Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
244/11.0TELSB-P.L1-9
Relator: RAQUEL LIMA
Descritores: JUIZ DE INSTRUÇÃO
IMPEDIMENTO
PRAZO PARA REQUERER A ABERTURA DA INSTRUÇÃO
ESPECIAL COMPLEXIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.–À luz do disposto no artigo 40º do CPP, com a redacção dada pela Lei 94/2021 de 21.12., o Juiz de instrução que interveio na fase do inquérito e tenha participado nos termos da al a) ou e) do número 1 daquele artigo (Aplicado medida de coação prevista nos artigos 200.º a 202.º ou recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta, respectivamente) não está impedido de proferir despacho a prorrogar o prazo para requerimento de abertura de instrução – artigo 107º nº 6 do CPP.

II.–A instrução, até pelo carácter facultativo que a caracteriza, só se iniciará se for apresentado requerimento de abertura de instrução.

III.–A lei pretende “impedir que o mesmo juiz participe em duas fases processuais distintas”. Porém, no caso referido, apenas estamos na “antecâmara” de uma fase (instrução)que pode até não ocorrer.

IV.–Tratando-se de um processo de especial complexidade faz todo o sentido que o Sr. Juiz de instrução, ao abrigo do disposto no artigo 107º nº 6 do Código Processo Penal, proceda ao alargamento do prazo ali previsto, aumentando-o em mais 30 dias.

V.–Não há diminuição das garantias de defesa pelo não alargamento desse prazo por período superior uma vez que, no caso, o Mmº Juiz de Instrução determinou que o prazo dos 50 dias só começa a contar a partir do momento em que aos Arguidos e o Assistente tenham sido entregues os suportes informáticos com as cópias do processo que se mostram requeridas.

VI.–Tendo uma acusação por trás de si uma investigação de 11 anos, não pode considerar-se que o arguido necessitaria de um prazo semelhante para a defesa.

VII.–Os prazos de inquérito (para todos os processos e não só os de especial complexidade) previstos na lei são muito superiores ao prazo da defesa. Percebe-se que assim seja. O inquérito percorre, pesquisando, vários caminhos possíveis até convergir, se for o caso, numa acusação. A defesa tem o caminho que lhe foi traçado pela acusação.


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa


1.–RELATÓRIO


ACÓRDÃO


O arguido A notificado do despacho proferido pelo MMº Juiz de Instrução, com conclusão de 13-09-2022 e não se conformando com o mesmo, veio interpor recurso.

Depois da motivação, apresenta as seguintes CONCLUSÕES:

A.–O ora Recorrente vem impugnar o despacho em questão por via do presente recurso com base em dois fundamentos centrais — por um lado, o impedimento do Juiz de Instrução Criminal para proferir o despacho de que ora se recorre ou, no limite, e no entendimento do Arguido Recorrente, para participar em qualquer acto após ter sido proferido o despacho de acusação; e, por outro lado, a exiguidade do prazo de 50 dias concedido pelo JIC para apresentar o Requerimento de Abertura de Instrução.

DO IMPEDIMENTO DO JUIZ DE INSTRUÇÃO CRIMINAL
B.–A alteração legislativa introduzida pela Lei 94/2021, de 21/12, designadamente o artigo 40°, visa, essencialmente, impedir que o mesmo juiz participe em duas fases processuais distintas, ou seja, finda uma fase, o JIC que nela participou tem de terminar a sua participação no processo.
C.–O magistrado judicial que interveio no presente processo, durante a fase de inquérito, foi o mesmo que proferiu o despacho de que ora se recorre.
D.–Nos termos do disposto no artigo 40°, n.° 2, do Cód. Proc. Penal, "Nenhum juiz pode intervir em instrução relativa a processo em que tiver participado nos termos previstos nas alíneas a) ou e) do número anterior." (itálico nosso), dispondo as supra mencionadas alíneas a) e e) que nenhum juiz poderá intervir caso tenha "Aplicado medida de coacção prevista nos artigos 200° a 2020" (alínea a)) ou tenha "Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta." (alínea e)).
E.–O JIC que interveio na fase de inquérito decretou medidas de coacção nos termos do disposto nos artigos 200° a 202°, do Cód. Proc. Penal, nomeadamente, a prevista no artigo 200°, n.° 1, alínea b), do Cód. Proc. Penal.
F.–No entendimento do Arguido ora Recorrente sobre o artigo 40°, n° 2 — na redacção que lhe foi dada pela Lei 94 /021, de 21 de Dezembro - o JIC em questão está impedido de intervir na fase de instrução deste processo, assumindo-se um conceito amplo de fase de instrução como aquela que se verifica após a prolação do despacho de acusação, com que termina a fase de inquérito, de acordo com o disposto nos artigos 276° e seguintes do Código de Processo Penal, mesmo que ainda não tenha sido requerida a abertura da instrução propriamente dita.
G.–Assim, o Meritíssimo JIC que proferiu o despacho que ora se impugna deveria, salvo o devido respeito, ter-se declarado imediatamente impedido nos termos do artigo 41° do Cód. Proc. Penal e incumprindo essa obrigação, o Meritíssimo JIC não só não se declarou impedido, como proferiu o despacho de que ora se recorre, o que, na opinião do Arguido Recorrente, não poderia ter feito.
H.–Nestes termos, o despacho de que se recorre é, nos termos do disposto do n° 3 do artigo 41° do CPP nulo, nulidade insanável, que se requer que seja declarada com os devidos e legais efeitos.

