Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1005/19.3GLSNT.L1-5
Relator: ISILDA PINHO
Descritores: CRIME DE CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO
CONDUÇÃO SOB INFLUÊNCIA DE PRODUTOS ESTUPEFACIENTES
PRODUTO ESTUPEFACIENTE
VALOR MINÍMO DE CONCENTRAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO O RECURSO DO ARGUIDO - PROVIDO O RECURSO DO MºPº
Sumário: I. Para que se esteja na presença de uma conduta ilícita tipificada como crime de condução perigosa de veículo rodoviário não basta que o agente conduza sob a influência de produtos estupefacientes, é, ainda, necessário que não esteja capaz de o fazer em segurança por se encontrar perturbado na sua aptidão física, mental ou psicológica.
II. Quando a obtenção do valor de concentração de canabinoides resulta da análise sanguínea, sem que tenha ocorrido o exame prévio de rastreio na urina, são inatendíveis os valores de referência que constam do quadro 2 do Anexo V à Portaria 902-B/2007 de 13 de agosto para se concluir pela existência do “estado de influência”.
III. A demonstração de que a substância estupefaciente detetada no sangue do agente o impedia de conduzir com segurança não carece da realização  de um exame científico ou pericial, podendo e devendo ser lograda pela análise dos elementos de prova que o julgador disponha no caso concreto, numa valoração probatória responsável, ponderada e apoiada nas regras de experiência, da razoabilidade e da normalidade da vida.
(Sumariado e confidencializado pela relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordaram, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I-RELATÓRIO
I.1 No âmbito do processo comum singular n.º 1005/19.3GLSNT que corre termos pelo Juízo Local Criminal de Sintra [Juiz 3], do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, em 27 de abril de 2022, foi proferida sentença, no que agora interessa, com o seguinte dispositivo [transcrição]:
“V. Decisão
Nos termos e pelos fundamentos expostos, decido:
a) Condenar o arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artigos 291.º, n.º 1, alínea a) e 69.º, do Código Penal, na pena de 160 dias de multa, ao quantitativo diário de € 6,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 meses;
b) Condenar o arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 40.º, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 10 dias de multa, ao quantitativo diário de € 6,00;
c) Condenar o arguido em cúmulo jurídico de penas, na pena única de 140 dias de multa, ao quantitativo diário de € 6,00;”
*
I.2 Recurso da decisão
Inconformados com tal decisão, dela interpuseram recurso o arguido e o Ministério Público para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraíram as seguintes conclusões [transcrição]:
Recurso do arguido:
“CONCLUSÕES
I. Provou-se que “Em 10-07-2019, pelas 08.41, na Avenida ..., Terrugem, Sintra, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, com matrícula XXXX, fazia-o sob a influência de produto estupefaciente que havia consumido anteriormente, designadamente canabis, tendo apresentado os seguintes resultados: D9-tetrahidrocanabinol (THC) de 5,8 ng/ml, 11-Hidroxi-D9-tetrahidrocanabinol (11-OH- THC) de 1,8 ng/ml, sendo interveniente em acidente de viação, e encontrando-se acompanhado por C, o qual estava sentado no lugar da frente ao lado do condutor”.
II. Para o preenchimento do tipo legal de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artigos 291.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal é necessário que o condutor não esteja em condições de o fazer em segurança, por se encontrar sob a influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas e em virtude desse facto cria perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.
III. O tipo objetivo do crime consiste, pois, no ato de condução de um automóvel na via pública não estando em condições de o fazer em segurança, por se encontrar sob a influência estupefacientes e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.
IV. Apurando-se que o ora recorrente conduzia com uma concentração sanguínea de THC de 5,8 ng/ml e de 11-OH-THC de 1,8 ng/ml, por conseguinte muito abaixo de 50ng/ml, deve interpretar-se que os valores apurados são insuscetíveis de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica para o exercício da condução de veículo a motor com segurança, uma vez que a lei apenas considera que se encontra sob a influência de substâncias psicotrópicas quem apresentar valores superiores 50ng/ml, limite este consagrado nas disposições conjugadas do art. 10º, da Lei nº 18/2007, de 17 de Maio, e art. 16º, da Portaria nº 902-B/2007, de 13 de Agosto, e quadro nº 2, do anexo V, à mesma.
V. Nos termos e para os efeitos do art. 412.º, n.ºs 2, als. a) e b), face à dada como provada, a sentença recorrida violou não só o disposto nos artigos 291.º, n.º 1, alínea a) e 69.º, do Código Penal, mas também as disposições conjugadas do art. 10º, da Lei nº 18/2007, de 17 de Maio, e art. 16º, da Portaria nº 902- B/2007, de 13 de Agosto, e quadro nº 2, do anexo V, bem como incorreu em errada interpretação das aludidas normas legais quanto ao preenchimento dos elementos do tipo de crime.
VI. Embora a decisão ora recorrida dê a conhecer os meios de prova em que assentou a sua apreciação, com a indicação do respetivo conteúdo, a verdade é que não apreciou nem valorou criticamente a prova, dentro dos parâmetros positivados no art. 127.º, do Código de Processo Penal, violando, por conseguinte, também esta disposição legal.
VII. Neste sentido, considerando que o tipo legal de crime previsto no art.º 291.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal apenas se preenche se o condutor se encontrar sob a influência de substâncias psicotrópicas, e que este conceito apenas se preenche se os valores apurados forem superiores 50ng/ml, limite este consagrado nas disposições conjugadas do art. 10º, da Lei nº 18/2007, de 17 de Maio, e art. 16º, da Portaria nº 902-B/2007, de 13 de Agosto, e quadro nº 2, do anexo V, mostrando-se que o valor apurado era inferior a 50ng/ml, é manifesto que o conceito jurídico de “influenciado por substâncias psicotrópicas” não se mostra preenchido, o que obsta ao preenchimento do tipo legal de crime p.p. pelo art.º 291.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal.
TERMOS EM QUE, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E EM CONSEQUÊNCIA DEVE A DECISÃO RECORRIDA SER SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE ABSOLVA O ORA RECORRENTE DA PRÁTICA DO CRIME DE CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO RODOVIÁRIO, P. E P. PELOS ARTIGOS 291.º, N.º 1, ALÍNEA A) E 69.º, DO CÓDIGO PENAL, E DA PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS COM MOTOR EM QUE FOI CONDENADO.
(…)”
*
Recurso do Ministério Público:
“EM CONCLUSÃO
I. A sentença proferida nos presentes autos, ao efetuar o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas ao arguido, certamente por mero lapso, violou o disposto no nº 2 do artigo 77º do Código Penal fazendo uma incorreta interpretação dessa norma jurídica.
II. O arguido foi condenado, pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário p. e p. pelo artigo 291º, nº 1, al. a), do Código Penal, para além do mais, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa e, pela prática de um crime de consumo de estupefacientes p. e p. pelo artigo 40º do Decreto-Lei nº 15/93 de 22 de janeiro, na pena de 10 (dez) dias de multa, ambas no montante diário de seis euros.
III. E, sendo considerado na referida sentença que a pena única a aplicar ao arguido “situar-se-á entre um mínimo de 10 dias de prisão e um máximo de 170 dias de prisão”, foi o mesmo condenado na pena única de 140 (cento e quarenta) dias de multa no montante diário de € 6,00 (seis euros).
IV. No entanto, tal juízo evidencia uma incorreta interpretação da norma jurídica plasmada no nº 2 do artigo 77º do Código Penal segundo a qual “a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (…) e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.
V. Ou seja, tendo presentes as penas de multa aplicadas ao arguido – uma de dez dias e outra de cento e sessenta dias –, a moldura abstrata da pena do concurso de crimes por que o arguido foi condenado tem como limite mínimo cento e sessenta dias (correspondentes à pena parcelar mais elevada) – e não os indicados dez dias – e o limite máximo de cento e setenta dias.
VI. Foi, assim, em consequência desse juízo viciado, fixada uma pena única (de cento e quarenta dias) situada abaixo daquele limite mínimo de cento e sessenta dias de multa.
VII. Porém, tendo em consideração os fatores apontados na sentença recorrida, desta feita à luz da moldura abstrata supra enunciada, deverá a pena única a aplicar ao arguido ser fixada em medida não inferior a 165 (cento e sessenta e cinco) dias de multa (no montante diário fixado na sentença recorrida).
VIII. Com efeito, sendo fixada nessa medida, a pena única revelar-se-á adequada e proporcional quer às finalidades da punição quer à globalidade dos factos e à personalidade do arguido nomeadamente à mediana ilicitude daqueles, os quais se reportam a um curto período temporal, e ao facto de, como se salienta na sentença recorrida, “estarmos na presença de um jovem que cometeu os factos num contexto excecional e irrepetível”.
IX. Pelo exposto, e sendo concedido provimento ao presente recurso, deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que fixe, como limite mínimo da moldura aplicável ao concurso, cento e sessenta dias de multa, que correspondem à pena parcelar mais elevada, e, consequentemente, seja o arguido condenado numa pena única não inferior a 165 (cento e sessenta e cinco) dias de multa (no montante diário fixado na sentença recorrida).” [sublinhado nosso].

Foram admitidos ambos os recursos, nos termos dos despachos proferidos, respetivamente a 26-05-2022 e 31-05-2022.
*
I.3 Resposta ao recurso
Efetuada a legal notificação, apenas o Digno Magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:
“(…)
I. Perante as conclusões do recurso que delimitam o seu objeto, importa “somente” apreciar se a sentença recorrida fez uma incorreta interpretação da norma jurídica constante da alínea a) do nº 1 do artigo 291º do Código Penal ao considerar que a matéria de facto dada como provada é suscetível de integrar o conceito de “influenciado por estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo”.
II. O arguido sustenta, em síntese, que os resultados do exame ao sangue que lhe foi efetuado, por serem de valor inferior ao que, para tanto, é estipulado pelo quadro 2 do anexo V da Portaria nº 902-B/2007, de 13 de Abril, são insuscetíveis de indicar que se encontrava sob a influência de estupefacientes para os efeitos requeridos pela referida norma jurídica.
III. Porém, nos termos do disposto no artigo 16º da Portaria nº 902-B/2007, de 13 de abril, e sem prejuízo de interpretação distinta, tal limite só é aplicável ao “exame de rastreio” previsto no nº 1 do artigo 11º do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, anexo à Lei nº 18/2007 de 17 de maio, o qual é efetuado através de testes rápidos a realizar em amostras biológicas de urina, saliva, suor ou sangue e serve apenas para indiciar a presença de substâncias psicotrópicas.
IV. Nos presentes autos, e em consequência do acidente de viação em que o arguido foi interveniente, não foi realizado aquele “exame de rastreio”, tendo o arguido sido transportado a um Hospital onde, com cumprimento das formalidades legais, foi submetido a uma recolha de sangue apresentando resultado positivo para o consumo de canabinóides nomeadamente: 5,8 ng/ml de Δ9-Tetrahidrocanabinol (THC) e 1,8 ng/ml de 11-Hydroxi-Δ9-tetrahidrocannabinol (11-OH- THC). 
V. Esse exame corresponde ao “exame de confirmação” previsto no artigo 12º do referido Regulamento sendo certo que, nos termos do artigo 23º da Portaria nº 902-B/2007, de 13 de abril, se considera tal exame como positivo “sempre que revele a presença de qualquer das substâncias psicotrópicas previstas no quadro nº 1 do anexo v (…)”, nas quais se incluem as detetadas no sangue do arguido, sem qualquer limite mínimo.
VI. Acresce que, como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16/02/2021, proferido no processo nº 9/19.0PHSXL.L1-5 e disponível em dgsi.pt, “não obstante decorra da Lei 18/2007 de 17.05 e da Portaria 902- B/2007 de 13.08 que a deteção de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas se deva iniciar com um exame de rastreio (em urina, suor, saliva ou sangue) - destinado a obter a informação sobre a existência de substâncias psicotrópicas - ao qual, em caso de resultado positivo, se seguirá um exame de confirmação em amostra de sangue - destinado a obter a identificação e quantificação das mesmas substâncias -, a inexistência de exame de rastreio não impede a validade do exame sanguíneo efetuado”.
