Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1360/2007-7
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
OBRIGAÇÕES DE MEIOS E DE RESULTADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/11/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário: I – O acto médico pode constituir simultaneamente uma violação do contrato e um facto ilícito, sendo de aceitar como solução natural, inexistindo uma norma que especificamente diga o contrário, a concorrência ou o cúmulo de responsabilidades.
II – É uma obrigação de resultado, e não uma obrigação de meios, a assumida por um médico anátomo-patologista que se compromete, a solicitação de outra pessoa, a proceder à análise e elaborar relatório sobre a existência, ou não, de cancro nos filamentos de tecido prostático extraídos do corpo dessa pessoa.
III – Há cumprimento defeituoso dessa sua obrigação se, com omissão da diligência e cuidados devidos, no exame é diagnosticada a existência de um adenocarcinoma na próstata do paciente, quando este apenas sofria de uma prostatite.
IV – Trata-se de responsabilidade contratual, nada obstando a que neste caso se presuma a culpa do médico.
V – Tem também cabimento o uso de uma técnica dedutiva – prova de primeira aparência – que conclua pela existência de negligência médica quando a experiência comum revelar que, no curso normal das coisas, certos acidentes não poderiam ocorrer senão devido a causa que se traduza em crassa incompetência e falta de cuidado.
VI – Sendo de formular este juízo, a responsabilidade pode igualmente se qualificada como extracontratual, estando feita pela positiva a demonstração de existência de culpa.
VII – São elevadíssimos os danos não patrimoniais sofridos pelo paciente que aos 58 anos de idade, na sequência de um exame onde é erradamente diagnosticado um cancro na próstata, e para além de sentir a angústia e medo de uma morte próxima, se submete a uma prostatectomia da qual resulta ficar impotente e incontinente
VIII – Ocorridos estes factos em 1998, é adequada a atribuição, a esse título, de uma indemnização de 60.000.000$00.

(RRC)
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
7ª SECÇÃO CÍVEL

     I - R.[…] intentou contra José […] e sua mulher […] a presente acção, com processo ordinário, pedindo a condenação destes a pagarem-lhe a quantia de esc. 80.892.000$00, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 10%, contados desde a citação e até efectivo pagamento.

Alegou, em síntese, que:

- Entregou filamentos extraídos do tecido da sua próstata no laboratório do médico anatomopatologista, ora réu, para que procedesse à sua biopsia, o que este fez, tendo-lhe entregue o respectivo resultado, em que é diagnosticado um “adenocarcinoma de grau médio de diferenciação (G 2 na classificação UICC e 2+3 na classificação de Gleason)”;
- Em face de tal diagnóstico, veio a ser submetido a intervenção cirúrgica – prostatectomia radical - por via da qual lhe foi extraída a próstata na sequência do que ficou impotente e incontinente;
- A análise feita às peças extraídas do seu corpo revelou a inexistência de qualquer sinal de cancro;
- Analisada a lâmina da biopsia – com cinco filamentos – que o réu oportunamente forneceu ao autor, a pedido deste, confirmada foi a inexistência de cancro.
- O réu cometeu um grosseiro erro médico que veio a causar uma ofensa muito séria no corpo e na saúde do autor, devendo indemnizá-lo pelos danos causados, indemnização que colhe abrigo, quer no instituto da responsabilidade civil – arts. 483º e segs. do Código Civil –, quer no âmbito da responsabilidade contratual, já que entre as partes foi firmado um contrato de prestação de serviços  – art. 798º do mesmo diploma -, sendo caso de concurso de responsabilidades;
- Teve gastos no valor de esc. 892.000$00, sendo desse montante os danos patrimoniais sofridos e as enormes dores físicas e psicológicas por si sofridas reclamam uma indemnização por danos de natureza não patrimonial no valor de esc. 80.000.000$00.
- A ré é também responsável, já que o réu, seu marido, além de professor da Faculdade de Medicina, exerce a profissão de médico anátomo-patologista, sendo com os honorários auferidos no exercício desta profissão que ocorre às despesas do seu agregado familiar, nomeadamente de sua mulher.
Houve contestação onde o réu impugnou factos e afirmou que mantinha “o seu diagnóstico acerca do carcinoma que detectou no material biopsado do A..” (sic).
Seleccionados os factos assentes e elaborada a base instrutória, realizaram-se vários exames periciais, tendo depois tido lugar a audiência de discussão e julgamento, no final da qual se proferiu despacho respondendo à matéria de facto controvertida.
Foi depois lavrada a sentença que julgou a acção parcialmente procedente, condenando os réus a pagarem ao autor a quantia de (esc. 20.000.000$00) € 99.759,58, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a citação até efectivo pagamento.

Apelaram o autor e os réus.

O primeiro apresentou alegações onde pede a revogação da sentença com a condenação dos réus na integralidade do pedido que deduziu, formulando, para tanto, as seguintes conclusões:

I) A única discordância (e que é grande) com a douta sentença sob censura, diz respeito à quantificação dos danos morais que o recorrente havia pedido (e continua a pedir) que fossem fixados em 80.000.000$00, agora 399.038,31 euros;
II) Os danos morais sofridos pelo Autor - recorrente não foram grave foram Gravíssimos!
III) Os factos provados, e com relevância para a determinação dos danos morais, são os que constam da sentença e que se repetem no item 4 do corpo destas alegações;
IV) O recorrente tinha 59 anos (ao tempo dos factos), era (e é) casado, engenheiro e administrador de empresas, era um homem alegre e bem disposto e tornou-se uma pessoa azeda e insatisfeita com a sua vida, tendo sofrido ansiedade que o conduziu a uma depressão;
V) Tudo isto está absoluta e completamente provado;
VI) Para maior facilidade de raciocínio (mas de forma algo artificial) os danos morais sofridos podem dividir-se em dor física, ansiedade, incontinência, impotência e outros (menos significativos) danos;
VII) Destes há que pôr em evidência a incontinência (impeditiva de uma vida social normal) e a impotência que inibe o recorrente de manter (como mantinha) uma vida sexual normal;
VIII) Tudo isto causador de uma depressão com a extensão e gravidade que esta doença assume;
IX) A quantificação dos danos há-de ser feita por forma equitativa – nº 3 do art. 496° do C.C.;
X) Sobre este conceito e sobre a dificuldade de cumprir esse desiderato, o recorrente apelou, e faz referência, a alguma doutrina que se entendeu adequada, nos items 20 a 22 do corpo destas alegações;
XI) Para se concluir que a fixação dos danos morais não foi equitativa, repetindo-se que a quantia pedida - 80.000.000$00 ou 399.038,31 euros é a verdadeiramente justa, considerado o caso concreto;
XII) As indemnizações tradicionalmente atribuídas pelos Tribunais Portugueses são baixas;
XIII) Mas os Acórdãos a que se alude nos items 23 e 24 do corpo destas alegações provam que há uma evolução positiva, moderna e modernizadora dessa Jurisprudência;
XIV) É apelando a essa modernização da Jurisprudência que o recorrente mantém o seu pedido anterior, propondo e pedindo que a sentença recorrida seja revogada e substituída por decisão que condene os Réus - recorridos a pagar 80.000.000$00, ou 399.038,31 euros, a titulo de indemnização por danos morais;
XV) A tentativa de "apanhar" o comboio da Europa deve exercer-se em todos os sentidos e em todas as áreas – também no de actualizar as indemnizações judiciais, nomeadamente quando se reportam a danos gravíssimos como são os que se patenteiam nestes autos;
XVI) Foi violada a regra do art°. 496°, nomeadamente o seu n°. 3, do Código Civil.
    
Não houve contra-alegações.
    
Os réus apresentaram também alegações, pedindo a revogação da sentença e a sua substituição por outra que fixe em € 35.000,00 a indemnização a pagar ao autor, formulando as seguintes conclusões:

a) Provado que o autor entregou ao réu marido, na qualidade de médico anatomopatolista, filamentos de tecido prostático recolhidos com prévia biopsia para que este os analisasse histologicamente, mediante o pagamento de honorários, com o objectivo de diagnosticar a existência ou não, nos mesmos, de células cancerosas, é de concluir que foi celebrado entre ambos um contrato de prestação de serviços, nos termos do art. 1154º do CC, cujo incumprimento ou cumprimento defeituoso por parte do prestador de serviços das obrigações assumidas gerará, verificados os restantes pressupostos, responsabilidade contratual, pelo que decidindo de outro modo, a sentença recorrida violou o disposto no art. 798º do CC.
    
b) A indemnização de 99.759,58 euros (Pte. 20.000.000$00) a título de danos não patrimoniais, reportada a 14 de Outubro de 1998, é excessiva, porque não equitativa, apesar de o lesado ter sido sujeito a operação que não realizaria sem um diagnóstico deficiente feito pelo réu marido, que teve lugar em 31 de Março de 1998, ter estado 6 dias internado, 17 com algália, passando depois a usar fraldas, situação que à data da petição (o mais tardar no início de Outubro de 1998) já apresentava melhoras, ter ficado com disfunção eréctil, com impotência absoluta, cicatriz entre o umbigo e a púbis, dores durante cerca de seis meses, angústia, depressão durante cerca de seis meses e impedido até ao início de Outubro de 1998 de manter a vida social.

c) Pois é necessário considerar ainda que em 1998 as indemnizações arbitradas em situações idênticas ou até mais graves eram então significativamente inferiores a tais montantes, que o réu marido responde apenas por culpa presumida por não se ter provado qual a ofensa concretamente causada ao padrão de conduta profissional de um médico satisfatoriamente competente, prudente e informado, que a responsabilidade por acto médico é essencialmente uma responsabilidade pela violação de deveres de meios, que a ré mulher responde por efeito da mera regra excepcional da comunicabilidade da responsabilidade, não sendo ela própria lesante, que o réu marido é pessoa que vive do produto do seu trabalho e que a ré mulher é doméstica e que o autor, lesado, tinha à data dos factos a idade de 58 anos, estando a três meses de perfazer os 59 anos.

d) Fixando a indemnização, por referência a 1998, em montante superior a 35.900,90 euros, a sentença recorrida violou o disposto no art. 496º, nº 3, 1ª parte do C. Civil.
e) E tal obrigação de indemnização não vence juros desde a citação, mas apenas desde a data da decisão que fixe a indemnização, pois trata-se de crédito ilíquido, porque quantitativamente indeterminado até à sentença e consubstancia um caso de responsabilidade obrigacional ou contratual., pelo que decidindo de outro modo, a sentença recorrida violou o disposto no art. 805º, do CC, particularmente o respectivo nº 3.

     Em contra-alegações apresentadas, o autor pugnou pela improcedência desta apelação.

Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação as enunciadas por cada um dos recorrentes nas conclusões formuladas, já que são estas, como é sabido, que delimitam o âmbito do recurso.

Assim, no âmbito do recuso interposto pelo autor importa saber se o montante indemnizatório fixado é exíguo para ressarcimento dos danos de natureza não patrimonial por ele sofridos, mostrando-se antes adequado para esse efeito o valor peticionado pelo apelante nesta acção.

E no recurso interposto pelos réus há que saber se a responsabilidade do 1º réu é tão só de natureza contratual e se a indemnização com vista ao ressarcimento dos danos de natureza não patrimonial causados ao autor deve, ao invés, ser fixada em € 35.000,00 sendo excessivo o valor arbitrado na sentença impugnada e devendo os respectivos juros de mora ser contados apenas a partir da data da decisão e até integral pagamento.

II – Na sentença descrevem-se como provados os seguintes factos:
1. O Autor nasceu em 18 de Junho de 1939. -a)
2. Casou em 4 de Setembro de 1965. -b)
3. O Autor sempre gozou de excelente saúde. -c)
4. A análise do PSA pode detectar precocemente o cancro na próstata. -d)
5. Um PSA de 9.10 é considerado um valor alto e significativo. -e)
6. Entre os 50 e os 59 anos, o normal do PSA situa-se entre os 0.5 e 2.9. -f)
7. A intervenção cirúrgica de prostatectomia radical é uma operação para remover a próstata com vista à cura do cancro localizado nesse órgão. -g)
8. O cancro da próstata é o mais frequente dos tumores malignos, no homem adulto. -h)
9. A biopsia permite colher, com uma agulha conduzida ecograficamente, pequenos cilindros de tecido prostático posteriormente analisados histologicamente por forma a determinar as características das células do eventual tumor, podendo estabelecer-se um prognóstico em conformidade com a maior ou menor diferenciação celular, sendo este o único método que garante a certeza do diagnóstico, isto é, que garante se se trata de cancro. -i)
10. Como princípio geral, os filamentos do tecido da próstata devem ser identificados de acordo com os locais de onde foram retirados para que, em caso de se detectar um tumor canceroso, seja possível determinar a sua localização. -j)
11. A seguir, cada conjunto de filamentos é colocado em parafina líquida, a qual, depois de solidificada, fica constituindo um bloco no qual está integrado o filamento. -k)
12. Este bloco é, em seguida, cortado em fatias de microns de espessura sendo essas fatias colocadas em lâminas para observação ao microscópio. -l)
13. Um bloco pode ser seccionado de forma semelhante a uma peça de fiambre a que se retiram fatias -m)
14. É possível, segundo a técnica descrita, retirarem-se várias lâminas para observação ao microscópio. -n)
15. Em termos gerais, que podem variar em cada caso concreto, na boa técnica, além dos cilindros de tecido prostático recolhidos serem identificados, deverá, no caso de diagnóstico positivo, indicar-se quais os cilindros atingidos e qual a percentagem de tecido afectado. -o)
16. Quando é encontrado cancro, a intervenção cirúrgica, apesar das graves consequências que normalmente desencadeia, é, de acordo com os conhecimentos actuais, a única solução recomendável se o cancro estiver confinado à próstata. -p)
17. Se houver células cancerosas fora da próstata, a solução recomendada não é cirúrgica. -q)
18. Esta operação chama-se prostatectomia radical e é feita por incisão entre o umbigo e a púbis. -r)
19. Em princípio, os gânglios são então vistos em análise extemporânea, ou seja, são analisados, durante a operação, por um médico anátomo-patologista que se encontra na sala de operações ou junto a esta. -s)
20. Quase sempre esta intervenção, de acordo com os conhecimentos existentes à data da operação, dá origem a impotência e algumas vezes a incontinência urinária; no entanto, e em virtude das muito rápidas evoluções que a medicina está a registar, essas situações podem, a curto prazo, ser alteradas. -t)
21. Ao invés, quando no exame histológico extemporâneo dos gânglios se verifica haver já metástases, a cirurgia deve ser interrompida. -u)
22. Nestes casos, em que não é já possível inverter o curso da doença, é, de acordo com os conhecimentos existentes à data da operação, apenas aconselhável uma terapia paliativa hormonal por forma a garantir uma boa qualidade de vida do doente. -v)
23. No caso concreto, a recolha para biopsia foi feita pelo Sr. Dr. […] Lisboa. -w)
24. Por indicação dos médicos […], o próprio Autor entregou os filamentos que recebeu do consultório do Dr. […]  na residência e laboratório do anátomo-patologista, Prof. Dr. […], o Réu-marido,[…] Lisboa, para que este procedesse ao exame dos ditos filamentos - o que o Réu-marido fez. -x)
25. Em 2 de Março de 1998, o Réu-marido entregou ao Autor o resultado da biopsia, em que é diagnosticado um “adenocarcinoma de grau médio de diferenciação (G 2 na classificação UICC e 2+3 na classificação de Gleason)”. -y)
26. A irmã do Autor, Helena […], solicitou ao Réu-marido a entrega de uma lâmina da biopsia que havia sido entregue ao Réu-marido, a qual foi entregue àquela cerca de uma semana mais tarde. -z)
27. Foram efectuados os relatórios médicos constantes dos docs. nºs 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11 juntos à petição inicial.- aa)
28. Foram efectuados os relatórios médicos constantes dos docs. 1 e 2 juntos à contestação. -bb)
29. O Réu-marido, além de Professor da Faculdade de Medicina, exerce a profissão de médico anátomo-patologista. -cc)
30. Isto é, faz exames próprios da especialidade e elabora os respectivos relatórios, cobrando, em contrapartida, os correspondentes honorários. -dd).
31. E é com esses honorários que o Réu-marido ocorre às despesas do seu agregado familiar, nomeadamente da sua esposa, a ora-Ré. -ee)
32. O Autor fazia todos os anos um exame geral ou check-up. -1º
33. O que acontecia ou na Clínica do Dr. […]  ou na Clínica […]. -2º
34. Foi a esta última Clínica que o Autor recorreu em Junho de 1997. -3º
35. E mostrou os resultados ao seu médico-assistente há mais de 28 anos, o Sr. Dr. […] Lisboa. -4º
36. O Autor sofria apenas de colesterol ligeiramente elevado e de uma hipertrofia benigna da próstata. -5º
37. Para tratamento do colesterol elevado, o Autor fez uma dieta pobre em gorduras, após o que voltou ao consultório do Sr. Dr. […] em 14 de Janeiro de 1998. -6º
38. Nessa consulta o Autor perguntou ao seu médico se seria útil submeter-se a uma análise do PSA. -7º
39. O que o Dr. […] considerou útil. -8º
40. O Autor sujeitou-se a essa análise, em 21 de Janeiro de 1998, no Laboratório de Patologia Clínica […] Lisboa. -9º
41. Perante o resultado da análise, o Sr. Dr. […]  recomendou ao Autor que procurasse, com brevidade, um urologista. -10º
42. O Autor falou então com o seu primo direito, Professor Doutor […]  professor de gastrenterologia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, que lhe indicou o nome de dois urologistas por ele considerados muito competentes: o Sr. Dr. […] e o Professor Doutor […]  -11º
43. O Autor optou pelo primeiro que consultou em 2 de Fevereiro de 1998. -12º
44. O Sr. Dr. […]  estranhou o resultado da análise. -13ºº
45. E para confirmação, mandou repetir a análise (PSA) em dois laboratórios. -14º
46. O que o Autor fez em 11 de Fevereiro de 1998. -15º
47. No laboratório […]  o resultado do PSA foi de 8.76.-16º
48. No Laboratório de Análises Clínicas da Professora Doutora […]  o resultado foi de 9.7.-17º
49. O urofluxograma - exame também recomendado pelo Sr. Dr. […]  - e feito na Clínica […]  Lisboa, concluiu que existia “uma disfunção miccional de tipo obstrutivo moderada/grave.” -18º
50. Em 20 de Fevereiro de 1998, o Autor procurou, de novo, o Sr. Dr. […] , levando-lhe o resultado das análises. -19º
51. O Autor foi então informado por este urologista de que, provavelmente, sofreria de cancro na próstata. -20º
52. Mas que o PSA elevado poderia também dever-se a outras causas, nomeadamente a uma prostatite que é uma inflamação da próstata que não assume gravidade. -21º
53. O Sr. Dr. […]  recomendou então a realização de uma biopsia. -22º
54. Na mesma altura, o Sr. Dr. […]  comunicou ao Autor que, se a biopsia fosse positiva, seria necessária uma intervenção cirúrgica de prostatectomia radical. -23º
55. Se os gânglios não estão atingidos, procede-se ao seccionamento da uretra, retirando-se a parte envolvida pela próstata. -24º
56. E são também retiradas as duas vesículas seminais e os nervos erectores de um ou dos dois lados. -25º
57. Perante o resultado referido na alínea Y) da matéria de facto assente, o Autor resolveu ouvir a opinião de outro médico e consultou, por isso, o Professor Doutor […]  -26º
58. O Professor Doutor […], em face do resultado da biopsia, recomendou, em 4 de Março de 1998, que o Autor fizesse um exame de gamografia óssea para se verificar se o seu esqueleto estava já, ou não, atingido pelo cancro. -27º
59. Esse exame foi feito, em 6 de Março de 1998, pelo Laboratório de Medicina […]
60. O exame nada detectou de anormal. -29º
61. Em 9 de Março de 1998, o Autor deslocou-se a Paris para ouvir a opinião do Professor Doutor […]  Chefe do Serviço de Urologia do Hospital Necker. -30º
62. Este, lendo o diagnóstico escrito pelo Réu-marido, disse ao Autor que a solução seria de facto a intervenção cirúrgica, com prostatectomia radical. -31º
63. Contudo, o Professor […]  propôs ao Autor que a lâmina da biopsia fosse examinada por um anátomo-patologista francês, de sua confiança.-32º
64. O Autor regressou a Lisboa, depois de ter telefonado à irmã, mas antes de a mesma ter recebido a lâmina da biopsia. -33º
65. O tratamento proposto pelo Professor […] coincidia, em absoluto, com o tratamento proposto pelo Professor […] . -34º
