Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
13100/19.4T8SNT-D.L1-1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CONJUGES
DIVÓRCIO
BENS COMUNS
DÍVIDAS COMUNS
MEAÇÃO
HIPOTECA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/30/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. No processo de insolvência de um dos cônjuges (ou ex-cônjuge, sem que tenha havido partilha do património comum), em cujo casamento vigora (ou vigorou) o regime da comunhão de adquiridos, devem ser apreendidos para a massa insolvente os bens comuns que integram a comunhão conjugal e que respondam pelas dívidas comuns (e não o direito à meação), sem prejuízo do cônjuge não insolvente exercer a faculdade de requerer a separação da sua meação nos bens comuns.
2 Atento o princípio da indivisibilidade da hipoteca e direito de pagamento preferencial do crédito hipotecário sobre os créditos comuns, deve ser reconhecido como garantido o crédito hipotecário que onera o bem comum apreendido para a massa insolvente, prossiga a liquidação sobre o bem comum (por não ser requerida a separação ou, tendo sido requerida, por na partilha o bem ter sido adjudicado ao insolvente) ou sobre o valor que resultou da composição da meação do insolvente (caso haja separação, subsequente partilha e adjudicação do bem ao cônjuge não insolvente).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
No Apenso B (Reclamação de Créditos) do processo de insolvência (apresentação) de C(…), em 13-02-2020, foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos.
Constando da mesma, na parte referente à verificação de créditos, o seguinte:
«Não tendo sido apresentadas impugnações à lista de credores do/a/s insolvente/s C(….) apresentada pelo/a Sr./ª Administrador/a da Insolvência, nos termos do previsto no art. 129º, nº 1, do CIRE, homologo tal lista, conforme disposto no nº 3 do art. 130º do mesmo diploma.
De salientar que tal homologação não se estende à natureza do crédito titulado pelo credor Promontoria Indian Designated Activity Company uma vez que este se encontra garantido pela Hipoteca Voluntária AP. 20 de 1997/04/10, transmitida pela AP. 1649 de 2019/06/18 e a qual incide sobre o bem imóvel e não sobre a meação comum da titularidade da aqui insolvente se encontra apreendida nos autos.
Deve tal crédito, assim, ser qualificado como comum o que se determina.»
Na parte referente à graduação lê-se o seguinte:
«A graduação dos créditos é feita considerando a regra geral de que todos os credores estão em situação de igualdade perante o património do devedor.
Existem causas de preferência no pagamento, legalmente consagradas e que podem incidir sobre alguns bens ou todos os bens do insolvente, as quais constituem excepções ao princípio da igualdade dos credores perante o património do devedor.
Tal não ocorre nos presentes autos, uma vez que apenas existem créditos comuns e subordinados (os juros dos créditos comuns que se venceram após a declaração de insolvência).»
E, finalmente, na parte decisória, consta o seguinte:
«Nos termos e com os fundamentos expendidos:
A) Julgo verificados os créditos constantes da lista de credores apresentada pelo Sr. Administrador da Insolvência;
B) Graduo os créditos verificados pela seguinte ordem:
1º Os Créditos comuns.
2º Créditos subordinados.
Sem tributação autónoma.
Registe e notifique.»
Inconformada, a credora Promontoria Indian Designated Activity Company interpôs recurso de apelação pugnando pela revogação da sentença e sua substituição por outra que determine a retificação do auto de apreensão de bens e, consequentemente, determine a graduação especial pelo produto da venda do imóvel apreendido, graduando-se em 1.º lugar o crédito garantido da recorrente e em 2º lugar os demais créditos comuns.
Apresentou as seguintes conclusões:
«I. A sentença de verificação e graduação de créditos homologa a lista de credores elaborada pela Sr.ª Administradora da Insolvência, contudo salienta que, tal homologação, não se estende à natureza do crédito titulado pela ora Recorrente.
II. O tribunal a quo considera que, assim sendo, o crédito reclamado deverá ser qualificado como comum.
III. Ora, na insolvência foi apreendida como verba n.º 1, o direito à meação e não sobre a totalidade do imóvel.
IV. Não obstante, de acordo com a lista de créditos reconhecidos pela Sr.ª Administradora da Insolvência, é reconhecido à ora Recorrente Promontoria Indian Designated Activity Company, um crédito garantido, por força das hipotecas registadas sobre o direito apreendido.
V. Veio a ora Recorrente requerer a rectificação do auto de apreensão, devendo ser apreendido para a massa insolvente a totalidade do imóvel sobre o qual o ora Credor detém hipoteca, e, por conseguinte, ser o ex-cônjuge da Insolvente citado para, querendo, vir requerer a separação de meações, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 141.º e artigos n.ºs 144.º e 146.º, todos do CIRE.
VI. Ora, é omissa a sentença proferida pelo Tribunal a quo quanto à questão suscitada.
VII. Tendo o Tribunal a quo deixado de se pronunciar sobre a pretensão que lhe foi colocada pela ora Recorrente, a rectificação do auto de apreensão e manutenção da natureza do seu crédito como garantido.
VIII. É importante referir que, com esta omissão, ficou claramente prejudicada a decisão de mérito que se visa com a prolação da sentença de verificação e graduação de créditos no âmbito do processo de insolvência.
IX. Não obstante não ter sido realizada a partilha do imóvel titularidade da insolvente e do seu ex-cônjuge, o Tribunal a quo deveria ter procedido à graduação de créditos pelo produto da venda do imóvel apreendido.
X. A graduação especial quanto ao produto da venda do bem apreendido deveria ter sido determinada do seguinte modo: Pelo produto da venda da fracção autónoma designada pela letra H, correspondente ao X andar do prédio urbano sito na Rua J …, n.º X, Casais de Mem Martins, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n.º xxxx, da freguesia de Rio de Mouro e inscrita na matriz predial sob o artigo xxxx, serão pagos os créditos reclamados pela seguinte ordem:
1.º crédito reclamado pelo Credor Promontoria Indian Designated Activity Company garantido pela hipoteca que incide sobre o imóvel;
2.º demais créditos comuns, rateadamente, se necessário.
XI. A questão que verdadeiramente deveria ter sido suscitada, tal como requerido pela ora Recorrente, respeita a, se decretada unicamente a insolvência de um dos ex-cônjuges que ainda não tenham procedido à partilha dos bens comuns do casal, podem, ou melhor devem, ser apreendidos (e vendidos) os bens próprios comuns do casal ou tão só o “direito da insolvente à meação no património comum”.
XII. O n.º 1 do artigo 46.º do CIRE – segundo o qual a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo –, terá de ser interpretado no sentido de que a esta massa pertencerão aqueles bens que, por determinação substantiva, possam ser chamados a responder pelas suas dívidas (artigo 601.º do CC), vide neste sentido, Paula Costa e Silva, “A Liquidação da massa insolvente”, ROA, Ano 65, Vol. III – Dezembro de 2005.
XIII. A massa insolvente deverá, assim, incluir os bens comuns, uma vez que estes responderão sempre pelos créditos reclamados: na sua totalidade tratando-se de dívidas comuns, ou até ao valor da sua meação, no caso de dívidas da responsabilidade pessoal do insolvente, como acontece nos presentes autos.
XIV. Ora, assim sendo, e salvo o devido respeito por opinião diversa que é muitíssimo, deveria ter sido ordenado à Sr.ª Administradora da Insolvência a rectificação do auto de apreensão, e, consequentemente, ter sido apreendido para a massa insolvente a totalidade do imóvel sobre o qual o ora Credor detém hipoteca, e, por conseguinte, ser o ex-cônjuge da Insolvente citado para, querendo, vir requerer a separação de meações, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b), do n.º 1, do artigo 141.º e artigos n.ºs 144.º e 146.º, todos do CIRE.»
Não constam dos autos resposta ao recurso.
Após admissão do recurso, os autos foram remetidos a esta Relação de Lisboa.
Foram colhidos os vistos.
II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do recurso
Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões apresentadas, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), as questões essenciais a decidir são:
- Se for decretada a insolvência de um dos cônjuges (ou ex-cônjuge, sem que tenha havido partilha de bens), em cujo casamento vigora (ou vigorou) o regime de comunhão de adquiridos, devem ser apreendidos para a massa insolvente os bens comuns que respondam pelas dívidas comuns ou, antes, o direito do insolvente à meação sobre os bens comuns?
-  Como deve ser graduado o crédito hipotecário que onera os bens comuns?
B- De Facto
Atento os atos praticados nos autos e documentos juntos aos mesmos, com interesse para o conhecimento do objeto do recurso, encontram-se provados os seguintes factos (artigos 663.º, n.º 2 e 607.º, n.º 3, do CPC):
1. Em 17-12-1994, a ora insolvente C(…) casou civilmente com M(…), tendo o casamento sido dissolvido por divórcio decretado por decisão de 04-02-2009, transitada em julgado em 19-02-2009 (assento de nascimento n.º 275-E-4 junto com a p.i. do processo de insolvência).
2. Por escritura pública de 24-04-1997 lavrada no 1.º Cartório Notarial de Sintra, foi celebrado o contrato de compra e venda, mútuo e hipoteca da fração autónoma designada pela letra «H», correspondente ao 1.º andar C, do prédio urbano sito na Avenida (…), freguesia de Rio de Mouro, concelho de Sintra, inscrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Sintra sob o n.º xxxx, e inscrito na matriz predial da referida freguesia, sob o artigo xxxx, tendo outorgado como compradores M(…) e mulher C(…), casados sob o regime de comunhão de adquiridos, tendo a fração sido adquirida com recurso a mútuo bancário concedido pela Caixa Geral de Depósitos, mediante constituição de hipoteca voluntária (escritura pública e documento complementar juntos com a p.i. do processo de insolvência).
3. A aquisição por compra encontra-se registada a favor de M(…) e mulher C(…) pela Ap. 19 de 1997-04-10 (certidão predial junta no Apenso A).
4. Sobre a fração referida em 2. encontra-se registada a favor da Caixa Geral de Depósitos uma hipoteca voluntária (Ap. 20 de 1997-04-10), para garantia de empréstimo (montante assegurado: 15.237.780,00 Escudos) - (certidão predial junta no Apenso A).
5. Sobre a mesma fração encontra-se registada uma penhora a favor da Caixa Geral de Depósitos, SA (Ap. 1979 de 12-11-2012, quantia exequenda: €56.424,73, processo executivo n.º 1965/05.1TCSNT – Juízo de Execução da Comarca da Grande Lisboa Noroeste- Sintra, sujeitos passivos: M(…) e C(..) - (certidão predial junta no Apenso A).
6. Encontra-se registada a transmissão de crédito da hipoteca voluntária referida em 4. a favor da Promontoria Indian Designated Activity Company (Ap. 1649 de 2019-06-18) - (certidão predial junta no Apenso A).
7. Na relação de credores apresentada na p.i. do processo de insolvência consta a Caixa Geral de Depósitos, SA como credora (crédito de €62.732,50) referente a crédito hipotecário vencido e garantido.
8. Por sentença proferida em 16-09-2019, já transitada em julgado, foi declarada a insolvência de C(…) e foi ordenada a imediata apreensão pelo Administrador da Insolvência (AI) de todos os bens da requerente, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma aprendidos ou detidos.
9. Em 29-10-2019, a Administradora da Insolvência juntou ao Apenso A (Apreensão de Bens) «Auto de Arrolamento e Balanço» onde consta a apreensão da fração referida em 2., indicando como valor da apreensão €5.645,26 e a Conta Aforro no IGCP, EPE, com o valor de €25,00.
10. No mesmo Apenso A, em 06-11-2019, a AI apresentou requerimento retificativo do «Auto de Arrolamento e Balanço» onde consta a alteração do valor da apreensão para €43.839,00 (valor patrimonial do bem conforme caderneta predial), mais expondo e requerendo o seguinte: «1. Atento o estado civil da insolvente, divorciada, a apreensão da verba n.º 1 do auto de apreensão de bens, deverá incidir sobre o direito à meação e não sobre a totalidade do bem imóvel.»
11. Em 13-11-2019, no Apenso B, a AI apresentou Lista de Créditos Reconhecidos e não Reconhecidos (artigo 129.º do CIRE) da qual consta, entre outros, o reconhecimento do crédito  garantido por hipoteca da Promontoria Indian Designated Activity (por cedência do crédito da Caixa Geral de Depósitos, SA – mútuo com hipoteca), no valor total de €76.005,778, e o reconhecimento como comum da parte excedente no valor de €57.078,54.
12. A Lista de Créditos Reconhecidos e não Reconhecidos não sofreu impugnações.
13. Em 06-01-2020, no Apenso A, a AI juntou aos autos certidão permanente do imóvel onde consta o registo provisório da declaração de insolvência (AP. 3150 de 2019/11/14) convertido em definitivo (pela AP. 2808 de 2019/12/02) e ainda a menção «INCIDE SOBRE O DIREITO À MEAÇÃO».
C- De Direito
Como supra enunciado as questões decidendas são duas: (i) Se for decretada a insolvência de um dos cônjuges (ou ex-cônjuge, sem que tenha havido partilha de bens), em cujo casamento vigora (ou vigorou) o regime de comunhão de adquiridos, devem ser apreendidos para a massa insolvente os bens comuns que respondam pelas dívidas comuns ou, antes, o direito do insolvente à meação sobre os bens comuns?; (ii) Como deve ser graduado o crédito hipotecário que onera os bens comuns?
No caso em apreço, estas questões traduzem-se em saber se deve ser apreendido para a massa insolvente o bem imóvel identificado no ponto 2. dos factos provados (fração autónoma) ou se, ao invés, como ocorreu nos autos, o direito à meação da insolvente e se o crédito hipotecário da ora apelante deve ser graduado como crédito garantido ou como crédito comum, estando a resposta a esta segunda vertente da questão dependente da resposta que venha a ser dada à primeira.
Vejamos, então.
A questão relativa à apreensão do direito à meação ou do bem imóvel em si mesmo, pressupõe que se afira da responsabilidade pelas dívidas comuns do casal após o divórcio, sem que os ex-cônjuges tenham efetuado a partilha dos bens comuns.
No caso, embora a ora insolvente na apresentação à insolvência tenha alegado de forma manifestamente equívoca quanto à natureza comum do imóvel e natureza comum da dívida (não mencionado que foi adquirido durante o casamento por ela e pelo seu ex-marido sem que tenha havido partilhas após o divórcio), os documentos juntos aos autos revelam que o imóvel foi adquirido durante o casamento da ora insolvente com o ex-marido, casados que foram no regime de comunhão de adquiridos, encontrando-se o mesmo imóvel onerado com uma hipoteca voluntária a favor da mutuante (Caixa Geral de Depósitos, SA), verificando-se posteriormente a cedência do crédito à agora apelante.
Decorre dos artigos 1717.º a 1734.º do Código Civil as regras sobre o regime da comunhão de adquiridos, verificando-se, em face dos seus artigos 1722.º, 1723.º e 1726.º, que neste regime existem essencialmente duas massas patrimoniais: a dos bens próprios e a dos bens comuns.
Sendo que os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei, fazem parte da comunhão, ou seja, são bens comuns (artigo 1724.º, alínea b), do Código Civil).
Por outro lado, e como prescreve o artigo 1695.º, n.º 1, do Código Civil, pelas dívidas que são da responsabilidade comum dos cônjuges respondem os bens comuns do casal, e, na falta ou insuficiência deles, solidariamente, os bens próprios de qualquer dos cônjuges.
Estas regras mantêm-se enquanto os ex-cônjuges não procederam à partilha dos bens, pois o a dissolução do casamento tem como consequência a cessação das relações patrimoniais  entre os cônjuges (artigos 1688.º do Código Civil), mas apenas a partilha[1] permite a cada um dos cônjuges receber os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a este  património (artigos 1689.º, n.º 1, e 1697.º,n.º 2, do Código Civil).
No caso, atento momento da aquisição da fração (durante o casamento) e o regime de bens do casal (comunhão de adquiridos), a dívida resultante do crédito bancário concedido na aquisição da fração tem a natureza de dívida comum (da responsabilidade de ambos os cônjuges) pela qual respondem os bens comuns (i.e., património comum) do casal (ou do ex-casal, enquanto não houver partilha).
A caraterização jurídica do património comum dos cônjuges casados sob o regime da comunhão constitui, segundo a doutrina mais seguida entre nós, um património de mão comum ou propriedade coletiva[2], o que significa que os cônjuges são titulares de um único direito sobre esse património, que não suporta divisão, nem mesmo ideal.
Como referem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira[3], o património comum constitui uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial afetação, a lei concede certo grau de autonomia - embora limitada e incompleta - mas que pertence aos dois cônjuges, em bloco, sendo ambos titulares de um único direito sobre ela.
Cada um dos cônjuges tem, por conseguinte, uma posição jurídica em face do património comum, ou seja, tem, segundo a expressão da lei, um direito à meação, que exprime a medida de divisão e que virá a realizar-se quando esta venha a ter lugar.
Trata-se de uma situação jurídica que, manifestamente, não cabe na compropriedade, dela se distinguindo de forma clara e inequívoca. Essa distinção assenta na circunstância de os direitos dos contitulares não incidirem sobre cada um dos elementos que constituem o património, mas sobre um todo unitário.
A natureza de propriedade coletiva da comunhão conjugal, assenta basicamente no facto de antes de dissolvido o casamento ou de se decretar a separação judicial de pessoas e bens entre os cônjuges, nenhum deles poder dispor da sua meação nem lhes ser permitido pedir a partilha dos bens que a compõem antes da dissolução do casamento.
Aos titulares do património coletivo não pertencem direitos específicos - designadamente uma quota - sobre cada um dos bens que integram o património global, não lhes sendo lícito dispor desses bens ou onerá-los, total ou parcialmente.
Na partilha dos bens destinada a pôr fim à comunhão, os respetivos titulares apenas têm direito a uma fração ideal do conjunto, não podendo exigir que essa fração seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada bem concreto objeto da partilha.
Consequentemente, o direito a metade do ativo e passivo desse património comum a que se reporta o artigo 1730.º,n.º 1, do Código Civil, não confere a cada cônjuge o direito a metade de cada bem concreto daquele património comum, mas, tão-só, o direito ao valor de metade desse património aquando da dissolução do casamento e da subsequente partilha de bens.
Concatenando o regime substantivo supra referido com o regime executivo em termos de execução singular resulta que o «direito à meação do bens comuns» não é um bem disponível e suscetível de ser penhorado ou apreendido em sede executiva, seja durante o casamento ou após a sua dissolução enquanto não ocorrer a partilha do património comum.
Refira-se a este propósito que no âmbito do CPC 1961, antes da revisão de 1995, na execução movida apenas contra um dos cônjuges, o artigo 825.º, nº 1, prescrevia que a execução dos bens comuns ficava suspensa, depois de penhorado o direito à meação do devedor, até ser exigível o cumprimento, nos termos da lei substantiva.
Assim, o direito à meação do devedor/executado pelas dívidas da responsabilidade exclusiva deste só era exigível depois de dissolvido, declarado nulo ou anulado o casamento, ou depois de decretada a separação judicial de pessoas e bens ou simples separação judicial de bens (cfr. artigo 1696.º, nº 1, do Código Civil na versão do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25-11), o que indiciava claramente que a lei previa, nessas situações, a penhora do direito à meação nos bens comuns.
Porém, a referida moratória forçada foi justamente abolida pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95 (que eliminou também o n.º 3 do artigo 1696.º do Código Civil), deixando de fazer-se referência à penhora da meação do devedor e passando a prever o referido artigo 825.º a penhora dos bens comuns do casal, com citação do cônjuge do executado para requerer a separação.
Este regime corresponde, no essencial, ao hoje consagrado no artigo 740.º do CPC 2013.
Acrescente-se, porém, que alguns autores[4] tendem a enquadrar a comunhão conjugal na contitularidade ou no regime dos bens indivisos o que lhes permite defender a penhora/apreensão do direito à meação nos bens comuns enquadrando-a juridicamente no regime da penhora de direitos (cfr. artigo 743.º do CPC).
Porém, afigura-se-nos que a comunhão conjugal, atentas as características supra referidas e a evolução legislativa também referida, não se coaduna com posições reais de contitularidade sobre bens concretos e determinados, ou seja, com a individualização de quota-parte ou quinhões diferenciados em relação a cada componente do património coletivo dos cônjuges, que nitidamente contrariam a configuração da posição dos cônjuges enquanto titulares de um único direito sobre o património comum, que não suporta divisão, nem mesmo ideal, sendo apenas suscetível de divisão aquando da dissolução do casamento e subsequente partilha, e, ainda, assim, conferindo a lei a cada cônjuge o direito ao valor de metade desse património (e não direito a metade de cada bem concreto do património comum).
Assim sendo, as dívidas da responsabilidade dos cônjuges ou ex-cônjuges que se mantenham na indivisão podem levar à penhora dos bens comuns, a título principal e na íntegra; enquanto as dívidas da exclusiva responsabilidade de um dos cônjuges também podem levar à penhora de bens comuns, ainda que, nesse caso, a responsabilidade seja apenas subsidiária.
Donde é de concluir que, em sede de execução singular, a penhora da meação dos bens comuns ou a penhora da meação em cada um dos bens comuns não tem fundamento legal, nem na lei processual civil, nem na lei substantiva.[5]
Cabe, agora, verificar os reflexos deste quadro legal em sede de insolvência.
De acordo com o artigo 149.º, n. º1, do CIRE, proferida a sentença declaratória da insolvência procede-se à imediata apreensão de todos os bens integrantes da massa insolvente, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos.
A massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo (artigo 46.º, n.º 1, do CIRE).