DO PRAZO DE 50 DIAS PARA APRESENTAÇÃO DO RAI
I.–O Ministério Público demorou 11 anos a investigar os factos; demorou 11 anos a construir uma acusação que tem mais de 800 páginas; ultrapassou todos os prazos legalmente previstos; requereu que fosse decretada a especial complexidade do processo o que foi aceite e declarado; ao abrigo dessa especial complexidade do processo, ignorou/indeferiu os três pedidos de aceleração processual requeridos pelo ora Recorrente; e agora entende que 50 dias é o suficiente para ler, assimilar a informação, analisar a prova junta à acusação e construir um requerimento de abertura de instrução.
J.–O Meritíssimo JIC concedeu o prazo de 50 dias mas deveria ter concedido mais, em conformidade com o que tinha sido requerido pelo Arguido ora Recorrente, sendo que a definição do prazo por parte do JIC pode ser entendido como consubstanciando o exercício de poder discricionário.
K.–Salvo melhor opinião, in casu, não se aplica a regra da irrecorribilidade da decisão discricionária, visto que esta é quebrada quando o despacho for arbitrário, incompreensível, discriminatório ou fundado em outras razões inimigas da Constituição.
L.–Nos termos da Constituição da República Portuguesa, designadamente do disposto nos artigos 20°, n.° 1 e 5, e 32°, n.° 1 e 7, é garantido o acesso ao recurso judicial, como o que agora está em causa, não se podendo negar ao Arguido ora Recorrente o acesso ao mesmo já que se está perante uma decisão injusta e incompreensível.
M.–Sendo uma decisão que fica no critério do juiz, a mesma deveria ser sustentada, o que, no presente caso, aconteceu, salvo melhor opinião e salvo o devido respeito, de forma insuficiente ou defeituosa visto que a justificação do JIC para decretar o prazo de 50 dias sustenta-se no facto de os arguidos conhecerem a Acusação desde o dia 21 de Julho de 2022.
N.–Os arguidos podem conhecer a Acusação mas não conhecem a totalidade do processo, questão que fica clara quando é o próprio JIC a referir que o prazo (dos 50 dias) para apresentar o requerimento de abertura de instrução apenas se inicia quando todos os arguidos forem notificados da totalidade do processo, o que, até à presente data, não aconteceu.
O.–Nos termos do disposto no artigo 107°, n.° 6, do Cód. Proc. Penal, é claro e notório que, a requerimento que foi apresentado pelo Arguido no dia 27 de Julho de 2022, o JIC podia ter fixado um prazo superior aos 30 dias aí previstos.
P.–E se do ponto de vista legal podia tê-lo feito, a verdade é que, do ponto de vista fáctico não o quis fazer, tendo apresentado uma justificação que, salvo melhor opinião, é contraditória em si mesma.
Q.–Assim, não é apenas do ponto de vista legal que se recorre do despacho sub judice — é também do ponto de vista fáctico e do bom senso visto que 50 dias é manifestamente pouco para estudar mais de 11.000 páginas e construir um requerimento de abertura de instrução, pelo que se requer a revogação do despacho de que ora se recorre e se fixe um prazo superior (no mínimo aquele que foi requerido pelo Arguido a 27 de Julho de 2022).

