Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
406/16.3T8SCR.L1-7
Relator: CARLOS OLIVEIRA
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
EXPROPRIAÇÃO IRREGULAR
RESPONSABILIDADE CIVIL
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - A presente ação iniciou-se como processo de expropriação. No entanto, por despacho transitado em julgado, passou a seguir termos como ação de condenação em processo declarativo comum, por se ter julgado haver erro na forma de processo, dado não existirem nos autos os elementos típicos de um processo expropriativo.
-  Considerando que os Autores apenas formularam um pedido de indemnização por responsabilidade civil contra pessoa coletiva de direito público, conformado como emergente duma situação de “expropriação de facto”, “apropriação irregular” ou “expropriação indireta”, sem que tenha sido formulado qualquer pedido de reivindicação, a ação assim configurada só pode ser da competência dos Tribunais Administrativos, por preencher a previsão do Art. 4.º n.º 1 al. f) do E.T.A.F..
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO:
A [  José ……….] e  B [ Maria ….] intentaram originalmente uma ação de expropriação litigiosa contra a Região Autónoma da Madeira, peticionando a condenação desta a pagar-lhes a quantia de €915.103,72, correspondente à justa indemnização por uma expropriação alegadamente realizada em 1984.
Para tanto, alegam que seu pai, José ……, era proprietário de duas parcelas de terreno, designadas por lotes de terreno 79 e 80, as quais foram compreendidas numa declaração de utilidade pública datada de 30 de Junho de 1983, em procedimento expropriativo promovido pelo Governo Regional que decidiu efetuar expropriação de vários terrenos sitos na freguesia de Caniçal, concelho de Machico, com vista à instalação da Zona Franca da Madeira, onde tais lotes de terreno se inseriam. No entanto, a R., até ao dia de hoje, nenhuma compensação lhes pagou, pretendendo agora os A.A. ser ressarcidos pela perda do seu direito de propriedade ocasionada pela expropriação e pelos prejuízos causados pela interrupção da atividade que era prosseguida em fábrica que aí laborava.
Citada a R. veio deduzir oposição, excecionando a ilegitimidade ativa dos A.A., referindo que A é casado em comunhão geral de bens com C, não tendo a ação sido instaurada em litisconsórcio por ambos os cônjuges. Invocou, ainda, a inexistência de qualquer processo de expropriação litigiosa e, bem assim, que os A.A. não comprovam a alegada propriedade dos lotes. Também excecionou a caducidade e prescrição do direito dos A.A. e a total ausência de utilização das parcelas em questão, invocando a sua pertença ao Estado, por força da ausência de dono conhecido. Terminou concluindo pela improcedência da ação.
Os A.A. vieram responder, pugnando pela improcedência das exceções alegadas, tendo C [ Maria B………] vindo a intervir espontaneamente nos autos, associando-se aos demais A.A. e ratificando todo o processado ocorrido até esse momento.
Findos os articulados, veio a ser designada audiência das partes e, na sequência do aí discutido, por despacho de fls 258 a 264, proferido a 6 de Abril de 2017, foi decidido existir erro na forma do processo, na medida em que se concluiu pela inexistência de “auto de posse administrativa” e de “relatório inicial de arbitragem”, mas também se constatou que os A.A. haviam estruturado a ação como uma ação declarativa de processo comum, deduzindo pedido condenatório em valor certo. Assim, entendeu-se aí que os A.A. pretendiam discutir uma situação de “expropriação de facto”, em que existiria uma “apropriação irregular” ou “expropriação indireta”, pretendendo ser indemnizados por isso. Nessa medida, decidiu-se reconhecer a existência de um erro na forma do processo, que não implicava a anulação de qualquer ato, e ordenou-se a correção da autuação do processo, que assim passou a seguir termos como ação de condenação em processo declarativo comum.
Em face do assim decidido, veio posteriormente a ser conhecida a incompetência em razão do valor do Juízo Local de Santa Cruz e os autos foram remetidos ao Juízo Central Cível do Funchal, onde veio a ser proferido despacho que convidou os A.A. ao aperfeiçoamento da petição inicial. O que estes vieram a satisfazer, com resposta da R. ao novo articulado.
Findos esses articulados, foi então elaborado o despacho saneador, que julgou as exceções dilatória de ilegitimidade por improcedentes e, bem assim, a exceção perentória de caducidade do direito de ação, relegando para final o conhecimento da exceção de prescrição.
De seguida, foi fixado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova, permitindo-se às partes alterar os requerimentos probatórios.
Por requerimento de 27 de Outubro de 2017, junto de fls 317 a 352, os A.A. vieram apresentar ampliação do pedido para €2.163.167,04, alegando ter estado privados da utilização das parcelas de terreno aqui em discussão desde 1983 até meados do ano de 2017, pretendendo o aditamento de factos referentes à utilização efetuada pela R. das parcelas e a alteração que a mesma aportou às parcelas, ao mesmo tempo que impedia os A.A. de as usar, requerendo que esses novos factos se refletissem correspondentemente nos temas de prova.
Após oposição da R., veio a ser proferido o despacho de fls 365 a 368 que não admitiu a ampliação do pedido.
Os A.A. interpuseram recurso dessa decisão, mas a mesma veio a ser confirmada por Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 10/05/2018, já transitado em julgado.
Admitida a prova requerida e feitas as diligências instrutórias prévias, que passaram pela produção de prova pericial, procedeu-se à realização de audiência de discussão e julgamento.
Ainda no decurso da audiência final, os A.A. apresentaram requerimento de redução do pedido apresentado em sede de petição inicial, para o valor de €360.000,00, tendo sido então homologada por sentença a desistência parcial do pedido assim requerida.
Finda discussão da causa, veio a ser proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente por não provada e, em consequência, absolveu a R. do pedido contra si deduzido.
É dessa sentença que os A.A. vêm agora recorrer, apresentando no final das suas alegações de recurso as seguintes conclusões:
A) Em Junho de 2016, os recorrentes, na qualidade de únicos herdeiros de José …., expropriado e falecido em 1967, iniciaram este processo como expropriação contra a Região Autónoma da Madeira, adiante designada como R.A.M. pedindo que esta fosse condenada a pagar aqueles a quantia de 915.103,72 € na proporção de metade para cada apelante, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento.
B) Os apelantes instauraram este processo como expropriativo, porque publicada a DUP, a R.A.M. ocupou aqueles lotes de terreno entre 1983 e 2017 (facto provado em NN.) e nunca apresentou aqueles uma proposta de pagamento de justa indemnização.
C) Convém salientar que o Tribunal “a quo” dá como provado todos os factos alegados pelos Autores/recorrentes, com exceção de apenas dois factos, mas que não influenciaram em nada a decisão recorrida.
D) Em 6 de Abril de 2017, o Tribunal Judicial de Santa Cruz decidiu pela existência de erro na forma do processo mas que não implicava a anulação de qualquer ato, ordenando a correção da autuação do processo.
E) Nessa decisão, o Tribunal de Sta. Cruz veio esclarecer os autos face á posição das partes. Realçando e alertando no 6# da 3.ª página que; “…que a entidade expropriante assevera que não existe e nunca existiu (vistoria ad perpetuam rei memoriam), dado que tal parcela tão pouco e jamais foi ocupada e tal expropriação não é desejo seu”. Numa outra formulação, não é descabido concluir que o mesmo que se entenda que os autos são de expropriação, a expropriante manifesta vontade de desistir desse pedido (artigo 124º. do CE/76).
F) E a apelada aceitou aquela decisão de Sta. Cruz onde consta a menção á desistência da recorrida pois se assim não fosse tinha recorrida daquela decisão e não o fez.
G) Também nessa decisão de Sta. Cruz, no 6# da 6.ª Página vem mencionado: “Nestas circunstâncias, o direito do proprietário sujeito a expropriação, não pode deixar de ser acautelado em processo comum”.
H) Após esta decisão ter transitado em Maio de 2017, pois ambas as partes não a impugnaram, o Tribunal de Santa Cruz decide, declarando a incompetência em razão do valor para a tramitação e julgamento, determinando a remessa dos autos para o Juízo Central Cível do Funchal.
I) O Tribunal “a quo” aceitou o processo, aceitando a sua competência, elaborando o despacho saneador em Setembro de 2017, fixando o objeto do litígio e os temas de prova e decidindo que as partes tem legitimidade e ainda dizendo que improcedeu a alegada exceção perentória de caducidade da ação.
J) Depois o Tribunal “a quo” omite na decisão recorrida quais os temas de prova a apurar.
K) É aqui que realmente se começa a não perceber a atitude e a decisão do Tribunal “a quo” visto que colocou como questão controvertida os temas de prova 3º, 4º. e 5º, em que pretende saber quais os danos sofridos pelos Autores por força da impossibilidade de utilização dos lotes de terreno referido em 1º) como é que justifica a improcedência do pedido dos apelantes com base em não ter existido posse administrativa, arbitragem, adjudicação e processo de expropriação?
L) Pois o Tribunal “a quo” já tinha conhecimento quando recebeu o processo remetido pelo Tribunal de Sta. Cruz que não tinha a certeza de não ter existido vistoria, mas tinha a certeza que não tinha havido posse administrativa, arbitragem, adjudicação e processo litigioso.
M) Porque é que o Tribunal “a quo” que tinha conhecimento destes factos, elaborou despacho saneador, ordenou que se realizasse a perícia aos lotes de terreno 79 e 80 e, efetuasse julgamento quando já sabia previamente que não tinha existido posse administrativa, arbitragem, adjudicação e processo litigioso, para depois na sentença ter baseado a improcedência na falta de estes factos, não se percebe?
N) Então, se o Tribunal “a quo” já tinha conhecimento daqueles factos e, se a sua convicção já era aquela que se baseou para proferir sentença recorrida, não tinha aceitado o processo quando lhe foi remetido por Sta. Cruz.
O) Além disso, os apelantes estão convictos que o Tribunal “a quo” interpretou erradamente a primeira decisão emitida pelo Tribunal de Santa Cruz, em que convolou o processo em comum, referindo que os recorrentes tinham todo o direito em reclamar para serem indemnizados através do processo comum.
P) Nessa decisão proferida em Abril de 2017 pelo Tribunal de Sta. Cruz ficou mencionado que: “Nestas circunstâncias, o direito do proprietário sujeito a expropriação, não pode deixar de ser acautelado em processo comum”.
Q) É lícito, como previa o artigo 124º de CE/76, no caso de desistência da entidade expropriante, os expropriados e demais interessados serem indemnizados nos termos gerais de direito, e prevê o artigo 88º do Código das Expropriações.
R) A obrigação de pagamento de uma indemnização aos recorrentes será com base em todos os prejuízos sofridos pelo facto dos prédios terem estado sujeitos a expropriação, ter a R.A.M criado uma suscetibilidade de expropriação, a qual compreende danos emergentes e lucros cessantes e ainda danos morais.
S) A perícia foi realizada no mês de Março e seguintes de 2018 para apurar o valor dos terrenos.
T) Em que os peritos responderam a todos os quesitos formulados pelas partes com o beneplácito do Tribunal “a quo”. Foram prestados esclarecimentos ao relatório pericial em Outubro de 2018. A Mmª. Juiz do Tribunal “a quo” chegou a indagar se as partes pretendiam a realização de uma segunda perícia.
U) E, depois disto tudo, o Tribunal “a quo” fez completa tábua rasa da perícia, não fez uma única menção á perícia na sentença.
V) Questiona-se, perdeu-se quase um ano com a perícia, deslocaram-se peritos, ambas as partes despenderam quantias elevadas em encargos, para quê?
X) Da avaliação da perícia, para determinar o cálculo indemnizatório, resultou o valor de 323.500,00€ conforme consta do relatório pericial junto aos autos. O Tribunal “a quo” desprezou completamente a perícia apesar de a ter ordenado, para quê?
Y) Após, estas diligências “virtuais” !!! porque para o Tribunal “a quo” não serviram de nada, apesar de as ter ordenado, foi realizado julgamento em Abril deste ano. Obviamente que o Tribunal “a quo” aplicou erradamente o direito aos factos provados, porque não percebeu que após ter recebido o processo remetido de Sta. Cruz como processo comum, os Autores/ recorrentes deixaram de ser expropriados para serem lesados, devendo a Ré/recorrida/apelada ser condenada a pagar uma indemnização aqueles pelos danos ocasionados nos terrenos durante o decurso de tempo que os ocuparam (de 1983 a 2017 conforme ficou provado) e pela não utilização dos mesmos pelos lesados/recorrentes nos termos do artigo 564º. do Código Civil.
Z) Ora, foi o decurso do processo que levou os Autores/apelantes a alterar a posição inicial: antes consideravam-se expropriados, depois do processo ter sido convolado para comum, consideram-se lesados e não expropriados.
AA) Toda esta situação verificou-se por culpa da Recorrida, porque criou a suscetibilidade de efetuar a expropriação com a DUP, a realização da vistoria ad perpetuam, ocupou os terrenos desde 1983 a 2017 e depois manifesta na audiência prévia do Tribunal de Santa Cruz a desistência da expropriação.
BB) No entanto, o Tribunal “a quo” não percebeu que o pedido inicial foi barrado pela desistência expropriativa da Ré/ apelada (Prof. A. dos Reis, com, 3º.-93). A situação do caso concreto é muito próxima da Reversão, porquanto enquanto nesta o prédio pertenceu ao expropriante, na desistência não chegou haver transmissão da propriedade. Os recorrentes desinteressaram-se do cultivo dos terrenos, da exploração, do loteamento, da construção, das benfeitorias por terem conhecimento da expropriação.
CC) Portanto, impõe-se a aplicação concreta da regra do nº.6 do artigo 6º. e ainda nºs 2 e 3 do artigo 124º. do CE/76, e subsequentemente a norma do artigo 88º. do Código de Expropriações.
DD) O Tribunal “a quo” não interpretou corretamente a decisão proferida pelo Tribunal da Comarca de Santa Cruz que ordenou que os Autores/apelantes deveriam ser indemnizados nos termos gerais de direito.
EE) Tudo levava a crer que o Tribunal “a quo”, ao proferir despacho saneador, ordenar a realização da perícia pelo colégio de peritos e ter efetuado o julgamento, que estava em consonância com a decisão de Santa Cruz e iria aquilatar qual o montante de indemnizatório que a Recorrida deveria ser condenada a pagar aos recorrentes.
FF) Mas, afinal não, depois de todo um decurso processual normal, o Tribunal “a quo” decide, declarando a improcedência da ação, fundamentando que não houve apropriação, nem posse administrativa por parte da R.A.M.. Tudo levava a crer que o Tribunal “a quo”, ao proferir despacho saneador, ordenar a realização da perícia pelo colégio de peritos e ter efetuado o julgamento, que estava em consonância com a decisão de Santa Cruz e iria aquilatar qual o montante de indemnizatório que a Recorrida deveria ser condenada a pagar aos recorrentes.
GG) Os recorrentes não se conformam com esta sentença, pelas razões apontadas, devendo a sentença ser anulada e substituída por outra que condene a Recorrida a pagar uma indemnização aos recorrentes, com base no dever de indemnizar como preveem os artigos 562º. a 564º do Código Civil, na quantia de 323.500,00€, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, que foi apurada através da perícia colegial, ou seja, pelos danos que ocasionaram nos lotes de terreno 79 e 80 e pela não utilização por parte dos recorrentes devido á ocupação pela recorrida desde 1983 a 2017.
HH) As normas jurídicas violadas são as seguintes: artigos 6º n.º 6 e 124.º n.ºs 2 e 3 do CE/76; artigo 88.º do Código de Expropriações; artigos 562.º a 564.º do Código Civil; e artigos 5.º e 412.º do NCPC.
Pedem assim que seja anulada a sentença proferida pelo tribunal “a quo” no concerne à absolvição da R., substituindo-se aquela por outra que condene a Apelada a pagar aos Apelantes uma indemnização na quantia de €323.500,00, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento.
Apenas o Ministério Público, que passou a intervir no processo como interveniente acessório desde fls 596, respondeu às alegações de recurso e, mesmo não tendo apresentado conclusões, pugnou pela improcedência da apelação, pois os A.A. teriam formulado um pedido de indemnização na petição inicial, demandando a R., na qualidade de entidade expropriante, tendo pretendido ampliar o pedido por requerimento de 27 de outubro de 2017, com base em nova factualidade. No entanto, essa alteração da instância não foi admitida por não ser conforme com o disposto no Art. 265º n.º 2 do C.P.C., como foi decidido por despacho de 5/12/2017, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa confirmado essa decisão, mencionando que haveria mesmo uma incompatibilidade entre os pedidos primitivos, cuja causa de pedir eram a perda das parcelas e a impossibilidade de exercício de atividade até à expropriação, enquanto que os pedidos que os A.A. apresentaram em substituição daqueles tinham como causa de pedir os prejuízos sofridos pelo facto de os terrenos terem sido submetidos a expropriação e os decorrentes da atuação da R.. Essa decisão transitou em julgado e, por isso, os novos pedidos não poderiam ser apreciados. Por outro lado, sustentou ainda que não houve processo expropriativo, nem desistência da intenção de expropriar e o título que os A.A. invocam a seu favor (um escrito particular, com assinatura reconhecida), para efeito de se arrogarem com o direito à indemnização, não permitiria sequer o registo das parcelas em nome da R.. Nessa medida, concluiu no sentido de dever ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a sentença nos seus precisos termos.
Admitido o recurso e apresentado a exame, o relator proferiu o despacho de fls 692 a 692 verso, nos termos do qual, ao abrigo do Art. 652.º n.º 1 al. d) e Art. 3.º n.º 3 do C.P.C., chamando a atenção para o facto de que poderia estar em causa, antes de mais, uma questão de incompetência em razão da matéria dos Tribunais Cíveis para conhecerem do pedido formulado, que se traduz em exceção dilatória de conhecimento oficioso que não poderia deixar de ser apreciada, mas que não tinha sido suscitada pelas partes, concedeu às partes um prazo de 10 dias para apresentarem alegações sobre a matéria da incompetência absoluta.
As partes, notificadas, nada vieram dizer sobre a questão assim colocada nesses termos.
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II- Questões a decidir:
Nos termos dos Art.s 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art. 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Assim, em termos sucintos as questões a decidir resumem-se a saber:
a) A competência absoluta dos tribunais comuns para apreciação de pedido de indemnização por responsabilidade civil contra a Região Autónoma da Madeira.
b) A conformação do objeto da ação, considerando o despacho de 6 de abril de 2017, que convolou a ação de expropriação em ação comum de indemnização, e do despacho de 5 de dezembro de 2017, que não admitiu a ampliação do pedido, tendo em atenção o sentido dessas decisões e a força do caso julgado.
c) O direito a indemnização peticionada pelos A.A. e apreciação sobre se a sentença recorrida, ao negar provimento a ação, violou os Art.s 6º n.º 6 e 124.º, n.ºs 2 e 3 do CE/76, o Art. 88.º do Código de Expropriações atualmente vigente, os Art.s 562.º a 564.º do C.C. e os Art.s 5.º e 412.º do C.P.C..
d) A prescrição da obrigação de indemnização.
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III- Fundamentação de facto:
A sentença recorrida deu por provados os seguintes factos:
A. Por resolução do Governo Regional da Madeira, datada de 30 de Junho de 1983 e publicada em Diário da República, II Série, em 02 de Agosto de 1983, foram declarados de utilidade pública, com carácter de urgência das expropriações, os imóveis e todos os direitos a eles inerentes (incluindo colonia) constantes da planta e relação anexas, localizados na freguesia do Caniçal, concelho de Machico ilha da Madeira (dentro do perímetro delimitado a Norte pelo Mar e o prédio da Marconi, a Sul pela Estrada Regional n.º 101-3, até à partilha Oeste do prédio dos herdeiros de Carlos …., a Leste com a Estrada Regional n.º 101-3 e a partilha a leste do prédio de Fé Cármen ….. e outros e Poente com as partilhas Oeste dos prédios de herdeiros de Carlos …., Juvenal ….., António ….. e outros, Região Autónoma da Madeira, herdeiros do Dr. Leandro …. e Maximiana …., necessários à obra de estabelecimento da Zona Franca da Madeira;
B. Pela Resolução referida em A. foi designada como entidade expropriante a Secretaria Regional do Equipamento Social;
C. Pela Resolução referida em A. foi a Secretaria Regional do Equipamento Social autorizada a tomar posse administrativa dos imóveis ali mencionados;
D. Da relação de prédios abrangidos pela Deliberação referida em A. consta um prédio com 206.100 metros quadrados, identificado como pertencendo a Luís …., Tolentino ….. e outros;
E. Por resolução do Governo Regional da Madeira, datada de 21 de Dezembro de 1989 e publicada em Diário da República, II Série, em 07 de Março de 1999, foram declarados de utilidade pública com carácter de urgência das expropriações, os imóveis e todos os direitos a ele inerentes e ou relativos constantes da planta e da relação anexa, localizados na freguesia do Caniçal, concelho de Machico, ilha da Madeira (dentro do perímetro delimitado a Norte pelo Mar, a Sul pela Estrada Regional n.º 101-3, a leste com a Estrada Regional n.º 101-3 e partilha leste do prédio de Fé Cármen …. e outros e a Oeste com a RAM (antes Empresa Baleeira do Arquipélago da Madeira, Lda.), necessários à obra de estabelecimento da Zona Franca da Madeira;
F. Pela Resolução referida em E. foi designada como entidade expropriante a Secretaria Regional do Equipamento Social;
G. Pela Resolução referida em E. foi a Secretaria Regional do Equipamento Social autorizada a tomar posse administrativa dos imóveis ali mencionados;
H. Da relação de prédios abrangidos pela Deliberação referida em E. consta um prédio com 199.440 metros quadrados, identificado como pertencendo a Luís ….., Tolentino ….. e outros;
I. A 26 de Março de 1986, a Secretaria Regional do Equipamento Social endereçou missiva escrita aos herdeiros de Charles ….. em que lhes comunicava a decisão de expropriação por força da resolução do Governo Regional referida em A., por ter sabido que eram detentor(es) duma parcela de terreno rústico, em consequência de um contrato promessa de compra e venda, destacada do prédio identificado como parcela de terreno, em propriedade plena e perfeita, com área global no solo de 206.100 metros quadrados confrontante, na parte considerada, do Norte com Rocha do Mar, do Sul com a Estrada Regional n.º 101-3, do Leste com Rita …., Samuel ….., Ivo ….. e outros e do Oeste com a Empresa Baleeira do Arquipélago da Madeira, a destacar do prédio rústico localizado no sítio da Rochinha, freguesia do caniçal concelho de Machico, confrontante, no seu todo, do Norte e do Sul com Rocha do Mar, do Leste com Rita ….., Dr. Samuel …., Ivo ….. e outros e do Oeste com a Empresa Baleeira do Arquipélago da Madeira, inscrito na matriz predial sob parte dos artigos 412, 414 e 415 (antes artigo 33º) e descrito na Conservatória do Registo Predial da Comarca de Santa Cruz sob o n.º 2.749, a fls. 70V.º, do Livro B-20, onde se acha inscrito a favor de Tolentino Rodrigues, pela inscrição n.º 4073, a fls. 139V.º, do Livro G-6º, de 30 de Outubro de 1951 e de Luís ….., pela inscrição n.º 5.250, a fls. 10, do Livro G-8º, d e25 de Abril de 1962;
J. Na missiva referida em I. a Secretaria Regional do Equipamento Social identifica os herdeiros de Charles …. ou José …. como proprietários de uma porção de terreno com 4.000 metros quadrados;
K. Aos 30 dias do mês de Março de 1984, ao Sítio da Rochinha, freguesia do Caniçal, concelho de Machico, foi efetuada vistoria, relacionada com a “Obra de estabelecimento da Zona Franca da Madeira, ao prédio identificado como parcela de terreno, em propriedade plena e perfeita, com todos os direitos e regalias a ele pertencentes, com a área global no solo de 206.100 metros quadrados. Confrontante, na parte considerada, do Norte com Rocha do Mar, do Sul com Estada Regional número 101-3, do Leste com Rita …., Samuel …., Ivo ….. e outros, e do Oeste com a Empresa Baleeira do Arquipélago da Madeira, a destacar do prédio rústico (que no seu perímetro inicial terá tido a área global de 349.000 metros quadrados, localizado no sítio da Rochinha, freguesia do Caniçal, concelho de Machico, confrontante, no seu todo, do Norte e do Sul com a Rocha do Mar, do Leste com Rita ….., Samuel …., Ivo …. e outros, do Oeste com Empresa Baleeira do Arquipélago da Madeira – prédio que é atravessado por diversos arruamentos entre os quais a Estrada Regional 101-3) e do qual foram já destacados diversas porções e lotes que, atualmente constituem unidades individualizadas e distintas, já tituladas a favor de outros e quem no seu conjunto, perfazem a superfície global de 61.656 metros quadrados, inscrito na matriz predial respetiva sob parte dos artigos 412, 414 e 415 (antes artigo 33) e descrito na Conservatória do Registo Predial da Comarca de santa Cruz sob o número 2749, a folhas 70 V,º, do Libro B-20, onde se acha inscrito a favor de Tolentino …., pela inscrição 4073, a folhas 139 V.º, do Livro G-6º, de 30 de Outubro de 1951 e de Luís …., pela inscrição número 5250, a folhas 10 do Livro G-8º, de 25 de Abril de 1962, na proporção de metade cada.;
L. No auto de vistoria referido em K. refere-se, para além do mais, que “(…) a parcela de terreno antes identificada e discriminada, tem vindo a ser vendida, desde há algum tempo, em lotes e porções , a diversos interessados, estando já tituladas várias (…) pelo que, neste momento, pertencerão aos titulares Tolentino ….e Luís …., somente 108.969 metros quadrados e ao conjunto dos promitentes compradores, a seguir nomeados e considerados, de facto, seus atuais detentores e possuidores, a superfície correspondente de 35.469 metros quadrados: (…) Charles …., herdeiros de ou José …. (4.000 metros quadrados)”;
M. A carta referida em I. não foi recebida pelos destinatários;
N. A 16 de Março de 1965, Luís …. e Tolentino …..celebraram acordo escrito, que denominaram de “Promessa de Compra e Venda”, com José ….. mediante o qual os primeiros declararam prometer vender ao segundo, ou a quem este indicar, pelo preço ajustado de ESC. 40.000$00, um talhão de terreno, com o número 79 e com área aproximada de 2.000 metros quadrados, que se destina a construção urbana, no sítio da Rochinha, da freguesia do Caniçal, a destacar do prédio que os promitentes vendedores lá possuem e que é o inscrito na respetiva matriz sob o artigo 33 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz sob o número 2749, a fls. 70 V.º do Livro B-20;
O. O talhão referido em N. tinha confrontação a Norte e Sul com os vendedores, a Leste com a Rua n.º 6 em construção, a Oeste com o Córrego e partilha da Empresa Baleeira;
P. A 5 de Maio de 1965, Luís …. e Tolentino ….. celebraram acordo escrito, que denominaram de “Promessa de Compra e Venda”, com José ….. mediante o qual os primeiros declararam prometer vender ao segundo, ou a quem este indicar, pelo preço ajustado de ESC. 40.000$00, um talhão de terreno, com o número 80 e com área aproximada de 2.000 metros quadrados, que se destina a construção urbana, no sítio da Rochinha, da freguesia do Caniçal, a destacar do prédio que os promitentes vendedores lá possuem e que é o inscrito na respetiva matriz sob o artigo 33 e descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Cruz sob o número 2749, a fls. 70 V.º do Livro B-20;
Q. O talhão referido em P. tinha confrontação a Norte com os vendedores, terreno em promessa de venda ao promitente-comprador, Sul com Bacili ….. e os vendedores, Leste com a Rua n.º 6 em construção, a Oeste com o Córrego e partilha da Empresa das Baleias;
R. Sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Machico sob o número 994/20050505 foi registada, pela Ap. 9 de 2005/05/02, a aquisição, por expropriação, a favor da Região Autónoma da Madeira;
S. O prédio referido em R. mostra-se inscrito na matriz sob o artigo 28, secção M (parte) e encontra-se descrito como tendo 82.775 metros quadrados, situado na Rochinha – Ponta de São Lourenço, sendo desanexado do prédio n.º 00016/310389 e como tendo confrontação a Sul com José ……;
T. Por missiva datada de 6 de Fevereiro de 2004, o Presidente da “Sociedade de Desenvolvimento da Madeira, S.A.” sugeriu ao Secretário Regional do Plano e Finanças que fossem acionados os mecanismos de tomada de posse administrativa e de aquisição ou expropriação dos imóveis número 63, 64, 79, 80, 81, 84, 86, 89, 92, 93, 94, 95 e 103 assinalados na planta parcial referente à fase 3 da Zona Franca Industrial;
U. Em 18 de Novembro de 2010, o Diretor Técnico do gabinete da Zona Franca da Madeira comunicou ao Diretor do Gabinete da Zona da Madeira que a SDM – Sociedade de Desenvolvimento da Madeira, SA solicitara a aquisição das parcelas 63, 64, 79, 80, 81, 84, 86, 89, 92. 93, 94, 95 103, 73, 74 e 75 necessárias à infra – estrutura da Fase 3 Zona Franca Industrial do Caniçal;
V. Na comunicação referida em U., refere-se que as parcelas em causa fazem parte do prédio rústico inscrito na matriz sob o artigo 28, da Secção M, Caniçal, descrito na Conservatória sob o n.º 00016/310389 e que, antes do Estabelecimento da Zona Franca Industrial, foi efetuado para este prédio rústico um projeto de loteamento pelo Dr. Semião …. e Tolentino ….., tendo a Região Autónoma da Madeira já adquirido alguns lotes;
W. Na comunicação referida em U. identificam-se as Parcelas 79 e 80 como pertencendo a José Furtado Mendonça;
X. Em Agosto de 2015, a Câmara Municipal de Machico identifica José ….. como proprietário de dois lotes (79 e 80) ao sítio da Rochinha, freguesia do Caniçal;
Y. José …. e os seus herdeiros não foram notificados de qualquer vistoria “ad perpetuam rei memoriam” ou de proposta de indemnização;
Z. José …… faleceu a 05 de Junho de 1967;
AA. José ….. deixou como herdeiros José …. e Maria ….., aqui A.A.;
BB. José ….. exerce o cargo de cabeça-de-casal da herança de José ….;
CC. Na sequência do referido em N. e P. José ……., demarcou os lotes com marcos e neles instalou uma fábrica com dois armazéns, onde exercia uma atividade industrial;
DD. A, na qualidade de cabeça de casal da herança de José ….., através do seu mandatário, enviou missiva escrita endereçada à Secretaria Regional das Finanças e da Administração Pública, em que solicitava que diligenciasse no sentido de o Governo Regional da Madeira os notificar da proposta da justa indemnização;
EE. A missiva referida em DD. deu entrada naqueles serviços em 07 de Março de 2016 e não obteve resposta;
FF. O lote número 79 tinha uma área de implantação de 2221,00 metros quadrados;
GG. O lote número 80 tinha uma área de 2344,00 metros quadrados;
HH. José ….. detinha uma sociedade irregular denominada “João Pulquério Gomes & José Furtado de Mendonça”, com sede na Rua do Bom Jesus, número 10, no Funchal e fábrica e armazém situados nos lotes referidos em N. e P.;
II. “João Pulquério Gomes & José Furtado de Mendonça” dedicava-se à atividade de artefactos de cimento e tanoaria;
JJ. Entre 1967 e 1983, o A. José …. continuou a atividade referida em II;
KK. Os lotes de terreno número 79 e número 80, referidos em N. e P., inserem-se no Loteamento do Município de Machico designado por “Costa do Sol”;
LL. Em 2015, sob os artigos 2437 e 2438 foram inscritos na matriz predial da freguesia do Caniçal, os lotes número 79 e número 80, sitos em São Lourenço, Rochinha, em nome dos aqui A.A.;
MM. Pela Ap. 2835, de 2018/03/21, os lotes 79 e 80, descritos sob os números 1744 e 1745, na Conservatória do Registo Predial de Machico, foram registados, por força de sucessão hereditária de José ….., em nome dos aqui A.A.;
NN. Entre 1983 e 2017, a Região Autónoma da Madeira ocupou os lotes referidos em N. e P..
*
A sentença julgou ainda por não provados os seguintes factos:
1. Os lotes referidos em N. e P.. encontravam-se parcialmente ocupados com construção que se distribuía por prédios com único piso, com uma área bruta de 77,80 metros quadrados e 97.95 metros quadrados;
2. A sociedade “João Pulquério Gomes & José Furtado de Mendonça” procedia ao pagamento de contribuição industrial até 1984;
3. Os A.A. não pagam impostos sobre os lotes de terreno referidos em N. e P.;
4. Os A.A. nunca foram vistos nos lotes de terreno referidos em N. e P..
Tudo visto, cumpre apreciar.
V- Fundamentação de direito:
Estabelecidas as questões que fazem parte do objeto da apelação, cumprirá então delas tomar conhecimento, começando pela questão da incompetência absoluta, a qual se relacionada igualmente com a conformação dada à instância decorrente nomeadamente do despacho de 6 de abril de 2017, pelo qual se operou a convolação da ação.
1. Da incompetência absoluta.
O presente processo oferece de facto uma originalidade própria decorrente da circunstância da ação ter sido originariamente configurada pelos A.A. como um “processo de expropriação litigiosa”, mas depois foi objeto de despacho que convolou a “ação expropriativa” em “ação de condenação”, passando os autos a correr termos em processo declarativo comum.
As peripécias processuais verificadas nestes autos não terminaram por aí, tendo sido acumuladas várias decisões posteriores que foram conformando o objeto da ação em termos tais que colocam em causa saber se estamos efetivamente perante a mesma instância, tal como configurada pelos A.A., e que pedidos e causa de pedir deveriam efetivamente ser atendidos.
Começando pela petição inicial, os A.A., para além de invocarem que instauravam contra o Governo Regional da Madeira um «processo de expropriação litigiosa, nos termos do artigo 38.º e seguintes do Código de Expropriações», pediam que a ação fosse julgada procedente por provada «condenando a ré, entidade expropriante a pagar aos autores a quantia de 915.103,72 € (novecentos e quinze mil, cento e três euros e setenta e dois cêntimos), na proporção de metade para cada autor, correspondente ao pagamento da justa indemnização pela expropriação realizada em 1984, referente aos lotes de terreno números 79 e 80 situados na rochinha, freguesia do caniçal, concelho de Machico, Madeira, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento, com todas as legais consequências» (sic).
Portanto, os A.A. formularam um pedido de condenação em indemnização, mas em conformidade com uma causa de pedir que resultava duma alegada existência de ato de expropriação por utilidade pública de duas parcelas de terreno de que se arrogavam donos.
Para tanto, alegaram a existência duma resolução do Governo Regional da Madeira de 30/6/1983, que declarou a utilidade pública e a posse administrativa dos imóveis abrangidos pela obra de estabelecimento da “Zona Franca da Madeira” (artigo 1.º); e uma resolução de 21/12/1989, que alargou essa declaração a todos os direitos inerentes a esses imóveis ou eles relativos (artigo 3.º); a qual compreendia os lotes 79 e 80, com 2000m2, cada, os quais pertenciam a José ….. (artigo 5.º).
Invocaram ainda que em 1984, a R., entidade expropriante, iniciou a notificação dos expropriados, incluindo os titulares dos lotes 79 e 80, por carta dirigida a “Charles Herbert Dodwell” (artigo 13.º), mas em que José Furtado Mendonça era identificado como “possuidor” desses lotes (artigo 15.º). Sucede que, José ….., nunca foi notificado de qualquer vistoria “ad perpetuam rei memoriam” ou sequer de alguma proposta de pagamento de justa indemnização (artigo 16.º). Acresce que o mesmo já tinha falecido 5 de Junho de 1967 (artigo 18.º), deixando como seus herdeiros os A.A. (artigo 19.º), mas estes também não receberam qualquer notificação de proposta de justa indemnização (artigo 21.º), nem foram notificados da vistoria (artigo 24.º).
Era neste conjunto de factos que os A.A. fundavam inicialmente a sua pretensão indemnizatória, a que acrescem os relacionados com os “danos”, entre os quais se incluíam:
1) €20.000,00 de prejuízos havidos com a interrupção da atividade industrial em fábrica instalada nos lotes (artigos 28.º e 40.º a 45.º), privação do uso dos terrenos (artigo 30.º) e ocupação parcial dos lotes com a construção (artigo 40.º); e
2) €895.103,72 relativo ao valor dos imóveis em função de serem terrenos aptos a construção (artigos 32.º a 36.º e 46.º a 61.º), discriminado do seguinte modo:
- lote 79: 2221,00m2 x 2240,91€ (valor médio do mercado m2) x 0,50 (índice de construção) x 17,5% (índice fundiário) = 435.492,96€; e
- lote 80: 2344,00m2 x 2240,91€ (valor médio do mercado m2) x 0,50 (índice de construção) x 17,5% (índice fundiário) = 459.610,76€.
Sucede que, o despacho de 6 de abril de 2017, constante de fls 258 a 264, que foi notificado às partes e transitou em julgado, veio a considerar que havia erro na forma de processo, mas que tal não determinava a anulação de todo o processado, porque a ação instaurada poderia ser identificada como “ação comum”. Para tal, fundamentou a decisão nos seguintes termos:
«No caso, não há duvidas que se pretende discutir uma expropriação por utilidade pública, mencionando-se para o efeito a existência de uma DUP com esse efeito, proferida à luz do art.º 9.º e ss. do Decreto-Lei 845/76, de 11 de Dezembro então vigente. (…)
«Já se viu, no entanto, que estamos na presença de um processo expropriativo “sui generis”, na medida em que para além de uma DUP datada de 1983 e de fragmentos de um auto de vistoria “ad perpetuam rei memoriam”, nada mais identifica os autos com uma expropriação, que aliás, a mencionada entidade assevera que não existe e nunca existiu, dado que tal parcela tão pouco e jamais foi ocupada e que tal expropriação não é desejo seu.
«Numa outra formulação, não é descabido concluir que mesmo que se entenda que os autos são de expropriação, a expropriante manifesta vontade de desistir desse pedido (art.º 124.º do CE/76).
«Não se sabe, aliás, qual a razão para que o processo de expropriação, cuja génese está na mencionada DUP, não tenha tido qualquer sequência, embora tenha sido junto aos autos um processo administrativo que na verdade não corresponde a qualquer procedimento expropriativo (já que mais não é do que uma amalgama de requerimentos dos interessados para aceder ao procedimento e respostas do ente público).
«Constata-se que ocorre, no caso em apreço, uma situação particular que é de nem sequer existir notícia de posse administrativa do imóvel (apesar dos AA. atestarem que existe e que a expropriante nega).
«Não existe também, como já se disse, vistoria “ad perpetuam rei memoriam” (existem fragmentos que não permitem concluir pela sua genuinidade e muito menos completude).
«Inexistindo a comprovação documental dos elementos mais básicos como o auto de posse administrativa (cuja existência se discute), de vistoria “ad perpetuam rei memoriam” ou relatório inicial de arbitragem, não tem qualquer sentido a constituição e o funcionamento da arbitragem, pois afinal os peritos não dispõem de objeto para efetivação do laudo, considerando que até e além do mais, se discute a existência de uma sociedade comercial que terá sido desapossada e visto a sua atividade cessada por força da dita expropriação. Como irão os Srs. Peritos acautelar essa situação se inexiste vistoria ad perpetuam rei memoriam que a considere?
«Mais. Discute-se também a própria legitimidade dos autores, já que a Ré (ou expropriante, como é por aqueles apodada) entende que aqueles não têm qualquer direito legitimo e se o tivessem, também já havia caducado. (…)
«Na verdade, os AA. têm como pressuposto (que a R. discute) que são proprietários de certas parcelas de terreno e que a dado momento houve uma ablação desse direito pela R. e que por via disso, pretendem ser indemnizados.
«Trata-se, pois, de um pedido condenatório em valor ou ação de condenação em quantia certa e nada impede que nessa ação também seja reunido um colégio de peritos com vista a fixar o valor de certa parcela de terreno que foi ocupado. (…)
«No caso sub judice, os autores pediram a condenação da Ré a pagar-lhes a quantia de €915.103,72, acrescidos de juros de mora, pela justa indemnização devida pela expropriação de duas parcelas de terreno, no qual não intervieram.
«Sublinha-se o que atrás já se mencionou: o processo de expropriação comporta uma fase relativa aos procedimentos destinados à declaração da utilidade pública e outra relativa ao cálculo da justa indemnização, a qual se cinge à determinação do montante concreto dessa indemnização (no pressuposto prévio de que a esta assiste direito). Com efeito, “a indemnização a atribuir ao expropriado ou a outro interessado surge como um sucedâneo patrimonial, como decorrência jurídica da extinção do seu direito de propriedade ou de arrendamento, sendo fixada segundo critérios que se prendem essencialmente com o valor real dos bens expropriados ou do direito pertencente aos interessados que se extingue. Embora o legislador fixe critérios para a determinação da indemnização devida aos expropriados ou a outros interessados, tais critérios não estão sujeitos ao “jus auctoritatis” da Administração, quanto ao cálculo do respetivo montante, que podem discutir em pé de igualdade com ela, de acordo com critérios de índole privatística e civilista”. (…)
«Nestas circunstâncias, o direito do proprietário sujeito a expropriação, não pode deixar de ser acautelado em processo comum.
«Diga-se aliás que o que os requerentes pretendem discutir é, na verdade, a chamada situação de “expropriação de facto”, “apropriação irregular” ou “expropriação indireta”, que consiste num ataque à propriedade de um particular, por meio do estabelecimento de uma situação de facto consumado, à margem de qualquer processo legal, situação que longe de ser inédita, é de forma impressiva, para o que aqui interessa, comumente discutida…no âmbito das ações de processo declarativo comum. É o que acontece, a título de exemplo, no Ac. do STJ de 05-02-2015 (proc. 742/10.2TBSJM.P1.S1), onde um município, à margem de qualquer processo expropriativo, decidiu abrir uma rua que ocupou terrenos de um particular e este reagiu mediante “ação declarativa, com processo ordinário, contra o MUNICÍPIO DE ... , pedindo que (i) a Autora seja reconhecida como única dona e legítima proprietária do prédio rústico acima identificado e que (ii) o Réu seja condenado a desocupar e a restituir à Autora a parcela com cerca de 403 m2 do imóvel referido, livre de pessoas e bens, e a repô-la no estado em que se encontrava anteriormente, destruindo para tal, a suas expensas, a rua e tudo o mais que nele ilicitamente abriu, mandou abrir, construiu ou mandou construir e ainda a pagar à Autora uma sanção pecuniária compulsória de € 5.000 (cinco mil euros) por cada mês ou fração de atraso no cumprimento da ordem de restituição e reposição acima referida.”; no Ac. do STJ também de 05-02-2015 (mas no proc. 2125/10.5TBBRR.L1.S2), onde um município expropriou parte de um terreno mas ocupou depois, também e sem mais, a parcela sobrante, havendo reação mediante a propositura de uma “ação administrativa comum de responsabilidade civil extracontratual” (tendo posteriormente o Tribunal Administrativo declarado “a sua incompetência material, sendo os autos remetidos ao Tribunal Judicial do Barreiro, onde foi determinada a notificação das partes relativamente ao eventual aproveitamento dos articulados que haviam apresentado.”); ou, no Ac. o STJ de 29-04-2010 (proc. 1857/05.4TBMAI.S1), num caso em que também um município, dotado tão só da DUP, sem mais, apropriou e construiu sobre terreno alheio, não promovendo qualquer processo. Os particulares reagiram mediante “ação declarativa contra Câmara Municipal da Maia (devendo entender-se como Parte na posição de Réu Município da Maia), pedindo a respetiva condenação a reconhecer que a parcela de terreno do prédio rústico denominado “C.....”, que ocupa, pertence à herança aberta por óbito de BB, da qual o Autor é herdeiro, a reconhecer que a sua posse é insubsistente e ilegal, a restituir à mesma herança a parcela livre de pessoas e bens e a abster-se de qualquer ato turbador do direito de propriedade da mesma herança, bem como a indemnizar aquela herança com o valor equivalente aos prejuízos causados, a liquidar em execução de sentença.”
«A situação apresentada pelos AA. é estruturalmente similar às que relatámos e configura um caso de erro na forma do processo, a situação que se traduz numa inadequação formal absoluta impeditiva do prosseguimento da lide nos termos pretendidos pelos requerentes.
«Não significa isto que os requerentes não tenham direito a ver apreciada a questão que sustentam. Têm mas no processo comum.
«Veja-se que numa situação em que até há posse administrativa sem a restante tramitação, o STJ já decidiu que “Se a entidade expropriante não instaurou o processo de expropriação, limitando-se a tomar posse administrativa do prédio, após a declaração da utilidade pública da sua expropriação, o titular do direito atingido por aquele ato pode socorrer-se do processo comum para exigir daquela a indemnização que lhe é devida segundo o disposto nos n.ºs 1 e 4, do artigo 36, do citado DL”6 (6 Ac. do STJ de 30-9-1999 (Sousa Inês), proc. 99B696, disponível em www.dgsi.pt).
«Dito isto, podemos agora afirmar, com segurança, que efetivamente – como sustentado pelos RR. – se verifica uma situação de erro na forma do processo, que importa a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo praticar-se os que forem estritamente necessários para que o processo se aproxime, quanto possível, da forma estabelecida pela lei.
«Como é perfeitamente identificável nos autos uma contestação e um articulado de resposta, típicos da ação comum, não se vê que hajam que ser anulados quaisquer atos, não se vendo que tenha existido diminuição de garantias do réu, já que lhe foi sempre concedido, sucessivamente, o amplo direito ao contraditório.» (sic – sublinhados nossos).
Em suma, o Tribunal a quo convolou uma ação de expropriação litigiosa em ação de condenação, deixando o processo de seguir termos como processo de expropriação e passando a seguir a tramitação própria do processo declarativo comum, sem anular quaisquer dos atos processuais praticados, considerando que o Tribunal Cível poderia ser competente para apreciar um pedido de indemnização pelos danos causados aos A.A. por uma situação de “expropriação de facto”, “apropriação irregular” ou “expropriação indireta” decorrente de atos (ilícitos?) imputáveis à Região Autónoma da Madeira.
Ora, esta decisão obriga-nos a apreciar a questão da competência dos tribunais comuns para o julgamento da ação, tal como ela passou a ser conformada a partir do despacho de fls 258 a 264, com a aceitação das partes, que dele não recorreram.
De facto, a grande maioria das ações em que os tribunais comuns foram chamados a decidir pedidos de indemnização emergentes de “expropriações de facto”, “apropriações irregulares”, ou “expropriações indiretas”, estávamos sempre perante ações de reivindicação, em que os Autores pediam, ao abrigo do Art. 1311.º do C.C., o reconhecimento do seu direito de propriedade e a restituição dos imóveis apropriados pela “entidade expropriante”, cumulando essas pretensões com pedidos acessórios de indemnização pelos prejuízos assim sofridos (vide: Ac. do S.T.J. de 11/9/2018 - Proc. n.º 842/12.4TBFAF.G2-S2 – Relator: Fonseca Ramos; Ac. do S.T.J. de 8/3/2018 – Proc. n.º 2723/09.6TBBRR.L1.S1 – Relator: Fonseca Ramos; Ac. do S.T.J. de 15/4/2015 – Proc. n.º 100/10.0TBVCD. P1.S1 – Relator: Abrantes Geraldes; Ac. do S.T.J. de 5/2/2015 – Proc. n.º 742/10.2TBSJM.P1.S1 – Relator: Granja Fonseca; Ac. do S.T.J. de 5/2/2015 – Proc. n.º 2125/10.5TBBRR.L1.S2 – Relator Abrantes Geraldes; Ac. do S.T.J. de 24/6/2008 – Proc. n.º 08ª1929 – Relator: Moreira Camilo; Ac. do T.R.L. de 5/7/2018 – Proc.º n.º 8981/08.0TCRLS.L1-1 – Relatora: Ana Isabel Pessoa; Ac. do T.R.L. de 23/11/2017 – Proc. n.º 22697/11.6T2SNT.L1-6 – Relator: António Santos; Ac. do T.R.P. de 10/11/2016 – Proc. n.º 233/15.T8PVZ-A.P1 – Relator: Ataíde das Neves; Ac. do T.R.G de 11/1/2018 – Proc. n.º 324/12.4TBFAF.G2 – Relator: Alcides Rodrigues; e Ac. do T.R.G. de 22/1/2009 – Proc. n.º 2470/08-2 – Relator: António Santos).
Ora, para as ações de reivindicação, mesmo que com pedido acessório de indemnização, não se nos oferece a mínima dúvida sobre a competência da jurisdição comum, o que é atestado, não só pelos acórdãos acabados de citar, como ainda pelas inúmeras decisões que a propósito foram proferidas pelo Tribunal de Conflitos (vide, a título exemplificativo: Acórdão de 30/5/2019 – Proc. n.º 012/19 – Relatora Paula Portela; Acórdão de 30/11/2017 – Proc. n.º 011/17 – Relatora: Teresa de Sousa; Acórdão de 7/7/2016 – Proc. n.º 013/16 – Relatora: São Pedro; Acórdão de 20/11/2014 – Proc. n.º 046/14 – Relator Leones Dantas – todos disponíveis em www.dgsi.pt).
O problema é que nos presentes autos não estamos, nem nunca estivemos, perante uma ação de reivindicação, mas sim e apenas, perante a formulação de uma pretensão indemnizatória, que inicialmente foi formulada no quadro de processo de expropriação, mas que por se reconhecer a inexistência procedimentos legais típicos do processo de expropriação, passou a seguir termos como ação de condenação, em processo declarativo comum.
Se houvesse um processo de expropriação, a questão da incompetência também não se colocaria, pois por força do Art. 38.º n.º 1 do Código de Expropriações (C.E./99 aprovado pela Lei n.º 168/99 de 18/9) estabelece-se que: «Na falta de acordo sobre o valor da indemnização, é este fixado por arbitragem, com recurso para os tribunais comuns». No entanto, o despacho de fls 258 a 264 vem reconhecer a existência de erro na forma de processo, precisamente por constatar a inexistência dum processo de expropriação. Pelo que, inexistindo um processo de expropriação, coloca-se a questão de saber se poderá uma mera ação de responsabilidade civil extracontratual contra uma entidade pública, como é a Região Autónoma da Madeira, correr termos perante a jurisdição comum?
É que o Art. 4.º n.º 1 al. f) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (E.T.A.F. – aprovado pela Lei n.º 13/2002 de 19/2 e com redação do Dec.Lei n.º 214-G/2015 de 2/10), estabelece que: «1. Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação dos litígios que tenham por objeto questões relativas a: (…)
«f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo».
Acresce que é hoje uniforme o entendimento de que, com a aprovação do ETAF pela Lei n.º 13/2002 de 19/2, é irrelevante a natureza pública ou privada do ato de gestão de onde emerge a obrigação de indemnização. Conforme refere Aroso de Almeida (in “Manual de Processo Administrativo”, 2.ª edição, 2016, pág.s 166 a 167): «compete à jurisdição administrativa apreciar toda e qualquer questão de responsabilidade civil extracontratual emergente da conduta de pessoas coletivas de direito público. É o que claramente decorre do artigo 4º, n.º 1, alínea f), do ETAF, que, finalmente sem ambiguidades após a revisão de 2015, confere aos tribunais administrativos uma competência genérica para apreciar todas as questões de responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público», sendo que essa competência «abrange todas as questões de responsabilidade civil extracontratual (…), independentemente de saber se essa responsabilidade emerge de uma atuação de gestão pública ou de uma atuação de gestão privada».
Como se não bastasse, a matéria de competência dos tribunais, nomeadamente a norma resultante da al. f) do Art. 4º/1 do ETAF, assume-se de natureza imperativa, sendo aplicável independentemente de se tratar de uma responsabilidade derivada de um ato praticado ou de uma abstenção verificada no domínio da gestão pública ou no âmbito da gestão privada (Neste sentido: Mário Aroso de Almeida e Carlos Alberto Fernandes Cadilha in “Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos”, 3ª Ed., 2010, pág. 22, nota de rodapé 12; e Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira in, “Código de Processo nos Tribunais Administrativos Anotado”, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2004, pág. 59).
Aliás, não deixa de ser curioso que num dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que supra citámos (v.g. Ac. do S.T.J. de 5/2/2015 – Proc. n.º 2125/10.5TBBRR.L1.S2 – Relator Abrantes Geraldes), os A.A. terão inicialmente colocado a ação indemnizatória decorrente duma situação de “expropriação de facto” contra o Município no Tribunal Administrativo e Fiscal (T.A.F.) de Almada, mas depois vieram a alterar o pedido, aditando uma pretensão de reivindicação que cumularam com o pedido indemnizatório inicialmente formulado, o que determinou a declaração de incompetência em razão da matéria pelo T.A.F. e a remessa do processo para os Tribunais Comuns, onde a causa foi efetivamente julgada.
Veja-se ainda que, em coerência, o Tribunal da Relação do Porto (acórdão de 29/2/2016 – Proc. n.º 1641/11.6TBPNF.P2 – Relator: Alberto Ruço) terá mesmo decidido que é da competência dos tribunais administrativos o conhecimento do pedido de indemnização por danos que o expropriando haja sofrido por entidade expropriante ter desistido da expropriação, após ter tomado posse administrativa das parcelas de terreno e de ter entrado em negociações com vista a chegar a acordo sobre o montante da indemnização devida pela expropriação, mas antes do processo ter entrado na fase litigiosa prevista no Art. 38.º do C.E./99. Considerou-se aí que o n.º 3 do Art. 88.º do Código de Expropriações pressupõe, por razões de economia processual, que a desistência da entidade expropriante ocorra na fase litigiosa, para a qual seriam competentes os tribunais comuns nos termos do Art. 38.º n.º 1 do C.E., sendo que o processo de expropriação teria que se encontrar pendente. Pelo que, não havendo processo de expropriação pendente, seria indiscutível que a ação meramente indemnizatória contra ente público competiria aos tribunais administrativos.
O Tribunal da Relação de Guimarães, em acórdão de 22/2/2018 (Proc. n.º 2476/17.8TBBCL-G1 – Relatora: Raquel Batista Tavares), veio também sustentar que o Dec.Lei n.º 214-G/2015 de 2/10 veio alargar a competência da jurisdição administrativa à apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas à condenação à remoção de situações constituídas em “via de facto”, sem título que as legitime, em face do disposto na al. i) do n.º 1 do Art. 4.º do E.T.A.F.. Assim, com a reforma de 2015, os Tribunais Administrativos teriam passado a ter jurisdição sobre litígios decorrentes de situações de “via de facto”, a que seriam equiparáveis as ações de reivindicação que têm por objeto situações em que a entidade pública expropriante ocupa um imóvel que era propriedade privada, sem para o efeito estar munida de título que as habilite ou legitime, nomeadamente sem proceder à respetiva expropriação.
Ou seja, o Tribunal da Relação de Guimarães, neste último mencionado acórdão, foi muito mais longe que a jurisprudência consolidada relativamente à matéria da competência dos Tribunais Comuns para as ações de reivindicação, chamando a atenção para o facto de a reforma de 2015 veio a incluir na competência dos tribunais administrativos, nos termos do Art. 4.º n.º 1 al. i) do E.T.A.F., as ações de «i) condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime».
O mesmo Tribunal (acórdão de 15/5/2012 – Proc. n.º 981/10.6TBVVD.G1 – Relator: Eduardo José Oliveira Azevedo), também considerou a jurisdição administrativa competente para todas as ações de responsabilidade civil extracontratual de pessoas coletivas públicas, independentemente da natureza pública ou privada do ato de gestão que gera o pedido, numa situação em que duas autarquias negam direito de propriedade imobiliária na requalificação de caminho público no uso de competências próprias, o que implicaria o pagamento de indemnização.
Finalmente existe pelo menos um caso, em que o Tribunal de Conflitos (acórdão de 21/4/2016 – Proc. n.º 042/15 – Relatora: Maria da Graça Trigo) julgou que o mero pedido de reconhecimento do direito de propriedade, quando não acompanhado do pedido de devolução ou restituição, mas cumulado com um de pedido de indemnização relativo à ocupação de terreno por entidade habilitada a exercer poderes administrativos, por não configurar uma verdadeira ação de reivindicação, corresponderia a ação para a qual seriam competentes os tribunais administrativos, nos termos do Art. 10.º n.º 2 do Dec.Lei n.º 374/2007 e Art. 4.º n.º 1 al. i) do E.T.A.F..
De resto, como já vimos, o Tribunal de Conflitos tem-se limitado a reconhecer a competência dos Tribunais Comuns em casos típicos de ações de reivindicação, em que se formula o pedido de reconhecimento do direito de propriedade e consequente restituição da coisa reivindicada (cfr. Art. 1311.º do C.C.), ainda que cumulativamente se formulem pedidos de indemnização contra o ente público que concretamente seja demandado.
Ora, no caso concreto dos autos, não há pedido de reivindicação algum. Aliás, de acordo com os factos provados, apesar de ter existido uma declaração de utilidade pública, com autorização de posse administrativa (factos A a G) e da Região Autónoma ter logrado registar a seu favor o prédio pretendido expropriar (facto R), a verdade é que, na pendência da ação, os A.A. também lograram registar a seu favor os prédios de que sempre se arrogam titulares (facto MM), tudo aparentando permitir a conclusão de que nunca chegou a existir uma efetiva “apropriação” dos bens objeto do direito de propriedade dos A.A..
Seja como for, não existindo um processo de expropriação, não se podendo aplicar ao caso a regra de competência estabelecida no Art. 38.º n.º 1 do C.E., nem estando em causa uma ação de reivindicação, por não terem sido formulados os pedidos típicos que decorrem do disposto no Art. 1311.º do C.C., e sendo apenas formulado um pedido de indemnização por responsabilidade civil de pessoa coletiva de direito público, a competência para julgar a presente ação encontra-se legalmente atribuída aos Tribunais Administrativos, nos termos do Art. 4.º n.º 1 al. f) do E.T.A.F..
De facto, a competência da jurisdição comum determina-se de forma residual ou por exclusão de partes. Ou seja, por princípio todas as causas que não estejam atribuídas por lei a alguma jurisdição especial são da competência dos tribunais judiciais comuns (Art. 64º do C.P.C. e Art.s 40º n.º 1 e 80º n.º 1 da L.O.S.J., aprovada pela Lei n.º 62/2013 de 26/8).
A nossa organização judiciária comporta, além dos tribunais comuns, a existência de tribunais especiais, como são o caso dos tribunais administrativos e fiscais, militares e do tribunal de contas (Art.s 209º e ss da C.R.P.). Pelo que para apreciar da competência dos tribunais comuns cumprirá apreciar, em primeiro lugar, qual o âmbito de competência dos Tribunais Administrativos para concluirmos a final se é àqueles que a lei atribuiu a competência para apreciar a presente causa, não perdendo de vista que é tendo em consideração a causa de pedir e o pedido formulado, tal como a ação é configurada pelos A.A., que se deve apreciar a competência do tribunal (Manuel de Andrade – “Noções Elementares de Processo Civil”, 1993, págs. 91 e ss).
Ora, no caso, pelas razões expostas, prevalece a regra de competência estabelecida no Art. 4.º n.º 1 al. f) do E.T.A.F., por estarmos perante uma mera ação de responsabilidade civil contra ente público e por não estarmos perante um processo de expropriação, tal como decorreu do despacho de fls 258 a 264, que nessa parte transitou em julgado e faz caso julgado formal dentro do processo (Art.s 620.º e 621.º do C.P.C.).
A competência atribuída aos Tribunais Administrativos determina o necessário reconhecimento da incompetência absoluta dos Tribunais Cíveis para julgar a presente causa, o que é de conhecimento oficioso, pode ser apreciado enquanto não houver sentença transitada em julgado sobre o fundo da causa e determina a necessária absolvição da R. da instância, atento ao disposto nos Art.s 64º, 96º al. a), 97.º n.º 1, 99º n.º 1, 278º n.º 1 al. a), 279º, 576º n.º 2, 577º al. a), 578º e 595º n.º 1 al. a) e n.º 3 e 608.º n.º2 “ex vi” 663.º n.º 2 do C.P.C., Art.s 40º n.º 1 e 80º n.º 1 da L.O.S.J. e Art. 4º n.º 1 al. f) do E.T.A.F..
Relembre-se, em particular, que a decisão tabular, constante do despacho saneador, a reconhecer a competência do tribunal para apreciar a causa, não faz caso julgado sobre a questão da competência absoluta do tribunal, porque essa questão nunca foi suscitada pelas partes (Art. 595.º n.º 3 do C.P.C. e, a propósito, vide: Miguel Teixeira de Sousa in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, 1997, LEX, pág. 318; e Jorge Augusto Pais do Amaral in “Direito Processual Civil”, 14.ª Ed., pág. 287).
Cumpre ainda esclarecer que, em rigor, o despacho anterior de fls 258 a 264, também só faz caso julgado formal sobre a concreta questão que apreciou, relativa ao “erro sobre a forma do processo” e não sobre a matéria de competência absoluta do tribunal.
Em face do exposto, fica prejudicada a apreciação de todas as demais questões suscitadas pela presente apelação, devendo a sentença recorrida ser revogada, mas apenas tendo em consideração a necessidade de julgarmos previamente procedente a exceção dilatória de conhecimento oficioso de incompetência absoluta dos tribunais comuns para julgar a presente ação.
V- DECISÃO:
Por todo o exposto, julgamos acordar na improcedência da apelação, na estrita medida em que julgamos conhecer oficiosamente da exceção dilatória de incompetência absoluta dos Tribunais Cíveis para apreciar a presente ação e, em consequência, revogamos a sentença recorrida com fundamento no reconhecimento da incompetência do tribunal em razão da matéria, substituindo a sentença, na parte que absolveu a R. do pedido, pela decisão de absolver a R. da instância.
Custas pelos Apelantes (Art. 527º do C.P.C.).

Lisboa, 17 de dezembro de 2019 
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva