços de correspondência,) ordenou aquela transferência.

Por outro lado, resultou que a importância de € 5.500,000,00 (cinco milhões e quinhentos mil euros) debitada na conta do investigado M.J.foi transferida uma semana depois, em 26 de Maio de 2009, para a conta da “WWC, SGPS, SA”, sociedade portuguesa.
Mostrava-se novamente necessário dispor de mais documentos de suporte.

VIII.
Por despacho de 5 de Maio de 2015 requerimento do MºPº foi deferido pelo JIC do Tribunal Central de Instrução Criminal a prorrogação do segredo de justiça até 5 de Novembro de 2016.

IX.
A peritagem revelou em 6 de Junho de 2016 ser necessário apurar se as sociedades e as pessoas físicas investigadas foram, ou não, destinatárias directas de importâncias provenientes das contas do Banco Espírito Santo Angola (BESA) e Banco Espírito Santo (BES).

X.
Em 27 de Junho de 2016, a investigada, WS., requereu a declaração de incompetência internacional do Tribunal em matéria Penal “aliás na esteira da jurisprudência firmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa”.

XI.
Em 6 de Setembro de 2016, o MºPº remeteu os autos para apreciação do Juiz de instrução.

XII.
Em 19 de Setembro, o JIC ordenou a notificação dos assistentes para se pronunciarem, querendo, no prazo de 10 dias.

XIII.
M.H.J. veio aos autos requerer ao JIC, que fosse declarada a inexistência jurídica do despacho de intervenção hierárquica inscrito de fls 2070 a 2081, com o seu imediato desentranhamento dos autos ou, quando assim não se entenda, declarar nulo o douto despacho de intervenção hierárquica, nos termos do artº 120º nº 1 alínea a) do CPP, e, quando assim não se entenda declarar irregular o referido despacho.

XIV.
Por despacho judicial, de fls 3150 e seguintes, o juiz de instrução concedeu provimento ao requerido por “M.H.J., ” julgando verificada a irregularidade, por falta de notificação do assistente e do denunciante, do despacho de arquivamento, ao abrigo do artº 123º nº 2 do CPP, ordenando a realização da mesma e dando sem efeito todos os actos subsequentes.

O despacho conclui decidindo finalmente, “ao abrigo do artº 123º nº 1 do CPP, por ser tempestiva e invocada por quem tem interesse, julgo verificada a irregularidade do despacho proferido a fls 2070 pelo Sr. Director do DCIAP e, em consequência, dou o mesmo sem efeito.”

XV. A 13 de Novembro de 2016, foi proferido o seguinte despacho (que constitui a decisão recorrida):

“Segredo de Justiça cessou, conforme despacho de fls.2691, no dia 5-11-2016.
*
Por despacho de fls.3102 foi ordenada a notificação do assistente para se pronunciar, querendo, quanto ao requerido a fls. 3058.
Por requerimento de fls. 3173 dirigido ao JIC, entrado neste TCIC no dia 3-10-2016, veio o assistente requerer a consulta dos autos para poder responder ao requerido e mais solicitou que fosse considerada a suspensão do prazo em curso até à consulta dos autos.
O aludido requerimento de fls. 3173, foi remetido ao DCIAP (fls. 3171) e por despacho do M° P°, de fls. 3178, foi concedida autorização para consulta dos autos limitada aos autos principais.
O assistente foi notificado desse despacho por carta de 13-10-2016. Até ao momento, o assistente nada disse.
Uma vez que o prazo se esgotou em 3-11-2016, fica prejudicada a questão suscitada pelo assistente.
*
WS. veio, através de requerimento de fls. 3058ss, requerer a declaração de incompetência internacional dos Tribunais Portugueses em matéria Penal alegando, em síntese, os seguintes fundamentos:
Os presentes autos emergiram de certidão extraída do inquérito n.° 142/12.OTELSB em consequência do instituto da separação de processos.
O aludido inquérito, por sua vez, teve origem na averiguação preventiva n.° 85/11, baseada numa queixa, e aditamento posterior, apresentados por A.P., cidadão de nacionalidade angolana, , exonerado em consequência de práticas criminosas, do exercício das suas funções junto das Organizações Internacionais, em Genebra, que culminaram na respectiva condenação, em 15 de Março de 2000, pelo Tribunal Supremo da República de Angola, pelo crime de apropriação ilegítima de bens, na pena de 4 (quatro) anos de prisão maior, no pagamento de Kz 1.500,00 de imposto de justiça e na obrigação de indemnizar o Estado Angolano em USD 1.259.251,17 (um milhão, duzentos e cinquenta e nove mil, duzentos e cinquenta e um dólares e oitenta e sete cêntimos), quantia esta de que fraudulentamente se apropriou.
A requerente não foi visada nas participações também apresentadas em Angola pelo aqui assistente e, em Portugal, nas denúncias que deram origem aos presentes autos é feita apenas uma imputação genérica e abstracta de prática de "corrupção em Angola".
O que, assim, significa dizer que os supostos factos que deram origem aos presentes autos — prática de corrupção em Angola - têm Angola e unicamente Angola como o lugar definido da sua alegada consumação.
Ora, nem o MP português, nem os Tribunais portugueses têm, como é consabido, competência para abrir e/ou prosseguir investigações em Portugal por supostos factos praticados por qualquer cidadão angolano, em Angola, e muito menos, quando neste País - que é soberano - os processos onde se investigavam os factos que deram origem aos presentes autos foram arquivados e tais arquivamentos estão, como in casu, documentalmente comprovados.
Ocorre assim, como está bom de ver, uma manifesta situação de incompetência internacional dos Tribunais Portugueses em matéria Penal, ou seja, de incompetência absoluta do Tribunal, o que, nos termos dos Art.°s 4.° a 6.° do CP, 32.° do CPP e 96.°, 97.° e 99.° do CPC, constitui excepção prévia, aliás do conhecimento oficioso, que determina a imediata absolvição da requerente da instância.
Do regime de "Incompatibilidades" previsto no Art.° 149.° da Constituição da República de Angola, aplicável aos Deputados - como é concretamente o caso da ora requerente - resulta clara e inequivocamente que os Deputados podem continuar a ser sócios / accionistas de empresas privadas em quaisquer geografias como aliás também acontece em Portugal e nos restantes países europeus.
A requerente não é sujeito passivo fiscal residente em Portugal, pelo que não se mostram preteridas quaisquer obrigações fiscais declarativas perante o Estado português, inexistindo também quaisquer antecedentes criminais, nem qualquer crime precedente.
A requerente é cidadã nacional angolana;
A requerente reside em Angola;
A requerente é sujeito passivo residente fiscal em Angola;
Os alegados factos que deram origem aos presentes autos ocorreram em Angola (aliás a denúncia onde é visada a requerente constante fls. ... não relata quaisquer factos concretos referindo genericamente a existência de ''''corrupção em Angola" e "branqueamento de capitais");
Inexiste qualquer imputação concreta da prática de qualquer facto pela requerente;
Encontra-se provado documentalmente o arquivamento das referidas queixas-crime apresentadas em Angola pelo aqui assistente, queixas estas onde aliás a ora requerente não figura com denunciada;
A requerente juntou aos autos o respectivo certificado do registo criminal emitido pela autoridade competente da República de Angola provando que não possui quaisquer antecedentes criminais;
A requerente juntou também aos autos certidão emitida pela Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal da Procuradoria-Geral da República de Angola comprovativa da inexistência de processos em curso contra si em Angola;
ANGOLA é um país soberano com o qual, em 23 de Novembro de
2005, Portugal assinou a Convenção de Auxílio Judiciário Mútuo em
matéria penal no âmbito da Comunidade dos Países de Língua
Portuguesa (CPLP);

A competência internacional dos Tribunais portugueses em matéria penal encontra-se definida nos Art.°s 4.° a 6.° do Código Penal.

Portanto, como claramente decorre do exposto, é pressuposto do branqueamento de capitais, na lei portuguesa, a verificação de um facto ilícito típico subjacente definido pela lei de onde sejam provenientes as vantagens dissimuladas, o que in casu não ocorre.
A lei portuguesa, como é consabido, exige literalmente a prática de um "crime" subjacente ou precedente.
Conclui, dizendo existe questão prévia de que o JIC deve, nos termos da lei, conhecer oficiosamente, e que obsta à decisão sobre o mérito da causa por falta absoluta de competência dos Tribunais portugueses, sob pena de violação dos princípios sobre competência internacional, impondo-se nos termos do disposto nos art.°s 4.° a 6.° do CP e 32.° do CPP e 96.° do CPC actualizado, o conhecimento oficioso da excepção da incompetência absoluta do Tribunal o que, por sua vez, determina a absolvição da requerente da instância nos termos dos art.°s 97.° e 99.° do CPC.
Das normas contidas no Art.° 32.° do CPP, resulta que a incompetência do tribunal é por este conhecida e declarada oficiosamente.
O Ministério Público respondeu, conforme consta de fls. 3094 referindo, que, apesar da requerente não ser sujeito processual nestes autos, a questão deve ser conhecida pelo JIC, nos termos do artigo 32° n° 1 do CPP.

Cumpre apreciar o requerido.
Os presentes autos de inquérito tiveram início no dia 14-11-2013, com base na certidão de fls. 2ss, extraída do inquérito n° 142/12.0TELSB, na sequência de uma denúncia apresentada por A.P. e começou logo a correr contra pessoa determinada, entre eles, M.H.J., LF0N, F.C., M.M. e outros.
A fls. 138, consta a denúncia, com data de 16-6-2011, elaborada por A.P., na qual solicita que seja feito um aturado inquérito às actividades económicas e financeiras em Portugal e investigar sobre a relação com instituições portuguesas, com os seguintes cidadãos. I.S., WS e HVD.
Esta denúncia deu origem a uma averiguação preventiva que correu termos sob o n° 85/11.
Na sequência dessa AP, foram recolhidas informações sobre as comunicações no âmbito da Lei 25/2008 (fls. 146), bem como sobre o património dos denunciados em Portugal (fls. 173).
Foram tomadas declarações ao denunciante, conforme consta de fls. 218ss, no qual refere, em resumo, que a acumulação de riqueza de bilhões de dólares pelos três denunciados assenta na exploração das riquezas de diamantes e petróleos angolanos e que essa riqueza está a ser introduzida em Portugal.
Foi recolhida informação sobre WS., sendo esta detentora de duas contas bancárias junto do Banco Santander Totta, sendo uma delas creditada com 150.000,006 e a conta expressa em USD, creditada em 19-10-2010, por uma transferência de 800.000 USD proveniente do BPN.
Como justificação para os fundos, foi indicado a atribuição de um «success fee» pela empresa W.I., S.A. da qual a denunciada WS. é administradora.
Por despacho do M° P° de fls. 470, foi solicitado à PGR de Angola informação sobre a pendência de algum processo-crime contra WS. e a fls. 538 consta a informação negativa prestada pela PGR de Angola.