66. O Autor não viu qualquer razão para que a intervenção cirúrgica não se fizesse em Lisboa. -35º
67. O Autor guardou a lâmina da biopsia (lâmina com cinco filamentos - Ref. 64707/98). -36º
68. A operação foi marcada para 31 de Março de 1998. -37º
69. Entre 23 a 30 de Março, o Autor fez três recolhas de sangue para utilização durante e após a intervenção cirúrgica. -38º
70. Em 30 de Março de 1998, o Autor foi internado no Instituto de Urologia, sito nas Torres de Lisboa […]
71. A operação foi feita pelo Professor […] e pela sua equipa, composta pelos médicos […] . -40º
72. O Autor saiu do Instituto de Urologia, no dia 6 de Abril, indo convalescer para sua casa. -41º
73. O Autor manteve-se algaliado desde a intervenção cirúrgica até 17 de Abril de 1998. -42º
74. A partir de 17-04-1998 o A deixou de conseguir reter a urina, passando a usar fralda. -43º E 81º.
75. Situação que se mantém até hoje embora com algumas melhoras. -44º
76. O Autor ficou a sofrer de disfunção eréctil. -45º
77. Não consegue a erecção do pénis por forma a manter relações sexuais normais de cópula completa. -46º
78. Até então, o Autor tinha, por semana, uma média de três relações sexuais de cópula completa, com introdução total do pénis na vagina da sua parceira -47º
79. Após a operação, o Autor procurou o Professor […]  que lhe disse ter ele, Autor, ficado completamente livre do cancro. -48º
80. O Autor pediu ao Professor […]  que lhe fizesse chegar à mão o relatório do anátomo-patologista que acompanhara a operação e que procedera à análise das peças que tinham sido extraídas do seu corpo. -49º
81. Esse relatório foi entregue ao Autor pela enfermeira Maria […] colaboradora do Professor […] , e por indicação deste. -50º
 82. O dito relatório, datado de 8 de Abril de 1998, elaborado pelo Dr. Pedro […], concluía que não tinha sido encontrado qualquer sinal de cancro - “não se tendo encontrado qualquer foco neoplásico”. -51º
83. Refere o relatório que o facto de se não encontrar cancro na peça é uma situação referida na literatura da especialidade como “vanishing cancer phenomenon”, isto é, fenómeno de cancro que desaparece. -52º
84. Isto devido a, em certos casos, o tecido neoplásico ser de tão escassas dimensões que pode ter sido “interessado” na totalidade nos cilindros da biopsia, isto é, ter desaparecido com a biopsia. -53º
85. O Autor contactou o seu médico assistente, Dr. […], que não conseguiu dar-lhe uma explicação satisfatória. -54º
86. De seguida, o Autor voltou a falar com o seu primo, Professor Doutor […]. -55º
87. O qual declarou não ter resposta para as dúvidas do Autor. -56º
88. E contactou com o Professor […] Catedrático de Anatomia Patológica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. -57º
89. Este, após exame da lâmina fornecida pelo Réu-marido e em posse do Autor (Refª 64707/98), confirmou a não existência de cancro. -58º
90. O Autor procurou o Professor […], Chefe de Serviço de Anatomia Patológica do Instituto de Oncologia Francisco Gentil do Porto e Professor de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina do Porto, que atestou que os tecidos, constantes da lâmina referida em 58º, mostravam sinais de prostatite, mas que não evidenciavam alterações de malignidade. -59º
91. Em 4 de Junho de 1998, o Autor consultou a Professora Doutora […] professora de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina da Universidade Clássica de Lisboa e Directora do Serviço de Anatomia Patológica do Hospital de Santa Maria, e o diagnóstico foi no sentido de que não havia cancro. -60º
92. O Autor deslocou-se a Barcelona, tendo sido recebido pelo Professor […] do Instituto de Urologia, Nefrologia e Andrologia do Hospital de La Santa Creu, San Pau, da Universidade Autónoma de Barcelona (Fundació Puigvert). -61º
93. O Professou […]  é considerado um dos melhores em Espanha. -62º
94. O Professor […] elaborou e entregou ao Autor, em 8 de Junho de 1998, relatório que confirma os anteriores diagnósticos. -63º
95. Em 19 de Junho de 1998, o Autor obteve um parecer do Professor […] que também menciona não terem sido encontrados sinais de cancro. -64º
96. O Professor […] é professor catedrático de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e Chefe do Serviço de Anatomia Patológica dos Hospitais da Universidade de Coimbra. -65º
97. O Professor […], professor de Anatomia Patológica da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e Director do Serviço de Anatomia Patológica do Hospital de São João do Porto, atestou, em 26 de Agosto de 1998, que os fragmentos de próstata analisados colhidos por biopsia não apresentavam sinais de cancro. -66º~
98. O mesmo Professor observou também as lâminas pós-operatórias feitas a partir da próstata e vesículas seminais do Autor, confirmando, em todos os casos, a inexistência de cancro. -67º
99. Em 7 de Setembro de 1998, a Sra. Dra. […] Chefe de Serviço de Anatomia Patológica do Hospital da Universidade de Coimbra, também referia que o Autor sofria de prostatite mas não de cancro. -68º
100. Foi com base no relatório elaborado pelo Réu-marido que o Professor […] decidiu operar o Autor. -69º
101. O Autor não teria sido submetido a qualquer intervenção cirúrgica por sofrer de uma prostatite. -70º
101. A prostatite é uma inflamação tratável por meios não cirúrgicos e muito menos através de uma prostatectomia radical. -71º
102. O Autor foi submetido, em 11 de Maio de 1998, a uma Junta Médica e foi-lhe atribuída uma incapacidade permanente global de 80%, não susceptível de reavaliação-72º
103. Esta incapacidade teve como base a circunstância de o Autor sofrer de cancro. -73º
104. Quando apenas sofria de prostatite-74º
105. O Autor despendeu quantia não apurada nas deslocações ao Porto, a Coimbra, a Paris e a Barcelona e em fraldas.- 75º a 79º e 82º
106. O Autor efectuou as deslocações supra referidas com vista à obtenção dos relatórios médicos referidos nos factos 92 e 94 a 99. -80º
107. Após a operação e como consequência desta, o Autor ficou completamente impotente. - 83º
108. Tem uma cicatriz localizada entre o umbigo e a púbis. -85º
109. Sofreu dores no pós-operatório. - 86º
110. Manteve durante vários meses dores no nervo dermofemural da perna direita. -87º
111. O que o levou mesmo a consultar um neurologista, o Professor […] -88º
112. O Autor sofreu angústia quando tomou conhecimento do relatório elaborado pelo Réu-marido. - 89º
113. Angústia que se manteve até que obteve a confirmação de que afinal não tinha cancro. - 90º
114. A circunstância de estar impotente e incontinente causou, e continua a causar, uma depressão ao Autor. - 91º
115. O Autor era um homem alegre e bem disposto. - 92º
116. Transformou-se numa pessoa azeda e insatisfeita com a sua vida. - 93º
117. O Autor é administrador de empresas. -94º
118. Os factos referidos em 74, 111, 113, 114 e 117 impedem-no de manter a vida social. - 95º
119. É provável que o Autor venha a ser sujeito a consultas, exames e análises.- 96º
120. É provável que o Autor seja submetido a uma operação cirúrgica para colocação, na uretra, de um esfíncter artificial. - 97º
124. O Autor nunca contactou os Réus para qualquer esclarecimento relativo ao relatório que o 1º Réu fez. -99º
125. O Réu colocou o material observado em lâminas que foram identificadas sob o nº 64707/98, segundo uma numeração que lhe atribuiu. -102º
126. Após o relatório de fls. 32, o 1º Réu guardou uma lâmina que se encontra guardada no cofre. - 103º e 104º
127. O carcinoma da próstata diagnostica-se microscopicamente pelo facto de o tecido respectivo ser constituído por células que perderam as características habituais do órgão e, em geral, se disporem de maneira anárquica.-107º
128. Gleason estabeleceu 5 graus histológicos, em que o grau 1 tem glândulas cujas células ainda lembram o normal e o grau 5 já não mostra vestígios da próstata, incluindo a própria formação de glândulas (ainda reconhecíveis até ao grau 4). -108º
129. Os tumores de grau 1 têm melhor prognóstico, o qual vai evoluindo negativamente até à situação mais grave, que é a de grau 5.-109º
130. Nem o Autor, nem nenhum dos seus médicos, nem ninguém por eles, pediu ao 1º Réu qualquer esclarecimento acerca do seu diagnóstico ou da lâmina por si fornecida. -113º
131. O 1º Réu trabalha diariamente em patologia urológica há mais de 30 anos, colaborando com a maior parte dos especialistas de Lisboa. -124º
132. O 1º Réu é Professor Catedrático, actualmente jubilado, e tem uma vasta obra no domínio da anatomia patológica, com reconhecimento nacional e internacional. -125º
133. O 1º Réu é reconhecido como um especialista muito competente, empenhado e sério nas áreas onde exerce a sua profissão, designadamente nos exames histológicos efectuados sobre biopsias da próstata.-126º
134. O 1º Réu tem sido saudado como um cientista de elevada craveira e um médico de mérito invulgar. -127º
 