VII. “Impede, contudo, que se use como referência de positividade os valores que constam do quadro 2 do anexo V da portaria 902-B/2007” (cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14/10/2019, proferido no processo nº 3/18.9PTBRG.G1 e disponível em dgsi.pt).
VIII. Ou seja, tendo sido detetado no sangue do arguido, em exame de confirmação, duas das substâncias do grupo de canabinóides previstas no quadro nº 1 do anexo V da Portaria nº 902-B/2007, de 13 de abril, impunha-se a conclusão – como o fez a Meritíssima Juíza a quo – de que, nos termos do artigo 23º da referida Portaria, o arguido se encontrava sob a influência de produto estupefaciente.
IX. Para além disso, os demais elementos de prova e a própria dinâmica do acidente em que foi interveniente indicam de forma segura que, em resultado dessa influência, o arguido não se encontrava em condições de conduzir com segurança “o que o levou a dar causa ao acidente e à criação do perigo para terceiros e veículos”.
X. Como se salienta na sentença recorrida, o arguido admitiu que “havia ingerido produtos estupefacientes naquela madrugada” e as testemunhas De E, militares da GNR, com rigor e isenção, “explicaram que o jovem dava sinais de não estar nas suas capacidades plenas e ter consumido estupefacientes (o que retiram da sua postura e do seu diálogo incoerente) (…) o que o levou a não travar quando devia e a embater no veículo que seguia na sua frente”.
XI. A matéria dada como provada – nomeadamente no que se reporta ao exercício da condução sob a influência de “estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo” – é, assim, a que resulta da análise da prova produzida, nomeadamente da conjugação dos diversos depoimentos entre si e com a demais prova documental e pericial, temperada com os princípios de processo penal convergentes na área, e não merece qualquer censura nem impunha decisão diversa.
XII. Em suma, a sentença recorrida não merece qualquer censura, quer quanto à decisão quer quanto aos respetivos fundamentos de facto e de Direito, pois bem ajuizou da prova produzida em audiência, fazendo uma correta qualificação dos factos e não padece de qualquer vício.
(…)”
*
I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, nos termos do qual, aderindo à posição do Digno Magistrado do Ministério Público na primeira instância, pronunciou-se no sentido de que [transcrição]:
“(…)
a) O Recurso interposto pelo Arguido deve ser julgado improcedente.
b) O recurso interposto pelo Ministério Público deve ser julgado procedente e, consequentemente, a sentença recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que condene o Arguido numa pena única não inferior a 165 (cento e sessenta e cinco) dias de multa (no montante diário fixado na sentença recorrida).
*
I.5. Resposta
Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao sobredito parecer.
*
I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento dos recursos em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir:
*
II- FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ[1]], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal[2].
Assim, face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação do respetivo recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
No que respeita ao recurso interposto pelo arguido:
- Se a factualidade dada como provada preenche ou não o tipo legal de crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelos artigos 291.º, n.º 1, alínea a) e 69.º, do Código Penal, pelo qual foi condenado.

No que respeita ao recurso interposto pelo Ministério Público:
- Se a pena única em que o arguido foi condenado deve ou não ser alterada.
*
II.2- Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:
“Factos provados
1. Em 10-07-2019, pelas 08.41, na Avenida ..., Terrugem, Sintra, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, com matrícula XXXX, fazia-o sob a influência de produto estupefaciente que havia consumido anteriormente, designadamente canabis, tendo apresentado os seguintes resultados: D9-tetrahidrocanabinol (THC) de 5,8 ng/ml, 11-Hidroxi-D9-tetrahidrocanabinol (11-OH- THC) de 1,8 ng/ml, sendo interveniente em acidente de viação, e encontrando-se acompanhado por C, o qual estava sentado no lugar da frente ao lado do condutor.
2. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1, e diante da viatura conduzida pelo arguido, o ofendido B conduzia o veículo ligeiro de passageiros, com matricula YYYY, na Avenida ..., Terrugem, Sintra.
3. No momento em que avistou B a imobilizar a viatura com matrícula YYYY na faixa de rodagem para permitir a realização de manobra por veículo que, na altura, circulava naquele local, o arguido não reduziu a velocidade que imprimia ao veículo que conduzia.
4. Na verdade, no momento em se aproximou do veículo com matricula YYYY, e por não se encontrar em condições de efetuar uma condução segura por via do produto estupefaciente consumido, o arguido prosseguiu a marcha, não mantendo a distância suficiente do veículo conduzido por B, embatendo com a parte frontal do veículo ligeiro de passageiros, com matrícula XXXX, na parte traseira do veículo ligeiro de passageiros, com matricula YYYY, conduzido por B.
5. Após o embate, o arguido imobilizou a viatura com a matrícula XXXX.
6. Com a condução por si efetuada, o arguido colocou em perigo a integridade física de C e de B.
7. Em consequência direta e necessária do embate, o veículo com matricula YYYY, pertencente a B, ficou com amolgadelas e estragos, cuja reparação ascendeu ao valor de, pelo menos, €1.500,00 (mil e quinhentos euros).
8. A faixa de rodagem onde se deu o embate é constituída por uma via em cada sentido, sem separador central, e tem 6,50 (seis vírgula cinquenta) metros de largura, na qual não existe qualquer obstáculo que impedisse o arguido de avistar a dita faixa em toda a sua largura extensão.
9. Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1, o tempo estava bom, seco e era de dia.
10. O arguido ao conduzir o veículo ligeiro de passageiros, com matrícula XXXX, na via pública, bem sabia que não estava em condições de exercer a condução do veículo em segurança, pois que se encontrava sob a influência de canabinóides, o que lhe reduzia as elementares faculdades necessárias à condução do veículo automóvel, designadamente no que respeita à concentração, reação na condução, coordenação motora e destreza, correndo o sério risco de causar um acidente, como veio acontecer e, mesmo assim, quis conduzir a referida viatura, como fez.
11. Com indiferença pela segurança e integridade física quer de C e de B, quer dos demais utentes da estrada, nomeadamente os veículos que, na altura, circulavam naquele local na via pública, o arguido previu e quis conduzir o veículo naquelas circunstâncias, após consumo de produto estupefaciente, sabendo que, dessa forma, punha em perigo a integridade física, quer dos ofendidos quer de qualquer pessoa que na altura utilizasse a via acima mencionada, como efetivamente pôs, e, mesmo assim, aceitou tal verificação.
(…)
18. Ao agirem do modo descrito, os arguidos A e C atuaram sempre de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal como crime e tinham capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.”
Mais se provou que:
19. O arguido confessou a essencialidade dos factos da acusação e mostrou arrependimento sincero.
20. Deixou de consumir estupefacientes.
21. Vive com a mãe em casa adquirida com empréstimo bancário.
22. É ajudante de cozinha e aufere, de momento, € 860, 00 por mês de salário.
23.Tem o 9.º ano de escolaridade mas aguarda seja dada equivalência ao 12.º ano de escolaridade, aos estudos que prosseguiu no estrangeiro, integrado em sistema de ensino diferente do nacional.
24. É um jovem trabalhador, cumpridor, que goza de apoio familiar e é estimado pelos seus familiares e amigos.
25. Os arguidos A (…) não registam antecedentes criminais.
(…)
*
III. Motivação da matéria de facto
No apuramento da factualidade considerada provada e não provada, o tribunal formou a sua convicção através da valoração conjunta e crítica da prova produzida em julgamento, analisada à luz das regras da experiência comum e segundo juízos lógico-dedutivos.
Assim, foi desde logo tida em atenção a confissão da essencialidade dos factos pelo arguido, o qual admitiu ter assumido a condução do veículo quando, à semelhança do que já havia declarado em sede de inquérito, perante o Ministério Público, havia ingerido produtos estupefacientes naquela madrugada; disse ainda que em tal contexto ter-se-á distraído e, ao invés de travar o seu veículo como era sua intenção, antes o acelerou, embatendo então no carro que seguia à sua frente; admitiu, ainda, a posse do estupefaciente encontrado, o qual disse ter-lhe sido cedido pelo co-arguido C e destinar-se ao seu consumo exclusivo.
(…)
Foram também tidas em consideração as declarações das testemunhas D e E, militares da GNR chamados ao local do acidente, os quais com rigor e isenção descreveram ao Tribunal conclusões que retiraram sobre as causas do acidente, tanto pelo que conheciam e observaram no local como pelo contacto direto que estabeleceram com o arguido. Assim, explicaram que o jovem dava sinais de não estar nas suas capacidades plenos e ter consumido estupefacientes (o que retiram da sua postura e do seu diálogo incoerente) - facto que, aliás, o próprio arguido logo assumiu -, e que o embate ocorreu pela manhã, havendo trânsito que impedia a circulação dos veículos em excesso de velocidade. Nesse contexto explicaram terem ficado ambos convencidos ter sido o facto de A estar influenciado pelas drogas – situação que quando chegam ao local ainda observam – e a conhecida falta de perceção da realidade/concentração daí adveniente, o que o levou a não travar quando devia e a embater no veículo que seguia na sua frente. Em face destes relatos e da dinâmica em que o acidente ocorreu, assim se estabeleceu, com segurança, que A se encontrava sob influência de estupefacientes e ter sido tal facto o que o levou a dar causa ao acidente e à criação do perigo para terceiros e veículos.
(…)
Estes relatos – todos eles considerados sinceros e espontâneos pelo Tribunal – conjugaram-se, ainda, com os elementos documentais e periciais dos autos, assim: o auto de notícia de fls. 3 a 4, o aditamento de fls. 81 e a participação de acidente de viação de fls. 92 a 93 que ajudaram a circunstanciar a ação no tempo e no espaço; os autos de apreensão de fls. 9, 27 e 28 do estupefaciente que estava na posse de cada um dos arguidos e as fotografias de fls. 10 e 28 que os retratam, tendo a sua quantidade e natureza sido extraída dos exames periciais de fls. 70, 77 a 79 e o produto estupefaciente encontrado no organismo de A daquele de fls. 83 a 85.
Quanto aos elementos psicológicos e volitivos dos arguidos, extraíram-se dos elementos probatórios mencionados e dos demais factos provados, os quais revelam que outro não podia ser o seu conhecimento e a sua intenção senão os dados por assentes.
(…)
*
- Das penas a aplicar ao arguido:
(…)
Compulsada a matéria factual dada como assente, resulta que o arguido não tem antecedentes criminais, admitiu a essencialidade dos factos, tem qualidades pessoais e está inserido profissional e familiarmente. Todos estes fatores indicam estarmos em presença de um jovem que cometeu os factos num contexto excecional e irrepetível. Termos em que se entende que a opção pela aplicação de uma pena de multa salvaguarda as finalidades da punição. Assim sendo, opta-se pela aplicação de penas de multa.
(…)
Pois bem, as exigências de prevenção geral situam-se num patamar médio/elevado, olhando a comunidade a prática de atos como aqueles praticados com preocupação, em particular a condução perigosa por estar associada ao flagelo da sinistralidade rodoviária.
De todo o modo, o que já se referiu sobre a ausência de antecedentes criminais do arguido, a sua assunção dos factos com arrependimento e inserção diminuem as exigências de prevenção especial.
Como elementos desfavoráveis a ponderar, temos o dolo da conduta do arguido; e a seu favor, para além da sua juventude, (…)
Assim, tudo ponderado, considera-se justo e adequado aplicar ao arguido uma pena de 160 dias de multa pela prática do crime de condução perigosa de veículo e uma pena de 10 dias de multa pelo crime consumo de estupefacientes, indexadas ao quantitativo diário de € 6, 00, atentas as demonstradas condições económicas do arguido (artigo 47.º, do Código Penal).
*
- Da pena única:
Em cúmulo jurídico e de acordo com o disposto no artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal, a pena única a aplicar ao arguido por referência às duas penas de prisão aplicadas, situar-se-á entre um mínimo de 10 dias de prisão e um máximo de 170 dias de prisão.