Nos presentes autos de inquérito investigam-se factos susceptíveis de integrar crimes de branqueamento de capitais, p e p pelo art° 368-A do CP, tendo, como crimes precedentes, corrupção, burla, fraudes fiscais alegadamente cometidos em Angola.
Por despacho judicial de fls. 1352, com data de 21-11-2013, foi aceite a competência deste TCIC para a prática dos actos jurisdicionais no presente inquérito e no mesmo despacho foi confirmada a aplicação do regime de segredo de justiça.
Nesse mesmo despacho judicial, na sequência da promoção do M° P° de fls. 1348 e 1348, foi referido que o objecto dos presentes autos centra-se na factualidade denunciada a qual é susceptível de integrar a prática dos crimes de associação criminosa p e p pelo art° 299°, branqueamento de capitais pppelo art° 368-A ambos do CP, praticados em território nacional, tendo como crime precedente os de corrupção, burla, fraude fiscal, indiciariamente praticados em Angola e ainda crimes de tráfico de influência pppelo art° 335° do CP, corrupção activa com prejuízo do comércio internacional pp pelo art° da Lei 20/2008, de 21/04.
A fls. 1357 foi confirmada, nestes autos, o estatuto de assistente a R..
Por despacho de fls. 2015, com data de 12-08-2014, foi proferido despacho de arquivamento, nos termos do artigo 277° n° 1 do CPP, quanto aos factos relativos ao suspeito M.H.J..

Por despacho de fls. 204lss, com data de 15-09-2014, foi determinado, no âmbito dos poderes hierárquicos, que o inquérito prosseguisse nos termos do artigo 262° n° 1 do CPP.
Por despacho judicial de fls. 3150 ss foi declarada a irregularidade do despacho proferido a fls. 2070, pelo Sr. Director do DCIAP ficando o mesmo sem efeito bem como todos os actos subsequentes.

Do Apenso A, conta o Processo Administrativo n° 1148/2010, aberto na sequência da comunicação feita (fls. 3 do Apenso A), pelo Banco Santander, no dia 26-10-2010, ao abrigo da Lei 25/2008, relativamente a uma operação - ordem de pagamento do BPN/Cayman, no valor de 800.000,00 USD para a conta n° 000311152275024.
A conta bancária em causa é titulada por HP. e WS.

A fls. 5 do Apenso A, consta a acta n° 4/2008, na qual a sociedade angolana W.I., S.A, decidiu atribuir um «success fee», no valor de dois milhões de dólares norte-americanos aos accionistas, sendo um milhão e quinhentos mil dólares à accionista W..
A fls. 3 do Processo Administrativo n° 929/2011, incorporado no Apenso A, consta a comunicação feita em 13-7-2011, pelo Banco Santander Totta, no âmbito da Lei 25/2008, relativa à operação -transferência em routing operada pelo Banco Santander Totta na qualidade de banco correspondente, no valor de 750,000.00 na qual é interveniente W..
Estas comunicações não deram origem a abertura de inquérito.
Os processos Administrativos acima referidos foram apensados à Averiguação Preventiva 85/11, por despacho de fls. 149.

Da análise dos autos, verifica-se que o presente inquérito, na qual a requerente é suspeita, não teve origem nas comunicações feitas pelo Banco Santander Totta ao abrigo da Lei 25/2008, mas sim com base na denúncia de fls. 138 elaborada por A.P..
Em relação à suspeita WS, investigam-se nos presentes autos a origem das importâncias creditadas nas contas das quais é titular e co-titular, acima referidas.
A suspeita WS. é cidadã angolana, contribuinte fiscal e residente em Angola.
A origem dos fundos movimentados na conta da suspeita foi justificada com a acta de fls. 5 do Apenso A, na qual a sociedade angolana, no dia 5-5-2008, W.I., S.A, decidiu atribuir um «success fee», no valor de dois milhões de dólares norte-americanos aos accionistas, sendo um milhão e quinhentos mil dólares à accionista WS.
Os factos ilícitos constantes da denúncia de fls. 138 e, conforme resulta do despacho do M° P° de fls. 463, foram, alegadamente praticados em Angola. Factos que, alegadamente, estarão na origem ilícita dos fundos movimentados pela suspeita WS. em Portugal junto do Banco Santander Totta.
Conforme resulta do despacho do M° P° de fls. 463, os factos, alegadamente praticados em Angola, são susceptíveis de configurar a prática, em Angola, de crimes de corrupção, burla, fraude fiscais e outros.
Em Angola não existe nenhum inquérito crime no qual seja visada a suspeita WS. ou os factos descritos na denúncia de fls. 138.
No dia 6-1-2012 RM. apresentou denúncia, junto da Procuradoria-Geral da República de Angola contra outros suspeitos, também suspeitos nos presentes autos, como é o caso de M.H.J. por este ter usado e abusado do seu cargo público e do poder de influência que detém junto do Presidente da República e praticado factos susceptíveis de enriquecimento ilícito, violação da lei das actividades petrolíferas.
Na sequência dessa denúncia, correu termos junto da PGR de Angola o inquérito n° 4/2012, o qual terminou com despacho de arquivamento, proferido em 7-2-2013, pela inexistência de indícios susceptíveis de integrar a prática de crime.

Deste modo, nos termos do artigo 32° n° 1 do CPP cumpre conhecer da alegada excepção de incompetência internacional invocada pela suspeita.
Como resulta do despacho do M° P° de fls, 463 os factos em investigação nos presentes autos são susceptíveis de integrar a prática de um crime de branqueamento de capitais p e p pelo artigo 368° - A do CP.

Do crime de branqueamento de capitais.
Resulta do disposto no art° 368 -A, do Código Penal que: quem converter, transferir, auxiliar ou facilitar alguma operação de conversão ou transferência de vantagens, obtidas por si ou por terceiro, directa ou indirectamente, com o fim de dissimular a sua origem ilícita, ou de evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal é punido com pena de prisão de 2 a 12 anos.
Na mesma pena incorre quem ocultar ou dissimular a verdadeira natureza, origem, localização disposição, movimentação ou titularidade das vantagens, ou os direitos a ela relativos.
Esclarece o n° l deste preceito legal, que se consideram vantagens os bens provenientes da prática, sob qualquer forma de comparticipação dos factos ilícitos típicos de (...) corrupção e demais infracções referidas no n°l da Lei n° 36/94, de 20 de Setembro, e dos factos ilícitos típicos puníveis com pena de prisão de duração mínima superior a seis meses ou a duração máxima superior a cinco anos, assim como os bens que com eles se obtenham.
O chamado branqueamento de capitais é legalmente descrito como um processo destinado a um certo fim, a ocultação ou dissimulação de um conjunto de características de bens de origem ilícita (origem, localização, disposição, movimentação, propriedade) pelo que a casuística do branqueamento de capitais é inesgotável (Do crime de Branqueamento de Capitais" Introdução e Tipicidade, Jorge Alexandre Fernandes Godinho, Almedina, 2001).
Como se refere no acórdão do STJ no NUIPC 14/07.0TRLSB.S1. O branqueamento de capitais (dinheiro ou outros bens) consiste no procedimento através do qual o produto de operações criminosas ilícitas é investido em actividades aparentemente lícitas, mediante dissimulação da origem dessas operações; traduz-se no desenvolvimento de actividades, em resultado das quais um aumento de valores, que não é comunicado às autoridades legítimas, adquire uma aparência de origem legal, sendo, no fundo, um processo de transformação.
Segundo Lourenço Martins, Branqueamento de capitais: Contra medidas a nível internacional e nacional, Revista Portuguesa de Ciência Criminal (RPCC), Ano 9, Fase. 3.°, Julho-Setembro 1999, págs. 450/1, o branqueamento de capitais (dinheiro ou outros bens) consiste no procedimento através do qual o produto de operações criminosas ilícitas é investido em actividades aparentemente lícitas, mediante dissimulação da origem dessas operações; traduz-se no desenvolvimento de actividades, em resultado das quais um aumento de valores, que não é comunicado às autoridades legítimas, adquire uma aparência de origem legal, sendo, no fundo, um processo de transformação.
Rodrigo Santiago, O «Branqueamento» de capitais e outros produtos do crime, RPCC, 1994, págs. 501/2, o branqueamento passa, ou pode passar, por dois momentos: um primeiro, conhecido por money laundering, e um outro chamado recycling. "O money laundering constitui o núcleo essencial do branqueamento. Pretende-se, através das operações que visam alcançá-lo, que as vantagens ou incrementos patrimoniais, resultantes do facto criminoso anterior, sejam rapidamente libertadas dos vestígios da respectiva origem criminosa. Normalmente, neste momento, as referidas «vantagens» são ainda constituídas por dinheiro em numerário, e o respectivo branqueamento concretiza-se em negócios de curto prazo, os quais visam, como se referiu, dissimular não só a sua origem, como a respectiva identificação. E normalmente, o que se passa através da troca do dinheiro «sujo» por outros valores monetários, designadamente por notas de maior valor, ou pela troca desse dinheiro por outros bens facilmente transportáveis, como sejam jóias, metais e pedras preciosas, títulos de participação, abertura de contas bancárias noutros países, de preferência em nome de pessoas colectivas, negócios de Bolsa, aquisição de lotaria premiada, etc. Já a recycling, quando chega a ter lugar, se concretiza em operações ou «manipulações» através das quais os incrementos referidos, já previamente «lavados», vão ser objecto de «tratamentos» de forma a que ganhem a aparência de se tratar de objectos de proveniência lícita, com a sua consequente reentrada no normal circuito económico. O que sucede, por via de regra, com a aplicação do dinheiro em grandes negócios, como pizarias e salas de espectáculos, ou através da ligação a negócios bancários ou de sociedades financeiras».
A punição do branqueamento visa tutelar a pretensão estadual ao confisco das vantagens do crime, ou mais especificamente, o interesse do aparelho judiciário na detecção e perda das vantagens de certos crimes, (sic Ac. Rel Porto de 07-02-2007 - Proc. 06165509 in www.dgsi.pt).
Para Paulo Pinto Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2.a edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2010, na nota prévia ao artigo 368.°A, n.° 4, pág. 951, o bem jurídico protegido pelo crime de branqueamento de capitais, nas suas diversas alíneas, é o da administração da justiça, o da perseguição e confisco pelos tribunais dos proventos da actividade criminosa, repetindo agora na nota 2 ao artigo, na pág. 955, que o bem jurídico protegido pela incriminação é a realização da justiça, na sua particular vertente da perseguição e do confisco pelos tribunais dos proventos da actividade criminosa. Reale Júnior, Figura típica e objecto material do crime de "Lavagem de dinheiro",