     III – Passemos, pois, a abordar as questões suscitadas, o que faremos por ordem de precedência lógica, independentemente de haverem sido deduzidas pelo autor ou pelos réus.
    
Sobre a caracterização da responsabilidade do réu marido:

No exercício da sua profissão de médico anátomo-patologista, em cujo âmbito faz exames próprios da especialidade e elabora os respectivos relatórios, cobrando, em contrapartida, os respectivos honorários – factos nºs 29 e 30 –, o réu marido procedeu, a pedido do autor, ao exame de filamentos de tecido previamente extraídos da próstata deste, a quem apresentou depois o resultado da biopsia em que diagnosticava a existência de um “adenocarcinoma de grau médio de diferenciação (G 2 na classificação UICC e 2+3 na classificação de Gleason)” – factos nºs 23, 24 e 25.
    
Este diagnóstico que, mais tarde, se constatou ser absolutamente errado, levou, porém, a que o autor se submetesse, como tudo aconselhava, a intervenção cirúrgica de prostatectomia radical, na sequência da qual, deixou de conseguir reter a urina, situação que se mantém, embora com algumas melhoras, e ficou a sofrer de disfunção eréctil - factos nºs 68, 70, 71, 74, 75, 81 a 84, 88, 99, 100, 101 e 105.
    
Estamos, assim, perante um acto médico – exame histológico e elaboração do respectivo relatório – que, por ter sido realizado de modo deficiente, diagnosticou a existência de cancro na próstata do autor, doença cuja erradicação, segundo os conhecimentos científicos actuais, necessariamente passa por intervenção cirúrgica de ablação do dito órgão.
    
O dito acto médico determinou, pois, pelo erro de diagnóstico cometido, a realização de intervenção cirúrgica com consequências devastadoras – incontinência urinária e impotência absoluta - que de modo algum se justificava, já que o autor apenas padecia de prostatite.
    
Estes e outros danos, sofridos pelo autor por virtude daquele errado diagnóstico, são danos de natureza não patrimonial cujo ressarcimento o autor reclama, fundado na responsabilidade contratual e extracontratual que, na sua tese, cumulativamente impenderá sobre o réu marido.
    
Não pondo em causa a existência de obrigação de indemnizar o autor, sustentam os réus, porém, que a mesma se radica apenas no instituto da responsabilidade contratual, já que foi com base em convénio firmado pelas partes que o réu marido, a pedido do autor, examinou e emitiu parecer sobre os filamentos de tecido prostático pertencente a este último, contra o pagamento de retribuição, o que configura o contrato de prestação de serviços tal como o caracteriza o art. 1154º do C. Civil (diploma a que pertencem as normas de ora em diante referidas sem menção de diferente proveniência).
    
A sentença parece apontar no sentido da verificação de um e de outro tipo de responsabilidade, embora seja no plano da responsabilidade extracontratual que aí se analisa e afirma a verificação dos respectivos pressupostos.
    
É inteiramente correcto, a nosso ver, o entendimento preconizado nesta matéria por Figueiredo Dias e Sinde Monteiro[1] segundo o qual “o mesmo facto pode constituir uma violação do contrato e um facto ilícito; é o caso do cirurgião que deixa um objecto estranho no corpo do paciente”, pondo-se então a questão de saber se o lesado pode invocar simultaneamente as regras que lhe forem mais favoráveis. E estes autores prosseguem dizendo que “na inexistência de uma norma que especificamente venha dizer o contrário, se deve aceitar, como a «solução natural», a da concorrência (rectius, cúmulo) de responsabilidades.
    
