Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
300/13.0YXLSB.L1-6
Relator: ANTÓNIO MARTINS
Descritores: TRANSPORTE AÉREO
INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS
REGIME APLICÁVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/25/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. O transporte de bagagens em aeronave a título oneroso rege-se pela Convenção de Montreal, aprovada pelo Decreto 39/2002, de 27 de Novembro.
2. O regime legal de indemnização por extravio de bagagens consagrado na Convenção não distingue entre “danos relativos ao extravio da própria bagagem” ou “perda de bagagem”, sujeitos à indemnização e seu limite aí prevista, e “danos ocorridos na sequência do extravio da bagagem” ou “demais despesas”, não sujeitos a qualquer limitação.
3. A responsabilidade da transportadora aérea por todos os danos, na sequência de destruição, perda, avaria ou atraso de bagagens, está limitada a 1 000 direitos de saque especiais nos termos da referida Convenção, desde que o passageiro não tenha feito declaração especial de interesse na entrega no destino.
4. O termo «dano» utilizado na Convenção inclui tanto os danos materiais como os danos morais.
5. Os direitos de saque especiais referidos na Convenção reportam-se aos definidos pelo Fundo Monetário Internacional e não aos fixados pelo Banco de Portugal.(AAC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

I- RELATÓRIO

1. O A. instaurou contra a R. a presente acção com processo comum sumário[1], pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 5 942,27, referente aos danos e prejuízos causados com o extravio da sua bagagem e furto de objectos que se encontravam no seu interior, bem como o valor das passagens aéreas.

Alegou, em resumo, que efectuou aquisição de bilhete de avião e embarcou no voo da R de Lisboa para Fortaleza (Brasil), com escala na cidade da Praia (Cabo Verde), tendo despachado bagagem de porão e à chegada a Fortaleza, a 22.12.2010, constatou que um dos seus volumes de bagagem se tinha extraviado, do que reclamou junto da R., vindo mais tarde a ser localizado e tendo ficado disponível para o A apenas a 04.01.2011. Porém, a maior parte dos objectos que lá colocara encontravam-se em falta, do que deu conhecimento à R., sendo o valor desses objectos de € 1 707,92. Mais alega que na sequência e por causa do extravio da bagagem teve de comprar peças de vestuário, calçado, artigos de higiene pessoal e de efectuar diversas diligências e deslocações, que descreve, na sequência do que despendeu determinadas quantias que discrimina.

Conclui que apesar de ter reclamado junto da R esta não reembolsou o A de todos os danos e prejuízos causados com o extravio da bagagem e furto dos objectos que se encontravam no seu interior, bem como o valor das passagens aéreas, uma vez que por culpa imputável à R os objectivos da viagem se goraram por completo.

Na sequência da carta expedida para citação da R e da devolução do aviso de recepção (cfr. fls 82/83), foi proferido despacho a considerar confessados os factos articulados na p.i. e o A apresentou alegações de direito. 

2. Após foi proferida sentença, a 13.12.2013, que julgou a acção procedente e condenou a R. a pagar ao A a quantia de € 4 234,35 e ainda 1000 (mil) direitos de saque especiais, à taxa de câmbio do direito de saque especial que o Banco de Portugal tenha fixado em 18/03/2013 ou na data imediatamente anterior a esta.

3. Na sequência da notificação desta decisão veio a R requerer a declaração de nulidade da citação efectuada e que seja determinada a correcta citação da R para contestar a acção (cfr. fls 103/5).

Alega, em resumo, que o aviso de recepção foi assinado por quem não é nem nunca foi funcionário da R e, uma vez que a citação também não foi feita na pessoa do legal representante, a mesma foi incorrecta e daí, nula.

4. Entretanto, ainda sem ter sido proferida decisão sobre o requerimento de fls 103/5, a R veio interpor recurso de apelação, pedindo a anulação da sentença recorrida e determinando-se a citação da Ré para contestar a ação e, subsidiariamente, a anulação da sentença na parte em que condena em montante superior em 1.000 DSE bem como em custas em montante superior a 90,3%.

Alegando, conclui:

A. A ora recorrente não foi regularmente citada uma vez que a citação para o presente processo foi feita em pessoa que não é nem administrador nem funcionário da empresa, o que determina a nulidade da citação nos termos do art. 191º nº 1 CPC e implica nova citação para apresentar contestação.

B. No presente processo está em causa um contrato de transporte aéreo celebrado entre a T… e o A. e relativo a uma viagem entre Lisboa, Praia e Fortaleza, no dia 22.12.2012 pelo que é aplicável a Convenção de Montreal.

C. Nos termos do art. 22º nº 2 da Convenção de Montreal a responsabilidade da companhia aérea em caso de destruição, perda, avaria ou atraso de bagagens está limitada a 1000 direitos de saque especiais por passageiro - DSE (cerca de € 1.123), salvo declaração especial de interesse na entrega no destino, feita pelo passageiro, no momento da entrega da bagagem à transportadora e mediante o pagamento de um montante suplementar.

D. Dos factos dados como provados na sentença não consta que o A. tenha feito qualquer declaração especial de interesse na entrega nem que tenha pago a taxa que seria devida por tal declaração pelo que qualquer responsabilidade da companhia aérea por qualquer dano derivado de destruição, perda, avaria ou atraso da bagagem nunca poderia ultrapassar o montante de 1000 DSE.

E. Assim, todos os danos sofridos por um passageiro afetado por uma perda ou avaria de bagagem ou atraso na entrega de bagagem só poderão ser indemnizados até ao limite de 1000 DSE pelo que incorre em erro de direito a sentença recorrida ao condenar a Ré T... a pagar uma indemnização de Eur. 4.234,35, pelos danos ocorridos na sequência do extravio da bagagem acrescida de 1000 DSE, pelo extravio da própria bagagem do A.

F. A interpretação feita pelo Tribunal a quo do art. 22º da Convenção de Montreal viola de forma crassa e evidente a letra e o espírito da Convenção já que o Tribunal a quo embora tenha tido em conta o limite indemnizatório da Convenção efetuou uma distinção entre (i) “danos ocorridos na sequência do extravio da bagagem do A” e (ii) “danos relativos ao extravio da própria bagagem”, tendo apenas aplicado os limites de indemnização da Convenção a estes últimos. Essa distinção é ilegal porque implica defraudar o objetivo da Convenção que é o de estabelecer um limite máximo de condenação para as companhias aéreas nos casos de atraso ou extravio de bagagem sendo certo que, no presente caso, todos os danos considerados pelo tribunal a quo derivam do extravio da bagagem pelo que devem ser considerados conjuntamente para efeitos de aplicação do limite indemnizatório previsto na Convenção.

G. Assim, a condenação da transportadora, ora recorrente, nunca poderia ter excedido o valor de 1000 direitos de saque especiais, sendo a condenação em montante superior, ilegal por violação do disposto no art. 22º da Convenção de Montreal, que vigora na ordem jurídica interna com prevalência sobre o direito nacional nos termos do art. 8º nº 2 da CRP.

H. A R. foi indevidamente condenada no pagamento de 100% das custas quando a proporção do seu vencimento foi de 90,3% do pedido pelo que a condenação em custas deveria ter acompanhado a proporção do vencimento nos termos do art. 527º nº 2 CPC.

5. O A apresentou contra-alegações, nas quais pugna pela confirmação da sentença recorrida.

6. Foi posteriormente proferido despacho (cfr. fls 160/1) apreciando o requerimento de fls 103/5, indeferindo a nulidade de citação arguida pela R., do qual não foi interposto recurso, tendo assim transitado em julgado (cfr. fls 169). 

7. Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


*

II- FUNDAMENTAÇÃO

1. De facto           

Na decisão recorrida, considerando confessados os factos alegados na p.i. pelo A., deram-se os mesmos por integralmente reproduzidos, sem necessidade de transcrição, ao abrigo do art.º 567º nº 3 do Código de Processo Civil[2].


*

2. De direito

Sabe-se que é pelas conclusões das alegações que se delimita o âmbito da impugnação, como decorre do estatuído nos art.ºs 635º nº 4 e 639º nº 1.

Decorre assim daquelas conclusões que as questões que as mesmas nos convocam a dilucidar e resolver – sem prejuízo do que adiante se dirá sobre o não conhecimento de uma dessas questões - são as seguintes:

1ª: A citação efectuada é nula?

2ª: A condenação da R nunca poderia ter excedido o valor de 1000 direitos de saque especiais, sendo a condenação em montante superior ilegal por violação do art.º 22º da Convenção de Montreal?

3ª: A R foi indevidamente condenada no pagamento de 100% das custas? 

Vejamos pois.


*

2.1. Nulidade da citação

A apelante suscita no recurso a nulidade da sua citação invocando que o requerimento em que arguiu tal nulidade ainda não tinha sido objecto de decisão, à data de apresentação daquele recurso.

Assim era, efectivamente.

Porém, entretanto o tribunal a quo apreciou a nulidade de citação arguida pela R e julgou-a improcedente, indeferindo-a, pelo despacho certificado a fls 159/161, do qual a R não interpôs recurso.

Nesta medida, não pode deixar de se concluir que se formou caso julgado formal sobre a questão da nulidade de citação, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 628º e 638º, pelo que se mostra prejudicado o conhecimento desta 1ª questão, suscitada pela conclusão 1ª das alegações da recorrente, não se conhecendo assim da mesma. 


*

2.2. Condenação da R

A apelante insurge-se contra a interpretação feita na decisão recorrida, acerca do art.º 22º nº 2 da Convenção de Montreal[3], porquanto a mesma violaria a letra e o espírito da referida Convenção ao efectuar uma distinção entre “danos relativos ao extravio da própria bagagem” e “danos ocorridos na sequência do extravio da bagagem”.

Analisada a fundamentação do tribunal a quo e ponderada a argumentação da apelante, não olvidando as considerações tecidas nas contra- alegações, cremos que assiste razão à recorrente, como a seguir se procurará fundamentar.

Não vem questionado que é aplicável ao caso a referida Convenção de Montreal, como se pressupôs na decisão recorrida. Também não vemos fundamento para questionar tal aplicabilidade, muito pelo contrário, dado que estamos perante um caso de operação internacional de transporte de bagagem de pessoas, em aeronave e efectuada a título oneroso, não temos dúvidas que tal operação cai na previsão do art.º 1º nº 1 da referida Convenção.

Ora o nº 2 do art.º 22º citado estabelece que: “No transporte de bagagens, a responsabilidade da transportadora em caso de destruição, perda, avaria ou atraso está limitada a 1000 direitos de saque especiais por passageiro, salvo declaração especial de interesse na entrega no destino feita pelo passageiro no momento da entrega da bagagem à transportadora e mediante o pagamento de um montante suplementar eventual”. Acrescentando, de seguida, o mesmo normativo, que no caso de ter sido efectuada tal declaração especial de interesse, “a transportadora será responsável pelo pagamento de um montante igual ou inferior ao montante declarado, excepto se provar que tal montante é superior ao real interesse do passageiro na entrega no destino”.

O espírito da referida Convenção e do Decreto que a aprova para vigorar na ordem jurídica portuguesa parece ser o de regular, de forma segura e previsível, todos os danos resultantes para as pessoas na sequência de utilização deste meio de transporte, visando também dessa forma o desenvolvimento deste meio de transporte.  

Retira-se tal espírito do preâmbulo da própria Convenção, quando nele se considera: (i) “Reconhecendo a importância de assegurar a protecão dos interesses dos utilizadores do transporte aéreo internacional, bem como a necessidade de uma indemnização equitativa com base no princípio da restituição”; (ii) “Convictos de que uma acção colectiva dos Estados atinente a uma maior harmonização e codificação de certas regras relativas ao transporte aéreo internacional através da celebração de uma nova Convenção constitui o meio mais adequado de alcançar um justo equilíbrio de interesses” (sublinhados da nossa autoria).

Mas também do preâmbulo do Decreto nº 39/2002, quando nele se assinala: “Tendo em conta a necessidade urgente de uniformidade e previsibilidade nas regras relativas à responsabilidade em matéria de transporte aéreo internacional de passageiros, bagagem e carga, bem como a importância de assegurar a protecção dos interesses dos utilizadores do transporte aéreo internacional” (sublinhado da nossa autoria).

Por outro lado, uma correcta interpretação do Capítulo III da referida Convenção, que estabelece a “Responsabilidade da transportadora e limites da indemnização por danos”, nomeadamente do transcrito art.º 22º nº 2, não permite que se proceda à distinção efectuada pelo tribunal a quo, como se os houvesse “danos relativos ao extravio da própria bagagem” ou “perda de bagagem”, sujeitos à indemnização aí prevista e houvesse “danos ocorridos na sequência do extravio da bagagem” ou “demais despesas”, como o tribunal a quo as qualifica, que não seriam previstos na referida Convenção, ou não estariam sujeitos a qualquer limitação.

Temos como certo que a responsabilidade da transportadora por todos os danos, na sequência de destruição, perda, avaria ou atraso de bagagens está limitada aos referidos 1 000 direitos de saque especiais. A não ser que o passageiro tenha feito declaração especial de interesse na entrega no destino e mediante um pagamento suplementar, o que não foi o caso.

Aliás, no sentido de que: “o termo «dano» deve ser entendido como incluindo tanto os danos materiais como os danos morais”; “o limite de responsabilidade da transportadora em caso de destruição, perda, avaria ou atraso implica que a natureza do dano sofrido pelo passageiro é indiferente para esse efeito, e a indemnização devida é aplicável à totalidade do prejuízo causado, sem distinção da sua natureza material ou moral”; “o pedido de indemnização formulado para ressarcir o valor das bagagens perdidas e o dano moral ocasionado por essa perda, não pode assim exceder o limite de responsabilidade previsto para a totalidade do dano sofrido”, decidiu o Acórdão do  Tribunal de Justiça da União Europeia (3ª Secção), de 6 de Maio de 2010[4], na sequência de um pedido de decisão prejudicial, apresentado pelo Juzgado de lo Mercantil n° 4 de Barcelona (Espanha).

À luz deste enquadramento normativo e respectiva teleologia, não pode pois subsistir o entendimento sustentado pelo tribunal "a quo", procedendo no essencial as razões que enformam a reacção da recorrente, pelo que, respondendo positivamente à 2ª questão supra equacionada, se impõe revogar a decisão recorrida e condenar a recorrida apenas no referido valor de 1000 direitos de saque especiais.

Na decisão recorrida considerou-se, sem fundamentação, nomeadamente jurídica, que estes direitos deveriam ser pagos por referência “à taxa de câmbio do direito de saque especial que o Banco de Portugal tenha fixado em 18.03.2013…”, presumindo este tribunal que esta data seja por referência à citação, considerando o carimbo aposto no AR de fls 83, sendo certo que então deveria ser 19.03.2013, pois é essa a data de citação.

Ora, estatui o nº 1 do art.º 23º da citada Convenção de Montreal, que “os direitos de saque especiais na presente Convenção referem-se ao direito de saque especial tal como é definido pelo Fundo Monetário Internacional. A conversão dos montantes em moeda nacional efectuar-se-á, em caso de processo judicial, de acordo com o valor dessa moeda expresso em direitos de saque especiais à data da sentença. O valor em direitos de saque especiais da moeda de um Estado Parte que seja membro do Fundo Monetário Internacional será calculado em conformidade com o método de valoração aplicado pelo Fundo Monetário Internacional à data da sentença para as suas próprias operações e transacções”.

Não se vislumbra fundamento para não aplicar este normativo, considerando que Portugal é membro do FMI, como é facto notório, pelo que na parte decisória se aplicará este preceito, tomando ainda em consideração a data da sentença proferida na 1ª instância.


*

2.3. Custas

A apelante insurgia-se, ainda, contra a sua condenação no pagamento de 100% das custas pugnando para que a condenação em custas acompanhasse a proporção do vencimento, considerando o valor fixado à acção e uma vez que decaía apenas em 90,3% desse valor.

É inquestionável que assistia razão à apelante, não se tendo atentado devidamente na 1ª instância às regras dos nºs 1 e 2 do art.º 527º, nos termos dos quais a condenação em custas deve seguir a condenação em termos de proveito do processo e na proporção respectiva.

Assim se procederá na parte dispositiva deste aresto, considerando o vencimento/decaimento a que no item anterior se chegou. 


*

III- DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que integram a 6ª Secção Cível deste Tribunal em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, revogam a decisão recorrida, condenando a R a pagar ao A 1000 (mil) direitos de saque especiais, a calcular em euros, em conformidade com o método de valoração aplicado pelo Fundo Monetário Internacional para as suas próprias operações e transacções, à data de 13.12.2013, absolvendo-a do restante peticionado.

Custas do recurso a cargo do apelado, ficando as custas da acção a cargo de A e R., na medida dos respectivos decaimentos.


*

   Lisboa, 25 de setembro de 2014

.....................................

(António Martins)

........................................

(Maria Teresa Soares)

..................................

(Maria de Deus Correia)


[1] Processo nº 300/13.0YXLSB, do 6º Juízo Cível de Lisboa   
[2] Aprovado pelo art.º 1º da Lei nº 41/2013 de 26.06, aplicável aos presentes autos, por força das disposições conjugadas dos art.ºs 5º nº 1 e 7º nº 1 da citada lei, diploma legal a que pertencerão os preceitos a seguir citados sem qualquer outra indicação.
[3] A Convenção para a Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, adoptada em 28 de Maio de 1999 pela Conferência Internacional de Direito Aeronáutico, celebrada em Montreal no âmbito da Organização Internacional de Aviação Civil, designada abreviadamente por Convenção de Montreal, foi aprovada pelo Decreto n.º 39/2002, de 27 de Novembro, publicado no DR, I Série, nº 274 de 27.11.2002.
[4] Acórdão proferido no processo C-63/09/2009, acessível em http://jusnet.wolterskluwer.pt/, sob o nº de documento JusNet 2268/2010.