Condição objectiva do tipo de branqueamento é a verificação de um facto ilícito típico subjacente, definido pela lei, de onde sejam provenientes as vantagens que se dissimulam.
E pressuposto do branqueamento de capitais a existência de um de certos crimes precedentes previstos no "catálogo" legal, de cuja prática sejam provenientes os bens cuja origem se pretende dissimular.
É, por isso, indispensável demonstrar tal efectiva proveniência, não bastando apurar que o agente manipulou bens cuja origem licita não resulta clara.
E um crime doloso. Terá de haver a intenção de ocultar a origem ilícita das vantagens ou de favorecer um agente do facto precedente. Esse dolo deverá ser específico na medida em que se exige um efectivo conhecimento da proveniência das vantagens.
O processo de dissimulação do branqueamento passa, em regra, pelas seguintes fases:
Colocação - introduz-se os bens ou produtos, normalmente dinheiro, em algum ponto do circuito financeiro e económico legal.
Camuflagem (nuclear) - efectuam-se operações sucessivas de transformação ou transferência daquele dinheiro de modo a tornar difícil detectar-lhe a origem e o rasto; são, por exemplo, feitas sucessivas transferências para outras contas ou instituições financeiras de outras pessoas, frequentemente em outros países, de tal modo que a partir de certo ponto se torna praticamente impossível identificar a origem.
Integração - faz-se a utilização dos bens já lavados nomeadamente, o dinheiro em actividades lícitas que podem ir desde a compra de bens de luxo até ao investimento em actividades económicas.
Como vimos, as condutas tipificadas no n° 2 do art. 368-A do CP, que integram o tipo objectivo do crime de branqueamento, são, como se refere no acórdão da Relação do Porto de 7-2-2007: «(i) a conversão de vantagens; (ii) a transferência de vantagens; (iii) o auxílio de alguma operação de conversão de vantagens; (iv) o auxílio de alguma operação de transferência de vantagens; (V) a facilitação de alguma operação de conversão de vantagens; (vi) a facilitação de alguma operação de transferência de vantagens.
A operação de «conversão» consiste "na alteração da natureza e configuração dos bens gerados ou adquiridos com a prática do facto ilícito típico subjacente, enquanto a «transferência» traduz-se "quer na deslocação física dos bens, quer na alteração jurídica ao nível da titularidade ou do domínio.
Quanto ao tipo subjectivo, exige o n° 2 do artigo 368-A do CP, a intenção de dissimular a origem ilícita das vantagens ou de evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal».
Uma vez verificados os elementos constitutivos do tipo de crime de branqueamento de capitais cumpre saber se os tribunais portugueses têm competência para conhecer dos factos em investigação nos presentes autos.
Na verdade, estamos perante uma denúncia apresentada contra a requerente, entre outros, cidadã angolana com residência em Luanda, por alegados factos subjacentes ocorridos, supostamente, em Angola no qual o M°P° português abriu o presente inquérito quanto aos referidos factos.

E inquestionável a competência do tribunal português para conhecer do crime de branqueamento cometido em território nacional em que os ilícitos típicos subjacentes foram praticados também em território nacional. Questão mais complexa surge nos casos em que o crime subjacente é praticado no exterior. Na verdade, o crime de branqueamento de capitais tem um carácter transnacional, ou seja, coloca-nos perante novas formas de criminalidade resultantes do fenómeno da globalização que resultam em problemas ao nível da aplicação da lei penal no espaço.
A este propósito escreve Alberto Silva Franco, em "Globalização e criminalidade dos poderosos", publicado na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 10, Fase. 2.°, Abril-Junho 2000, a págs. 206/7 «não se poder deixar de reconhecer que o modelo globalizador produziu novas formas de criminalidade que se caracterizam, fundamentalmente, por ser uma criminalidade supranacional, sem fronteiras limitadoras, por ser uma criminalidade organizada, e por ser uma criminalidade que permite a separação tempo-espaço entre a acção das pessoas que actuam no plano criminoso e a danosidade social provocada. Tal criminalidade, desvinculada do espaço geográfico fechado de um Estado, espraia-se por vários outros e se distancia nitidamente dos padrões de criminalidade que tinham sido até então objecto de consideração penal. A criminalidade económica, a criminalidade das drogas, a criminalidade ecológica, a criminalidade organizada etc, enfim, os crimes of the powerful, dependem em face das várias fases de sua operacionalidade, de um número elevado de acções delituosas, que podem até ser devidamente caracterizadas; no entanto, enquanto expressão de criminalidade montada na base de um sistema reticulado, não se sabe, ao certo, o lugar de sua realização e nem se mostra descomplicada a identificação dos seus autores».
Por sua vez, José de Faria Costa em Direito Penal Económico e Europeu, Volume III, Coimbra Editora, 2009, págs. 106 e 107 refere que: «O princípio da territorialidade constitui, dentro da nossa actual civilização jurídico-cultural, a pedra de toque de toda a problemática da aplicação da lei penal no espaço", axioma que é integrado por outros princípios - v. g., defesa dos interesses nacionais, do pavilhão, da nacionalidade, do princípio da aplicação universal - o que permite que, mesmo quando não possa funcionar o princípio da territorialidade, a lei penal nacional se aplique, desde que se verifique um conjunto de circunstâncias consagrado explicitamente pelo legislador, aumentando-se o âmbito da lei penal nacional e respondendo, também deste modo, a duas atitudes essenciais que se devem ter nesta área: a) punir ou expulsar (punire aut dedere) e b) evitar a todo o custo que uma infracção fique sem punição».
Quanto a aplicação da lei penal no espaço, o artigo 4.° do Código Penal, refere que: «Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é aplicável a factos praticados: a) Em território português, seja qual for a nacionalidade do agente; ou b) A bordo de navios ou aeronaves portugueses».
A aplicação espacial do direito penal assenta nos seguintes princípios, consagrados nos artigos 4o e 5o do CP: o princípio da territorialidade, o princípio da nacionalidade, o princípio da defesa dos interesses nacionais, o princípio da universalidade, o princípio da administração supletiva da lei nacional e o princípio da aplicação convencional.
Segundo o princípio da territorialidade o Estado aplica o direito penal a todos os factos juridicamente relevantes cometidos no seu território, definido no artigo 5o da CRP, independentemente da nacionalidade do agente.

De acordo com o princípio da defesa dos interesses nacionais, o Estado pune os factos juridicamente relevantes dirigidos contra os interesses nacionais.
Por sua vez, segundo o princípio da aplicação universal, o Estado pune todos os factos juridicamente relevantes dirigidos contra os interesses da humanidade, independentemente da nacionalidade do agente ou da vítima e do local onde foram cometidos.
O princípio da administração supletiva da lei nacional, nos termos do qual o estado pune os factos juridicamente relevantes cometidos fora do território nacional contra estrangeiros por estrangeiros que se encontram em Portugal mas que não podem ser extraditados.
Por fim, de acordo com o princípio da aplicação convencional da lei penal nacional, esta é aplicável sempre que o estado Português se vincule, por tratado ou convenção internacional a julgar certos factos pela lei nacional.
Quanto ao crime de branqueamento o artigo 368.° A n° 4o, do CP refere que: A punição pelos crimes previstos nos números 2 e 3 tem lugar ainda que os factos que integram a infracção subjacente tenham sido praticados fora do território nacional, ou ainda que se ignore o local da prática do facto ou a identidade dos seus autores.
Daqui decorre que a punição pelos crimes de branqueamento abranja expressamente os casos em que os factos que integram a infracção principal tenham sido praticados fora do território nacional.
Deste modo, quanto ao crime de branqueamento, as regras de aplicação espacial da lei penal portuguesa permanecem inalteradas, sendo necessário que os actos de conversão, transferência ou ocultação ocorram, ao menos parcialmente, em território nacional ou a bordo de navio ou aeronave portugueses (artigos 7.° e 4.° do CP), ou que, ocorrendo no estrangeiro, o agente seja de nacionalidade portuguesa (artigo 5.°, n.° l, alínea c)) ou haja sido pedida a sua extradição e esta não possa ser concedida (artigo 5.°, n.° l, alínea e).
Voltando ao caso concreto, verifica-se, atento o teor da denúncia, que os factos que deram origem aos presentes autos, alegadamente, ocorreram em Angola, sendo que a suspeita é angolana e residente em Luanda. Assim, quanto a estes factos, os alegados crimes de corrupção, burla e fraude fiscal cometidos em Angola, não existem dúvidas que o M° P° português carece de competência para os investigar, na medida em que não se verificam os pressupostos enunciados no referido artigo 5o do CP.
Como vimos supra, a investigação dos presentes autos, em relação à requerente WS., não teve origem nas comunicações realizadas no âmbito da Lei 25/2008, na medida em que essas comunicações apenas deram origem a um Processo Administrativo, (presume-se que pelo teor da justificação quanto à origem dos fundos), mas sim, na denúncia de fls. 138, relativa a factos alegadamente cometidos em Angola.
Quanto aos factos alegadamente praticados em Angola, cumpre referir que os mesmos foram dados a conhecer à PGR de Angola, conforme resulta do teor da Carta Rogatória constante de fls. 470 ss destes autos.
Consta, também, que a PGR de Angola, apesar de ter tomado conhecimento do teor da Carta Rogatória, não abriu nenhuma investigação visando a suspeita WS.
Deste modo, a questão que se coloca neste momento, face á decisão tomada pelo M°P° de Angola em não abrir investigação quanto aos mesmos factos, é a de saber se o M° P° em Portugal tem competência para prosseguir com a investigação relativa aos movimentos financeiros ocorridos em Portugal que, quanto à sua origem, já foi objecto de decisão por um outro Estado soberano.
Paralelamente a isso, a suspeita WS. fez juntar aos autos documentação constante do Apenso A com vista a justificar os movimentos bancários acima identificados.
A este propósito, José de Faria Costa, O branqueamento de capitais (Algumas reflexões), 1992, pág. 69, a actividade de branqueamento é ela já uma criminalidade derivada, de 2.° grau ou induzida de outras actividades, pois só há necessidade de "branquear" dinheiro se ele provier de actividades primitivamente ilícitas.
Pedro Caeiro, A consunção do branqueamento pelo facto precedente, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, 2010, versando agora o artigo 368.°-A, do Código Penal, pág. 200, nota 35, afirma que o tipo do branqueamento exige apenas que as vantagens provenham de um facto ilícito típico, não de um crime, donde a punição do branqueamento não depende da efectiva punição pelo facto precedente.
Por sua vez, Germano Marques da Silva, Notas sobre branqueamento de capitais em especial das vantagens provenientes da fraude fiscal, Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles: 90 anos /Homenagem da Faculdade de Direito de Lisboa, Almedina, 2007 refere a págs. 456: o crime de branqueamento acompanha o crime designado, dificultando a actuação da justiça, quer na sua descoberta e punição, quer na perda das vantagens do crime que é consequência da condenação (artigo 111.0 do CP). Mas o branqueamento não consiste simplesmente no aproveitamento das vantagens adquiridas com a prática do crime, é mais do que isso, é um facto praticado com o fim de dissimular a origem ilícita das vantagens ou de evitar que os agentes sejam perseguidos ou submetidos a uma reacção criminal, é, enfim, um facto praticado com o fim específico de dificultar a acção da justiça. O simples aproveitamento das vantagens do crime não constitui ainda branqueamento, só o sendo quando os factos típicos são praticados com aquela intenção específica. Por isso que pode existir concurso real de crimes entre o crime designado e o crime de branqueamento, quando praticados pelo mesmo agente, porque são protegidos pelas incriminações.
Mais adiante a pág. 459, o mesmo autor reafirma que o crime de branqueamento é um crime contra a realização da justiça, na medida em que através da sua prática o agente persegue o fim de dissimular a origem ilícita dos bens a branquear ou «evitar que o autor ou participante dessas infracções seja criminalmente perseguido ou submetido a uma reacção criminal», sendo que dissimular a origem ilícita dos bens é uma forma de evitar a perseguição criminal. O crime de branqueamento é praticado para ocultar ou garantir o proveito do crime antecedente, havendo entre eles uma conexão material de tal modo que o crime subjacente compõe a própria estrutura do branqueamento; no plano ontológico o crime de branqueamento é mais um elo na cadeia do crime subjacente e, por isso, que alguns entendem que ambos têm a mesma natureza».
Tendo em conta os ensinamentos acima referidos e a estreita relação entre os actos de branqueamento e o facto ilícito precedente e tendo estes factos precedentes, alegadamente, sido consumados num outro país soberano que, apesar de já ter tomado conhecimento dos alegados ilícitos subjacentes, não exerceu investigação quanto aos mesmos, faz com que os tribunais portugueses, neste caso o M° P°, careçam de competência para a prossecução da investigação por não estarem verificados os requisitos do artigo 5o do CP.
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, citado no ARL de 26-3-2015, NUIPC 147/13.3TELSB «o princípio da universalidade ou da aplicação universal visa permitir a aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiro que atentam contra bens jurídicos carecidos de protecção internacional ou que ... o Estado Português se obrigou internacionalmente a proteger. Não se trata ...da facultar a cada Estado a intervenção penal relativamente a todo e qualquer facto considerado crime pela lei interna o que conduziria à existência de um jus puniendi estadual sem qualquer fronteira e fomentador, por isso, em larga medida, de conflitos internacionais de caracter jurídico-penal».
Atento o disposto no artigo 96° do CPC, aplicável ao caso concreto por força do artigo 4o do CPP, «determinam a incompetência absoluta do Tribunal a) a infracção das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras da competência internacional;».
A incompetência absoluta constitui uma excepção dilatória, a qual pode ser conhecida oficiosamente e conduz à absolvição da instância -artigos 577° a), 97° e 99°, todos do CPC.
Em face do exposto, sendo a suspeita cidadã angolana, residente em Angola, contribuinte fiscal em Angola, os alegados factos subjacentes alegadamente terem sido consumados em Angola, faz com que os tribunais portugueses sejam incompetentes, sobe pena de violação das regras de competência internacional, para investigar e julgar os factos que constituem o objecto dos presentes autos na parte relativa á referida requerente.
Assim sendo, julgo verificada a excepção de incompetência absoluta, por violação das regras de competência internacional e, em consequência, absolvo a requerente WS. da instância.
Notifique.”