Assim, ponderando-se, mais uma vez, os critérios a que alude o artigo 71.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal, designadamente as exigências de prevenção, entendemos como justo e adequado aplicar ao arguido uma pena única de 140 dias de multa, ao quantitativo diário de € 6, 00.
(…)”
*
II.3- Apreciação do recurso
II.3.1. - Recurso interposto pelo arguido:
Conforme expressamente o refere em sede recursiva, o arguido ora recorrente não se conforma com a condenação por considerar que a factualidade dada como provada não preenche o tipo legal de crime pelo qual veio a ser condenado.
Alega, para o efeito, em síntese, que o tipo objetivo do crime consiste no ato de condução de um automóvel na via pública, não estando em condições de o fazer em segurança, por se encontrar sob a influência estupefacientes e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado.
Pelo que, tendo-se apurado que o ora recorrente conduzia com uma concentração sanguínea de THC de 5,8 ng/ml e de 11-OH-THC de 1,8 ng/ml, por conseguinte muito abaixo de 50ng/ml, deve interpretar-se que os valores apurados são insuscetíveis de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica para o exercício da condução de veículo a motor com segurança, uma vez que a lei apenas considera que se encontra sob a influência de substâncias psicotrópicas quem apresentar valores superiores 50ng/ml, limite este consagrado nas disposições conjugadas do artigo 10.º, da Lei nº 18/2007, de 17 de maio, e artigo 16.º, da Portaria nº 902-B/2007, de 13 de agosto, e quadro nº 2, do anexo V, à mesma.
Ou seja, considerando que o tipo legal de crime previsto no art.º 291.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal apenas se preenche se o condutor se encontrar sob a influência de substâncias psicotrópicas e que este conceito apenas se preenche se os valores apurados forem superiores 50ng/ml, limite este consagrado nas disposições conjugadas do artigo 10.º, da Lei nº 18/2007, de 17 de maio, e artigo 16.º, da Portaria nº 902-B/2007, de 13 de agosto e quadro nº 2, do anexo V, assim, mostrando-se no caso dos autos que o valor apurado era inferior a 50ng/ml é manifesto que o conceito jurídico de “influenciado por substâncias psicotrópicas” não se mostra preenchido, o que obsta ao preenchimento do tipo legal de crime p.p. pelo art.º 291.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
Conclui, assim, o arguido recorrente que, nos termos e para os efeitos do artigo 412.º, n.ºs 2, als. a) e b), do  Código de Processo Penal, face à matéria dada como provada, a sentença recorrida violou não só o disposto nos artigos 291.º, n.º 1, alínea a) e 69.º, do Código Penal, mas também as disposições conjugadas do artigo 10.º, da Lei nº 18/2007, de 17 de maio e artigo 16º, da Portaria nº 902- B/2007, de 13 de agosto e quadro nº 2, do anexo V, bem como incorreu em errada interpretação das aludidas normas legais quanto ao preenchimento dos elementos do tipo de crime.
Porém, não lhe assiste razão.
Com efeito, o arguido vem condenado pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal e 69.º do Código Penal:
Prevê aquela mencionada disposição legal, no que ao caso interessa,  que comete o crime de condução perigosa de veículo rodoviário, quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar em estado de embriaguez ou sob influência de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, ou por deficiência física ou psíquica ou fadiga excessiva e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, caso em que o agente é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
Do mencionado preceito legal decorre que o elemento objetivo do tipo de crime em apreço contempla duas realidades:
- A do condutor encontrar-se sob a influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica;
- A de em razão dessa mesma influência não estar em condições de o fazer com segurança.
Portanto, para que se esteja na presença de uma conduta ilícita tipificada como crime, não basta que o agente conduza sob a influência de produtos estupefacientes, é necessário, ainda, que se possa fazer a afirmação de que, por estar assim influenciado, não está capaz de o fazer em segurança por se encontrar perturbado na sua aptidão física, mental ou psicológica.
Por sua vez, sob o Capítulo “Avaliação do estado de influenciado por substâncias psicotrópicas”, a Lei n.º 18/2007, de 17 de maio, que aprovou o Regulamento de Fiscalização da condução sob a influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas, veio precisamente estabelecer os procedimentos necessários ao seu apuramento, decorrendo do seu artigo 10.º que “a detecção de substâncias psicotrópicas inclui um exame prévio de rastreio e, caso o seu resultado seja positivo, um exame de confirmação, definidos em regulamentação”, resultando do artigo 16.º da Portaria nº 902- B/2007, de 13 de agosto, inserido no Capítulo II, intitulado “avaliação do estado de influenciado por substâncias psicotrópicas”, Secção I, intitulada de “exame de rastreio”, e quadro nº 2, do anexo V, respeitante a valores de concentração para exame de rastreio na urina, que os exames previstos no número anterior devem ser executados, de acordo com os procedimentos do fabricante ou de validação interna, numa amostra de urina com o volume mínimo de 30 ml, sendo os resultados considerados positivos quando os valores obtidos forem iguais ou superiores às concentrações indicadas no quadro n.º 2 do anexo v, ou seja, igual ou superior a 50 ng/ml no que se reporta aos canabinóides.
Ou seja, o artigo 10.º da Lei nº 18/2007, de 17/5, prevê que a deteção de substâncias psicotrópicas inclui um exame prévio de rastreio e, caso o seu resultado seja positivo, um exame de confirmação, definidos em regulamentação.
Note-se, porém, que os valores de referência do quadro 2 do Anexo V respeitam apenas ao rastreio na urina. Nele consta como valor de concentração de canabinoides a partir do qual se considera haver influência da referida substância no agente que a consumiu, 50ng/ml (50 nanogramas por mililitro). Portanto, se o exame em urina indicar um valor de canabinoides superior a 50ng/ml - e só neste caso - o agente deve ser submetido a exame de confirmação, a realizar em amostra de sangue (artigo 19º).
Ora, in casu, o valor obtido resultou da análise sanguínea e não foi precedido de análise de rastreio em urina, pelo que não nos podemos socorrer dos valores de referência que constam do quadro 2 do Anexo V à Portaria 902-B/2007 de 13 de agosto, como o defende o recorrente.
E, o facto de não ter sido precedido de exame de rastreio em urina, nem por isso o valor alcançado no exame de sangue, deixa de ser válido e analisável, pois, conforme se referiu, o exame de rastreio destina-se a obter a informação da existência de substâncias psicotrópicas, enquanto que o exame de confirmação destina-se a obter a identificação e quantificação das substâncias psicotrópicas existentes [à semelhança do que ocorre com a deteção de álcool no sangue: o exame realizado em analisador “qualitativo” precede, normalmente, o exame realizado em analisador “quantitativo”].[3]
Acresce que, atualmente, a lei não define valores mínimos de concentração de substâncias estupefacientes nos exames de sangue, contrariamente ao que acontece nos exames de rastreio na urina, pese embora já o tenha fixado no passado.
Efetivamente a Portaria 1006/98 de 30.11 (que veio a ser revogada pela Portaria 902-B/2007 de 13 de agosto) fixava como valores limite, abaixo dos quais se considerava que o examinado não estava influenciado por substâncias estupefacientes os que constavam do quadro 2 do anexo V.
No que respeita às concentrações mínimas definidoras de positividade a substâncias de marijuana eram fixados valores de 50ng/ml em urina e 80 ng/ml em sangue.
E se é certo que os 50 ng/ml em rastreio de urina se mantiverem no atual quadro 2 do anexo V, já o valor em sangue, como referência, desapareceu.
Afigura-se que a tal desaparecimento não será alheia a evolução científica, uma vez que há atualmente evidência clínica de que valores de concentração de THC no sangue a partir de 1,6 ng/ml causam efeitos perturbadores no ato de conduzir[4].
De facto, é hoje incontroverso que o THC é um vasodilatador periférico que provoca efeitos na visão e que perturba a perceção do tempo, da velocidade e da distância. Sendo a condução uma tarefa complexa que obriga a vários níveis de atenção no domínio cognitivo e psicomotor, ela é afetada significativamente após o consumo de cannabis.
Por outro lado, de acordo com o mesmo estudo, os efeitos mais fortes fazem-se sentir quando a concentração no sangue depois de atingir um pico máximo (que ocorre cerca de 1 hora após o consumo fumado), começa a diminuir. Há nessa altura um aumento de risco. Considera-se que 2ng/ml de THC corresponde a um aumento de risco significativo e 5ng/ml um aumento de risco muito elevado.
Como sustenta Helena Maria Teixeira[5] “A marijuana, o haxixe e outros produtos psicoactivos obtidos da Cannabis sativa, são as drogas ilícitas mais produzidas e traficadas em todo o mundo. Por outro lado, paralelamente a um aumento do seu consumo na comunidade em geral, tem-se assistido a um acréscimo de casos de condução sob a sua influência. Tem sido demonstrado que a intoxicação provocada por este tipo de compostos está principalmente relacionada com a concentração do seu principio activoo Δ9-Tetrahidrocanabinol (Δ9-THC)”.
No caso, a análise quantitativa ao sangue representou a dupla função de rastreio e confirmação.
A citada Portaria, contrariamente ao que sustenta o recorrente, não exige valores mínimos no exame de confirmação para o “estado de influência”.
Os valores em causa indicados pelo recorrente, de 50ng/ml, como integradores da condução sob a influência de produtos estupefacientes, pela definição legal são “valores de concentração para exame de rastreio na urina”, portanto, não se reportam ao exame de confirmação no sangue, que foi o que se apurou no caso, não podendo, por isso, sustentar-se ser esse um limite mínimo de punibilidade[6].
Assim sendo, tendo, in casu, o exame ao sangue sido positivo, revelando a existência de substância proibida, no caso com a expressão quantitativa 5,8 ng/ml, mostra-se verificado o conceito de que o arguido conduzia sob a influência de produtos estupefacientes.
É verdade que o crime de condução perigosa de veículo rodoviário, sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, associa de forma inelutável a influência pelo consumo de estupefacientes à perturbação da aptidão para conduzir, pois a integração da conduta no tipo legal pressupõe que o agente não esteja “em condições de o fazer com segurança”.
Se assim é, terá sempre que se demonstrar, em concreto, que a substância teve efeitos perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.
Por conseguinte, impõe-se que se demonstre que o agente se encontrava a conduzir o veículo, na via pública ou equiparada, influenciado pelo consumo de produtos estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos de efeito análogo perturbador da aptidão física, mental ou psicológica, e se constate que o agente não estava em condições de exercer a condução com segurança.
A valoração se tal consumo o impedia, ou não, de exercer a condução em segurança, é algo que transcende a mera perícia médica, exigindo ao julgador uma valoração probatória global, aferindo as circunstâncias do caso concreto e ponderando as regras da lógica, do senso comum e da experiência.
A insegurança na condução dependerá, assim, do circunstancialismo do caso concreto, não se podendo olvidar o comum conhecimento dos efeitos do produto estupefaciente ou substância psicotrópica sobre o organismo humano e a noção, consabida, da diminuição que o seu consumo significativamente provoca em determinadas funções e aptidões humanas, nomeadamente, as necessárias para o exercício da atividade da condução.
Estamos, como se disse, perante um crime de perigo, contra a segurança das comunicações rodoviárias, que visa punir condutas que violem determinados bens jurídicos que necessitam de ser tutelados, face à dinâmica evolutiva da sociedade atual, nomeadamente, no que concerne aos avanços tecnológicos, suscetíveis de fazerem perigar o bem-estar e segurança da comunidade em geral.
Sendo as características de tais substâncias sobejamente conhecidas pela comunidade em geral, o agente que exerce a condução sob o efeito do consumo de estupefaciente ou substância psicotrópica, sabe que tal consumo lhe diminuirá tais aptidões, e que, por via disso, poderá potenciar a criação de resultados anómalos e danosos, nomeadamente a ocorrência de acidentes de viação, colocando em causa a segurança da circulação rodoviária e, reflexamente, outros bens jurídicos penalmente tutelados, como a vida, a integridade física e o património de terceiros.
Ora, se assim é, não se pode fazer depender a verificação da falta de condições de segurança para a condução decorrentes do consumo de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas de um elemento científico ou pericial que, em concreto, confirme que o agente, naquela determinada ocasião, não se encontrava na posse da totalidade das suas aptidões ou capacidades para o exercício da condução.
Essa exigência, de demonstração cirúrgica, de que o condutor tinha esta ou aquela função diminuída, em função do consumo daquele tipo de produto ou substância, só assim se podendo concluir que não podia conduzir com segurança, seria, na prática, quase irrealizável.
Não se fala aqui de estabelecer um qualquer nexo de causalidade entre a condução sob o efeito de drogas no sangue e o acidente ocorrido, mas apenas de se consignar uma verdade que parece ser pouco discutível: a de que quem conduz influenciado sob o efeito de tais substâncias está a colocar em perigo, não só a sua vida e integridade física, mas também, a vida e a integridade física de todos aqueles com quem se cruza na estrada.
Dito de outra forma, a demonstração de que a substância estupefaciente detetada no sangue do agente o impedia de conduzir com segurança, pode e deve, ser lograda, com todos os elementos de prova que o julgador disponha, numa valoração probatória responsável, ponderando o caso concreto e apoiando-se, como em toda a atividade jurisdicional, no conhecimento adquirido por via das regras de experiência, da razoabilidade das coisas e da normalidade da vida.
Assim, assentamos que a prova da perturbação da condução por estar o agente sob a influência de estupefacientes, pode ser alcançada por outros meios que não a prova pericial, como seja pela prova testemunhal, ou seja, “deve ser extraída da valoração da prova nas circunstâncias do caso concreto”[7].
No caso em apreço, ficou provado que o arguido:
- “(…) conduzia (…) sob a influência de produto estupefaciente que havia consumido anteriormente (…) designadamente canabis” [item 1 dos factos provados];
- “(…) tendo apresentado os seguintes resultados: D9-tetrahidrocanabinol (THC) de 5,8 ng/ml, 11-Hidroxi-D9-tetrahidrocanabinol (11-OH- THC) de 1,8 ng/ml, sendo interveniente em acidente de viação [item 1 dos factos provados];
- “Na verdade, no momento em se aproximou do veículo com matricula YYYY, e por não se encontrar em condições de efetuar uma condução segura por via do produto estupefaciente consumido, o arguido  prosseguiu a marcha, não mantendo a distância suficiente do veículo conduzido por B, embatendo com a parte frontal do veículo ligeiro de passageiros, com matrícula XXXX, na parte traseira do veículo ligeiro de passageiros, com matricula YYYY, conduzido por B.” [item 4 dos factos provados];
- “O arguido  ao conduzir o veículo ligeiro de passageiros, com matrícula XXXX, na via pública, bem sabia que não estava em condições de exercer a condução do veículo em segurança, pois que se encontrava sob a influência de canabinóides, o que lhe reduzia as elementares faculdades necessárias à condução do veículo automóvel, designadamente no que respeita à concentração, reação na condução, coordenação motora e destreza, correndo o sério risco de causar um acidente, como veio acontecer e, mesmo assim, quis conduzir a referida viatura, como fez.” [item 10 dos factos provados];
- Com indiferença pela segurança e integridade física quer de C e de B, quer dos demais utentes da estrada, nomeadamente os veículos que, na altura, circulavam naquele local na via pública, o arguido  previu e quis conduzir o veículo naquelas circunstâncias, após consumo de produto estupefaciente, sabendo que, dessa forma, punha em perigo a integridade física, quer dos ofendidos quer de qualquer pessoa que na altura utilizasse a via acima mencionada, como efetivamente pôs, e, mesmo assim, aceitou tal verificação. [facto 11 dos factos provados].
Ou seja, pese embora não baste a presença da substância psicotrópica no corpo do agente do crime rodoviário, sendo necessário que a mesma tenha influenciado e tornado o agente incapaz de conduzir em segurança e com segurança, e isto independentemente do resultado danoso que possa ter ocorrido, resultou provado que por não se encontrar em condições de efetuar uma condução segura por via do produto estupefaciente consumido, o arguido adotou a descrita condução, na sequência da qual veio a ocorrer o mencionado acidente de viação e, além disso, sabia que não se encontrava em condições de conduzir com segurança, pois que se encontrava sob a influência de canabinóides, ou seja, encontra-se demonstrado que o consumo de estupefacientes impediu o arguido de, naquela ocasião, conduzir com segurança.
Portanto, pese embora fosse necessário apurar que a cannabis no seu organismo o impedia de conduzir em segurança, essa prova foi feita, conforme decorre não só da leitura dos factos provados, como também da apreciação crítica que foi feita da prova produzida, que, ao contrário do argumentado pelo arguido recorrente, obedeceu ao disposto no artigo 127.º do Código Penal.
Com efeito, decorre de tal preceito legal que, salvo no caso de prova vinculada, o tribunal aprecia a prova segundo as regras da experiência e a sua livre convicção, sempre sem esquecer que a liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, o que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada, que foi o que a Mm.ª Juíza a quo fez.
Relembre-se que sendo a condução uma tarefa complexa que obriga a vários níveis de atenção no domínio cognitivo e psicomotor, ela é afetada, significativamente, após o consumo de cannabis e tem-se considerado que 5ng/ml corresponde a um aumento de “risco muito elevado”.
O arguido apresentou no sangue uma taxa de THC de 5,8ng/ml, correspondendo, portanto, ao referido “risco muito elevado”, o que, conciliado com a prova testemunhal produzida em audiência de julgamento, se afigura mais do que suficiente para se ter dado como provado que o arguido não estava em condições para conduzir o seu veículo em segurança, conforme, e bem, o fundamenta a Mm.ª Juíza a quo, nos termos que se passa a transcrever:
“(…) as testemunhas D e E, militares da GNR chamados ao local do acidente, os quais com rigor e isenção descreveram ao Tribunal conclusões que retiraram sobre as causas do acidente, (…) explicaram que o jovem dava sinais de não estar nas suas capacidades plenas e ter consumido estupefacientes (o que retiram da sua postura e do seu diálogo incoerente) - facto que, aliás, o próprio arguido logo assumiu -, e que o embate ocorreu pela manhã, havendo trânsito que impedia a circulação dos veículos em excesso de velocidade. Nesse contexto explicaram terem ficado ambos convencidos ter sido o facto de A estar influenciado pelas drogas – situação que quando chegam ao local ainda observam – e a conhecida falta de perceção da realidade/concentração daí adveniente, o que o levou a não travar quando devia e a embater no veículo que seguia na sua frente. Em face destes relatos e da dinâmica em que o acidente ocorreu, assim se estabeleceu, com segurança, que A se encontrava sob influência de estupefacientes e ter sido tal facto o que o levou a dar causa ao acidente e à criação do perigo para terceiros e veículos”.
Face ao exposto e tendo em conta a factualidade apurada e os pressupostos do crime em referência, entendemos que estes se encontram preenchidos, não existindo qualquer censura a fazer no que respeito ao enquadramento jurídico efetuado na sentença recorrida.
Verifica-se que, in casu, ao contrário do invocado pelo recorrente, perfectibilizam-se todos os elementos objetivos e subjetivos, diga-se, que integram o delito em causa, não tendo, consequentemente, sido violada qualquer disposição legal, designadamente as apontadas.
Face ao expendido o recurso interposto pelo arguido  terá de improceder.
*
II.3.2. - Recurso interposto pelo Ministério Público:
Insurge-se o Ministério Público quanto à pena única aplicada, argumentando que a sentença proferida nos presentes autos, ao efetuar o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas ao arguido, certamente por mero lapso, violou o disposto no nº 2, do artigo 77º, do Código Penal, fazendo uma incorreta interpretação dessa norma jurídica, ao fixar a pena única abaixo do seu limite mínimo.
Defende, assim, que, deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que fixe, como limite mínimo da moldura aplicável ao concurso, cento e sessenta dias de multa, que correspondem à pena parcelar mais elevada, e, consequentemente, seja o arguido condenado numa pena única não inferior a 165 [cento e sessenta e cinco] dias de multa [no montante diário fixado na sentença recorrida].
Vejamos:
Prevê o artigo 77.º, do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “regras da punição do concurso”, que:
“1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
(…)”.
Da sentença recorrida decorre que o arguido foi condenado, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de:
- um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelos artigos 291.º, n.º 1, alínea a) e 69.º, do Código Penal, na pena de 160 dias de multa, ao quantitativo diário de € 6, 00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 meses;
- um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 40.º, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, na pena de 10 dias de multa, ao quantitativo diário de € 6, 00.
- Em cúmulo jurídico foi o arguido condenado na pena única de 140 dias de multa, ao quantitativo diário de € 6, 00.
Daquela resulta, ainda, que “em cúmulo jurídico e de acordo com o disposto no artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal, a pena única a aplicar ao arguido por referência às duas penas de prisão aplicadas, situar-se-á entre um mínimo de 10 dias de prisão e um máximo de 170 dias de prisão.
Assim, ponderando-se, mais uma vez, os critérios a que alude o artigo 71.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal, designadamente as exigências de prevenção, entendemos como justo e adequado aplicar ao arguido uma pena única de 140 dias de multa, ao quantitativo diário de € 6, 00”.
Ou seja, a Mm.ª Juíza a quo laborou em lapso, não só quando se refere a pena de “prisão”, quando  acabava de optar pela aplicação da pena de multa, como quanto ao limite mínimo a ter em conta no cúmulo jurídico de penas, pois, pese embora tenha feito uma correta referência à disposição legal a ter em conta - artigo 77.º do Código Penal - acaba por considerar como limite mínimo legal a ter em conta os 10 dias a que alude o artigo 47.º, n.º1, do Código Penal, em vez dos 160 dias, como impunha o artigo 77.º, n.º2, do Código Penal, por corresponder à mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes em concurso.
Assim sendo, atentando-se nos considerandos já expostos na sentença recorrida quanto à determinação da sanção, que aqui têm pertinência e sobre os quais não versa qualquer discordância  por parte de nenhum dos recorrentes, sem necessidade de mais considerandos, face à simplicidade da questão, em cúmulo jurídico, atenta a moldura aplicável [de 160 a 170 dias de multa], afigura-se-nos justo e adequado aplicar ao arguido a pena única de 165 dias de multa, à taxa diária de €6,00, o que perfaz a multa total de €990,00 [novecentos e noventa euros].
*
III- DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em:
A. Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido.
B. Conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, condena-se o arguido na pena única de 165 [cento e sessenta e cinco] dias de multa, à taxa diária de €6,00 [seis euros], o que perfaz a multa total de 990,00 [novecentos e noventa euros].
C. No mais, confirma-se a sentença recorrida.
Custas pelo arguido recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UCS [artigo 515º, nº 1, al. b) do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III].
Notifique.
*
Lisboa, 06 de dezembro de 2022
Os Juízes Desembargadores
Isilda Maria Correia de Pinho
José Manuel Purificação Simões de Carvalho
Luís Almeida Gominho 
_______________________________________________________
[1] Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.
[2] Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95.
[3] Tribunal da Relação de Guimarães de 14/10/2019, no Processo n.º 3/18.9PTBRG.G1, in http://www.dgsi.pt.
[4] Estudo sobre as consequências negativas do consumo de marijuana na condução publicado em “Marijuana and the Cannabinoides” - Capítulo 12, da autoria de Barry K. Logan – Ed M. A Elsohly, Phd – the School of Pharmacy, The University of Mississipi – Elsohly Laboratories Inc, Oxford, MS – Human Press Totowa, New Jersey.
[5] Na tese de doutoramento que publicou “Determinação de canabinóides em amostras biológicas por cromatografia líquida de alta resolução com espectrometria de massa: aplicação em toxicologia forense”.
[6] Acórdão do TRP, datado de 23-10-2019, Processo n.º 80/17.0GACPV.P1, acessível in http://www.dgsi.pt.
[7] Indicam-se, a título de exemplo, o Acórdão deste TRL, datado de 16-02-2021, Processo n.º 9/19.0PHSXL.L1-5 e o Acórdão do TRC, datado de 17-03-2022, Processo n.º 4/21.0PTCBR.C1, ambos acessíveis in http://www.dgsi.pt.