Estipula, por sua vez, o artigo 150.º do CIRE quanto à apreensão e entrega dos bens, mandando aplicar as disposições do CPC previstas para o processo executivo, nomeadamente o regime da penhora, o que sempre resultaria da regra geral remissiva do artigo 17.º do CIRE, desde que não contrariem as disposições deste último diploma.
Por outro lado, considerando a unidade do sistema jurídico, o artigo 46.º, n.º 1, do CIRE, não pode deixar de ser interpretado no sentido de que à massa insolvente pertencem aqueles bens que, por determinação substantiva possam ser chamados a responder pelas suas dívidas, tal como decorre do princípio geral previsto no artigo 601.º do Código Civil[6].
Sucede, porém, que fora do quadro da insolvência de ambos os cônjuges (artigos 264.º a 265.º do CIRE), o CIRE é omisso quanto ao regime de apreensão de bens quando o insolvente é pessoa singular casada, ou divorciada, mas cujo património se mantém por partilhar.
No capítulo II sob a epígrafe «Restituição e separação de bens», nos artigos 141.º a 145.º do CIRE, o legislador limitou-se a determinar a aplicabilidade das disposições relativas à reclamação e verificação de créditos quanto à reclamação e verificação do direito que o cônjuge (não insolvente) tem de separar da massa insolvente os bens próprios e a sua meação nos bens comuns, seja por sua iniciativa seja por impulso oficioso do juiz (artigo 141.º, n.º 1, alínea b), e n.º 3, do CIRE). Regulando ainda nos artigos 146.º e seguintes o direito à separação ou restituição de bens após o decurso do prazo das reclamações.
No âmbito da regulação da liquidação, o artigo 159.º do CIRE prescreve que, em caso de estar verificado o direito de restituição ou separação de bens indivisos ou apurada a existência de bens de que o insolvente seja contitular, só se liquida no processo de insolvência o direito que o insolvente tenha sobre esses bens, obedecendo o pagamento aos trâmites do artigo 172.º, n.º 4, do mesmo Código.
O regime que emerge dos referidos preceitos do CIRE carece de ser interpretado à luz das regras substantivas acima referidas quanto ao regime de bens do casamento, responsabilidade por dívidas comuns e bens que integrando o património comum do casal por elas respondem.
Assim, tal como na execução singular, e perante a omissão de regulação específica sobre a matéria em sede de processo de insolvência, também neste processo (de natureza executiva coletiva e universal) perante a insolvência de um dos cônjuges (ou, estando divorciado, sem que tenha havido partilha de bens comuns do casal) se o regime de casamento for (foi) o de comunhão de adquiridos, a apreensão de bens comuns impõe-se como tal (não o direito à meação), seja porque as dívidas são da responsabilidade apenas do insolvente, seja porque as dívidas são da responsabilidade de ambos os cônjuges, prosseguindo a liquidação quanto a tais bens, sem prejuízo do cônjuge ser chamado à causa para exercer o direito de separação da sua meação nos bens comuns e/ou o direito à restituição dos seus bens próprios.
Significa isto que, não obstante a necessidade de partilhados bens comuns a fim de, por via da mesma, se concretizarem os bens certos e determinados que vão compor a meação do cônjuge meeiro insolvente[7], nada na lei impossibilita a imediata apreensão, para a massa, de bens certos e determinados compreendidos na comunhão, o que sai evidenciado claramente do artigo 141.º,n.º 1, alínea b), do CIRE, quando se reporta à separação da meação nos bens comuns, pois só faz sentido essa referência se tiver sido apreendido o bem em si mesmo e não o direito à meação do insolvente.
Este afigura-se-nos ser o sentido (útil) da previsão do artigo 141.º, n.º 1, alínea b), do CIRE, ou seja, visa situações em que a apreensão dos bens excede o direito do cônjuge insolvente[8], impedindo, assim, a imediata liquidação/venda dos bens comuns sem que o outro cônjuge tenha intervenção no processo (cfr. artigo 160.º do CIRE).
