Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9934/13.1T2SNT-A.L1-7
Relator: JOSÉ CAPACETE
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
DIREITO DE SUPERFÍCIE
PENHORA
PESSOA COLECTIVA PÚBLICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1–O direito de um terceiro é incompatível com a penhora se for suscetível de impedir a realização da venda executiva a cujo fim a penhora se destina ou se não se extinguir com aquela venda.

2–Os bens do domínio privado de uma pessoa coletiva pública, como é o caso do Município embargante de terceiro, são, por contraposição aos bens do domínio público, aqueles que estão sujeitos a um regime de direito privado e integrados no correspondente comércio jurídico.

3–O art. 5º, nº 1, do Dec. Lei nº 794/76, de 05.11 (denominada Lei dos Solos), diploma revogado pelo art. 83º, al. b), da Lei nº 31/2014, de 30.05 (atual Lei dos Solos), previa uma situação de superfície administrativa constituída por uma pessoa coletiva pública sobre um terreno do seu domínio privado.

4–Aquele preceito da Lei de 76 tinha subjacente a filosofia de que o Estado e as pessoas coletivas públicas nunca deveriam alienar os solos de que eram civilmente titulares mas tão-somente proporcionar o seu aproveitamento a particulares, quando não pudessem, ou não quisessem, elas próprias providenciar nesse sentido.

5–Na cedência do direito de superfície por uma pessoa coletiva pública a um terceiro particular, sobre um terreno do seu domínio privado, e de modo a evitar-se especulação na alienação do direito, o nº 2 do art. 20º do Dec. Lei nº 794/76, permitia a convenção de proibição da alienação do direito durante certo prazo e a sujeição da mesma a autorização da administração.

6–Considera-se intuitu personae, o contrato pelo qual, num tal quadro legal, um Município cede a um terceiro particular, gratuitamente e pelo prazo de 99 anos, o direito de superfície sobre um prédio do seu domínio privado,destinado exclusivamente à construção de um parque de jogos para a prática do hóquei, e do qual consta uma cláusula de reversão daquele para o Município cedente, no caso de o superficiário particular lhe dar outro destino que não a construção do parque de jogos.

7–Tal ideia sai reforçada pela circunstância de as partes não serem intermutáveis, desde logo porque uma delas, a superficiária, não pode mudar facilmente, posto que só mediante prévia autorização do Município cedente lhe é permitido transmitir o direito de superfície que este constituiu a seu favor.

8–Por conseguinte, esse direito de superfície não pode, sem o consentimento do Município cedente, ser transmitido, cedido, alienado, a terceiros pelo superficiário particular.

9–Trata-se, por isso, de um direito inalienável sem consentimento do dono do solo, o Município de ....

10–Logo, essa inalienabilidade do direito de superfície pelo superficiário afasta a possibilidade da sua penhora em execução contra este movida.

11–A alienação de tal direito de superfície na ação executiva, sem o consentimento do Município cedente, significaria uma evidente violação, quer do contrato de constituição daquele direito, quer do disposto no nº 2 do art. 20º do Dec. Lei nº 794/76, de 05.11 (vigente à data da sua celebração) representando, por isso, uma flagrante e injustificável violação do direito do dono do solo.


(Elaborado pelo relator e da sua inteira responsabilidade-art. 663º, nº 7, do CPC)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa.


1–RELATÓRIO:


O Município de ... veio, por apenso à ação executiva que Pedro Bruno ... ... ... move contra Hockey Clube de ..., deduzir contra estes os presentes embargos de terceiro, pedindo que seja «excluído dos bens nomeados à penhora o direito de superfície do prédio» descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 3416/20040318.
Alega para o efeito que é dono e legítimo proprietário daquele prédio, encontrando-se registado a favor do executado Hockey Clube de ... e por 99 anos, o direito de superfície, sob condição de reversão a favor do Município, com todas as benfeitorias nele introduzidas, caso lhe seja dado destino diferente de parque de jogos.
Afirma a impenhorabilidade do direito de superfície cuja penhora foi concretizada na execução de que estes autos constituem apenso, por o mesmo direito ser inalienável, na medida em que para a sua alienação é necessário o consentimento do embargante, sendo a dedução dos presentes embargos a sua negação.
Mais afirma que o direito de superfície em questão se constituiu intuitu personae, tendo em consideração as especiais natureza e atividade do Hockey Clube de ..., destinando-se o parque de jogos construído no prédio em causa especificamente à modalidade desportiva de hockey, sendo as atividades que ali são desenvolvidas, consideradas de relevante interesse público.
Finalmente, e sob a epígrafe de «fundado receio, lesão grave e irreparável», afirma ainda o Município embargante que com a alienação do direito de superfície a favor de terceiro, a qualidade de vida da juventude que o clube agrega será prejudicada, afetando irremediavelmente a continuação dos treinos e a realização dos jogos calendarizados.
***

Admitidos que foram liminarmente os presentes embargos de terceiro, apenas o exequente Pedro ... os veio contestar, alegando, em suma, que os mesmos não têm fundamento válido, visando apenas atrasar ou impedir a concretização do seu direito indemnizatório contra o executado Hockey Clube de ..., o qual lhe foi reconhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça, pois a arrematação em hasta pública do direito penhorado em nada prejudica o interesse público, uma vez que existem muitos outros clubes de hóquei, quer no concelho, quer nos limítrofes, quer no país, e interessados no local e nas instalações penhoradas.
Mais afirma que o direito se superfície é penhorável, tal como as instalações que nele foram implantadas para parque de jogos pelo executado superficiário; que inexiste ofensa à posse do Município embargante, pois o executado e superficiário é que tem a posse do terreno, sendo também o dono das construções que nele implantou, tornando-se desnecessário que o embargante autorize a venda judicial do direito de superfície penhorado, o qual não foi constituído intuitu personae.
Finalmente, afirma ainda que tendo o embargante o direito de preferência na venda mediante o pagamento do valor em causa, ficam afastados os pressupostos da gravidade e irreparabilidade dos danos provocados com tal venda.
Conclui pedindo que os presentes os presentes embargos de terceiro sejam julgados improcedentes, por não provados, mantendo-se a penhora já registada sobre o direito de superfície do supra identificado prédio e construções nele implantadas, prosseguindo a execução seus termos, designadamente com a venda judicial.
***

Teve lugar a audiência prévia, após o que foi proferido o saneador-sentença de fls. 85-99, com a Refª 102216021, que julgou improcedentes os presentes embargos de terceiro e absolveu os embargados do pedido.
***

Inconformado com o assim decidido, o embargante interpôs recurso de apelação, concluindo as respetivas alegações do seguinte modo:
1.–(…) o Tribunal a quo não fez uma correta apreciação da factualidade em causa, bem como não fez uma correta interpretação e aplicação da lei;
2.–O título constitutivo do direito de superfície objeto de penhora trata-se de uma escritura pública intitulada «Escritura de cedência do direito de superfície de um terreno destinado a parque de jogos, celebrada com Hockey Clube de ...», outorgada em 30/08/1982;
3.–O Município de ... concedeu o direito de superfície sobre o terreno sito em Monte Santos, descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 3416/20040318, ao Hockey Clube de ... por causa das características que o mesmo apresenta, porquanto é o único clube desportivo da zona do concelho de ... capaz de desenvolver a atividade desportiva para o qual o parque de jogos foi concebido;
4.–A escritura de cedência do direito de superfície foi, assim, celebrada em razão da pessoa do contraente Hockey Clube de ..., que influiu decisivamente para tal celebração:
5.–Tanto assim o é que na epígrafe do documento é feita a expressa menção de que a escritura é celebrada com o Hockey Clube de ..., e não com qualquer outro clube desportivo, manifestando desde logo o carater intuitu personae do contrato;
6.–Pelo que, o facto de a própria escritura de cedência do direito de superfície prever a possibilidade de o Hockey Clube de ... transmitir o direito com a prévia autorização da Câmara Municipal, não afigura ser crucial para afastar o caracter intuitu personae atribuído àquela cedência;
7.–Pelo contrário, tal exigência visa salvaguardar o Município de ... na medida em que a cedência do direito de superfície a qualquer outra pessoa que não o Hockey Clube de ... – que foi quem o Município de ... escolheu para a celebração do contrato por força das características que apresenta - terá sempre que passar pela sua aceitação;
8.–Obstando, desta forma, que o direito de superfície vá parar a mãos alheias, incapazes de dar continuidade ao parque de jogos já construído e implementado, o que poderá vir a suceder no caso sub judice com a venda do direito penhorado;
9.–Não assiste, assim, qualquer razão ao Tribunal a quo quando alega que o direito de superfície objeto de penhora não foi constituído intuitu personae e que a venda desse mesmo direito não carece da autorização do ora Recorrente;
10.–Consequente, também não assiste qualquer razão ao Tribunal a quo ao entender que o direito de superfície em questão é penhorável, porquanto
11.–No caso sub judice, por força da constituição intuitu personae do direito de superfície em causa, o mesmo apenas poderá ser exercido pelo Hockey Clube de ..., tornando o direito objeto de penhora inalienável e, consequentemente, impenhorável nos termos do disposto na alínea a) do art.º 736º do CPC.
12.–Ademais, não é sustentável afirmar a penhorabilidade do direito de superfície em causa quando a transmissão desse mesmo direito está condicionada à anuência do Município de ... – que é alheio à respetiva ação executiva – o qual desde logo se opôs à referida transmissão através da dedução dos embargos de terceiro.
13.–Pelo que esta negação do Município de ... só vem reforçar a natureza inalienável do direito de superfície em causa e, consequentemente, a sua impenhorabilidade.
14.–Mesmo que assim não se entenda, e se perfilhe do entendimento do Tribunal a quo, segundo o qual o direito de propriedade do Município de ... estará sempre salvaguardado pelo exercício do direito de preferência na compra de que beneficia, tal terá igualmente implicações na esfera jurídica do Município de ....
15.–Pois, o exercício do direito de preferência para a aquisição do direito de superfície por parte do Município de ... implicará um custo; o mesmo é dizer que terá que pagar um valor por algo (direito de superfície) que já é seu, o que não deixa de ser um contrassenso.
16.–Termos em que deveria o Tribunal a quo ter julgado procedentes os embargos de terceiros deduzidos pelo Município de ... e, consequentemente, determinado o levantamento da penhora do direito de superfície sobre o imóvel da propriedade do ora Recorrente.
***

O exequente/embargado Pedro ... contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso e pela manutenção da sentença proferida.
***

O executado/embargado Hockey Clube de ... não apresentou contra-alegações.
***

2–ÂMBITO DO RECURSO:
Nos termos dos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, é pelas conclusões da recorrente que se define o objeto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Assim, perante as conclusões da alegação da apelante, a questão que importa resolver no presente recurso consiste em saber se o direito de superfície cedido pelo Município de ... ao Hockey Clube de ...,, através de escritura pública realizada no dia 30 de agosto de 1982, cuja cópia consta de fls. 19-21, sobre o prédio urbano sito em Monte Santos, freguesia de Santa Maria e São Miguel, concelho de ..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 3416, com a área de 12.913 m2, é inalienável e, consequentemente, insuscetível de penhora.
***

3–FUNDAMENTAÇÃO:

3.1–Fundamentação de Facto:

Da sentença recorrida resultam provados os seguintes factos:
1.– O imóvel descrito sob o nº 3416 na 2ª Conservatória do Registo Predial de ... sito em Monte Santos, freguesia de Santa Maria e São Miguel (descrito em livro sob o nº 17646 livro nº 55), com a área total de 12.913m2 tem registadas as seguintes inscrições:
- Ap. 11 de 1982/08/24 - aquisição a favor do Município de ..., por doação de Joaquim Ferreira Paulino e Maria Isabel dos Santos Paulino (inscrição G-1);
- Ap 6 de 1982/11/30 – constituição do direito de superfície a favor do Hockey Clube de ... com as seguintes obrigações “reverterá para a Câmara Municipal de ..., o direito sobre o prédio, com todas as benfeitorias nele introduzidas, caso seja dado destino diferente de parque de jogos – na transmissão do direito adquirido a Câmara Municipal de ... terá preferência” (inscrição F-1);
- Ap. 2 de 2013/08/05 - penhora do direito de superfície na ação executiva de que estes autos constituem apenso, em que é exequente Pedro Bruno ... ... ... e executada Hockey Clube de ..., para pagamento da quantia exequenda de € 211.832,29;.
2.– O título subjacente à inscrição F-1 supra referida foi a escritura pública intitulada de “cedência do direito de superfície de um terreno destinado a parque de jogos celebrada com Hockey Clube de ..., conforme teor da respetiva cópia a fls. 39 a 41 e que aqui se dá por reproduzida, na qual consta designadamente que “aos trinta dias do mês de Agosto do ano de mil novecentos e oitenta e dois, nesta Vila de ..., Edifício dos Pacos do Concelho e Gabinete da Presidência da Câmara, perante mim António J... R... S..., chefe da Secretaria da Câmara Municipal do concelho de ... e, nessa qualidade, exercendo funções Notariais, no uso da competência que me confere o art. 3º do Código do Notariado, compareceram como Outorgantes: Primeiro – José H... F... L... (…) o qual outorga nesta escritura na qualidade de Presidente desta Câmara Municipal e em representação do Município com poderes para o acto. Segundos: Carlos M... F... R... D... B... (…) José M... C... C... (….), José A... S... S... (…) e Sebastião J... C... e M... (…), os quais outorgam, respetivamente, na qualidade de Presidente da Direcção, Vice-Presidente da Direcção, Presidente da Assembleia Geral e Membro do Conselho Consultivo e Juridicional do Hockey Clube de ... (…). Assim presentes pelo Primeiro Outorgante foi dito que a Câmara Municipal de ... é dona e legítima proprietária de uma parcela de terreno sita em Monte Santos, freguesia de ... (Santa Maria e São Miguel), com a área de doze mil novecentos e treze metros quadrados (…) descrito na Conservatória do Registo Predial de ... – Segunda Secção, sob o número dezassete mil seiscentos e quarenta e seis, a folhas setenta verso, do Livro B-cinquenta e cinco, registado na mesma Conservatória, a favor desta Câmara Municipal de ... sob o número quarenta e oito mil setecentos e cinco, a folhas, cento e cinquenta e seis-verso, do Livro G-cento e seus e descrito na matriz cadastral rústica da freguesia de ... (Santa Maria e São Miguel) como parte do artigo vinte e cinco secção E. Que em cumprimento de deliberação desta Câmara Municipal tomada em sua reunião ordinária realizada em vinte e oito de Julho último, constitui a favor do Hockey Clube de ... o direito de superfície do prédio acima mencionado, nas seguintes condições: UM: O direito de superfície sobre o terreno já mencionado, ao qual se atribui o valor de dez escudos por metro quadrado, no total de cento e vinte e nove mil cento e trinta escudos, para efeitos fiscais, é cedido gratuitamente ao Hockey Clube de ..., representando pelos Segundos Outorgantes, pelo prazo de NOVENTA E NOVE ANOS, prorrogáveis. DOIS: O objecto da concessão deste direito de superfície é a construção de um PARQUE DE JOGOS. TRÊS: Reverterá para esta Câmara Municipal, o direito alienado sobre o terreno em causa, com todas as benfeitorias nele introduzidas, no caso de lhe ser dado destino diferente do que mencionado, sem que o Hockey Clube de ..., tenha direito a qualquer indemnização. QUATRO: A superficiária não poderá transmitir o direito de superfície sem a prévia autorização desta Câmara Municipal, a qual em caso de alienação terá a preferência. Pelos Segundos Outorgantes foi dito que aceitam para o Hockey Clube de ..., que neste acto representam, a presente escritura, nos termos nele exarados e a cujo cumprimento se obrigam.
***

3.2–Fundamentação de direito:
Dispõe o art. 342º, nº 1, do CPC, que «se a penhora, ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro».
A redação do preceito é idêntica à do art. 351º, nº 1, do CPC/1961, decorrente da revisão operada em 1995-96.
Lebre de Freitas / Isabel Alexandre esclarecem que com esta revisão «deixou a ação declarativa de embargos de terceiro de ser tratada entre os processos especiais (…) para ser regulada como se fosse um incidente da instância.
Esta deslocação sistemática fez-se acompanhar de profundas alterações no que respeita à legitimidade para embargar:
a)- por um lado, os embargos deixaram de se poder basear exclusivamente na posse para se fundarem também na titularidade do direito de fundo, em conformidade com o que vinha sendo reivindicado (…);
b)- por outro lado, estabeleceu-se que só a posse ou o direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência judicial ordenada é que legitima os embargos;
c)- por fim, deixou de ser concedida ao condenado ou obrigado a possibilidade de embargar, seja em que caso for, ao mesmo tempo que se lhe reservou, quando executado, o novo meio de oposição à penhora, hoje no art. 784»[1].
Segundo os referidos Autores, «a determinação do direito incompatível faz-se considerando a função e a finalidade concreta da diligência que o ofende.
Assim, são incompatíveis com a penhora (…) o direito de propriedade e os demais direitos reais menores de gozo que, considerada a extensão da penhora, viriam a extinguir-se com a venda executiva (art. 824-2 CC), bem como, quando a penhora incida sobre um direito, a titularidade deste de que um terceiro se arrogue; mas não o são os direitos reais de gozo que a subsequente venda não extingue, os direitos reais de aquisição e de garantia que, como normalmente acontece, encontrem satisfação no esquema da ação executiva, nem os direitos pessoais de gozo e de gozo e de aquisição, que são inoponíveis ao exequente ou, no caso especial do arrendamento, perduram para além da venda executiva (…)»[2].
Lebre de Freitas esclarece que «para bem compreender o âmbito da previsão do preceito, há que partir do conceito de direito incompatível. Sabido que a penhora se destina a possibilitar a ulterior venda executiva, é com ela incompatível todo o direito de terceiro, ainda que derivado do executado, cuja existência, tido em conta o âmbito com que é feita, impediria a realização desta função, isto é, a transmissão forçada do objecto apreendido».
Marco Carvalho Gonçalves afirma que «(…) os embargos de terceiro podem ser igualmente deduzidos por qualquer terceiro que seja titular de um direito incompatível com a penhora, isto é, que obste à venda do bem e subsequente satisfação do crédito exequendo pelo produto resultante dessa venda»[3].
Segundo o mesmo Autor «partindo do fim a que a penhora se destina – qual seja a venda executiva do bem penhorado para que, através do produto da venda, seja satisfeito o crédito exequendo –, um direito de um terceiro será incompatível com a penhora se esse direito for suscetível de impedir a realização dessa venda ou se não se extinguir com a venda executiva»[4].
Salvador da Costa refere que «o conceito de direito incompatível apura-se por via da ponderação da finalidade da diligência judicial em causa, por exemplo a penhora com vista à venda da coisa penhorada na ação executiva para pagamento de quantia certa (…)»[5].
Miguel Teixeira de Sousa salienta que «quanto aos outros direitos de terceiros sobre os bens penhorados, a incompatibilidade com a penhora é, aparentemente, fácil de definir: são direitos incompatíveis aqueles que impedem que os bens penhorados possam ser incluídos naqueles que, por pertencerem ao património devem responder pela dívida exequenda. O problema reside em determinar os casos que justificam essa exclusão da responsabilidade dos bens penhorados. Para os delimitar propõe-se o seguinte critério: são incompatíveis com a realização ou o âmbito da penhora os direitos de terceiros sobre os bens penhorados que não se devam extinguir com a sua venda executiva»[6].

No caso concreto, temos o seguinte:
O Município de ... é proprietário do prédio urbano sito em Monte Santos, freguesia de Santa Maria e São Miguel, concelho de ..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 3416, com a área de 12.913 m2.
Por escritura pública realizada no dia 30 de agosto de 1982, cuja cópia consta de fls. 19-21,o Município de ... cedeu ao Hockey Clube de ... o direito de superfície sobre o prédio acima identificado:
Resulta daquela escritura que:
a)- o direito de superfície, ao qual foi atribuído o valor de 10$00/m2 para efeitos fiscais, foi cedido gratuitamente pelo Município de ... ao Hockey Clube de ..., pelo prazo de 99 anos, prorrogáveis;
b)- o objeto da concessão daquele direito de superfície foi a construção de um parque de jogos;
c)- aquele direito de superfície reverte para o Município de ..., com todas as benfeitorias introduzidas no terreno sobre o qual foi constituído, sem direito que isso confira ao Hockey Clube de ... o direito a qualquer indemnização, no caso de lhe ser destino diferente do referido em b);
d)- o Hockey Clube de ..., na qualidade de superficiário, não poderá transmitir aquele direito de superfície sem a prévia autorização do Município de ...;
e)- em caso de alienação daquele direito de superfície, consentida pelo Município de ..., este tem preferência na sua aquisição.
O Hockey Clube de ... aceitou aa cedência daquele direito de superfície nas referidas condições.
Nos termos art. 1527º do CC (Direito de superfície constituído pelo Estado ou por pessoas coletivas públicas), «o direito de superfície constituído pelo Estado ou por pessoas coletivas públicas em terrenos do seu domínio privado fica sujeito a legislação especial e, subsidiariamente, às disposições deste código».
É questão isenta de dúvidas que o direito de superfície em causa nestes autos foi constituído pela pessoa coletiva pública que é o Município de ..., a favor do Hockey Clube de ..., em terreno do seu domínio privado.
Os bens do domínio privado de uma pessoa coletiva pública, como é o caso do Município embargante, são, por contraposição aos bens do domínio público, aqueles que estão sujeitos a um regime de direito privado e integrados no correspondente comércio jurídico[7].
Como se viu, o prédio urbano sito em Monte Santos, freguesia de Santa Maria e São Miguel, concelho de ..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 3416, com a área de 12.913 m2, veio à propriedade do Município de ... por doação de Joaquim F... P... e M... I... S... P..., tendo, o embargante, sobre ele constituído a favor do Hockey Clube de ..., o direito de superfície a que nos vimos reportando.
Tudo se passa, pois, no âmbito do domínio privado do Município embargante.
A constituição de direitos de superfície pelo Estado e por pessoas coletivas públicas sobre imóveis está hoje prevista e regulada na Lei nº 31/2104, de 30.05, na versão que lhe foi dada pela Lei nº 74/2017, de 16.08.
No entanto, à data da constituição do direito de superfície a que se reportam os presentes autos, vigorava o Dec. Lei nº 794/76, de 05.11 (Denominada “Lei dos Solos”), diploma expressamente revogado pelo art. 83º, al. b), da Lei nº 31/2014, de 30.05, mas aplicável ao caso sub judice nos termos do art. 12º, nº 1, do CC.
Dispõe o art. 5º, nº 1, do Dec. Lei nº 794/76, de 05.11, que «os terrenos já pertencentes à Administração ou por ela adquiridos para os fins previstos no artigo 2.º[8] ou para operações de renovação urbana não podem ser alienados, salvo a pessoas colectivas de direito público e empresas públicas, devendo apenas ser cedido o direito à utilização, mediante a constituição do direito de superfície, dos terrenos destinados a empreendimentos cuja realização não venha a ser efetuada pela Administração».
Estamos, pois, segundo a lição de Menezes Cordeiro, perante uma superfície administrativa constituída por uma pessoa coletiva pública sobre um terreno do seu domínio privado e que, nos termos do citado art. 1527º do CC, se rege pelas disposições do Dec. Lei nº 794/76, de 05.11.
De acordo com este Autor, o transcrito art. 5º, nº 1, do Dec. Lei nº 794/76, de 05.11, tinha subjacente a filosofia de que o Estado e as pessoas coletivas públicas nunca deveriam alienar os solos de que eram civilmente titulares mas tão-somente proporcionar o seu aproveitamento a particulares, quando não pudessem, ou não quisessem, elas próprias providenciar nesse sentido, salientando que «a figura da superfície aqui prevista é “administrativa”, aplicando-se-lhe as regras especiais previstas pela própria Lei dos Solos e, subsidiariamente, o Código Civil»[9].

Dispunha o art. 20º do Dec. Lei nº 794/76, de 05.11:
1.– Na constituição do direito de superfície serão sempre fixados prazos para o início e a conclusão das construções a erigir e serão adoptadas as providências que se mostrem adequadas para evitar especulação na alienação do direito.
2.– Para os fins do disposto na última parte do número anterior poderá convencionar-se, designadamente, a proibição da alienação do direito durante certo prazo e a sujeição da mesma a autorização da Administração.
3.– A Administração gozará sempre do direito de preferência em primeiro grau, na alienação do direito por ato inter vivos e na adjudicação em liquidação e partilha de sociedade, sendo esse direito de preferência exercido de harmonia com as normas regulamentares estabelecidas para o efeito.
4.– São anuláveis os atos praticados sem que haja sido facultado o exercício do direito de preferência.

Perante tudo isto, ou seja, considerando:
- o quadro legal no âmbito do qual foi celebrado o contrato que constituiu o direito de superfície a que nos reportamos;
- o concreto objetivo com que foi constituído o direito de superfície, qual seja, a construção de um parque de jogos;
- o facto de o direito de superfície ter sido cedido gratuitamente e pelo prazo de 99 anos, prorrogáveis;
- a cláusula de reversão do direito de superfície para o Município de ..., no caso de o Hockey Clube de ... lhe dar outro destino que não a construção do parque de jogos,
a ideia com que se fica é que o contrato de constituição do direito de superfície foi celebrado em razão da «pessoa» do superficiário, ou seja, que este teve influência decisiva naquela celebração.
Assim, contrariamente ao entendimento sufragado, quer pelo exequente/embargado Pedro ..., quer pelo tribunal a quo na sentença recorrida, afigura-se-nos que estamos em presença de um contrato concluído intuitu personae.
Tal ideia sai reforçada, naturalmente, pela circunstância de as partes não serem intermutáveis, desde logo porque uma delas, a superficiária, não pode mudar facilmente, posto que só mediante prévia autorização do Município cedente lhe é permitido transmitir o direito de superfície que este constituiu a seu favor.
Trata-se, como se viu, de uma convenção inserta no contrato, determinada pelo Município embargante e aceite pelo superficiário Hockey Clube de ..., ao abrigo do citado nº 2 do art. 20º do Dec. Lei nº 794/76, de 05.11.
Assim, nos termos permitidos por esta disposição legal, as partes estipularam, no contrato de constituição do direito de superfície, a proibição do superficiário Hockey Clube de ..., transmitir, alienar, aquele direito sem a prévia autorização do proprietário do solo, o Município de ... aqui embargante.
Por conseguinte, o direito de superfície aqui em causa não pode, sem consentimento do Município de ..., ser transmitido, cedido, alienado, pelo embargado/executado Hockey Clube de ... a terceiros.
Trata-se, pois, de um direito inalienável sem consentimento do dono do solo, o Município de ....
Logo, essa inalienabilidade do direito de superfície pelo superficiário Hockey Clube de ... afasta a possibilidade de tal direito ser penhorado.
Nos termos do art. 736º, al. a), do CPC/2013, «são absolutamente impenhoráveis, além dos bens isentos de penhora por disposição especial (…) as coisas ou direitos inalienáveis»[10].

A propósito da al. a) do art. 736º do CPC/2013, escrevem Virgínio da Costa Ribeiro / Sérgio Rebelo, A Ação Executiva Anotada e Comentada, 2ª Ed., 2017, pp. 266-267: «No âmbito da alínea a), deverá entender-se por coisas ou direitos inalienáveis tudo quanto não seja passível de ser transmitido, que não possa ou não deva ser vendido, citando-se um exemplo, com atualidade, relativo ao direito dos lojistas integrados em grandes superfícies comerciais em que o promotor, no contrato inicial outorgado com o utilizador, impediu a transmissão sem o seu consentimento, de modo a reservar, para si o direito de dizer quais os produtos que deverão ser vendidos e os locais onde cada um deles deverá ser comercializado. Estamos em crer que a questão da impenhorabilidade do aludido direito resulta precisamente da impossibilidade de ultrapassagem do referido obstáculo, uma vez que o direito de utilização da loja não existe fora do contrato estabelecido entre as partes e também não é possível impor ao organizador do centro comercial que aceite um estranho com o qual não contratou. Por essa razão, não será sustentável afirmar a penhorabilidade de um direito que não poderá ser vendido no processo executivo, dado a sua transmissão estar condicionada à anuência da entidade organizadora do centro comercial e esta ser alheia à respetiva ação executiva».

Ressalvados os devidos termos comparativos, afigura-se-nos que o princípio que está subjacente ao exemplo acabado de citar, se aplica na perfeição à situação sub judice.

Como é sabido, a penhora destina-se à apreensão de bens ou direitos do executado para, com o produto da sua venda no âmbito do respetivo processo executivo, poder ser pago o crédito exequendo, acabando, obviamente, esse bem ou direito por ser sempre transmitido, alienado um terceiro.

A penhora representa, assim, a primeira das providências executivas da ação executiva para pagamento de quantia certa, «desempenhando uma função instrumental relativamente aos ulteriores atos de transmissão» do direito do executado[11].

«Não esgotando em si mesma a sua finalidade, através dela é delimitado o objecto dos actos executivos subsequentes e, pelo facto da apreensão, assegurada a sua viabilidade. Desta função instrumental do acto da penhora decorrem os seus efeitos jurídicos», nomeadamente a transferência para o tribunal dos poderes de gozo que integram o direito do executado[12].

Efetuada a penhora, a satisfação forçada do credor de obrigação pecuniária é conseguida pela realização do valor do bem ou direito apreendido, através de um ato de alienação, de uma venda efetuada no processo executivo para terceiro ou para o próprio credor e, conforme os casos, a subsequente atribuição a este do produto da venda ou a compensação do seu crédito com a dívida do preço da aquisição própria[13].

Ora, in casu, tendo presente todo o antecedente excurso, entendemos que estamos perante uma verdadeira situação de inalienabilidade do direito de superfície de que é titular o embargado Hockey Clube de ..., constituído pela escritura pública realizada no dia 30 de agosto de 1982, tendo por objeto o prédio urbano sito em Monte Santos, freguesia de Santa Maria e São Miguel, concelho de ..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 3416, com a área de 12.913 m2, e que lhe foi cedido pelo dono do solo desse prédio, o Município de ....

A alienação de tal direito de superfície, no âmbito do processo executivo de que os presentes embargos de terceiro são apenso, sem o consentimento do aqui embargante Município de ..., significaria uma evidente violação, quer do contrato de constituição daquele direito, quer do disposto no nº 2 do art. 20º do Dec. Lei nº 794/76, de 05.11 (vigente à data da celebração do contrato, entretanto revogado, mas aplicável á concreta situação aqui em apreço, pelas razões acima referidas), representando, consequentemente, uma flagrante e injustificável violação do direito do dono do solo.

4–DECISÃO:
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar procedente o recurso e, em consequência, dando provimento à apelação, revogam a decisão recorrida e, em sua substituição, julgam os presentes embargos de terceiros procedentes, determinando, em consequência:
a)- o levantamento da penhora incidente sobre o direito de superfície de que é titular o embargado Hockey Clube de ..., constituído pela escritura pública realizada no dia 30 de agosto de 1982, tendo por objeto o prédio urbano sito em Monte Santos, freguesia de Santa Maria e São Miguel, concelho de ..., descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 3416, com a área de 12.913 m2;
b)- o cancelamento do registo de tal penhora e a que se reporta a inscrição Ap. 2 de 2013/08/05.
Custas pelo apelado (art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC).



Lisboa, 24 de outubro de 2017



(José Capacete)
(Carlos Oliveira)
(Maria Amélia Ribeiro)

           

[1]Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 3ª Ed., Coimbra Editora, 2014, p. 661.
[2]Idem, p. 663.
[3]Lições de Processo Civil Executivo, Almedina, 2016, p. 325.
[4]Idem, p. 328.
[5]Os Incidentes da Instância, 9ª Ed., Almedina, 2017, p. 161.
[6]Acção Executiva, Lex, 1998, p. 303.
[7]Nos termos do art. 1304º do CC, «o domínio das coisas pertencentes ao Estado ou a quaisquer outras pessoas coletivas públicas está igualmente sujeito às disposições deste código em tudo o que não for especialmente regulado e não contrarie a natureza própria daquele domínio».
[8]Dispunha o art. 2º, do referido diploma de 1976:
1.–Sempre que for julgado necessário pela Administração, podem por esta ser apropriados solos destinados a:
a)-Criação dos aglomerados urbanos;
b)-Expansão ou desenvolvimento de aglomerados urbanos com mais de 25000 habitantes;
c)-Criação e ampliação de parques industriais;
d)-Criação e ampliação de espaços Verdes urbanos de proteção e recreio;
e)-Recuperação de áreas degradadas, quer resultantes do depósito de desperdícios, quer da exploração de inertes.
2.–Pode ser mandado aplicar, por decreto, o regime do n.º 1 à expansão ou desenvolvimento de outros aglomerados urbanos, quando assim for deliberado pelos órgãos locais competentes ou quando o Governo o considere conveniente, nomeadamente para a execução de empreendimentos integrados em planos de âmbito nacional ou regional.
[9]Direitos Reais, II Vol., Parte II, Ed. da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1979, pp. 1024-1025.
[10]Este preceito corresponde na íntegra ao art. Trata-se de A propósito da al. a) do art. 822º, al. a), do CPC/1995-96.
[11]Cfr. Lebre de Freitas, Estudos Sobre Direito Civil e Processo Civil, Coimbra Editora, 2002, p. 577.
[12]Idem, ibidem.
[13]Idem, ibidem.