Em sentido idêntico se pronuncia João Álvaro Dias[2], afirmando que os médicos estão obrigados para com os seus doentes, quer pelos específicos deveres imanentes dos contratos celebrados, quer por virtude de um dever genérico de cuidado e tratamento imposto pela deontologia da profissão que exercem, referindo ainda que vem sendo mesmo sustentado pelo Prof. Dieter Giesen[3] - este citando, por seu lado, em abono da sua ideia, vários outros autores - que não há “qualquer distinção essencial entre os deveres de cuidado e perícia resultantes do contrato e desse outro genérico dever que emana dos princípios da responsabilidade extracontratual («tort»)”.

No caso dos autos, dúvidas não existem de que a relação estabelecida entre o autor e o réu marido tem a natureza de um contrato de prestação de serviços – tal como o define o art. 1154º - , visto este último, na sua qualidade de médico anátomo-patologista, se ter comprometido, a solicitação do primeiro, a proceder à análise e elaborar relatório sobre a existência, ou não, de cancro nos filamentos de tecido prostático extraídos do corpo do autor. E dúvidas não existem de que o réu marido cumpriu defeituosamente essa sua obrigação já que, com omissão da diligência e cuidados devidos, efectuou o necessário exame, diagnosticando, erradamente, a existência de um adenocarcinoma na próstata do autor, quando este apenas sofria de uma prostatite.

A omissão da perícia devida na realização do exame a que contratualmente se obrigou, levou a que o autor, em face do diagnóstico erradamente feito pelo réu, se submetesse a intervenção cirúrgica de extracção da próstata, única forma, segundo os conhecimentos científicos actuais, de debelar o carcinoma que supostamente afectava aquele órgão, com as devastadoras consequências demonstradas nos autos.

A actuação do réu marido, ao deixar de usar a perícia esperada e exigível ao técnico altamente qualificado que é, configura não só uma violação de natureza contratual, como um facto ilícito gerador de responsabilidade nos termos do art. 483º, uma e outra via conduzindo, verificados os demais pressupostos, à obrigação de indemnizar o autor pelos danos sofridos.

Deste modo se conclui pela concorrência, no caso dos autos, dos dois tipos de responsabilidade civil, não sendo de aceitar a tese dos réus sobre este ponto.

Sobre a indemnização dos danos não patrimoniais sofridos pelo autor:

Fixada em € 99.759,58, esta indemnização é, segundo os réus, manifestamente excessiva, mas diminuta nas palavras do autor.

Os primeiros querem vê-la fixada em 35.000,00 e o autor entende ser adequado o valor peticionado de 80.000.000$00, hoje € 399.038,31.

Vejamos.

Os réus sustentam que, apesar de todas as perdas, dores físicas e psicológicas sofridas pelo autor, a indemnização é excessiva e deve ser fixada no valor por si indicado, tendo em conta os seguintes factores: a) em 1998 as indemnizações arbitradas em situações idênticas ou até mais graves eram então significativamente inferiores a tal montante; b) o réu marido responde apenas por culpa presumida por não se ter provado qual a ofensa concretamente causada ao padrão de conduta profissional de um médico satisfatoriamente competente, prudente e informado; c) a responsabilidade por acto médico é essencialmente uma responsabilidade pela violação de deveres de meios; d) a ré mulher responde por efeito da mera regra excepcional da comunicabilidade da responsabilidade, não sendo ela própria lesante; e) o réu marido é pessoa que vive do produto do seu trabalho, a ré mulher é doméstica e o autor, lesado, tinha à data dos factos a idade de 58 anos, estando a três meses de perfazer os 59 anos.

Pese embora não tenha havido da nossa parte a preocupação exaustiva de a confirmar, aceita-se como boa a afirmação genérica de que em 1998 as indemnizações arbitradas pelos nossos tribunais foram inferiores à fixada na sentença recorrida que, segundo o que dela consta, não terá procedido a qualquer actualização do montante indemnizatório.

Mas também é de todos nós conhecida a tendência, aliás, mais do que justificada, que se tem vindo a verificar nas decisões judiciais de elevar o valor das indemnizações desta natureza, de forma a torná-las mais justas e adequadas.

Tem-se presente a necessidade de sopesar os valores fixados em anteriores decisões judiciais, mas não se esquece que tal elemento de referência não pode funcionar como entrave à concessão daquela que se revele, em face das circunstâncias, a justa indemnização, tanto mais que vem sendo sistematicamente sentida e afirmada a excessiva parcimónia dos nossos tribunais na fixação do quantum indemnizatório em sede de danos não patrimoniais.

Mas já se não acolhe como inteiramente correcta a afirmação de que o réu apenas responde por culpa presumida, ao abrigo da presunção legal estabelecida no art. 799º, nº 1, por se não ter provado “qual a ofensa concretamente causada ao padrão de conduta profissional de um médico satisfatoriamente competente, prudente e informado”.

Entendemos, tal como os réus, ora apelantes, que a culpa do réu marido se presume, ao abrigo do disposto no art. 799º, nº 1, já que, como acima se disse, entre ele e o autor se estabeleceu uma relação contratual de prestação de serviços à qual tem plena aplicação o regime da referida norma jurídica.[4]

Assim, também nós nos demarcamos daquele que vem sendo, como refere Manuel Rosário Nunes[5], o entendimento maioritário da nossa doutrina e jurisprudência, segundo o qual a presunção de culpa do devedor, estabelecida no dito preceito legal, não tem aplicação no campo da responsabilidade civil médica, visto que, em regra, sobre o médico não recai qualquer obrigação de resultado, mas tão só de meios – o resultado a que alude o art. 1154º será não a cura em si, mas os cuidados de saúde, o tratamento –, pelo que ao ónus de prova da culpa se aplicam em exclusivo as regras da responsabilidade civil extracontratual.

Desde logo, é de notar que o caso dos autos é exactamente um dos que, na dicotomia obrigação de meios/obrigação de resultado, tal como é caracterizada pela citada doutrina e jurisprudência, fugindo à regra geral, sempre seria de qualificar como pertencendo ao segundo grupo, já que o réu marido, na sua qualidade de médico anátomo-patologista, ao contratar com o autor, se comprometeu a facultar-lhe um determinado resultado – detectar se os filamentos de tecido que este lhe entregou para análise estavam, ou não, afectados por carcinoma[6].

Diversamente do sustentado pelos réus, não se trata, pois, de uma obrigação de meios, mas antes de resultado, pelo que, mesmo no caso de se propugnar o entendimento em causa, sempre funcionaria aqui a presunção de culpa do devedor, por aplicação do mencionado art. 799º, nº 1.

Ademais, afigura-se-nos inteiramente correcta a ideia expendida nesta matéria por Álvaro da Cunha Gomes Rodrigues[7] que escreve o seguinte: “Cremos que no domínio da responsabilidade contratual não militam quaisquer razões de peso específicas da responsabilidade médica, que abram uma brecha na presunção de culpa do devedor consagrada no nº 1 do art. 799º do C. Civil.

Quer se entenda que a obrigação contratual do médico é uma obrigação de meios, quer se considere que a mesma é uma obrigação de resultado.

O ónus da prova da diligência recairá sobre o médico, caso o lesado faça prova da existência do vínculo contratual e dos factos demonstrativos do seu incumprimento ou cumprimento defeituoso.

Com isto em nada se está a agravar a posição processual do médico, que disporá de excelentes meios de prova no seu arquivo, na ficha clínica, no processo individual do doente, além do seu acervo de conhecimentos técnicos.

Por outro lado, tal posição tem o mérito de não dificultar substancialmente a posição do doente que, desde logo, está numa posição processual mais debilitada, pois não sendo, geralmente, técnico de medicina não dispõe de conhecimentos adequados e, doutra banda, não disporá dos registos necessários (e, possivelmente, da colaboração de outros médicos) para cabal demonstração da culpa do médico inadimplente.

Sendo assim inequívoco que a culpa do réu marido se presume, por força da relação contratual que o ligou ao autor, também deve considerar-se como demonstrada, pela positiva, a sua actuação culposa, designadamente para efeitos de verificação de responsabilidade civil extracontratual, acima afirmada e tida como existente na sentença impugnada, instituto em cujo âmbito não existe presunção legal idêntica à do art. 799º, nº 1, antes cabendo ao lesado o ónus de provar a culpa do lesante, posto que a mesma se assume como facto constitutivo do direito que invoca – art. 342º, nº 1.

A formulação de um juízo positivo sobre a existência de culpa do réu marido no caso dos autos pressuporá a constatação de uma actuação ou omissão sua que, por falta de diligência ou prudência, se mostre desconforme às “leges artis” próprias de um médico da sua especialidade satisfatoriamente competente e informado, reclamando, por isso, um juízo de censurabilidade.

Enquanto anátomo-patologista, a quem foram entregues pelo autor filamentos de tecido prostático para biopsia, cabia-lhe, fazendo uso de instrumentos adequados, examinar tal amostra, constatando, ou não, a existência de tumor maligno no tecido em causa.

O réu marido realizou o dito exame e, em resultado do mesmo, apresentou relatório onde diagnosticou a existência de cancro no tecido prostático do autor, quando o mesmo estava apenas afectado de mera inflamação – prostatite (cfr. o facto nº 104).

Embora se desconheça o processo psicológico, o acto ou omissão que redundou em falta de diligência ou perícia exigíveis a um profissional satisfatoriamente competente, cuidadoso e informado, é imperioso concluir que só um manifesto e censurável erro pode ter estado na base de tão inesperado diagnóstico.

É esta a conclusão que se impõe extrair através da denominada prova prima facie ou de primeira aparência que, nas palavras de Alberto dos Reis [8]é a prova fundada nos ensinamentos e na experiência do que sucede normalmente”.

E, por via dela, o “autor fica dispensado de realizar a prova directa de certo facto se as máximas da experiência apontarem para esse facto acompanhado de outros provados. Segundo Luuisell Y Williams trata-se de um nome dado a uma forma de evidência circunstancial que permite a dedução da negligência. Para Rosenberg, a prova prima facie contenta-se, para provar a culpa, que se demonstre a irregularidade ou a violação de um dever, de forma que permita a conclusão de que só a omissão da diligência necessária poderá ter causado o dano, deixando-se ao demandado a tarefa de provar as circunstâncias a partir das quais se infere a falta de culpa. (…) Desta foram, a prova pela primeira aparência não implica uma inversão de ónus da prova mas apenas uma facilitação da prova. Trata-se de uma presunção de culpa resultante da aplicação às situações de facto de máximas da experiência que permitam deduzir que uma certa situação tem por causa aquela que se deduz prima facie do curso normal dos acontecimentos.[9]

Dissertando ainda sobre a prova de primeira aparência, Manuel Rosário Nunes [10] figurando a hipótese de alguém que sofre uma lesão na sua saúde após sujeição a acto médico, afirma ser de presumir que “ «segundo a normalidade das coisas», a «experiência comum» o dano provavelmente não teria ocorrido caso fossem observadas todas as regras técnicas, de acordo com o estádio actual dos conhecimentos médico - científicos aplicáveis ao caso”. Continua dizendo tratar-se de uma técnica dedutiva que permite concluir pela existência de negligência médica em virtude de a experiência comum revelar que no curso normal das coisas, certos acidentes não poderão ocorrer senão devido a “causa que se traduza em crassa incompetência e falta de cuidado.”

O réu, cuja elevada competência, seriedade e reconhecimento nacional e internacional está demonstrada nos autos – cfr. factos nºs 131-134 - e que ao longo do processo sempre sustentou a correcção do exame por si realizado, só por via do cometimento de um erro muito grosseiro – quiçá, na melhor hipótese para o réu, na mesma linha daquele que o terá levado a trazer aos autos uma lâmina do tecido prostático que lhe teria sido entregue pelo autor e integraria aquele que foi por si examinado na biopsia realizada, quando veio a constatar-se que o mesmo, na parte efectivamente reveladora da existência de carcinoma, afinal continha perfil genético diferente do do autor e, por isso, lhe não pertencia (cfr. os exames periciais constantes dos autos e, designadamente, fls. 371-374 e 534 e segs.) - pode ter concluído, como concluiu, pela existência de cancro no tecido extraído da próstata do autor, quando este apenas padecia de uma simples inflamação naquele órgão – facto nº 104 - e o diagnóstico do carcinoma se efectua através de microscópio pela forma descrita nos nº 127 e 128 dos factos provados, estando-se, portanto, em campo onde, para técnicos especializados, diligentes e informados se não suscitarão especiais dúvidas.

De tudo isto se conclui a culpa grave do autor, o que, como se vê do que dispõe o art. 496º, nº 3, constitui factor relevante na fixação do quantum indemnizatório.

É sabido que os danos não patrimoniais são indemnizáveis quando pela sua gravidade o mereçam – art. 496º, nº 1 do C. Civil.

Como se escreveu no acórdão do STJ de 5.11.98 [11]Este merecimento funciona em dois sentidos; por um lado, excluirá, faltando, a indemnização; por outro lado, não poderá deixar de influenciar, em função do grau em que se verifique, a medida desta.

Na verdade, a indemnização, nestes casos, não é mais do que uma compensação - não sendo, evidentemente, uma reconstituição natural, também não é, sequer, uma reconstituição da situação patrimonial que existiria se a ofensa aos direitos do lesado não houvesse ocorrido - através da viabilização de utilidades ou prazeres que possam servir, de algum modo, como sucedâneos daquilo que se perdeu.

Mas esta sua natureza compensatória não exclui, antes pressupõe, que se considere na sua medida a gravidade do dano causado; uma compensação que seja razoável e satisfatória quanto a um determinado dano desta natureza poderá ser, em relação a um outro dano de muito maior profundidade, uma ridicularia que, inclusivamente, abastarde a seriedade deste e o respeito devido a quem o sofreu.

Por isso se deverá atender a uma proporcionalidade que leve em conta a gravidade do dano, embora sempre se saiba que nunca o preço da dor a ele inerente ficará pago; mas sempre se conseguirá atingir um resultado em que o dano não patrimonial será compensado de modo mais amplo e adequado às circunstâncias.”

Deste modo, importa encontrar um valor que, funcionando como compensação, permita ao autor a satisfação de interesses que, de algum modo, minimizem as dores físicas e psicológicas que sofreu e continuará a sofrer, tendo-se presente que, de acordo com a jurisprudência corrente, o montante destinado a compensar os danos não patrimoniais não deve ser simbólico, devendo antes ser “um seu correspectivo digno e razoavelmente proporcionado (…)[12]

Ora, os danos desta natureza sofridos pelo autor na sequência do errado diagnóstico feito pelo réu marido foram, como se vê da matéria de facto provada, elevadíssimos.

Desde logo o grande sofrimento e medo que necessariamente afectam qualquer ser humano que é confrontado com a confirmação, através de médico especialista, de que sofre de cancro.

Logo lhe surgiram, certamente, a angústia e medo de uma morte próxima ou, na melhor das hipóteses, a perspectiva de um resto de vida com sequelas tão devastadoras como a impotência sexual e a incontinência que, como é sabido, invariavelmente surgem na sequência da intervenção cirúrgica adequada a debelar tal doença.

Depois, submetido a tal cirurgia, com a dor física que isso lhe causou, sentiu e sentirá enquanto vivo for a impossibilidade de cabal realização no campo da sexualidade, com o sentimento de privação, angústia e inferioridade que essa perda absoluta naturalmente determina.

E viu-se e vê-se ainda incontinente – embora com algumas melhoras –, sujeito ao uso de fraldas com o sofrimento, revolta e sentimento de inferioridade e de ausência de controlo que tal dependência necessariamente gera em ser humano já adulto.

São “perdas” irreversíveis e muito severas que não podem deixar de causar a quem, como o autor, as sofreu, o comprometimento da sua vida de relação com os outros e, no mínimo, algum abalo ou alteração na relação mais íntima que mantém com sua mulher. E, contra o que parece ser a ideia dos réus, isto é assim, quer o lesado tenha 30 anos, quer seja pessoa mais madura como o é o autor que, à data dos factos, tinha 58 anos de idade.

Ainda, e necessariamente, o autor, amiúde, sentiu e sentirá desespero e enorme revolta por se ver privado de funções tão básicas e essenciais a qualquer ser humano, não por doença que naturalmente lhe tenha sobrevindo, mas na sequência de erro grosseiro cometido por especialista em quem naturalmente confiou e a quem era exigível, atentos os conhecimentos técnicos de que dispunha – como a qualquer outro satisfatoriamente diligente e informado –, um correcto diagnóstico.

Tudo isto e o demais a este propósito descrito na matéria de facto provada é revelador de um sofrimento para cuja compensação nos termos supra mencionados se nos afigura - tendo também em consideração os demais factores estabelecidos no art. 496º, nº 3 - perfeitamente adequado o montante de 60.000.000$00 – hoje, € 299.278,74.
 
Sobre o momento a partir do qual são devidos juros de mora:

Baseado em que a responsabilidade do réu marido é contratual, os réus sustentam neste recurso que os juros de mora são devidos apenas desde a decisão. Fundam-se no regime do nº 3 do art. 805º, segundo o qual sendo ilíquido o crédito, não há mora enquanto o mesmo se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste mesmo número.

Concluímos já que no caso existe responsabilidade, tanto contratual como extracontratual. E ao abrigo desta última, os juros de mora contam-se, conforme se decidiu na sentença, a partir da citação.

Perante tudo o que se disse, conclui-se pela improcedência da apelação dos réus e pela procedência parcial do recurso do autor.

IV – Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação dos réus e parcialmente procedente a do autor e, consequentemente, alterando-se a sentença, condenam-se os réus a pagar ao autor a título de indemnização por danos não patrimoniais a quantia de € 299.278,74 (60.000.000$00), a que acrescem juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação e até efectivo pagamento.

No mais mantém-se a sentença recorrida.

Custas na 1ª instância a cargo do autor e dos réus na proporção do respectivo decaimento.

Custas da apelação dos réus a cargo destes.

As relativas à apelação do autor são suportadas por ambas a partes na proporção de ¼ para o autor e ¾ para os réus.

Lxa. 11.09.07 (a relatora do processo esteve de baixa por doença entre 8.03 e 10.05.07, devido a intervenção cirúrgica a que foi submetida)

(Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho)

(Arnaldo Silva)

(Graça Amaral)

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[1] Estudo publicado no BMJ nº 332, pág. 21 e segs.
[2] Culpa médica: algumas ideias-força, Revista Portuguesa do dano Corporal, nº 5, ano 1995, pág. 15 e segs..
[3] Estudo e local citados, a pág. 30, em nota de rodapé.
[4] Neste sentido vai o entendimento de Sinde Monteiro e Maria Manuel Veloso, conforme citação feita por Manuel Rosário Nunes, em “O Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil por Actos Médicos”, 2ª edição, pág. 46 e segs..
Idêntico entendimento foi adoptado, a título de exemplo, nos Acórdãos do STJ de 17.12.2002 – Conselheiro Afonso de Melo -, da Relação do Porto de 6 de Março de 2006,  CJ, Ano XXXI, tomo 2, pág.153, um e outro referenciados na citada obra.
[5] Obra acabada de mencionar, onde faz várias citações doutrinárias e jurisprudenciais na referida linha de pensamento.
[6] Os exemplos apontados pelo autor acabado de citar, em nota de rodapé, a pág. 53 e 55, como casos excepcionais em que sobre o médico recai uma obrigação de resultado são os dos exames laboratoriais, o da cirurgia plástica em que existe o compromisso de obter um certo resultado estético no paciente, o dos médicos analista, radiologista e odontologista, todos eles assumindo o encargo de obter um certo resultado, o caso de transfusão sanguínea em que o médico assegura a não existência de qualquer risco para o doente e os casos de vasectomia.
[7] Em “Reflexões em torno da responsabilidade civil dos médicos”, Revista Direito e Justiça, 2000, XIV, 3, pág. 182/183 e 209, conforme citação de Manuel Rosário Nunes, na já mencionada obra, pág. 49.
[8] Em Código Processo Civil Anotado, vol. III, pág. 246
[9] Manuel Rosário Nunes, obra citada, pág. 31-33 e 35.
[10] Mesma obra, pág. 58
[11] Revista nº 957/98
[12] Mesmo acórdão.