Também como se colhe do Parecer do Instituto dos Registos e Notariado homologado em 24-06-2014, na ótica do registo predial da aquisição do bem por via da liquidação da massa insolvente de um só dos cônjuges sobre bens pertencentes à comunhão conjugal, a apreensão do bem (e não do direito à meação) afigura-se ser a mais consentânea para efeitos de «registo definitivo da declaração de insolvência de um só dos cônjuges em relação aos bens que,  de acordo com  a titularidade em vigor, quer de acordo com os próprios títulos, fazem parte da comunhão conjugal não partilhada», desde que demonstrado o cumprimento do artigo 141.º,n.º 1,alínea b), do CIRE em relação ao outro contitular inscrito não insolvente para efeitos de efetivação da separação de bens comuns, bem como para «aferição do cumprimento do trato sucessivo (art. 34.0/4 CRP) no (pedido de) registo de aquisição operada em liquidação da massa insolvente [que] tem sempre por referência o registo de titularidade do direito transmitido (na insolvência) que preexiste ao registo da declaração de insolvência».[9]
Não se desconhece que alguma doutrina e jurisprudência entende que o direito à meação dos bens comuns é suscetível de apreensão em sede de processo de insolvência, vista, então, como apreensão de direitos, aplicando-se-lhe o correspondente regime legal.
Porém, como referido, não se vislumbra na lei processual ou substantiva fundamento legal para tal entendimento, para além desse entendimento desembocar em situações injustas e injustificadas em relação a credores com garantia real que incida sobre determinados bens que integram o património comum do casal e que garantem o pagamento de dívidas comuns.
Tal como sucede no caso destes autos, onde a apreensão do direito à meação determinou a graduação do crédito da credora hipotecária, ora apelante, como comum e não como garantido por incidir sobre o direito à meação e não sobre o imóvel hipotecado, sem que se veja que possa ser atacado o fundamento jurídico correspondente. Na verdade, como decorre do artigo 686.º, n.º 1, do Código Civil, a hipoteca incide sobre imóveis e não sobre direitos.
Ademais, e ainda que a hipoteca se transmita em caso de alienação do bem a terceiro (direito de sequela), o credor hipotecário sempre ficaria numa posição prejudicial na insolvência não só porque ficava impossibilitado de invocar neste processo a garantia resultante da hipoteca (sujeitando-se a pagamento rateado com os demais credores comuns e, consequentemente, correndo o risco de não pagamento integral do crédito), mas também por consabidamente ser mais difícil (e menos valorizada[10]) a alienação de um direito do que um concreto bem imóvel.
Por outro lado, in casu, não se encontrando apreendido para a massa insolvente o bem imóvel não pode o mesmo ser vendido ao abrigo do processo insolvência, pois neste são vendidos todos os bens apreendidos para a massa insolvente (mas apenas esses - cfr. artigos 158.º, n.º 1, do CIRE), nem no processo executivo à ordem do qual se encontra penhorado (cfr. facto provado sob o n.º 5), pois em face do disposto no artigo 88.º do CIRE, após a declaração de insolvência ficam suspensas quaisquer diligências executivas que atinjam os bens integrantes (ou que deveriam integrar) a massa insolvente.
No caso dos autos, a manter-se a apreensão do direito à meação em vez da apreensão do bem imóvel em si mesmo, cria-se uma situação insustentável sob o ponto de vista jurídico, que impunha uma intervenção atempada do tribunal a quo, logo que chegou aos autos o requerimento da AI a informar que retificou o auto de arrolamento para dele constar que foi apreendendo o direito à meação em vez do bem imóvel (cfr. facto provado sob o n.º 10), sobre o qual não descortinamos qualquer pronúncia do tribunal (apesar de solicitada) ou, pelo menos, na fase de prolação da sentença de graduação e verificação de créditos, uma vez que, mesmo não existindo impugnação da lista de credores reconhecidos e não reconhecidos apresentada pela AI, compete ao tribunal aferir da conformidade substancial e formal dos títulos de crédito constantes dessa lista em face dos documentos e dos demais elementos juntos aos autos, incluindo montante, natureza e qualificação dos créditos, a fim de evitar violação da lei substantiva,[11] ordenando, no caso e como se impunha, a apreensão do imóvel à ordem da insolvência.
Em face do exposto, impõe-se, a apreensão do imóvel referido nos factos provados sob o ponto 2., à ordem do processo de insolvência, ordenando-se o cumprimento do disposto no artigo 141.º, n.º 1, alínea b), do CIRE, em relação ao ex-cônjuge da insolvente, seguindo o processado subsequente consoante o citado venha, ou não, a requerer a separação do bem comum da massa insolvente.
De qualquer modo, clarifica-se que o crédito reconhecido à ora apelante e coberto pela hipoteca voluntária sempre deve ser graduado como crédito garantido, nos termos do artigo 47.º, n.º 4, alínea a), do CIRE, porquanto, prossiga a liquidação sobre o bem comum (por não ser requerida a separação ou, tendo sido requerida, por na partilha o bem ter sido adjudicado à insolvente) ou sobre o valor que resultou da composição da meação da insolvente (caso haja separação, subsequente partilha e adjudicação do bem ao cônjuge não insolvente), atento princípio da indivisibilidade da hipoteca e o direito de pagamento preferencial do credor hipotecário (artigos 696.º e 686.º, n.º 1, do Código Civil), os direitos de garantia do credor hipotecário transferem-se para os bens que tenham cabido ao cônjuge insolvente e que compõem a sua meação (v.g., valor das tornas), como decorre do artigo 740.º, n.º 1 e 2, do CPC (cfr.  artigos 141.º, n.º 1, alínea b), e 149.º, n.º 2, do CIRE).
Em face do exposto, tem razão o apelante procedendo o recurso, o que determina a revogação da sentença recorrida, impondo-se que a 1.ª instância ordene a apreensão para a insolvência do imóvel referido no ponto 2 dos factos provados e que dê seguimento à tramitação subsequente nos temos acima referidos, proferindo, no momento processual adequado, sentença de verificação e graduação de créditos que leve em conta a garantia real (hipoteca voluntária) que incide sobre o imóvel constituída a favor da ora apelante, nos termos supra referidos.
Dado o decaimento, as custas do recurso ficam a cargo da massa insolvente (artigo 303.º e 304.º do CIRE), sendo a taxa de justiça fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.
III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a sentença recorrida, determinando que seja apreendido para a massa insolvente o imóvel referido no ponto 2. dos factos provados, com subsequente tramitação processual nos termos acima referidos, devendo o tribunal recorrido, no momento processual adequado, proferir sentença de verificação e graduação de créditos que leve em conta a garantia real (hipoteca voluntária) que incide sobre o imóvel constituída a favor da ora apelante, também nos termos supra referidos.
Custas nos termos sobreditos.

Lisboa, 30-06-2020
Maria Adelaide Domingos
Fátima Reis Silva
Vera Antunes
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[1] A partilha, numa aceção ampla, é composta por três operações: (i) separação de bens próprios; (ii) liquidação do património comum destinada a apurar o valor do ativo comum líquido através das compensações e liquidações e da contabilização das dívidas a terceiros e entre cônjuges e (iii) partilha propriamente dita – cfr. PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Vol. I, Coimbra Editora, 4.ª ed., p.  428-429.
[2] PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Vol. IV, Coimbra Editora, 2.ª ed., 1992, p. 347.
[3] Ob. cit., p.506-508.
[4] Veja-se, por exemplo, RUI PINTO, A Ação Executiva, AAFDL Editora, 2020, reimp., p. 612.
[5] Neste sentido, MARIA JOÃO AREIAS, Insolvência de Pessoa Casada num dos Regimes de Comunhão – Sua Articulação com o Regime da Responsabilidade por Dívidas dos Cônjuges, in Revista de Direito da Insolvência, n.º 1, Almedina, 2017, p.106-122, maxime p. 109-110, bem como Ac. RC, de 09-05-2017, proc. 965716.0T8LRA-D.C1, em www.dgsi,pt, relatado pela referida autora.
[6] PAULA COSTA E SILVA, A Liquidação da Massa Insolvente, ROA, Ano 65, Vol. III, Dez 2005.
[7] Cfr. artigo 81.º da Lei n.º 23/2013, de 05-03 (Regime Jurídico do Processo de Inventário) e artigo 1135.º, n.º 1, da Lei n.º 117/2019, de 13-09 (Regime do Inventário Notarial).
[8] Nesse sentido, LEBRE DE FREITAS, Apreensão, Separação, Restituição e Venda, in I Congresso de Direito da Insolvência, p. 229 e ss.
[9] Proferido no Proc: C.P.20/2014 STJ-CC,
consultável em https://www.irn.mj.pt/sections/irn/doutrina/pareceres/predial/2014/34-cc-2014-c-p-20-2014/downloadFile/file/34_C_P_20-2014_STJ-CC.pdf?nocache=1406709561.4
[10] Como se refere na nota 20 do Ac. RC, de 09-05-2017, supra citado: «Raramente aparece[m] interessados na compra de um tal direito para além do cônjuge do insolvente e não tendo este, a maior parte das vezes, capacidade económica para o adquirir pelo justo valor, o direito à meação do insolvente acaba por ser vendido por qualquer preço, com prejuízo para a generalidade dos credores.»
[11] Neste sentido, veja-se Ac. STJ, de 25-11-2008, proc. 08A3102 (Silva Salazar), em www.dgsi.pt