Nestes termos, e nos demais de direito aplicável que V. Exa. doutamente suprirá, requer-se a V. Exa. se digne a:
I.-Decretar o impedimento do JIC signatário do despacho de que se recorre, nos termos do disposto no artigo 41°, n.° 2, do Cód. proc. Penal e, em consequência, declarar a nulidade de tal despacho, com as consequências legais, nos termos do disposto nos artigos 40°, n.° 2; 41°, n.° 3 e 44°, todos do Cód. Proc. Penal, e;
II.-Revogar o despacho de que ora se recorre, na parte relativa ao estabelecimento do prazo de 50 dias para a apresentação do requerimento de abertura de instrução, concedendo ao Arguido, pelo menos, o prazo de 155 (cento e cinquenta e cinco) dias, a contar do dia em que se deva considerar efectuada a notificação do despacho de acusação para, eventualmente, e caso não seja requerida a abertura de instrução, para arguir nulidades do inquérito e, neste caso nos termos do previsto no artigo 107°, n°6 do CPP na redacção que lhe foi dada pela Lei 94/2021, de 21 de Dezembro, de 170 dias (cento e setenta) dias, a contar do dia em que se deva considerar efectuada a notificação do despacho de Acusação, para, eventualmente, requerer a abertura da instrução.
**

O Digno Magistrado do MP na 1ª instância veio responder ao recurso.

Após motivação, apresenta as seguintes

CONCLUSÕES:
1.Os prazos para requerer a abertura de instrução são prazos perentórios, fixados legalmente, por razões de segurança jurídica na aplicação do direito.
2.A fixação dos termos a quo e ad quem de um prazo não se confunde com o reconhecimento de justo impedimento.
3.O recurso interposto é infundado, na medida em o recorrente, assim como os demais arguidos, beneficiou ope judicis da suspensão de um prazo para reagir à acusação que ainda não decorre.
4.Não se alcança como pode existir justo impedimento para a prática de um ato, cujo início do prazo está suspenso.
5.Não se perspetiva a violação de direitos de defesa pela razão de o prazo concedido pelo Tribunal a quo não ser superior ao prazo legalmente estabelecido.
6.Nem se perspetiva, nessa medida, uma interpretação das normas em violação do normativos consagrados na Constituição da República Portuguesa.
7.Quando, na verdade, a decisão recorrida reforça direitos de defesa, por comparação à aplicação tout court dos preceitos que regulam prazos processuais.
Termos em que se pugna pela manutenção do despacho recorrido.
*

Já nesta Relação, o Ex. Sr. Procurador Geral Adjunto acompanhou, nos precisos termos em que vem formulada, a resposta da Exma. Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância à motivação do recurso interposto, emitindo parecer no sentido de que seja julgado improcedente o recurso, confirmando-se o despacho proferido pelo Tribunal a quo.

Cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP. não houve resposta ao Parecer.
*

Colhidos os vistos, o processo foi presente à Conferência, sendo o lugar onde o recurso deve ser decidido, de harmonia com o preceituado no art. 419º, nº 3, al. c), do diploma citado.

2.–Fundamentação

A)–Delimitação do Objecto do Recurso
Como tem sido entendimento unânime, o objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal da Relação definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deve sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, pag 1027 e 1122, Santos, Simas, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).

No caso vertente, em face das conclusões do recurso, são as seguintes as questões a apreciar:
- se existe impedimento do juiz de instrução criminal à luz do disposto no art. 40º do CPP com a alteração da Lei 94/2021, porquanto o magistrado judicial que interveio no processo durante a fase do inquérito foi o mesmo que proferiu o despacho recorrido.
- se existe fundamento para, nos termos do disposto no artº 107º nº 6 CPP, fixar um prazo superior aos 30 dias aí previstos.

B)–DECISÃO RECORRIDA
Com vista à apreciação das questões supra enunciadas, importa ter presente o seguinte teor da decisão recorrida.

"...Tendo presente que os arguidos já conhecem os factos que lhes foram imputados em sede de despacho de acusação, desde 20 e 21 de julho de 2022, data em que foram pessoalmente notificados, prorrogo, pelo prazo legal de trinta dias, o prazo fixado por lei para os Arguidos, querendo, requererem a abertura de instrução.
O início da contagem desse prazo total de vinte dias, mais trinta dias de prorrogação iniciar-se-á a partir do momento em que aos Arguidos e o Assistente tenham sido entregues os suportes informáticos com as cópias do processo que se mostram requeridas, o que espero virá a ser consignado no processo — ex vi 107°, n°6 do C.P.P.."

C)–APRECIAÇÃO DAS QUESTÕES EM RECURSO.
Comecemos pela análise da primeira questão relativa ao impedimento do Juiz de Instrução para proferir o despacho em crise.

Entende o recorrente que “ proferido o Despacho de Acusação, finda-se a fase de inquérito e, ainda que não tenha sido requerida a abertura de instrução (por exemplo, por não se ter esgotado o prazo para esse efeito), inicia-se a fase de instrução ou, caso nunca venha a ser requerida, inicia-se a fase de julgamento, tendo-se por certo e inquestionável que a fase de inquérito termina e inicia-se uma nova fase processual distinta. E parece também inegável que a alteração legislativa introduzida pela Lei 94/2021, de 21/12, designadamente o artigo 40°, visa, essencialmente, impedir que o mesmo juiz participe em duas fases processuais distintas — seja, inquérito e instrução; seja, instrução e julgamento; seja mesmo, inquérito e julgamento.”

Um processo comum tem 3 grandes fases: inquérito (262.º e ss.),
instrução (286.º e ss.) e julgamento (311.º e ss.).

A instrução é uma fase facultativa do processo comum em processo penal, dirigida pelo juiz de instrução (assistido pelos órgãos de polícia criminal), através da qual se decide se o inquérito deve ser arquivado ou se, ao invés, deve ser submetido a julgamento (artigo 286.º do Código de Processo Penal - CPP).
Esta fase inicia-se com o requerimento para abertura de instrução (apresentado pelo arguido ou pelo assistente, no prazo de 20 dias após a notificação da acusação ou do despacho de arquivamento do inquérito) – o qual pode ser rejeitado (artigo 287.º, n.º 3 do CPP), sendo proferido posteriormente despacho de abertura de instrução (o qual é notificado ao Ministério Público, assistente, ao arguido e seu defensor). A instrução é constituída pelo conjunto de actos que o juiz entenda levar a cabo, sendo apenas obrigatória a realização de debate instrutório.
A fase de instrução finda com a elaboração de decisão instrutória, que pode corresponder a um despacho de pronúncia (o juiz entende que se verificam os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, razão pela qual se justifica submeter o arguido a julgamento) ou um despacho de não pronúncia (não se verificam tais pressupostos, razão pela qual não se justifica submeter o arguido a julgamento).

Terminadas as diligências de investigação que, à data, se entenderem convenientes e necessárias, o Ministério Público pode proferir despacho de arquivamento ou despacho de acusação.
No caso de ser proferido despacho de arquivamento, o assistente pode reclamar hierarquicamente (nº 2 do art. 278º CPP) no prazo de 20 dias.
Pode, em alternativa, requerer a abertura de instrução.
Se for deduzida acusação, o arguido é notificado desta peça processual e tem 20 dias para, querendo, requerer a abertura de instrução.
Daí que não podemos concordar com o recorrente quando afirma que proferida a acusação “finda-se a fase de inquérito e, ainda que não tenha sido requerida a abertura de instrução (por exemplo, por não se ter esgotado o prazo para esse efeito), inicia-se a fase de instrução”.
Na verdade, parece-nos que a fase da investigação que desemboca numa acusação só termina quando esta é notificada e decorreu o prazo para que o arguido decida os ulteriores termos do processo.
A instrução, até pelo carácter facultativo que a caracteriza, só se iniciará se for apresentado requerimento de abertura de instrução.
Não sendo esta requerida, o processo passa a ter duas fases – inquérito e julgamento.
Se for peticionada a prorrogação do prazo para requerer a instrução, a quem compete proferir tal despacho?
Ao Juiz de instrução que praticou os actos durante o inquérito – art. 268º CPP.

Haverá algum impedimento, como refere o recorrente?

Vejamos a lei.

A actual redacção do artigo 40º do CPP com a epígrafe “Impedimento por participação em processo” define quais os casos de impedimento: (…)
2 - Nenhum juiz pode intervir em instrução relativa a processo em que tiver participado nos termos previstos nas alíneas a) (Aplicado medida de coação prevista nos artigos 200.º a 202.º) ou e) (Recusado o arquivamento em caso de dispensa de pena, a suspensão provisória ou a forma sumaríssima por discordar da sanção proposta) do número anterior.

Tal como refere o Digno Magistrado do Ministério Públcio, o Sr. Juiz de Instrução (tendo praticado actos de inquérito referidos) não está impedido para proferir despacho de prorrogação do prazo para requerer a instrução, exactamente pelo facto de não estarmos na fase da instrução.
Ora, nos termos do art 40º CPP, mesmo que o Juiz tenha aplicado as medidas de coação previstas nos artigos 200.º a 202., só está impedido para a instrução, a qual se inicia com a apresentação do requerimento.
Como diz o recorrente, a lei pretende “impedir que o mesmo juiz participe em duas fases processuais distintas”.
Faz todo o sentido que assim seja. Dividindo e compartimentando as competências, não há risco de “contaminação” de uma fase para a outra.
Porém, no caso em apreço, apenas estamos na “antecâmara” de uma fase que pode até não ocorrer.
Deste modo, entendemos que nenhuma razão assiste ao recorrente.
*

Passemos à análise da segunda questão e que se prende com a existência de fundamento para, nos termos do disposto no artº 107º nº 6 CPP, fixar um prazo superior aos 30 dias aí previstos.

Pretende o recorrente que lhe seja concedido o prazo de 155 (cento e cinquenta e cinco) dias a contar do dia em que se deva considerar efectuada a notificação do despacho de acusação para, eventualmente, e caso não seja requerida a abertura de instrução, arguir nulidades do inquérito.
Assim, nos termos do previsto no artigo 107°, n°6 do CPP na redacção que lhe foi dada pela Lei 94/2021, de 21 de Dezembro, somando os 155 aos 20 que já decorrem do citado normativo, o prazo estender-se-ia para 175 dias ( parece-nos que haverá erro de cálculo quando o recorrente refere o prazo de 170 dias)
O recorrente argumenta para fundamentar esta concessão a circunstância do Ministério Público ter demorado 11 anos a investigar os factos, a construir uma acusação que tem mais de 800 páginas.
O MP ultrapassou todos os prazos legalmente previstos; requereu que fosse decretada a especial complexidade do processo o que foi aceite e declarado; ao abrigo dessa especial complexidade do processo, ignorou/indeferiu os três pedidos de aceleração processual requeridos pelo ora Recorrente; e agora entende que 50 dias é o suficiente para ler, assimilar a informação, analisar a prova junta à acusação e construir um requerimento de abertura de instrução.
O recorrente, não obstante considerar que esta decisão do juiz é discricionária, entende que a mesma tem que ser objecto de recurso sob pena de violação dos princípios constitucionais.

Com a epígrafe “ Renúncia ao decurso e prática de acto fora do prazo” preceitua o artº 107º do CPP no seu nº 6 que Quando o procedimento se revelar de excecional complexidade, nos termos da parte final do n.º 3 do artigo 215.º, os prazos previstos no artigo 78.º, no n.º 1 do artigo 284.º, no n.º 1 do artigo 287.º, no n.º 1 do artigo 311.º-B, nos n.os 1 e 3 do artigo 411.º e no n.º 1 do artigo 413.º, são aumentados em 30 dias, sendo que, quando a excecional complexidade o justifique, o juiz, a requerimento, pode fixar prazo superior.

Diz o recorrente que, sendo uma decisão que fica no critério do juiz, a mesma deveria ser sustentada, o que não aconteceu.
A justificação do JIC para decretar o prazo de 50 dias sustenta-se no facto de os arguidos conhecerem a Acusação desde o dia 21 de Julho de 2022.
Diz o recorrente que os arguidos até podem conhecer a acusação, mas não conhecem a totalidade do processo.
E tal questão é tão notória quanto o facto do JIC referir que o prazo (dos 50 dias) para apresentar o requerimento de abertura de instrução apenas se inicia quando todos os arguidos forem notificados da totalidade do processo, o que, até à presente data, não aconteceu.
Ou seja, o próprio JIC entende que os arguidos não tiveram conhecimento da totalidade do processo.

Diz o Digno Magistrado do MP que
Em Fevereiro de 2016 obteve o arguido recorrente uma cópia dos autos principais do processo, tal como se encontravam àquela data.
E que, apesar das limitações ao conhecimento de elementos protegidos por outros sigilos específicos, que vigorou até à acusação, ao arguido foi dado conhecimento aprofundado dos factos que lhe vieram a ser imputados, aquando da realização do interrogatório complementar perante o MP, e, bem assim, do interrogatório judicial para aplicação de medidas de coação, actos ocorridos em 13.03.2022. Toda a prova que sustentou o requerimento e a aplicação de medidas de coação foi apresentada ao Mmo. Juiz de Instrução, em suporte informático, de modo a garantir a sua disponibilidade imediata para consulta pela defesa do arguido, naquele ato processual, no Tribunal Central de Instrução Criminal.
Desde a prática deste acto processual, em Março do presente ano, que o arguido, ora recorrente, tem ao seu dispor para consulta o mencionado suporte informático contendo todos os meios de prova apresentados para efeitos de aplicação de medidas de coação.
Não obstante essa disponibilidade, o arguido não consultou aqueles meios de prova, não porque lhe tenha sido vedado esse acesso, mas por opção da defesa.
No entanto, tendo em atenção a complexidade do processo e visando permitir aos arguidos e assistente que tomassem contacto com toda a prova que sustentou o despacho de acusação, a decisão fez depender o início da contagem daquele prazo de uma condição: a entrega aos arguidos e assistente dos suportes informáticos contendo as cópias do processo que tenham sido requeridas. Condição preenchida para o arguido recorrente, em concreto, no passado dia 09.12.2022.

Na Dissertação de Mestrado de Ana Simões Esteves orientada pela Prof.ª Doutora Helena Morão, da Universidade de Lisboa, faculdade de Direito com o tema “PROCESSO DE EXCEPCIONAL COMPLEXIDADE E PROCESSO EQUITATIVO EM DIREITO PENAL” pode ler-se:
“Quando estiverem reunidos os requisitos gerais de aplicação da prorrogação do prazo do requerimento para abertura de instrução, constantes do artigo 107.º, n.º 6, do CPP, o juiz pode, nos termos do disposto neste artigo, prorrogar o prazo de 20 dias até um limite máximo de 30 dias. Considerados, portanto, que existindo excepcional complexidade do procedimento e tendo sido requerida, por quem de direito, a prorrogação do prazo, o juiz pode prorrogar o prazo de 20 dias para um limite, a definir por este órgão jurisdicional segundo juízos de proporcionalidade, que no máximo, somado o prazo regular e a prorrogação não pode exceder os 50 dias ( Em sentido contrário, considerando que “o n.º 6 do artigo 10.º estabelece que o prazo de 20 dias pode ser prorrogado “até ao limite de 30 dias”, não que tal prazo pode ser prorrogado por mais 30 dias”, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 14 de Julho de 2010, processo n. 439/05.5TACBR-A.C1, Relator Paulo Guerra. Este acórdão nega a prorrogação do prazo de RAI, ainda que fundamente a sua decisão na injustificada não fundamentação do despacho de prorrogação do prazo. Discordamos do referido acórdão, uma vez que, assumindo tal interpretação da letra da lei e sendo o prazo geral de recurso de 30 dias, o artigo 107.º, n.º 6, do CPP não teria qualquer utilidade na interposição de recurso, pois não seria possível prorroga-lo além do prazo fixado no artigo 411.º, n.º 1, do CPP, o que não nos parece ter sido a intenção do legislador penal.). Deste despacho judicial que determina a prorrogação não cabe recurso, porquanto se trata de uma decisão discricionária do juiz (Neste sentido, cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10 de Outubro de 2007, processo n.º 5967/2007-3, Relator Margarida Ramos de Almeida, no qual se consigna que “a possibilidade de prorrogação do prazo para requerer a abertura de instrução, a que se refere o art. 107.º, n.º 6, do CPP – quando o procedimento se revelar de excepcional complexidade – está dependente da livre resolução do tribunal, é uma faculdade discricionária, pelo que, a decisão que indefira um requerimento de prorrogação de tal prazo, previsto no art. 287.º, é irrecorrível, nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. b), do mencionado Código”) (…) podendo este prazo processual, pela aplicação do disposto nos termos do artigo 107.º, n.º 6, do CPP, ser prorrogado até um máximo de 30 dias, quando, a requerimento do arguido, desde que o processo se revele de excepcional complexidade. O juiz não está vinculado ao prazo de prorrogação que o arguido interpôs no requerimento, ou ao prazo máximo estabelecido no artigo. Deste modo existe um “poder-dever de prorrogar esse prazo até ao máximo, se ponderadas todas as circunstâncias concretas do caso, tal prazo se revelar necessário a uma defesa adequada, na garantia de um processo justo e equitativo (esta afirmação diz respeito ao prazo da contestação mas, dizemos nós, tem plena aplicação quando está em causa o prazo para requerer a abertura de instrução”.

Vejamos.

Parece-nos claro que o Ministério Público não passou 11 anos a investigar e, subitamente, surge com uma acusação com factos relativamente aos quais os arguidos vão ter o primeiro contacto.

Se é certa a demora na investigação, decorre também dos autos que o arguido, ora recorrente, foi tendo ao longo do processo conhecimento das questões que estavam em jogo, dos caminhos da investigação.

Obviamente que até à apresentação definitiva daquela peça processual o arguido não tem conhecimento preciso dos seus termos, mas sabe, por força dos interrogatórios que lhe foram efectuados, dos factos que aí lhe foram apresentados, que, a final (e levamos o raciocínio ao extremo) não será confrontado com uma acusação de homicídio.
A circunstância de uma acusação ter por trás de si 11 anos de investigação não implica, necessariamente, que o arguido necessitasse do mesmo prazo para se defender!!!
Na verdade, a acusação é fruto de uma investigação demorada e que se inicia sem saber como irá terminar. A defesa do arguido tem como elemento de trabalho a acusação. É esta que limita o tema do processo e, por conseguinte, o caminho da defesa.

Esta situação pode constatar-se em qualquer processo crime. Os prazos de inquérito previstos na lei são muito superiores ao prazo da defesa.
Percebe-se que assim seja. O inquérito percorre, pesquisando, vários caminhos possíveis até convergir, se for o caso, numa acusação. A defesa tem o caminho que lhe foi traçado pela acusação.

Relativamente aos processos de especial complexidade, com as devidas adaptações, a situação não é diferente.
Porém, considerando essa mesma complexidade, a lei – cfr. artº 107º nº 6 do CPP – prevê um alargamento dos prazos ali indicados, no caso que nos importa, para o requerimento da abertura de instrução. Nos casos de excepcional complexidade aqueles prazos são aumentados em 30 dias.
Quando a excepcional complexidade o justifique, a requerimento, o juiz pode fixar prazo superior.

Neste recurso estamos apenas a apreciar o requerimento do arguido A, sendo certo que os restantes arguidos efectuaram requerimentos idênticos, mas os prazos peticionados eram diferentes.

O MMº Juiz de Instrução, conhecedor da especial complexidade destes autos, não teve dúvidas em aplicar o art. 107º nº 6 e alargar o prazo para requerer a abertura de instrução em 30 dias.
Assim, se o prazo normal é de 20 dias, com o alargamento dos 30 dias, o prazo passa a ser de 50 dias.
A pergunta que se faz é se os 50 dias são suficientes.
Esse prazo, se a acusação e os factos que a compõem e sustentam fossem uma surpresa, seria manifestamente insuficiente.
Porém, como já explicámos, não é este o caso.
Além disso, o MMº Juiz de Instrução conseguiu “mitigar” a necessidade da defesa e o cumprimento da lei, determinando que o prazo dos 50 dias só começa a contar a partir do momento em que aos Arguidos e o Assistente tenham sido entregues os suportes informáticos com as cópias do processo que se mostram requeridas.
Acresce que os arguidos, designadamente o recorrente, já foi notificado da acusação em Julho de 2022.

Já passaram 7 meses, pelo que o prazo peticionado pelo arguido há muito foi ultrapassado.
Deste modo e por manifesta falta de fundamento, improcede, igualmente, esta parte do recurso.

3.–DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta 9ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido A, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo arguido/recorrente – art. 513º nº 1 CPP, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC



Lisboa, 09 de Março de 2023



(Elaborado e revisto pela relatora, revisto pelas signatárias e com assinatura digital de todas)



Raquel Correia Lima - (Relatora)
Micaela Pires Rodrigues - (1º Adjunto)
Madalena Caldeira - (2º Adjunto)