Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3311/17.2T8LRS.L1-4
Relator: JOSÉ FETEIRA
Descritores: COMPENSAÇÃO
CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
COMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZOS DO TRABALHO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A SENTENÇA
Sumário: I Incidindo o “thema decidenduum” sobre o montante da compensação de natureza global que terá sido estabelecida entre as partes aquando da cessação do contrato de trabalho que entre ambas existira, está-se, sem dúvida, perante questão emergente de uma relação contratual de trabalho subordinado cuja apreciação cabe às Secções Especializadas do Trabalho, que o mesmo é dizer aos Juízos do Trabalho, dos Tribunais Judiciais.

II Deste modo e tendo em consideração o pedido e a causa de pedir formulados na petição inicial, bem como o disposto no art. 126º n.º 1 al. b) da Lei n.º 62/2013 de 26-08, cabe ao Tribunal a quo a competência em razão da matéria para a apreciação do presente pleito.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


AAA,  S.A., com sede na (…), instaurou no Tribunal da Comarca de Lisboa Norte a presente ação, emergente de contrato de trabalho, com processo comum, contra BBB, residente na Rua (…).

Pede que a Ré seja condenada a pagar à Autora a quantia de € 15.856,20 (quinze mil, oitocentos e cinquenta e seis euros e vinte cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa legal em vigor que se vencerem até integral pagamento.

Como fundamento e em síntese, alega que se dedica ao comércio de automóveis novos e usados, seus acessórios e serviços de reparação e manutenção e que a Ré foi admitida para trabalhar, sob a sua autoridade e direção no dia 1 de junho de 1995.

A Ré tinha a categoria profissional de «Chefe de Secção» e recentemente, exercia a função de apoio administrativo à área de controlo de gestão, auferindo a retribuição base mensal de € 670,00 (seiscentos e setenta euros).

Na última semana de fevereiro de 2016, a Ré reuniu-se com o Administrador (…) no respetivo gabinete nas instalações da Autora, altura em que foi manifestada por aquela a sua intenção em cessar o vínculo laboral existente entre si e a Autora, cessação que foi, então, equacionada para se fazer mediante acordo de revogação.

A Ré foi expressamente informada de que, a existir cessação do vínculo laboral, a Autora apenas aceitaria a celebração de um acordo de revogação, mediante o pagamento de uma compensação no valor de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), o que foi, de imediato aceite pela Ré.

Ficou então acordado que o contrato de trabalho cessaria no dia 31 de Março de 2016 e foram expressamente estabelecidos os aspetos respeitantes à cessação do vínculo laboral e foi ainda acordado o pagamento dos créditos salariais decorrentes da cessação do contrato de trabalho, o que se verificaria naquela data.

Assim, em 31 de março de 2016 foi celebrado o competente acordo de revogação de contrato entre as partes, sendo que, em termos de montante da compensação pecuniária de natureza global, a cessação do contrato de trabalho teve por base a emissão do respetivo recibo de vencimento.

Sucede que após a formalização da cessação do mencionado contrato de trabalho, a Autora constatou que tinha ocorrido um lapso em termos de processamento e liquidação do montante da compensação decorrente da cessação da relação laboral, porquanto, a este título, fora processado e pago à Ré o montante ilíquido global de € 23.356,20 (vinte e três mil, trezentos e cinquenta e seis euros e vinte cêntimos) quando apenas era devida a quantia ilíquida de € 7.500,00 (sete mil e quinhentos euros).

Deste modo, a quantia de € 15.856,20 (quinze mil, oitocentos e cinquenta e seis euros e vinte cêntimos) encontra-se indevidamente na posse da Ré não havendo qualquer justificação para tal.

Após ter sido constatada a incorreção de tal pagamento, a Autora encetou inúmeros contactos telefónicos e tentou o contacto presencial, por diversas vezes, com a Ré e não obteve qualquer sucesso, alegando esta que, uma vez que tal lhe fora pago, não devolveria tal montante.

Seguidamente foi proferido despacho liminar, no qual se concluiu com a seguinte decisão:
«Assim e na decorrência, nos termos expostos e ao abrigo das normas legais citadas, conhece-se da incompetência absoluta, em razão da matéria, desta secção do trabalho, a qual, nesta fase, importa o indeferimento liminar da petição inicial, declarando-se este tribunal incompetente, em razão da matéria, para conhecer do pedido em apreço e absolvendo-se a ré da instância, nos termos do disposto nos arts. 278º, nº1, alínea a), 576º, nº2, e 590º, nº1, do Cód. de Proc. Civil, sempre ex vi do art. 1º, nº2, alínea a), do Cód. de Proc. do Trabalho, além do art. 54º, nº1, deste último diploma legal.
Custas pela autora (art. 527º, nº1, do Cód. de Proc. Civil), fixando-se o valor da causa em 15.856,20 € – vd. art. 306º, nºs 1 e 2, do Cód. de Proc. Civil.
Notifique e registe.».

Inconformada com esta decisão a Autora interpôs recurso de apelação para este Tribunal da Relação, apresentando alegações que termina mediante a formulação das seguintes conclusões:

A. O recurso ora interposto pela Apelante versa sobre o despacho liminar de fls. … proferido pelo Meritíssimo Juiz a quo, o qual determinou o indeferimento liminar da petição inicial, por força da incompetência absoluta, em razão da matéria e, em consequência, absolveu a aqui R. da instância.
B. Não se conformando com o douto despacho liminar, a Apelante dela interpõe o competente recurso.
C. Com relevância para o objecto do presente recurso que versa sobre matéria de direito, destaca-se o aspecto central e fulcral da competência em razão da matéria por parte do Tribunal do Trabalho, decorrente da cessação do vínculo laboral.
D. A aqui Apelante intentou uma acção judicial contra a Apelada, da qual decorreu um pedido de condenação da Apelada na quantia de € 15.856,20 (quinze mil, oitocentos e cinquenta e seis euros e vinte cêntimos).
E. Para tanto, foi alegado pela Apelante que as partes acordaram na cessação do contrato de trabalho, sendo que, aquando da referida formalização e liquidação de montantes decorrentes da cessação do vínculo laboral pela Apelante à Apelada, foi formalizado e liquidado um valor superior ao montante acordado pelas partes, o que implicou um pagamento indevido da Apelante à Apelada da quantia de € 15.856,20 (quinze mil, oitocentos e cinquenta e seis euros e vinte cêntimos).
F. Salienta-se que, após a formalização e o pagamento dos montantes em apreço à aqui Apelada, constatou-se a existência de um lapso em termos de processamento e de liquidação do montante da compensação decorrente do terminus da relação laboral.
G. Posto isto, ao contrário do sustentado pelo Tribunal a quo, com a presente acção, está em causa um aspecto emergente do contrato de trabalho, o que se traduz, no caso em específico, no montante da compensação acordada pelas partes.
H. Tanto assim é que, pese embora exista pela Apelante a invocação do instituto de enriquecimento sem causa, certo é que o pedido formulado pela Apelante funda-se no facto da Apelada ter recebido montante superior ao acordado entre as partes para efeitos de cessação dessa relação laboral.
I. Nesta medida, entre outros aspectos, a forma, os termos acordados e o próprio acordo de revogação do contrato de trabalho teriam de ser objecto de análise por parte do Tribunal recorrido, na decisão a proferir: isto é, estão em causa questões que surgem entre a entidade empregadora e a trabalhadora, após a extinção da relação laboral e que estão totalmente dependentes da referida cessação do contrato de trabalho.
J. Ora, nos termos do artigo 126º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário constante da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, compete aos juízos do trabalho conhecer, em matéria cível: (…) b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado (…).
K. Não oferece, pois, dúvida que o litígio submetido à apreciação do Tribunal a quo emerge de uma relação de trabalho subordinado, razão pela qual dúvidas não subsistem de que compete ao Juízo do Trabalho o conhecimento das questões emergentes de relações de trabalho subordinado.
L. Tal tem sido igualmente o entendimento da jurisprudência nacional, conforme decorre do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 17 de Março de 2011, in www.dgsi.pt.
M. Posto isto, o artigo 126º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário constante da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto foi incorrectamente aplicado pelo Juiz a quo.
N. Face ao exposto, mal andou o Tribunal recorrido, razão pela qual, no aspecto em apreço, deverá o douto despacho recorrida ser integralmente substituído.
Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deve ser julgado procedente por provado o recurso interposto e, consequentemente, o despacho recorrido revogado, assim se fazendo a acostumada JUSTIÇA!

Admitido o recurso com adequado regime de subida e efeito.

Citada a Ré nos termos do disposto no art. 641º n.º 7 do CPC, veio a Ré contra-alegar, deduzindo as seguintes conclusões:
1) Bem andou o Tribunal a quo ao indeferir liminarmente a petição inicial por se declarar incompetente em razão da matéria;
2) De facto, ao exigir o pagamento de uma concreta quantia paga indevidamente a título de compensação, fundamenta-se não no contrato de trabalho mas no acordo que o revogou;
3) Esta novação não está incluída em nenhuma das alíneas do artigo 126.º, nº 1 da LOSJ, razão pela qual não existe qualquer conexão ou dependência entre o pedido da Autora e a atribuição de competências do Tribunal a quo;
4) Por outro lado, a Ré vem invocar expressamente a prescrição do eventual direito de crédito da Autora, uma vez que se encontra decorrido o prazo enunciado no artigo 337.º do Código de Trabalho, tendo a cessação do contrato ocorrido a 31 de Março de 2016, a acção proposta a 24 de Março de 2017 sem pedido de citação prévia e a citação da Ré para o presente processo ter ocorrido a 25 de Setembro de 2017;
5) No seguimento da alínea anterior, também não se operou a interrupção excepcional prevista no nº 2 do artigo 323.º do Código Civil, não tendo a Autora acautelado o prazo mínimo de 5 dias para a citação da Ré, o qual só poderia ter ocorrido após a autuação da acção, ou seja após 27 de Março, dia de reabertura do tribunal.
Termos em que, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V.Exas. deverá ser concedido provimento ás alegações de recurso apresentadas pela Ré, com o que se fará a mais lídima JUSTIÇA

Remetidos os autos para esta 2ª instância, mantido o recurso, foi determinado se desse cumprimento ao disposto no n.º 3 do art. 87º do CPT, tendo a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitido o douto parecer de fls. 44 no sentido da procedência do recurso em causa.

Este parecer não foi objeto de resposta.

Com a anuência dos Exmos. Adjuntos foram dispensados os respetivos vistos.

Cumpre, pois, apreciar do mérito de tal recurso.

Apreciação
Dado que, como se sabe, são as conclusões de recurso que delimitam o seu objeto, em face das que são extraídas pela Apelante no recurso interposto, coloca-se à apreciação deste Tribunal da Relação a questão da competência ou não dos Juízos do Trabalho, em razão da matéria, para a apreciação do presente pleito.

Fundamentos de facto
Com interesse na apreciação do recurso em causa, para além das incidências processuais constantes do precedente relatório, dá-se aqui por reproduzida a petição inicial formulada pela Apelante e que, em termos sintéticos, ali reproduzimos.

Fundamentos de direito
Como se referiu, a questão posta à consideração deste Tribunal da Relação mediante o recurso interposto pela Autora/apelante sobre o despacho proferido pelo Tribunal a quo, de indeferimento liminar da petição inicial por esta deduzida, consiste em saber se os Juízos do Trabalho – em concreto aquele Tribunal – têm competência, em razão da matéria, para a apreciação do presente pleito.
Ensinava o Prof. Manuel Domingues de Andrade em «Noções Elementares de Processo Civil» pag.ª 88 e ss, que a competência dos tribunais «[é] a medida de jurisdição dos diversos tribunais; o modo como entre eles se fracciona e reparte o poder jurisdicional», sendo que a «Competência abstracta dum tribunal. É a medida da sua jurisdição; a fracção do poder jurisdicional que lhe é atribuída; a determinação das causas que lhe tocam» e a «Competência concreta dum tribunal. Trata-se… da sua competência para certa causa. É o seu poder de julgar (exercer actividade processual) nesse pleito; a inclusão deste na fracção de jurisdição que lhe corresponde».

Ora, a Constituição da República Portuguesa no n.º 1 do seu art. 211º estabelece que «[o]s tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais».

Por seu turno, o Código de Processo Civil, aqui aplicável por força do disposto no art. 1º n.º 2 al. a) do Código de Processo de Trabalho, em consonância com o mencionado preceito constitucional e depois de estipular no n.º 1 do art. 60º que «[a] competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições deste Código», prevê no art. 64º que «[s]ão da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional», sendo que a Lei de Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) aprovada pela Lei n.º 62/2013 de 26-08 e que entrou em vigor em 1 de setembro de 2014, depois de estabelecer no n.º 1 do art. 38º que «[a] competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei» e de estipular no n.º 2 do art. 40º que «[a] presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de primeira instância, estabelecendo as causas que competem às secções de competência especializada dos tribunais de comarca ou aos tribunais de competência territorial alargada», define no seu art.º 126º a competência cível das Secções do Trabalho, estipulando no n.º 1 desse preceito e no que aqui releva que «[c]ompete às secções do trabalho conhecer, em matéria cível:… b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado…».

Posto isto e sabendo-se que a competência do tribunal, enquanto pressuposto processual que é, se determina pelos termos em que o autor formula o pedido, o quid disputatum (v. Prof. Manuel da Andrade, ob cit., pagª 91), e, acrescentamos nós, apresenta a correspondente causa de pedir, verifica-se que, no caso vertente toda a questão colocada pela Autora AAA, S.A. à apreciação dos tribunais, incide em torno do montante da compensação de natureza global que terá sido estabelecida entre esta e a Ré BBB aquando da cessação do contrato de trabalho que entre ambas existira desde 1 de junho de 1995, cessação que, alegadamente, terá produzido efeitos a partir de 31 de março de 2016.

Estamos, pois, em face de uma questão emergente de uma relação contratual de trabalho subordinado cuja apreciação cabe, sem dúvida e à face das mencionadas normas legais, às Secções Especializadas do Trabalho, que o mesmo é dizer aos Juízos do Trabalho, dos Tribunais Judiciais.

Aliás, repare-se que, tanto assim é que, muito embora se desconheçam os termos concretos em que a Ré possivelmente formalizaria a sua contestação a tal petição inicial – bem podendo suceder que viesse contestar os montantes invocados pela Autora em termos de compensação pela cessação do contrato de trabalho entre si e a Ré existente, até porque esta junta às suas contra-alegações um documento intitulado «Revogação de Contrato de Trabalho por Acordo entre o Trabalhador e a Entidade Patronal», em cuja cláusula 3ª n.º 1 se menciona uma verba ilíquida de € 23.356,20, a título de compensação pela cessação do contrato de trabalho – não deixa de ser curioso que, embora a nosso ver e com todo o respeito a destempo ou através do meio impróprio para o efeito, esta, nas suas contra-alegações de recurso [v. contra-alegações e conclusões 4) e 5) aí extraídas], tenha vindo invocar expressamente a exceção perentória da prescrição do eventual direito de crédito da Autora, alegando, para tal, ter decorrido o prazo enunciado no artigo 337.º do Código de Trabalho, já que, tendo a cessação do contrato de trabalho ocorrido a 31 de março de 2016, a ação foi proposta a 24 de Março de 2017 sem pedido de citação prévia e a citação da Ré para o presente processo ocorreu a 25 de Setembro de 2017, questão que, reafirma-se, aduzida pela Ré não no momento e no meio adequado, certamente não deixará de ser suscitada numa eventual contestação que venha a produzir nos presentes autos, sendo que se trata, também ela, de uma questão emergente do contrato de trabalho subordinado que alegadamente terá sido celebrado entre as partes e que terá cessado em 31 de março de 2016.

Cabe, pois, às Secções do Trabalho – ou Juízos do Trabalho – dos Tribunais Judiciais e muito concretamente ao Tribunal a quo a competência em razão da matéria para a apreciação do presente pleito.

Não pode, pois, deixar de proceder o recurso interposto pela Autora/apelante, devendo a decisão recorrida ser revogada de forma a ser substituída por outra que faça prosseguir o processo nos seus trâmites normais.

Decisão
Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida de forma a ser substituída por outra que faça prosseguir o processo nos seus trâmites normais.
Custas a cargo da Ré/apelada.


Lisboa, 2018/01/24



José António Santos Feteira (relator)
Filomena Maria Moreira Manso
José Manuel Duro Mateus Cardoso