Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
41/17.9T8FNC.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: ARRESTO
PERDA DA GARANTIA PATRIMONIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/16/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: -Estando em dívida a totalidade ou parte do preço de um bem vendido, o credor pode obter o arresto desse bem, nos termos do art. 396º nº3 do CPC, sem necessidade de alegar e provar o justo receio de perda da garantia patrimonial.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os Juizes, do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:



C ... S .A., veio requerer contra G..., a presente providência cautelar de arresto alegando o seguinte:

"No dia 29 de Setembro de 2014, a requerente vendeu ao requerido e este comprou-lhe uma viatura usada, de marca Audi, modelo A3, com o nº de matrícula ...-...-.....
O preço convencionado dessa venda foi no montante de 9.500,00 (nove mil e quinhentos euros).
Sendo que, por conta desse preço, o requerido pagou à requerente, no dia 29 de Setembro de 2014, a quantia inicial de2.000,00.
E nessa data, aceitou uma letra de câmbio, no valor do restante preço em divida - € 7.500,00, com vencimento a 29 de Outubro de 2014.
Na data do vencimento dessa letra, o requerido não procedeu ao seu pagamento, mas em 20 de Novembro de 2014, procedeu à amortização da quantia de1.000,00, por conta daquele montante da letra.
E, em 18 de Maio de 2015, fez ele nova amortização de igual valor de € 1.000,00.
Em 18 de Novembro de 2015, o requerido fez mais uma amortização, desta feita no valor de € 400,00.
E em 11 de Março de 2016 fez uma última amortização no valor de500,00.
O requerido ainda deve à requerente a quantia de € 4.600,00.
Não mostrando o requerido vontade de proceder ao seu pagamento,nem sequer querendo renegociar a dívida para com a requerente.
Entretanto, desde a data da compra da viatura  - 29 de Setembro de 2014 - o requerido mantem a viatura em seu poder e vem com ela circulando, como coisa sua, dando-lhe o uso que bem entende.
Contudo, a viatura permanece registada em  nome da ora requerente, porque o requerido nem sequer assinou a declaração de registo, para transferência da propriedade para o seu nome."  
 
Termina pedindo que seja decretado o arresto preventivo da viatura Audi, A3, com o n° de matrícula ...-...-....

Foi proferido despacho, indeferindo liminarmente a petição inicial, por ser manifestamente improcedente.

Inconformado, recorre o requerente, concluindo que:
-Quando esteja em falta o pagamento do preço ou de parte dele, de bem que foi transmitido mediante negócio jurídico, pode o credor obter o arresto do respectivo bem, sem necessidade de alegar e provar o justo receio de perda da garantia patrimonial.
-Tal arresto especial é decretado com dispensa do justo receio de perda da garantia patrimonial.
-Estando em causa a falta de pagamento do preço ou de parte do preço de bem vendido, pode o vendedor requerer a apreensão desse bem, alegando apenas factos que demonstrem a venda e a falta de pagamento do preço e ou de parte do preço.
-A recorrente alegou que vendeu ao recorrido a viatura automóvel e que o recorrido ainda lhe deve € 4.600,00, do respectivo preço, não mostrando o recorrido vontade de proceder ao seu pagamento, mas mantendo o recorrido a viatura em seu poder e circulando com ela.
-Tais factos são suficientes para que seja decretado o arresto da viatura.
-Não carecia a recorrente de alegar factos demonstrativos da perda da garantia patrimonial.
-A decisão recorrida violou o disposto no nº 3 do art° 396° do CPC.
Termos em que deverá conceder-se provimento ao recurso, revogando-se a decisão proferida e substituindo-se a mesma por outra, que decrete o arresto da viatura ou, ao menos, que ordene o prosseguimento dos autos, com produção de prova testemunhal.
  
Cumpre apreciar.
O art. 396º nº 3 do CPC prevê que “o credor pode obter, sem necessidade de provar o justo receio de perda da garantia patrimonial, o arresto do bem que foi transmitido mediante negócio jurídico quando estiver em dívida, no todo ou em parte, o preço da respectiva aquisição”.

Trata-se de uma modalidade especial de arresto, aplicável a situações de falta do pagamento do preço em caso de transmissão do bem no âmbito de negócio jurídico.

Na exposição de motivos da proposta de lei nº 113/XII, que preludia a Lei nº 41/2013 de 26/06, é referido que “noutro plano da tutela cautelar, faculta-se ao credor a possibilidade de obter o decretamento de arresto, sem necessidade de demonstração do justo receio de perda da garantia patrimonial, do bem que foi transmitido mediante negócio jurídico, quando estiver em dívida, no todo ou em parte, o preço da respectiva aquisição”.

Literalmente, da redacção do art. 396º não resulta a desnecessidade de alegação do receio de perda da garantia patrimonial.   
                                                             
Dispensa-se, isso sim, o credor de provar a justeza do receio da perda de tal garantia.

Neste sentido, observa Rui Pinto - “Notas ao Código de Processo Civil”, I, pág. 336 - “... o teor literal parece permitir concluir que não basta invocar o crédito sobre o requerido, mas também actos concretos que colocam em risco a garantia patrimonial. Portanto, o simples facto de o devedor estar em mora não basta por si só. Todavia, aqueles factos não têm de ser provados (...). Portanto, pode concluir-se que no plano jusprocessual, a solução da lei não altera as condições de concessão do arresto, mas simplifica a sua procedência, ao afastar a necessidade de prova”.

Salvo o devido respeito não podemos concordar com a doutrina transcrita.

Na realidade, o arresto previsto no nº 3 do art. 396º tem uma natureza diversa do regime geral do arresto previsto no art. 391º. Aqui, o credor dispõe de um crédito sobre o devedor e receia que, por diversas circunstâncias, este venha a ficar privado de património suficiente para satisfazer a dívida. Daí que peticione arresto em bens do devedor, suficientes para assegurar o pagamento.

No art. 396º nº 3 o que está em causa é a apreensão de um bem específico que foi vendido mas não pago. O que o credor vê apreendido é o próprio bem vendido. Não se trata pois de um juízo de probabilidade de perda da garantia patrimonial, relativamente ao património do devedor, mas antes de retirar um bem concreto da posse do devedor.

Nem se vê, em tal contexto, o que poderia o credor alegar relativamente ao periculum in mora, uma vez que este pressuposto do arresto como previsto no art. 392º não tem aplicação no caso do nº 3 do art. 396º: seria irrelevante que o devedor tivesse um património largamente suficiente para garantir que o credor pudesse ver satisfeito o preço em dívida, já que o objecto deste tipo especial de arresto é o próprio bem vendido.

Neste sentido, afigura-se-nos preferível a perspectiva de Lebre de Freitas quando afirma:
O ponto de regime mais característico é, porém, a dispensa do periculum in mora: ainda que o responsável tenha bens suficientes para garantir a dívida e que não haja perigo objectivo de que venham a desaparecer do seu património, o arresto é admissível” - “Código de Processo Civil Anotado”, 2º, pág. 135.
De resto, a própria epígrafe do art. 396º inculca este entendimento: “Arresto especial com dispensa do justo receio de perda da garantia patrimonial” (sublinhado nosso). 

Conclui-se assim que:
-Estando em dívida a totalidade ou parte do preço de um bem vendido, o credor pode obter o arresto desse bem, nos termos do art. 396º nº 3 do CPC, sem necessidade de alegar e provar o justo receio de perda da garantia patrimonial.

Termos em que se julga a apelação procedente, revogando-se o despacho recorrido e ordenando o prosseguimento da acção.
Sem custas.



LISBOA, 16/3/2017



António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais
Decisão Texto Integral: