Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2691/2004-3
Relator: CARLOS ALMEIDA
Descritores: PROVA POR RECONHECIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/12/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I – A existência de um reconhecimento positivo é um dos meios de prova que, quer entre nós, quer em muitos países estrangeiros, mais influencia os tribunais no sentido de afirmar a culpabilidade da pessoa assim identificada, sobretudo quando a pessoa que efectuou o reconhecimento afirma a sua convicção sem margem para dúvidas.
II – Essa credibilidade tem sido, porém, contrariada pelos numerosos estudos empíricos que têm sido realizados, sobretudo nestes últimos 30 anos, e mesmo por relatórios elaborados por responsáveis de diversos países, podendo dizer-se que este é um dos meios de prova mais problemáticos e de resultados menos fiáveis. E isso mesmo que se tenham cumprido rigorosamente as formalidades estabelecidas na nossa ou noutras legislações e que mais não visam do que diminuir a margem de erro desse meio de prova.
III – Como os trabalhos empíricos têm revelado, a testemunha ocular tende a fazer um julgamento relativo, mesmo quando avisada de que o suspeito pode não se encontrar entre as pessoas que compõem o painel, procurando localizar a pessoa que mais semelhanças apresente com o agente do crime por ela visualizado.
IV – Para além disso, a identificação que faz pode facilmente ser influenciada por inúmeros factores, entre os quais o comportamento, consciente ou inconsciente, da pessoa que orienta a diligência.
V – O próprio grau de confiança que a testemunha ocular tem na precisão da identificação efectuada dependente mais do comportamento, muitas vezes corroborante, do investigador que dirigiu as operações e da confirmação do seu veredicto por outras testemunhas do que da nitidez das suas próprias recordações do cenário do crime. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, confiança e precisão não são vectores necessariamente relacionados.
VI – Mais importante do que conhecer o grau de confiança manifestado pela testemunha é averiguar as condições em que ela observou o agente do crime e o tempo de que ela dispôs para o fazer.
VII – Por isso mesmo, muitos psicólogos aconselham que, para se incrementar a fiabilidade deste meio de prova, sobretudo quando ele for o único ou o decisivo elemento da identificação de um suspeito, se adoptem especiais cautelas.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
1 – Na sequência do 1º interrogatório judicial do arguido C,, a srª juíza de instrução criminal do Seixal, proferiu, em 28 de Janeiro de 2004, a requerimento do Ministério Público, o seguinte despacho:
«Indiciam fortemente os autos a prática, pelo arguido, de um crime de roubo, p. p. pelo art. 210º nºs 1 e 2 al. b), por referência à al. f) do nº 2 do art. 204º, ambos do Código Penal, ilícito a que cabe pena de prisão de 3 a 15 anos.
Na verdade, fortemente se indicia que o arguido, no passado dia 21 de Dezembro de 2003, cerca das 18 horas, em Paio Pires, se abeirou da ofendida e, como esta não lhe desse o que pretendia, apontou-lhe uma faca ao pescoço, faca essa com cerca de 30 cms de lâmina, logrando subtrair-lhe a mala, colocando-se, acto contínuo, em fuga.
Mais se indicia que o arguido, para o efeito, levava a cara tapada com um gorro, precisamente por forma a impedir o seu reconhecimento, o que não logrou conseguir, já que a ofendida conseguiu retirar-lho.
A indiciação de tais factos decorre não apenas do depoimento da ofendida e do depoimento da testemunha D., como também e sobretudo, do reconhecimento efectuado.
Com efeito, a ofendida não manifestou quaisquer dúvidas na identificação do arguido, quer quando apenas lhe foi mostrada uma fotografia, quer quando do reconhecimento presencial, nos termos do art. 147º do Código de Processo Penal.
O crime indiciado reveste-se de extrema gravidade, o que, aliás, se constata face à moldura penal abstracta com que é punido. Para além do mais, não estamos perante, tão só e apenas, de um mero "roubo por esticão", mas sim perante um modo de actuação de extrema violência, e perpetrado com algum cuidado: O arguido utilizou uma faca e agiu com a cara coberta.
Não obstante o arguido negar os factos, referir que vai começar a trabalhar e não ter antecedentes criminais, a verdade é que tem um modo de vida precário (está desempregado), e fuma haxixe e consome pastilhas, a fazer fé nas suas declarações.
Tal modo de vida precário aumenta, no nosso ver, o perigo de continuação da actividade criminosa. Para além do mais, o crime indiciado, praticado com recurso a meios de indiscutível violência, é apto a gerar sentimentos de repulsa por banda da comunidade, o que evidencia perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
Pelo exposto, e por tal se nos afigurar adequado às exigências cautelares que o caso requer e, bem assim, proporcional à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente virão a ser aplicadas, determina-se que o arguido aguarde os ulteriores trâmites processuais sujeito às obrigações decorrentes do TIR, já prestado, e, bem assim, em prisão preventiva, ao abrigo do preceituado nos artigos 191º a 193º, 196º, 202º nº 1 al. a) e 204º al. c), todos do Código de Processo Penal».

2 – Em 12 de Fevereiro de 2004, o arguido interpôs recurso desse despacho.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
1. «Por aplicação conjugada dos artigos 191º nº 1 e 193º do Código de Processo Penal, e artigo 27º da Constituição da República Portuguesa, a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coacção e de garantia patrimonial previstas na lei e, em concreto, devem ser adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas, sendo a prisão preventiva, enquanto medida de coacção subsidiária, só pode ser aplicada quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas.
2. No caso em apreço não estão verificados os pressupostos legais que possam justificar fundamentadamente a sujeição do arguido à medida de coação de prisão preventiva, uma vez que se podem alcançar os mesmos objectivos com a sujeição do arguido a outra medida de coacção.
3. A presunção de inocência do arguido mantém-se até trânsito em julgado da sentença condenatória.
4. Não se mostra a prisão preventiva necessária, em estabelecimento prisional, mas sim causadora de um estigma social e com consequências evidentes ao nível da desinserção familiar do arguido.
5. A decisão recorrida violou os artigos 191º, 193º, 204º e 212º, todos do Código de Processo Penal.
6. Nestes termos e nos demais de direito impõe-se a substituição da medida de coacção de prisão preventiva em estabelecimento prisional, a que o arguido se encontra sujeito, pela medida de coacção de apresentações periódicas na autoridade policial da área da sua residência. Mas,
7. Mesmo que assim não se entenda, o que só por mera hipótese académica se admite, e por se entender continuar a privilegiar uma medida de coacção restritiva da liberdade do arguido, deve, então, este ser sujeito à obrigação de permanência na habitação (artigo 201º nº 1 do Código de Processo Penal) com utilização de meios técnicos de controlo à distância - Lei 122/99 de 20.08.
8. Porque desta forma ficarão acautelados os requisitos previstos no artigo 204º do Código de Processo Penal e por outro lado, não ficará o arguido, que é primário, obrigado a permanecer em estabelecimento prisional, com todas as consequências sempre mais maléficas do benéficas».

3 – Esse recurso foi admitido por despacho de fls. 17 de Fevereiro de 2004.
4 – O Ministério Público respondeu à motivação apresentada (fls. 10 a 19).

5 – Neste tribunal, o sr. procurador-geral-adjunto, quando o processo lhe foi apresentado, emitiu o parecer de fls. 56 e 57.

6 – Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não foi junto qualquer outro articulado.

II – FUNDAMENTAÇÃO
7 – Embora sem claro reflexo ao nível das conclusões extraídas da motivação, mas nelas implícita, o arguido começou nessa peça processual por impugnar o despacho que lhe impôs a prisão preventiva por, em seu entender, não existirem nos autos fortes indícios de ter cometido o crime de roubo que lhe era imputado, o que constitui um requisito imprescindível da aplicação dessa medida de coacção.
Há, por isso, que analisar os indícios recolhidos nos autos até ao momento em que foi proferido o despacho recorrido, únicos que, para este recurso, relevam.
Como se pode ver de fls. 21 deste apenso, no dia 22 de Dezembro de 2003,  S. apresentou na Guarda Nacional Republicana uma queixa dizendo que entre as 18 horas e as 18 horas e 30 minutos da véspera, junto à porta do prédio da sua residência, quando se preparava para nele entrar, foi abordada por um indivíduo que lhe pediu um cigarro ou dinheiro, ao que ela respondeu dizendo que não tinha quer uma, quer outra das coisas pedidas. Acto contínuo, o indivíduo encostou-lhe uma faca com cerca de 30 centímetros ao pescoço enquanto lhe tentava roubar a mala, o que veio efectivamente a conseguir. A mala veio posteriormente a ser encontrada junto a um caixote do lixo, não tendo sido, no entanto, indicado o valor das coisas subtraídas. Acrescentou que o indivíduo «actuou de cabeça tapada, usava um gorro de cor castanha, gorro esse que ainda lhe foi retirado da cabeça pela lesada».
Descreveu o agente do crime como sendo um indivíduo «de etnia branca, com cerca de 1,71 de altura, cabelo fino, castanho e rabo de cavalo, usa pêra, rosto magro e vestia uma camisola castanha de flanela, tipo pescador, e usava calças de ganga», calçando botas pretas. Disse ainda que ele se pôs em fuga numa bicicleta BMX, de cor acinzentada, em direcção ao Clube Desportivo do Casal do Marco.
No dia 6 de Janeiro seguinte, quando foi inquirida no inquérito, disse que tinha ouvido a bicicleta chegar junto de si e que, depois da referida troca de palavras e de lhe ter sido apontada a faca ao pescoço, jogou «a sua mão esquerda ao rosto do indivíduo, conseguindo tirar-lhe o gorro que o mesmo trazia de modo a cobrir a face, provocando-lhe diversos arranhões». «Nesse mesmo instante o indivíduo tenta novamente agredir a ofendida, com a faca, no seu peito do lado esquerdo, não tendo conseguido já que a mesma tinha um casaco de pele bastante grosso». «Perante o grito da ofendida e tentando ainda esfaquear esta, o indivíduo consegue levar a mala desta ...».
Descreveu o agressor como sendo um indivíduo «de raça branca, 1,71 metros de altura, entre 21/25 anos, cabelo fino, castanho, com rabo de cavalo até meio das costas, usava pêra, rosto magro e amarelo, com aspecto de toxicodependente ...». «Na altura usava um gorro de cor castanha apenas com dois buracos para os olhos, que a ofendida entregou no Posto da Guarda Nacional Republicana de Paio Pires. A bicicleta era uma BMX metalizada de cor clara». Disse ainda que «a faca com que foi ameaçada tinha uma lâmina, tipo serrilha, com pelo menos 30 centímetros».
O marido da queixosa, que não tinha previamente sido indicado como testemunha, disse, por sua vez, que nesse dia se encontrava na sua residência (um 1º andar), «junto à marquise, quando, de repente, ouviu um grito e quando olhou pela janela viu que era a ofendida S., sua esposa, que estava a ser assaltada por um indivíduo. Para tal este utilizava uma faca, bastante grande, com uma lâmina de 30 centímetros, tipo faca de mato. De imediato o ora testemunha desceu em direcção à rua para acudir à ofendida só que assim que chega junto desta o assaltante abandona o local ...». Se bem que os factos se tenham passado entre as 18 horas e as 18 horas e 30 minutos de um dia de Dezembro, portanto, de noite, descreveu o agressor de uma forma semelhante à feita pela sua esposa, referindo-se também ao gorro.
Com base nestes elementos a queixosa efectuou, no dia 15 de Janeiro, um reconhecimento fotográfico visualizando um álbum com 970 fotografias, tendo indicado então a fotografia com o nº 960, que corresponde à do arguido, como sendo a do responsável pelos factos que tinha descrito. Disse não ter dúvidas de que foi essa pessoa que no dia 21 de Dezembro praticou o crime denunciado.
Vieram a ser efectuadas vigilâncias ao suspeito e recolhidas informações junto de um vizinho tendo-se apurado que ele vivia com os pais e um irmão mais novo e que, de acordo com essa pessoa, ele não dispunha de meios laborais de subsistência. Que se saiba, não foi feita qualquer diligência para recolher cabelos existentes no gorro que se diz ter sido entregue no Posto Policial nem, subsequentemente, se procedeu a qualquer perícia para identificação do ADN da pessoa a quem esses cabelos pertenciam. Também não parece ter havido recolha das impressões digitais eventualmente existentes na mala subtraída à queixosa e posteriormente recuperada.
No dia 27 de Janeiro de 2004, a queixosa efectuou o reconhecimento pessoal documentado a fls. 37, 38, 41 e 42 durante o qual indicou, «sem qualquer margem de dúvida», o arguido como sendo o agente do crime denunciado.
Nesse mesmo dia o marido da queixosa, numa outra diligência, reconheceu a mesma pessoa, se bem que «com algumas dúvidas».
O arguido, detido e, nesse estado, submetido a 1º interrogatório judicial, disse não ter sido ele a praticar «os factos constantes do auto de denúncia, não vislumbrando porque motivo foi reconhecido pela ofendida. Aliás, nunca furtou o que quer que fosse a ninguém. Está desempregado há um mês e pretende recomeçar a trabalhar na próxima semana, na área da construção civil. Vive com os pais e um irmão. Às vezes fuma haxixe e toma pastilhas».
Apesar de solicitada qualquer outra peça processual de onde se pudessem extrair indícios da responsabilidade do arguido, nada mais nos foi remetido, nem mesmo sequer um mero auto de exame do gorro que se diz ter sido apreendido, se bem que essa apreensão não conste de qualquer auto, nomeadamente do de denúncia, ou a cópia do bilhete de identidade do arguido, de onde constasse a sua altura aproximada.
São, portanto, apenas estes os elementos a analisar.

 8 – Diga-se antes de mais, que as declarações da queixosa foram, ao longo do tempo, sofrendo algumas variações como sejam aquelas que se referem à tentativa de agressão com a faca, às características do gorro, ao facto de ter gritado e a alguns aspectos da descrição do arguido, sendo, pelo menos aparentemente, exageradas no que respeita à dimensão da faca.
Embora se admita que parte dessas divergências tenham mais a ver com a forma como foram recolhidas as declarações do que com elas próprias, não se pode deixar de assinalar que, no que diz respeito ao gorro e às suas características, existe um aspecto que não se encontra esclarecido e que não se pode ignorar.
Na realidade, a queixosa começou por dizer que a pessoa que a veio a assaltar se aproximou dela numa bicicleta e que se lhe dirigiu pedindo um cigarro ou dinheiro e que essa pessoa tinha a cabeça tapada por um gorro que ela lhe veio, posteriormente, a tirar.
Tal descrição é perfeitamente coerente e corresponde a uma actuação comum neste tipo de situações.
Porém, numa segunda fase das declarações, veio a dizer que o gorro cobria a face (e não apenas a cabeça) e que apenas tinha dois buracos para os olhos, o que já não parece conforme com o comportamento de uma pessoa que, num primeiro momento, se lhe dirige pedindo um cigarro ou dinheiro.

9 – Seja como for quanto a esse aspecto, a questão mais relevante que este caso coloca é o do valor indiciário do reconhecimento pessoal efectuado.
A existência de um reconhecimento positivo é um dos meios de prova que, quer entre nós, quer em muitos países estrangeiros, mais influencia os tribunais no sentido de afirmar a culpabilidade da pessoa assim identificada, sobretudo quando a pessoa que efectuou o reconhecimento afirma a sua convicção sem margem para dúvidas[1].
Essa credibilidade tem sido, porém, contrariada pelos numerosos estudos empíricos que têm sido realizados, sobretudo nestes últimos 30 anos, e mesmo por relatórios elaborados por responsáveis de diversos países[2], podendo dizer-se que este é um dos meios de prova mais problemáticos e de resultados menos fiáveis[3]. E isso mesmo que se tenham cumprido rigorosamente as formalidades estabelecidas na nossa ou noutras legislações e que mais não visam do que diminuir a margem de erro desse meio de prova.
É que, como os trabalhos empíricos têm revelado[4], a testemunha ocular tende a fazer um julgamento relativo[5], mesmo quando avisada de que o suspeito pode não se encontrar entre as pessoas que compõem o painel, procurando localizar a pessoa que mais semelhanças apresente com o agente do crime[6]. Para além disso, a identificação que faz pode facilmente ser influenciada por inúmeros factores, entre os quais o comportamento, consciente ou inconsciente, da pessoa que orienta a diligência. O próprio grau de confiança que a testemunha ocular tem na precisão da identificação efectuada dependente mais do comportamento, muitas vezes corroborante, do investigador que dirigiu as operações e da confirmação do seu veredicto por outras testemunhas do que da nitidez das suas próprias recordações do cenário do crime. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, confiança e precisão não são vectores necessariamente relacionados. Mais importante do que conhecer o grau de confiança manifestado pela testemunha é averiguar as condições em que ela observou o agente do crime e o tempo de que ela dispôs para o fazer.
Por isso mesmo, muitos psicólogos aconselham que, para se incrementar a fiabilidade deste meio de prova[7], sobretudo quando ele for o único ou o decisivo elemento da identificação de um suspeito, se adoptem especiais cautelas, como sejam:
- O alargamento do número de pessoas que integram o painel de reconhecimento;
- A exigência de que a pessoa que conduz o reconhecimento pessoal não tenha conhecimento da identidade do suspeito;
- A exigência de que a testemunha ocular seja previamente informada de que o suspeito pode não se encontrar entre as pessoas que compõem o painel de reconhecimento;
- A exigência de que todas as pessoas que compõem o painel reúnam as características indicadas previamente pela testemunha, não devendo nenhuma delas apresentar, quanto a esses aspectos, nenhuma característica dissonante;
- A prévia apresentação à testemunha de um outro painel de reconhecimento em que o suspeito se não encontra para verificar se a mesma tem a propensão para efectuar um julgamento relativo.
Ora, tendo por base esse contributo da ciência, não se pode deixar de manifestar dúvidas quanto à fiabilidade do reconhecimento efectuado nos autos pela queixosa, dúvidas essas que crescem exponencialmente quando se considera quer o reconhecimento, quer as declarações prestadas pelo seu marido. De facto, este, não só pelas circunstâncias fugazes em que terá observado a cara do agente do crime, mas também pela forma como depôs, mais pareceu reproduzir atenuadamente o que lhe foi narrado por outrem do que relatar aquilo a que pessoalmente assistiu.
Mas, mesmo no que se refere ao reconhecimento efectuado pela queixosa, há que notar que a pessoa por ela identificada parece não reunir algumas das principais características que, antes desse momento, ela tinha indicado aos investigadores. Em primeiro lugar, o arguido tem 28 anos, aparentando até, como se vê pela fotografia junta, mais idade, e não os 21/25 por ela indicados. Embora não se tenha averiguado a sua altura, falta que só à acusação pode ser imputada, é bem mais alto que os outros dois elementos que integravam o painel de reconhecimento, parecendo até ter altura superior à indicada. Não aparece em nenhum dos momentos captados pelas fotografias com pêra nem com “rabo de cavalo” “até meio das costas”. Acresce que um dos elementos que integravam o painel parece não ser sequer da mesma etnia do arguido, o que, a ser verdade, poria mesmo em causa a validade do acto.
Por tudo isso, e sem com isto pôr minimamente em questão a inteira boa fé da queixosa, não se pode deixar de duvidar da exactidão do reconhecimento por ela efectuado tanto mais que sobre a pessoa por ela indicada não incide qualquer outro fundamento de suspeita.
Não é pelo facto de, na actual conjuntura, ele se encontrar desempregado e de, sendo jovem, consumir esporadicamente haxixe e pastilhas que se pode dar mais credibilidade à precisão do reconhecimento efectuado.
Note-se que o arguido nem sequer tem qualquer antecedente criminal.
Por isso se conclui que não existiam nos autos fortes indícios de que tivesse sido o arguido o autor da infracção que lhe foi imputada[8], o que obsta à manutenção da sua prisão preventiva.

10 – A aplicação de uma das medidas de coacção previstas nos artigos 197º a 199º do Código de Processo Penal, únicas que, de entre as previstas nesse diploma, não requerem a existência de fortes indícios da prática de um crime, pressuporia que se pudesse, em concreto, afirmar a existência de um dos perigos enunciados no artigo 204º desse código, coisa que, em face dos elementos que nos foram remetidos, se não pode, de modo nenhum, fazer.
Não se pode fundadamente temer que um indivíduo primário sobre o qual apenas existem os indicados indícios de ter cometido um crime continue essa actividade, nem que ele venha a praticar outros crimes de grande gravidade – alínea c) do artigo 204º do Código de Processo Penal.
Deve, assim, aguardar os ulteriores termos do processo em liberdade mediante o termo de identidade e residência já prestado – artigo 196º do Código de Processo Penal.

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação em:
a) conceder provimento ao recurso determinando a imediata libertação do arguido C., o qual deverá aguardar os ulteriores termos do processo sujeito a termo de identidade e residência;
b) ordenar a imediata passagem de mandado de libertação.
²

Lisboa, 12 de Maio de 2004


(Carlos Rodrigues de Almeida)
(Horácio Telo Lucas)
 (António Rodrigues Simão)

__________________________________________________________________
[1] Nesse sentido veja-se, WELLS, Gary, in «Eyewitness Identification Procedures: Recommendations for Lineups and Photospreads», in «Law and Human Behavior», vol. 22, nº 6, 1998.
[2] Sendo, talvez, o mais significativo deles o  elaborado sob o patrocínio da Administração Americana intitulado «Eyewitness Evidence – A guide for law enforcement», U. S. Department of Justice, October, 1999.
[3] Nesse sentido, veja-se o relatório da mesma entidade «Convicted by Juries, Exonerated by Science: Case studies in the use of DNA evidence to establish innocence after trial», U. S. Department of Justice, June 1996.
[4] Veja-se a bibliografia indicada no guia de 1999 e, em especial, WELLS, Gary, in «Eyewitness Identification Procedures: Recommendations for Lineups and Photospreads», in «Law and Human Behavior», vol. 22, nº 6, 1998, e SCHACTER, Daniel L., in «The Seven Sins of Memory», Houghton Mifflin Company, Boston/New York, 2001.
[5] Razão pela qual alguns psicólogos aconselham o reconhecimento sequencial e não o reconhecimento simultâneo, como o que foi adoptado pelo nosso legislador, o que permitiria a realização de um julgamento absoluto e não relativo.
[6] O que é comprovado pela experiência relatada por Gary Wells no citado trabalho na qual se comprova que uma percentagem muito grande das pessoas que conseguem identificar o suspeito num painel em que ele se encontrava indicam uma outra pessoa que integra um segundo painel quando o reconhecimento é efectuado sem a presença do suspeito.
[7] Vejam-se as recomendações feitas pelo Departamento de Estado no documento de 1999 (e depois no manual que se lhe seguiu intitulado «Eyewitness Evidence: A trainer’s manual for law enforcement», September 2003) e por Gary Wells no artigo citado e, de resto, em numerosos outros que nos últimos 20 anos publicou, muitos dos quais são acessíveis através da Internet.
[8] Cuja exacta qualificação jurídico-penal depende do valor da coisa “roubada”, que os autos não fornecem (artigo 210º, nº 2, alínea b), parte final, e artigo 204º, nº 4, do Código Penal).