7.2.2. Do Direito:

I. A decisão recorrida começa por circunscrever a Angola a prática dos factos constantes da denúncia (de AP. contra a suspeita/denunciada WS.), os quais estão na origem ilícita dos fundos financeiros por esta movimentados em Portugal, atribuindo ao estado angolano, através da sua Procuradoria-Geral da República, a decisão de não abrir investigação sobre os mesmos, dos quais teria conhecimento através da carta rogatória, daí extraindo a conclusão de que “o MºPº não tem competência, quanto aos mesmos factos, para prosseguir investigação, relativamente aos movimentos financeiros ocorridos em Portugal, que quanto à sua origem já foi objecto de decisão por um Estado Soberano”.
A decisão recorrida, versando a questão de “saber se os tribunais portugueses têm competência para conhecer do crime de branqueamento quando os factos subjacentes ocorreram em Angola”, considerando “necessário, que os factos de conversão, transferência ou ocultação ocorram em território nacional ao menos parcialmente, em território nacional ou a bordo de navio ou aeronave portugueses (artigos 7.° e 4.° do CP), ou que, ocorrendo no estrangeiro, o agente seja de nacionalidade portuguesa (artigo 5.°, n° l, alínea c)) ou haja sido pedida a sua extradição e esta não possa ser concedida (artigo 5.°, n° l, alínea e)”, considerou que “atento o teor da denúncia, que os factos que deram origem aos presentes autos, alegadamente, ocorreram em Angola, sendo que a suspeita é angolana e residente em Luanda” e “os alegados crimes de corrupção, burla e fraude fiscal cometidos em Angola”;
Concluindo que:
“Não existem dúvidas que o M° P° português carece de competência para os investigar, na medida em que não se verificam os pressupostos enunciados no referido artigo 5o do CP”.

A decisão recorrida não se esgotou nos considerandos e conclusões acima descrita, indo mais além.
Assim, mais entendeu que;
“A suspeita WS. fez juntar aos autos documentação constante do Apenso A com vista a justificar os movimentos bancários”, e que o facto praticado não teria como fim a dissimulação da origem ilícita das vantagens, ou o propósito de evitar que os agentes sejam perseguidos ou submetidos a uma reacção criminal, constituindo um facto praticado com o fim específico de dificultar a acção da justiça, mas, antes, “um mero aproveitamento das vantagens, que não constitui ainda branqueamento.”

São estes os fundamentos da decisão recorrida que concluiu pela declaração da incompetência dos tribunais portugueses, sob pena de violação das regras de competência internacional, para investigar e julgar os factos que constituem o objecto dos presentes autos na parte relativa á referida requerente WS..

II. A decisão recorrida segue a alegada “jurisprudência firmada do Tribunal da Relação de Lisboa, no sentido da incompetência absoluta dos tribunais portugueses”, alegada pela suspeita/investigada e recorrida WS. na sua resposta à motivação de recurso interposto pelo MºPº:

Assim reza o referido Acórdão do TRL, 9ª Secção, no processo nº 208/13.9TELSB, de 2 de Junho de 2016:

“Acordam em conferência os Juízes na Secção Criminal (9a) do Tribunal da Relação de Lisboa:
No processo comum nuipc° 208/13.9TELSB-D.L1 do Tribunal Central de Instrução Criminal, não se conformando com a decisão proferida pelo Mmo juiz de instrução junto do Tribunal Central de Instrução Criminal pelo qual se declarou incompetente para conhecer da arguida excepção de incompetência absoluta dos Tribunais portugueses e do Ministério Público para prosseguir as investigações em Portugal atento o arquivamento do inquérito preliminar que sob o n° 06-A/2012 correu os respectivos termos na Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal da Procuradoria Geral da República de Angola onde foi visado pelos mesmos alegados factos, todos supostamente ocorridos em Angola, e não tendo sido denunciado no âmbito dos presentes autos..." dela veio interpor recurso, com os fundamentos constantes da respectiva motivação e as conclusões que aqui se dão por reproduzidas, alegando, em síntese, que foram violadas as normas e os princípios ínsitos nos artºs 2°, 13°, 32°, 202° e 204°, da Constituição da República Portuguesa, no art. 8°, do Código Civil, no art. 4°, do Código de Processo Penal, e nos arts 96°, 97° e 99°, do Código de Processo Civil.
O Digno Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância respondeu concluindo que deve o recurso ser julgado procedente devendo ser o despacho recorrido revogado e devendo ser determinado ao M.mo juiz a quo que aprecie do mérito do requerimento apresentado e que sobre o mesmo profira decisão.
Neste Tribunal o Exm° Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos, emitindo parecer no sentido da improcedência do recurso.
Foi dado cumprimento ao artigo 417.° n.° 2 do C.P.Penal existindo resposta.
Colhidos os vistos legais, cumpre agora apreciar e decidir.
Os presentes autos emergiram de certidão extraída do inquérito n° 142/12.OTELSB em consequência do instituto da separação de processos.
O aludido inquérito, por sua vez, teve origem na averiguação preventiva n° 85/11, baseada numa queixa, e aditamento posterior, apresentada por (…) cidadão de nacionalidade angolana, queixa inicial e aditamento onde o ora recorrente não é denunciado, nem sequer mencionado.
Em 6 de Janeiro de 2012, ao abrigo do disposto nos Art°s 73.° da Constituição da República de Angola e 32.° da Lei n.° 3/10, de 29 de Março, isto é, a denominada Lei da Probidade Pública, da República de Angola, o aqui assistente (…) apresentou, em Angola, denúncia contra, entre outros, o ora recorrente.
Posteriormente, o assistente veio juntar aos presentes autos cópia da queixa que, em Angola, apresentou contra o recorrente e outros e que ali deu origem ao inquérito preliminar que sob o n° 06-A/2012 correu os respectivos termos na Direcção Nacional de Investigação e Acção Penal da Procuradoria-Geral da República de Angola.
Após a realização do respectivo inquérito preliminar na Procuradoria-Geral da República de Angola e a realização das diligências reputadas úteis, a referida queixa foi, no passado dia 7 de Fevereiro de 2013, objecto de despacho de arquivamento.
A certidão daquele douto despacho de arquivamento está junta aos presentes autos.
Os factos denunciados teriam ocorridos em Angola e unicamente Angola e consubstanciariam em tese o crime precedente de branqueamento de capitais especificamente exigido pela lei portuguesa;
Antes mais, cabe referenciar ter a juíza desembargadora relatora destes autos sido co-autora e subscritora de recente acórdão tirado por unanimidade em 26-03-2015 no processo 147/13.3 TELSB-9 (inserido em wwwdgsi.pt) em questão em tudo semelhante ao dos presentes autos.
No mesmo se escreveu, na parte relevante, que:
Os factos que deram origem aos presentes autos têm, pois, nessa parte, definido o seu lugar de consumação em País soberano, com o qual Portugal assinou Convenção de Auxílio Judiciário Mútuo em matéria penal no âmbito da CPLP, em 23 de Novembro de 2005.
A primeira conclusão a retirar deste facto é a de que tendo os presentes autos partido de uma denúncia apresentada contra o aqui recorrente, cidadão angolano com residência em Luanda, por alegados factos ocorridos, supostamente, em Angola, não tem o M°P° português competência para abrir inquérito aos referidos factos
Com efeito, a competência internacional dos Tribunais Portugueses encontra-se definida nos art°s 4 ° a 6° do Código Penal.
Como refere Pinto de Albuquerque em anotação ao art° 5° " a aplicação espacial do direito penal a factos cometidos fora do território nacional assenta em cinco princípios: da nacionalidade, da defesa dos interesses nacionais, da universalidade, da administração supletiva da lei nacional e da aplicação convencional.
Nos termos do princípio da nacionalidade, o Estado pune todos os factos juridicamente relevantes cometidos pelos seus nacionais ou contra os seus nacionais, independentemente do lugar onde tenham sido cometidos.
Nos termos do princípio da defesa dos interesses nacionais, o estado pune os factos juridicamente relevantes dirigidos contra os interesses nacionais.
Este princípio tem natureza complementar.
Nos termos do princípio da aplicação universal, o Estado pune todos os factos juridicamente relevantes dirigidos contra os interesses da humanidade, independentemente da nacionalidade do agente ou da vítima e do local onde foram cometidos.
A reforma do C.P. de 1998 introduziu o princípio da administração supletiva da lei nacional, nos termos do qual o estado pune os factos juridicamente relevantes cometidos fora do território nacional contra estrangeiros por estrangeiros que se encontram em Portugal mas que não podem ser extraditados.
Nos termos do princípio da aplicação convencional da lei penal nacional, esta é aplicável sempre que o estado Português se vincule, por tratado ou convenção internacional a julgar certos factos pela lei nacional... in anotações ao referido art° 5° Comentário do Código Penal.
No caso vertente, o Estado Português poderia actuar de acordo com o princípio da universalidade, ou da protecção de bens jurídicos comuns a toda a humanidade, a saber, nos crimes de escravidão, (art° 159°), tráfico de pessoas (160°), rapto (161 °), abuso sexual de crianças e de menores dependentes (art°s 171 ° e 172°) de lenocínio de menores e de pornografia de menores (175° e 176°) danos contra a natureza, poluição e de poluição de perigo comum.
Ora, das informações trocadas posteriormente à denúncia apresentada inicialmente, por factos ilícitos ocorridos em Angola, e para cuja investigação o MºPº só seria, a nosso ver, competente, a pedido das autoridades angolanas, resulta ainda que os factos a que as autoridades portuguesas atribuem os proventos ilícitos obtidos pelo recorrente são objecto de um processo no BRASIL, processo esse com acusação deduzida.
O mandado de captura internacional foi, contudo, revogado pelo Tribunal superior.
Aliás, o despacho recorrido faz menção ao BRASIL e às investigações que aí decorrem.
Por outro lado, o M°P° faz ainda menção ao processo que correu termos em França onde indivíduos alegadamente ligadas ao recorrente transportavam dinheiro vivo, em viaturas de matrícula portuguesa, supostamente destinado ao Mónaco.
Quer isto dizer que os factos a que o detentor da acção penal atribui os proventos ilícitos de que o recorrente terá alegadamente beneficiado resultam, segundo o mesmo detentor da acção penal, de factos que se encontram a ser investigados, e que são objecto de processos em Países soberanos terceiros, um deles subscritor (Brasil) da mesma convenção de auxílio judiciário em matéria penal no âmbito da CPLP.
Logo, a prossecução da acção penal em Portugal viola o princípio do “ne bis in idem ", segundo o qual ninguém pode ser duplamente punido pelo mesmo crime, e do qual resulta a exclusão de novo julgamento em Portugal no caso de o agente ter sido absolvido pelo Tribunal do estado onde foi praticado o facto e no caso de ter sido condenado e ter cumprido a respectiva pena.
“o ne bis in idem "será, porventura, um dos princípios mais importantes e estruturantes de qualquer Estado de direito e do respectivo direito processual penal. Hassemer afirma mesmo que este princípio faz parte integrante dos direitos fundamentais processuais que são indisponíveis, no sentido de insusceptíveis de ponderação.
Um princípio desta importância deveria ter, após séculos, os seus contornos bem definidos..." in Cooperação Judiciária Internacional em matéria penal, Vânia Costa Ramos, Ne bis in idem ".
Ora, decorrendo, segundo o detentor da acção penal, tais proventos de acções ilícitas em Países soberanos terceiros, cabe a esses Países, um deles subscritor da Convenção de Auxílio Judiciário Mútuo em matéria penal, quer com Portugal, quer com Angola, pedir, se assim o entender, a apreensão dos bens que se vier a provar terem sido adquiridos em resultado da alegada actuação ilícita do recorrente.
É certo que a decisão recorrida fundamenta a apreensão cautelar das contas bancárias do recorrente no facto de o mesmo estar a ser investigado ainda pela alegada prática de branqueamento de capitais decorrentes dessas alegadas actividades ilícitas no Brasil, Angola e França, actividade essa ocorrida em Portugal.
Todavia, tal como o objecto do processo se encontra delimitado, essa apreensão cautelar teria de ser pedida pelas autoridades desses países, no âmbito dos respectivos processos, sob pena de violação do "ne bis in idem ", caso tivessem indícios suficientes que pudessem fundamentar tal pedido. - Decisão Quadro 2003/577/JAI, de 22 de Julho relativa à execução na União Europeia das decisões de congelamento de bens ou de provas, que a Lei n° 25/2009 veio a designar por decisão de apreensão – “freezing order ".
Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, " o princípio da universalidade ou da aplicação universal visa permitir a aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiro que atentam contra bens jurídicos carecidos de protecção internacional ou que o Estado Português se obrigou internacionalmente a proteger. Não se trata da facultar a cada Estado a intervenção penal relativamente a todo e qualquer facto considerado crime pela lei interna o que conduziria à existência de um jus puniendi estadual sem qualquer fronteira e fomentador, por isso, em larga medida, de conflitos internacionais de caracter jurídico penal, (sublinhado nosso)
Do que se trata é antes - e só - do reconhecimento do caracter supra nacional de certos bens jurídicos e que por conseguinte, apelam para a sua protecção a nível mundial. Deste modo, aponta Jescheck. como fundamentos do princípio, "a solidariedade do mundo cultural face ao delito" e "a luta contra a delinquência internacional perigosa."
Neste sentido, vai logo o art° 5°, l b) ordenando a aplicação da lei penal portuguesa a crime que tutelam bens jurídicos carecidos de protecção internacional" mas "submete todavia a aplicação da lei penal portuguesa a uma dupla condição: que o agente seja encontrado em Portugal e que não possa ser extraditado" in Direito Penal, Tomo 1, Parte Geral, 9° capítulo, pág. 227 "
E prossegue o mesmo Professor na obra citada, pág 229, III "o caracter meramente complementar ou subsidiário dos princípios de aplicação extraterritorial da lei penal portuguesa revela-se na circunstância de a aplicação só ter lugar" quando o agente não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação (art° 6°/1).
Trata-se aqui, antes de mais, de respeitar o princípio constitucional "ne bis in idem" segundo o qual ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime" (CRP art° 29°, 5) até porque uma tal garantia é considerada pela nossa Constituição como valendo para todas as pessoas e para todos os Tribunais, não apenas para cidadãos portugueses e para julgamentos levados a cabo por tribunais portugueses."
Como ensina o Conselheiro Maia Gonçalves in CPP anotado "as regras do art° 19° e seguintes daquele diploma não se aplicam à competência internacional dos Tribunais Portugueses, ou seja, à aplicação no espaço da lei penal portuguesa, a qual é regulada nos art°s 4° a 6° do Código Penal. In nota 7 ao art° 19° citado.
De harmonia com o disposto nos art°s 4° do CPP e 96° do Código do Processo Civil actualizado " determinam a incompetência absoluta do Tribunal a) a infracção das regras de competência em razão da matéria e da hierarquia e das regras da competência internacional, "
A incompetência absoluta deve ser conhecida pelo Tribunal oficiosamente... art° 97° do CPC e implica a absolvição da instância - art° 99° do CPC.
Ora, analisado o despacho recorrido, verifica-se que a mesma decisão extrai de factos que ligam pessoas, e sociedades entre si, e à aquisição de imóveis em Portugal, a "conclusão" de que essas sociedades serviram para fazer circular dinheiro que adviria de actividades que constituem objecto de processo em País soberano, pelo simples facto de ter conhecimento de que existe um processo contra o recorrente.
O recorrente não foi constituído arguido, não foi ouvido sobre tais factos - os que constituíram o alegado branqueamento, e foi objecto de medida de apreensão de quantias constantes de contas bancárias ao abrigo do art° 181° do Código do Processo penal.
A nosso ver, mal.
Não só a aplicação do princípio do "ne bis in idem" impunha que se aguardasse o desfecho do processo a decorrer e que se terminar em absolvição impedirá novo processo em Portugal, como o aqui recorrente fez prova documental de que exerce em Angola, várias actividades ligadas à construção civil e ao comércio de diamantes, entre outras, actividades essas geradoras de fluxos consideráveis de dinheiro ".
Em síntese conclusiva:
O recorrente apresentou requerimento ao M.mo juiz de instrução, deduzindo a incompetência internacional em matéria penal dos tribunais portugueses.
Esse requerimento mereceu despacho que se reconduz ao não conhecimento do mérito da questão que foi colocada à apreciação do tribunal: a de saber-se se os tribunais portugueses, em particular, o TCIC, é competente para conhecer dos factos que, para já, perfazem o objeto do presente inquérito.
Das normas contidas no art. 32.° do Código de Processo Penal, resulta que a incompetência do tribunal é por este conhecida e declarada oficiosamente e pode ser deduzida pelo Ministério Público, pelo arguido e pelo assistente até ao trânsito em julgado da decisão final.
Ora, se assim é, então caberia ao M.mo juiz a quo ter conhecido da incompetência deduzida pelo recorrente, uma vez que se está perante um inquérito onde já existiu intervenção jurisdicional.
É certo que, no caso dos autos, o recorrente não assume a qualidade de sujeito processual, não tendo sido, ainda, constituído arguido, a nosso ver, mal.
Efectivamente, a Lei n° 48/2007, conquanto mantenha a obrigatoriedade da constituição como arguido, faz uma importante restrição; isto é, restringe aquela obrigatoriedade ao caso em que haja "fundada suspeita" de uma pessoa ter praticado um crime.
A "ratio" da Lei é a mesma que orientou a modificação do art. 58° n° 1, al. a), isto é, evitar a constituição e o interrogatório como arguido nos casos de queixa manifestamente infundada, em que o MP desde logo, vislumbra a possibilidade de arquivar e arquiva o Inquérito - o que não foi o caso.
A questão da incompetência deduzida pelo recorrente está, deste modo, sub judice, cabendo a este Tribunal de recurso pronunciar-se sobre a mesma.
DECISÃO
Por todo o exposto, delibera este tribunal ad quem:
- Declarar a incompetência internacional dos Tribunais Portugueses em matéria Penal, definida nos art°s4° a 6° do Código Penal, para abrir inquérito por factos praticados por um cidadão nacional de outro País, nesse mesmo País, com as consequências legais dela resultantes - absolvição da instância,
Sem custas.”

III. Sucede que, tanto a decisão recorrida, como o referido Acórdão do Tribunal de Relação em que se funda, resultam da desconsideração do quadro legal, nacional e internacional, das regras de perseguição do crime de branqueamento de capitais;
Como se demonstra na desconsideração do disposto no artº 1º da Directiva nº 91/308/CEE, de 10 de Junho de 1991, baseado no artº 3º nº 3 da Convenção de Viena das Nações Unidas, e no artº 6º nº 2 alínea c) da Convenção de Estrasburgo do Conselho da Europa – que estabelece que, cada uma das Partes contraentes “deve conferir carácter de infracção penal, em conformidade com o seu direito interno: à conversão e transferência de bens (expressão, “conversão”, que, nos termos do artº 1º alínea b) do mesmo, compreende “um bem de qualquer natureza, que seja corpóreo ou incorpóreo, móvel ou imóvel, bem como os actos jurídicos ou documentos certificando um título ou o direito sobre um bem”) em relação aos quais aquele que o faz sabe que esses bens constituem produtos (expressão, “produtos”, que, nos termos do artº 1º alínea b) já referido supra, “designa qualquer vantagem económica resultante de infracções penais,”) com o fim de os dissimular ou de ocultar a origem ilícita dos referidos bens ou de auxiliar qualquer pessoa implicada na infracção principal (expressão, “infracção principal”, que, nos termos do artº 1º alínea e) do mesmo, consiste “em qualquer infracção penal em consequência da qual são gerados produtos, os quais são susceptíveis de se tornarem objecto de uma infracção, nos termos da presente Convenção,”) assim como “à dissimulação ou ocultação da sua verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimento ou propriedade de bens ou de direitos a ele relativos, sabendo o autor que esses bens constituem produtos”, resultando expressamente ressalvado do mesmo artigo artº 1º da Directiva nº 91/308/CEE, de 10 de Junho de 1991, que:
“Existe branqueamento de capitais mesmo que as actividades que estão na origem dos bens a branquear se localizem no território de outro Estado-membro ou de um país terceiro.”
Neste sentido, sobre a normativa internacional e o regime do branqueamento de capitais desde 1991, veja-se “Branqueamento de Capitais” de Jorge Manuel Monteiro Dias Duarte, em Estudos e Monografias, Publicações da Universidade Católica, Porto 2002, página 100 e seguintes.

As sucessivas evoluções legislativas operadas a partir de então tiveram reflexo nas sucessivas redacções do artº 468º - A do Código Penal, a saber:
- Lei nº 11/2004, de 27 de Março;
- Rectificação Legislativa nº 45/2004, de 5 de Junho;
- E Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro.

O resultado foi a consagração no ordenamento jurídico interno, isto é, nacional, do princípio da privação dos criminosos do produto das suas actividades, - afirmado como o primeiro de três objectivos principais da Convenção da Nações Unidas de 1988, - “suprimindo, deste modo, o seu móbil ou incentivo principal, evitando, do mesmo passo, que a utilização desses fortunas ilicitamente acumuladas permita as organizações transnacionais invadir, contaminar e corromper as estruturas do Estado, as actividades e financeiras legítimas e a sociedade a todos os seus níveis.”

O artº 368º - A do Código Penal, resulta, assim, do compromisso internacional de admissão no ordenamento jurídico interno, do reconhecimento do próprio Estado Português do seu próprio interesse nacional, - sujeito aos princípios da nacionalidade e de defesa dos interesses nacionais - em evitar a invasão, contaminação e corrupção das estruturas do Estado, as actividades e financeiras legítimas e a sociedade a todos os seus níveis, punitivas do crime de branqueamento de capitais, mesmo que as actividades que estão na origem dos bens a branquear se localizem no território de outro Estado-membro da Comunidade Europeia ou de um país terceiro, do que resulta que o crime de branqueamento de capitais é punido em Portugal quando os seus actos sejam perpetrados no território nacional, por força do artº 4º alínea) do Código Penal, não sendo aplicáveis as regras de aplicação supletiva da lei portuguesa previstos no artº 5º do Código Penal.

Não se trata por isso de uma questão de competência internacional dos tribunais portugueses em matéria penal, mas tão só da competência dos tribunais portugueses para perseguir um crime perpetrado no território nacional, nos termos dos artigos 4º alínea a) e 368º - A, ambos do Código Penal.

A verificação do crime de branqueamento de capitais pressupõe, efectivamente, uma ilicitude prévia, mas não depende de uma condenação pelo crime anterior, nem sequer da sua perseguição criminal, no país de origem das produzidas vantagens, bens ou direitos, porque assim resulta o princípio da autonomia do crime de branqueamento de capitais previsto no artº 368º A do Código Penal, como afirmado na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, Relator Raúl Borges, no Acórdão de 11 de Junho de 2014, proc.º nº 14/07.0TRLSB.S1, 3ª Secção:
“LXXVII. Esta relação entre o branqueamento e o facto precedente, a relação genérica entre a lavagem e o crime gerador das receitas, lucros necessitados de branquear, não impede a afirmação da autonomia do branqueamento.
LXXIX. O crime de branqueamento de capitais é estruturalmente autónomo da criminalidade subjacente.
LXXX. Desde que se tenha verificado a prática do crime-base e sejam praticados factos subsumíveis ao crime de branqueamento, este ganha autonomia, no sentido de que o respectivo agente será penalmente perseguido, mesmo nos casos em que o autor do crime-base seja penalmente inimputável, morra, ou o procedimento criminal se encontre prescrito.”

Assim sucede, tal como observado pelo Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto no seu fundamentado parecer, porque o princípio da autonomia do crime de branqueamento de capitais é imposto pelo artigo 9º nº 5 da Convenção do Conselho da Europa relativo ao branqueamento de capitais, concluída em Varsóvia, em 16 de Maio de 2005, e vigente na nossa ordem jurídica interna, desde 1 de Agosto de 2010, no qual se afirma que deverá ser garantida a possibilidade de condenação por branqueamento, “independentemente de condenação anterior ou simultânea pela prática de infracção subjacente.”

Por isso o crime de branqueamento de capitais é um crime de acção e autónomo em relação ao crime subjacente, o que não foi respeitado tanto na decisão recorrida como no acórdão em que esta se fundou, do que resultou, nos termos sobreditos, que, tanto a decisão recorrida, como o referido Acórdão do Tribunal de Relação, incorreram em errada interpretação dos artºs 368º A e 4º do Código Penal, enredando-se em considerações sobre a pretensa relevância dos crimes precedentes ao do branqueamento de capitais, e a sua ocorrência fora do território nacional, em Angola, perdendo de vista o essencial quanto à consumação do crime de branqueamento de capitais, que ocorreu em Portugal.

O elemento objectivo do crime de branqueamento de capitais reconduz-se apenas “às vantagens ou bens, incluindo os direitos e as coisas”, os quais são alcançados através de “um facto típico ilícito antecedente, que o preceito (artº 368º - A do CP) enumera especificamente, e bem assim, em nome de uma cláusula geral, dos factos ilícitos puníveis com prisão por mais de seis meses ou de duração máxima superior a cinco anos de prisão, operando a nível instrumental, chamados de “crime precedente” ou predicate offence” em concurso real com o de branqueamento, na esteira, aliás, do AUJ nº 13/2007, de 22 de Julho, atenta a diversa autonomia dos bens jurídicos protegidos”, verbi gratia o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Janeiro de 2014.

A denunciada WS., transferiu de Angola a referida importância em dólares americanos, convertendo-a em euros, que fez depositar em conta bancária em Portugal, onde subsequentemente também procedeu à conversão em bens móveis e imóveis, como o demonstra a aquisição de um imóvel no valor patrimonial de € 1.518.490,00 (um milhão quinhentos dezoito mil quatrocentos noventa euros) pelo valor de € 2.650.000,00 (dois milhões seiscentos cinquenta mil euros) e ainda de outros dois imóveis, igualmente com valores patrimoniais inferiores aos valores pelos quais os comprou.

Como ´é consabido o crime de branqueamento de capitais previsto e punido no artigo 368º - A, nºs 2 e 3 do Código Penal supõe o desenvolvimento de actividades que podendo integrar várias fases, visam dar uma aparência da origem legal a bens de origem ilícita, assim encobrindo a sua origem fundada em crime precedente previsto no elenco ou catálogo constante do nº 1 do mesmo artigo.
O bem jurídico protegido pela incriminação é a realização da justiça, na sua particular vertente de perseguição e do confisco pelos tribunais dos proventos da actividade criminosa, conforme Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República ia dos direitos do Homem, em anotação ao artº 368º - A do CP, página 867.
Como afirmado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, relator Rui Gonçalves, de 18 de Julho de 2013:
“A punição do branqueamento visa tutelar a “pretensão estadual ao confisco das vantagens do crime”, ou mais especificamente, o interesse do aparelho na detecção e perda das vantagens de certos crimes.
Quanto mais eficiente e sofisticada a conduta do branqueamento mais grave e perigoso é o atentado ao bem jurídico protegido com esta incriminação. Porém, mesmo a simples conduta do agente depositar na sua conta bancária quantias monetárias provenientes do crime precedente por si cometido, pode integrar a prática do crime de branqueamento.”
Por isso, muito mal andou a decisão recorrida, ao concluir pela incompetência internacional dos tribunais portugueses para perseguir o crime de branqueamento de capitais, perpetrado em Portugal, com fundamento em que os crimes precedentes ocorreram fora do território nacional, no caso em Angola, como ao entender aplicável o artº 5º do Código Penal.

A interpretação efectuada na decisão recorrida, assim como a do peregrino acórdão em que se fundou, resultam na desprotecção do interesse nacional, da soberania e do reconhecimento do próprio Estado Português “em evitar a invasão, contaminação e corrupção das estruturas do Estado, as actividades e financeiras legítimas e a sociedade a todos os seus níveis, punitivas do crime de branqueamento de capitais, mesmo que as actividades que estão na origem dos bens a branquear se localizem no território de outro Estado-membro da Comunidade Europeia ou de um país terceiro,” e seriam um convite a que os “senhores do crime”, os “barões da droga” ou os modernos “piratas internacionais do crime organizado” passassem a utilizar o território nacional como “um porto de abrigo”, correspondente aos actuais “paraísos financeiros”, num retrocesso jurídico ao século XVII e aos tempos da lei inglesa de 1662, que ofereceu aos antigos piratas, que declarassem renunciar a tal actividade, o perdão total e o direito de conservação dos produtos das suas actividades criminosas, sendo a perda destes últimos (produtos do crime) o concreto objectivo, nacional e internacional, visado pela hodierna punição do crime de branqueamento de capitais.

Nestes termos, deve-se concluir pela procedência do recurso, revogação da decisão recorrida, indeferindo-se a requerida procedência da declaração de incompetência dos tribunais portugueses em matéria penal, para perseguir o crime de branqueamento de capitais previsto no artº 368º - A do Código Penal, e por outro lado declarar a inequívoca competência dos tribunais portugueses para perseguir aquele crime ainda que os crimes precedentes tenham ocorrido fora do território nacional, por força do artº 4º alínea a) do Código Penal.

IV. Mas não esgota aqui, a demonstração, efectuada na decisão recorrida, da falta de consideração pelos princípios estruturais do processo penal, do princípio do acusatório, o princípio da titularidade do MºPº da acção penal na fase de inquérito, como da limitação das competências do juiz de instrução em fase de inquérito, assim como dos comandos legais e constitucionais previstos nos artºs 17º, 53º nº 2 alínea b), 262, 262º, e 263º nº 1, 268º e 269º, todos do Código de Processo Penal, e 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa.

Como é consabido a direcção do inquérito cabe ao MºPº nos termos dos artºs 53º nº 2 alínea b) e 263º nº 1, ambos do Código de Processo Penal, o que concretiza o princípio constitucional da estrutura acusatória do processo penal português consagrado no artº 32º nº 5 da Constituição da República, do que resulta que na fase de inquérito a intervenção jurisdicional, na fase de inquérito, seja, por isso, limitada aos actos que, nos termos do art. 269°, do Código de Processo Penal, estejam na disponibilidade decisória do juiz de instrução, que são os de ordenar ou autorizar:
- A efectivação de perícias - nº 1 alínea a); ou exames – al. b); buscas domiciliárias – al. c); apreensões de correspondência – al. d); intercepção, gravação, ou registo de conversações ou comunicações – al. e);
- E a prática de quaisquer outros actos que a lei fizer expressamente depender de ordem ou autorização do juiz de instrução;
Ou, com aqueles que devam ser pessoalmente praticados por juiz de instrução, nos termos expressamente previsto no art. 268°, como proceder ao interrogatório, aplicar medidas de coacção, proceder a buscas e apreensões, tomar conhecimento em primeiro lugar do conteúdo da correspondência, declarar a perda de bens – dependente da condição de o MºPº proceder ao arquivamento do inquérito, - e praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reserve ao juiz de instrução.

Do exposto resulta que, cabendo a direcção do inquérito ao MºPº, a intervenção do juiz de instrução, em fase de inquérito, só pode ter lugar nos casos excepcionais expressamente previstos na lei e que se prendam com a defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, pelo que se encontra vedada ao juiz de instrução, na fase de inquérito, a apreciação da competência do MºPº, à qual chegou depois de efectuar uma análise (também erradamente) de um dos requisitos objectivos típicos do crime de branqueamento de capitais, como o é a exigência do crime precedente produtor das vantagens, bens ou direitos.
Ora esta apreciação, no fundo sobre o mérito da causa, pela qual alcançou, também erradamente, a conclusão de um juízo de insuficiência indiciária, excedeu o limite das competências do juiz de instrução em fase de inquérito, artºs 268º e 269º, ambos do CPP.

E, mais estranhamente, se observa que, após ser chamado a pronunciar-se sobre a questão da competência dos tribunais portugueses, nos termos do artº 32º do CPP, a decisão recorrida, exorbitando flagrantemente o limite das suas competências em fase de inquérito expressamente previstas nos artºs 268º e 269º do CPP, se pronunciou sobre o mérito da causa e o caso concreto, (afirmando que “é pressuposto do branqueamento de capitais, na lei portuguesa, a verificação de um facto ilícito típico subjacente definido pela lei de onde sejam provenientes as vantagens dissimuladas, o que in casu não ocorre”) como se o pudesse fazer sem se encontrar em fase de instrução, sobrepondo-se assim aos poderes do MºPº em fase de inquérito, e, novamente excedendo os seus poderes em fase de inquérito, apreciar a competência ou a incompetência do MºPº para a direcção do inquérito, alcançando a seguinte conclusão:
“Assim, quanto a estes factos, os alegados crimes de corrupção, burla e fraude fiscal cometidos em Angola, não existem dúvidas que o M° P° português carece de competência para os investigar, na medida em que não se verificam os pressupostos enunciados no referido artigo 5o do CP.”
Esta conclusão acabada de enunciar, segundo a qual o juiz de instrução em fase de inquérito declarou o MºPº “incompetente para julgar os crimes cometidos em Angola” é o corolário da demonstração da incompreensão pelo tribunal “a quo”, sobre o objecto dos autos que tinha perante si, os quais não versam sobre os crimes precedentes cometidos em Angola, mas, outrossim, sobre o crime de branqueamento de capitais perpetrado em Portugal.

A decisão recorrida encontra-se, nesta parte, relativa à apreciação de mérito da causa, quanto à apreciação na fase de inquérito dos requisitos típicos do crime e à conclusão da sua concreta insuficiência indiciária, assim como na apreciação da incompetência do MºPº para perseguir o crime de branqueamento de capitais no caso concreto da denunciada WS., fulminada de nulidade insanável por ter sido proferida com violação da competência do tribunal, por força do disposto nos artºs 119º alínea d), 17º, 263º, 268º e 269º, todos do Código de Processo Penal, e violação do princípio acusatório do processo penal e da titularidade do MºPº da função do exercício da acção penal, consagrados nos artºs 32º nº 5 (primeira parte) e 219º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.

O despacho recorrido fundando-se na errada interpretação dos artºs 4º alínea a) e 368º - A do Código Penal, pela qual alcançou a também errada conclusão da incompetência internacional dos tribunais portugueses em matéria penal para conhecer do crime de branqueamento de capitais, perpetrado em território nacional por os crimes subjacentes donde resultaram os produtos, receitas, vantagens, bens e direitos terem sido praticados em Angola;
Exorbitando as suas competências legais, efectuando, com violação de lei – artºs 17º, 268º e 269º do CPP – alcançou uma não consentida apreciação do mérito da causa e da competência do MºPº para perseguir o crime e prosseguir o inquérito, alcançou a também errada conclusão de aplicação do artº 4º do CPP, entendendo haver caso omisso, desconsiderando o disposto nos artºs 32º e 33º nº 4 do CPP, o último dos quais consagra expressamente que “Se para conhecer de um crime não forem competentes os tribunais portugueses, o processo é arquivado”;
Alcançando finalmente uma errada aplicação das normas do Código de Processo Civil, pelos quais julgou verificada a excepção de incompetência dos tribunais portugueses proferindo a absolvição da instância;
Decisão também nula nos termos do artº 119º do CPP, e também por assentar em pressupostos errados como os resultantes da desconsideração do artº 4º alínea a) do CPP, que confere competência aos tribunais portugueses, em razão dos princípios da nacionalidade e do interesse nacional.

Cumpre observar que as normas dos artºs 96º a 99º e 577º do Código de Processo Civil não são sequer aplicáveis, pela inexistência de caso omisso, que nos termos do artº 4º do Código de Processo Penal fossem aplicáveis pela verificação de caso omisso., uma vez que o art. 33° n° 4 do Código de Processo Penal, dispõe que, “se para conhecer de um crime não forem competentes os tribunais portugueses, o processo é arquivado,” o que não pode ser determinado pelo juiz de instrução em fase de inquérito.
Assim, no processo penal, não são aplicáveis as normas do Código de Processo Civil, por não haver lugar à aplicação do artº 4º do CPP, dada a inexistência de caso omisso que permita o recurso à sua aplicação, por contrariado pela previsão expressa dos artºs 32º e 33º, ambos do Código de Processo Penal, - o último dos quais prevê expressamente no seu nº 4 que, “Se para conhecer de um crime não forem competentes os tribunais portugueses, o processo é arquivado” - pelo que não pode ter lugar a “absolvição da instância”, a qual constituiria um verdadeiro encerramento do inquérito e despacho de arquivamento, inadmissivelmente proferidos por juiz de instrução em fase de inquérito.
A apreciação jurisdicional da decisão de encerramento da fase de inquérito apenas pode ser tomada pelo Ministério Público, enquanto o despacho de arquivamento determinado pelo juiz de instrução, apenas é processualmente possível na fase de instrução, se o juiz de instrução for para o efeito convocado por quem tenha para tal legitimidade, nos termos dos artºs 286º e seguintes do Código de Processo Penal.
Assim a declarada verificação da excepção de incompetência absoluta dos tribunais portugueses, nos termos das normas do processo civil invocadas na decisão recorrida, e a declaração de absolvição da instância da denunciada W., padece de violação, por erro de interpretação, dos artº 4º, 32º e 33º nº 4 do Código de Processo Penal, enfermando ainda da nulidade insanável por incompetência do juiz de instrução em fase de inquérito para conhecer do mérito da causa, assim como para apreciar e declarar a alegada insuficiência indiciária do preenchimento do tipo do crime de branqueamento, como finalmente para se pronunciar sobre a incompetência do MºPº para perseguir tal crime, nos termos do artº 119º alínea d) do CPP.

Cumpre, finalmente, recordar que, na fase de inquérito o juiz de instrução não tem poderes para impedir que o Ministério Público, o assistente ou outro sujeito processual, o convoquem a tomar posição sobre determinadas questões nos termos legalmente prescritos, não podendo deixar de apreciar todas as questões que, durante a fase de inquérito lhe venham a ser apresentadas, ainda que seja para se declarar incompetente para o efeito, termos que ditam as seguintes conclusões:

Portugal pune no seu ordenamento interno, artº 368º - A do Código Penal o crime de branqueamento de capitais como um crime de acção autónomo “mesmo que as actividades que estão na origem dos bens a branquear se localizem no território de outro Estado-membro ou de um país terceiro,” porque o princípio da autonomia do crime de branqueamento de capitais é imposto pelo artigo 9º nº 5 da Convenção do Conselho da Europa relativo ao branqueamento de capitais, concluída em Varsóvia, em 16 de Maio de 2005, e vigente na nossa ordem jurídica interna, desde 1 de Agosto de 2010, no qual se afirma que deverá ser garantida a possibilidade de condenação por branqueamento, “independentemente de condenação anterior ou simultânea pela prática de infracção subjacente.”
O que decorre também do disposto no artº 1º da Directiva nº 91/308/CEE, de 10 de Junho de 1991, baseado no artº 3º nº 3 da Convenção de Viena das Nações Unidas, e no artº 6º nº 2 alínea c) da Convenção de Estrasburgo do Conselho da Europa – que estabelece que, cada uma das Partes contraentes “deve conferir carácter de infracção penal, em conformidade com o seu direito interno: à conversão e transferência de bens (expressão, “conversão”, que, nos termos do artº 1º alínea b) do mesmo, compreende “um bem de qualquer natureza, que seja corpóreo ou incorpóreo, móvel ou imóvel, bem como os actos jurídicos ou documentos certificando um título ou o direito sobre um bem”) em relação aos quais aquele que o faz sabe que esses bens constituem produtos (expressão, “produtos”, que, nos termos do artº 1º alínea b) já referido supra, “designa qualquer vantagem económica resultante de infracções penais,”) com o fim de os dissimular ou de ocultar a origem ilícita dos referidos bens ou de auxiliar qualquer pessoa implicada na infracção principal (expressão, “infracção principal”, que, nos termos do artº 1º alínea e) do mesmo, consiste “em qualquer infracção penal em consequência da qual são gerados produtos, os quais são susceptíveis de se tornarem objecto de uma infracção, nos termos da presente Convenção,”) assim como “à dissimulação ou ocultação da sua verdadeira natureza, origem, localização, disposição, movimento ou propriedade de bens ou de direitos a ele relativos, sabendo o autor que esses bens constituem produtos”, resultando expressamente ressalvado do mesmo artigo artº 1º da Directiva nº 91/308/CEE, de 10 de Junho de 1991, que:
“Existe branqueamento de capitais mesmo que as actividades que estão na origem dos bens a branquear se localizem no território de outro Estado-membro ou de um país terceiro.”
3ª O artº 368º - A do Código Penal concretiza a consagração no ordenamento jurídico interno do princípio da privação dos criminosos do produto das suas actividades, - afirmado como o primeiro de três objectivos principais da Convenção da Nações Unidas de 1988, - “suprimindo, deste modo, o seu móbil ou incentivo principal, evitando, do mesmo passo, que a utilização desses fortunas ilicitamente acumuladas permita as organizações transnacionais invadir, contaminar e corromper as estruturas do Estado, as actividades e financeiras legítimas e a sociedade a todos os seus níveis.”
O artº 368º - A do Código Penal, resulta, assim, do compromisso internacional de admissão no ordenamento jurídico interno, do reconhecimento do próprio Estado Português do seu próprio interesse nacional, sujeito aos princípios da nacionalidade e de defesa dos interesses nacionais, em evitar a invasão, contaminação e corrupção das estruturas do Estado, as actividades e financeiras legítimas e a sociedade a todos os seus níveis, punitivas do crime de branqueamento de capitais, mesmo que as actividades que estão na origem dos bens a branquear se localizem no território de outro Estado-membro da Comunidade Europeia ou de um país terceiro, do que resulta que o crime de branqueamento de capitais é punido em Portugal quando os seus actos sejam perpetrados no território nacional, por força do artº 4º alínea) do Código Penal.
Não se trata, por isso, de uma questão de competência internacional dos tribunais portugueses em matéria penal, mas tão só da competência dos tribunais portugueses para perseguir um crime perpetrado no território nacional, nos termos dos artigos 4º alínea a) e 368º - A, ambos do Código Penal.
A verificação do crime de branqueamento de capitais pressupõe, efectivamente, uma ilicitude prévia, mas não depende de uma condenação pelo crime anterior, nem sequer da sua perseguição criminal, no país de origem das produzidas vantagens, bens ou direitos, porque assim resulta o princípio da autonomia do crime de branqueamento de capitais previsto no artº 368º A do Código Penal, como afirmado na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, Relator Raúl Borges, no Acórdão de 11 de Junho de 2014, proc.º nº 14/07.0TRLSB.S1, 3ª Secção:
“LXXVII. Esta relação entre o branqueamento e o facto precedente, a relação genérica entre a lavagem e o crime gerador das receitas, lucros necessitados de branquear, não impede a afirmação da autonomia do branqueamento.
LXXIX. O crime de branqueamento de capitais é estruturalmente autónomo da criminalidade subjacente.
LXXX. Desde que se tenha verificado a prática do crime-base e sejam praticados factos subsumíveis ao crime de branqueamento, este ganha autonomia, no sentido de que o respectivo agente será penalmente perseguido, mesmo nos casos em que o autor do crime-base seja penalmente inimputável, morra, ou o procedimento criminal se encontre prescrito.”
7ª Por isso o crime de branqueamento de capitais é um crime de acção e autónomo em relação ao crime subjacente, o que não foi respeitado tanto na decisão recorrida como no acórdão em que esta se fundou, do que resultou, nos termos sobreditos, que, tanto a decisão recorrida, como o referido Acórdão do Tribunal de Relação, incorreram em errada interpretação dos artºs 368º A e 4º do Código Penal, enredando-se em considerações sobre a pretensa relevância dos crimes precedentes ao do branqueamento de capitais, e a sua ocorrência fora do território nacional, em Angola, perdendo de vista o essencial quanto à consumação do crime de branqueamento de capitais, que ocorreu em Portugal.
Por isso mal andou a decisão recorrida ao concluir pela incompetência internacional dos tribunais portugueses para perseguir o crime de branqueamento de capitais, perpetrado em Portugal, com fundamento em que os crimes precedentes ocorreram fora do território nacional, no caso em Angola, como ao entender aplicável o artº 5º do Código Penal.
A decisão recorrida encontra-se fulminada de nulidade insanável, por incompetência do tribunal nos termos do artº 119ª alínea e) do CPP, porque o juiz de instrução exorbitou flagrantemente o limite das suas competências em fase de inquérito expressamente previstas nos artºs 268º e 269º do CPP, o que fez:
- Ao pronunciar-se sobre o mérito da causa, formulando um juízo de apreciação de uma alegada insuficiência indiciária no caso concreto, (considerando que os crimes precedentes do crime de branqueamento ocorreram fora do território nacional, como afirmando que, “é pressuposto do branqueamento de capitais, na lei portuguesa, a verificação de um facto ilícito típico subjacente definido pela lei de onde sejam provenientes as vantagens dissimuladas, o que in casu não ocorre”);
- E, novamente excedendo flagrantemente os seus poderes e competências em fase de inquérito, declarar a incompetência do MºPº para a direcção do inquérito.
10ª A conclusão acabada de enunciar, segundo a qual o juiz de instrução em fase de inquérito declarou o MºPº “incompetente para julgar os crimes cometidos em Angola” é o corolário da demonstração da incompreensão pelo tribunal “a quo”, sobre o objecto dos autos que tinha perante si, os quais não versam sobre os crimes precedentes cometidos em Angola, mas, outrossim, sobre o crime de branqueamento de capitais perpetrado em Portugal.
11ª No processo penal, não são aplicáveis as normas relativas à competência internacional dos tribunais portugueses do Código de Processo Civil, por não haver lugar à aplicação do artº 4º do CPP, dada a inexistência de caso omisso que permita o recurso à sua aplicação, por contrariado pela previsão expressa dos artºs 32º e 33º, ambos do Código de Processo Penal, - o último dos quais prevê expressamente no seu nº 4 que, “Se para conhecer de um crime não forem competentes os tribunais portugueses, o processo é arquivado” - pelo que não pode ter lugar a “absolvição da instância”, a qual constituiria um verdadeiro encerramento do inquérito e despacho de arquivamento, inadmissivelmente proferidos por juiz de instrução em fase de inquérito.
12ª A apreciação jurisdicional da decisão de encerramento da fase de inquérito apenas pode ser tomada pelo Ministério Público, enquanto o despacho de arquivamento determinado pelo juiz de instrução, apenas é processualmente possível na fase de instrução, se o juiz de instrução for para o efeito convocado por quem tenha para tal legitimidade, nos termos dos artºs 286º e seguintes do Código de Processo Penal.
13ª Assim a declarada verificação da excepção de incompetência absoluta dos tribunais portugueses, nos termos das normas do processo civil invocadas na decisão recorrida, e a declaração de absolvição da instância da denunciada, padece de violação, por erro de interpretação, dos artº 4º, 32º e 33º nº 4 do Código de Processo Penal, enfermando ainda da nulidade insanável por incompetência do juiz de instrução em fase de inquérito para conhecer do mérito da causa, assim como para apreciar e declarar a alegada insuficiência indiciária do preenchimento do tipo do crime de branqueamento, como finalmente para se pronunciar sobre a incompetência do MºPº para perseguir tal crime, nos termos do artº 119º alínea d) do CPP.
ÚLTIMA CONCLUSÃO:
Na fase de inquérito o juiz de instrução não tem poderes para impedir que o Ministério Público, o assistente ou outro sujeito processual, o convoquem a tomar posição sobre determinadas questões nos termos legalmente prescritos, não podendo deixar de apreciar todas as questões que, durante a fase de inquérito lhe venham a ser apresentadas, ainda que seja para se declarar incompetente para o efeito.

Decisão:

Por todo o exposto, acordam os juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em decidir:

1. Conceder total provimento ao recurso interposto pelo MºPº;
2. Revogar a decisão recorrida e substituí-la pelo indeferimento da invocada excepção de incompetência absoluta dos tribunais portugueses em matéria penal, por violação das regras de competência internacional, fundada no artº 5º do Código Penal;
3. Declarar a nulidade insanável da decisão recorrida, por incompetência do tribunal recorrido nos termos do artº 119º alínea e) do Código de Processo Penal, quanto à apreciação efectuada pelo juiz de instrução em fase de inquérito da insuficiência indiciária do crime de branqueamento de capitais, assim como à apreciação de mérito da causa em fase de inquérito por entender não verificado o preenchimento do tipo de crime, como quanto à apreciação e declaração da “incompetência do MºPº para prosseguir o inquérito”, como quanto à declaração de verificação da excepção de incompetência absoluta dos tribunais portugueses, por violação das regras de competência internacional, como finalmente quanto à apreciação e declarada absolvição da instância de WS.;
4. Revogar todas as apreciações efectuadas e declaradas, nos termos sobreditos em 3, por se encontrarem fulminadas de nulidade insanável, por incompetência do tribunal recorrido;
5. Revogar a declaração de incompetência dos tribunais portugueses em matéria penal, para perseguir o crime de branqueamento de capitais previsto no artº 368º - A do Código Penal com fundamento no artº 5º do Código Penal, substituindo-a pela declaração de competência dos tribunais portugueses para perseguir o crime de branqueamento de capitais pelo qual foi denunciada WS., por força do artº 4º alínea a) do Código Penal.
Custas pela recorrida, 3 UCS (três unidades de conta).

Lisboa, 6 de Junho de 2017


Ricardo Manuel Chrystello e Oliveira de Figueiredo Cardoso
Filipa Maria de Frias Macedo Branco