Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1956/18.2YRLSB-6
Relator: MANUEL RODRIGUES
Descritores: PATENTE DE INVENÇÃO
NULIDADE DE PATENTE
TRIBUNAL ARBITRAL
COMPETÊNCIA
TRIBUNAL DA PROPRIEDADE INDUSTRIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I O Tribunal Arbitral [necessário], ainda que a título meramente incidental ou por via de excepção processual, carece de competência para apreciar e decidir, com efeitos inter partes, da nulidade ou anulabilidade de uma EP [ patente europeia ] ou de outro direito de propriedade industrial, cabendo tal competência, em exclusivo, ao Tribunal da Propriedade Industrial, nos termos do art.º 35.º do Código da Propriedade Industrial.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa


IRelatório:


1.1. G…. INC., (…), veio, ao abrigo do disposto nos artigos 3,º, n.º 8, da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro [doravante Lei n.º 62/2011], e 18.º, n.º 9, 46.º, n.º 3, alínea a), subalínea iii) e 59.º, n.º 1, alínea f), estes da Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro [doravante LAV], intentar a presente acção especial de impugnação contra as sociedades S…, Lda., (…), e P…, LTD., (…), pedindo a anulação de decisão arbitral interlocutória.

1.2. Para sustentar a sua pretensão, a Requerente alega, resumidamente, o seguinte[[1]]:
“A ação arbitral na qual foi proferida a decisão interlocutória cuja anulação agora se pede foi iniciada pela Requerente, contra a Requerida, ao abrigo da Lei n.º 62/2011.

O objeto do litígio consiste na defesa dos direitos de propriedade industrial da Requerente que lhe assistem e emergem da EP '397, relativamente a medicamentos genéricos, incluindo os medicamentos genéricos objeto dos pedidos de Autorização de Introdução no Mercado apresentando ao INFARMED - Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. nos dias 30 de setembro de 2015, 1 de fevereiro de 2016 e 19 de outubro de 2016, publicados na respetiva página oficial, em cumprimento do disposto no artigo 15.º-A da Lei n.9 62/2011 e contendo, respetivamente, as substâncias ativas: Tenofovir e Disoproxil; Emtricitabina, Tenofovir e Disoproxil; Efavirenz, Emtricitabina, Tenofovir e Disoproxil Succinato.

Foi apresentada Petição Inicial, a que as Requeridas responderam na sua Contestação.

As Requeridas defenderam-se por exceção, arguindo, entre outras, a invalidade da EP '397.

A esta exceção, veio a Requerente apresentar a sua resposta, tendo-se pronunciado, inter alia, pela incompetência dos Tribunais Arbitrais para apreciarem da validade de direitos de propriedade industrial, competência esta que, com veremos adiante, recai exclusivamente sobre o Tribunal da Propriedade Industrial.

O Tribunal Arbitral proferiu uma decisão interlocutória escrita quanto à matéria de competência para apreciar da validade da EP '397, a Decisão Processual n.º 1 (de 11 de julho de 2018).

Nesta decisão contida no Despacho n.° 1, o Tribunal Arbitral decidiu ser “competente para apreciar da patenteabilidade da invenção, sem que a declaração de nulidade ou confirmação da respectiva validade da patente tenha efeitos erga omnes”.

Não sendo a invalidade de um direito de propriedade industrial uma matéria arbitrável (e abaixo já veremos porquê), a sua apreciação e o seu conhecimento carecem, pois, de prévia declaração transitada em julgado pelo tribunal competente para poder produzir os seus efeitos.

O tribunal competente para julgar as ações referidas no artigo 35.º, n.º 1 e 2 do CPI é o TPI, conforme dispõe o artigo 111.º, n.º 1, alínea c), da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n..º 62/2013, de 26 de agosto).

Da concessão de um título de propriedade industrial resulta uma presunção da sua validade;
Enquanto o Tribunal da Propriedade Intelectual não declarar nulo ou anular um título de propriedade industrial por via de uma decisão transitada em julgado, nenhuma outra autoridade se poderá pronunciar sobre a sua invalidade, quer por via de ação, quer de reconvenção, ou exceção, quer a título principal, quer perfunctório, funcionando em toda a sua plenitude a presunção de validade decorrente do artigo 4.º, n.º 2 do CPI;
Admitir a declaração de invalidade de uma patente com meros efeitos inter partes seria negar a natureza erga omnes dos mesmos, permitindo a invalidação subjetivamente parcial da patente, os quais passariam a ser inválidos em relação às partes demandadas, continuando a ser válido e oponível contra todos os outros interessados, o que é inadmissível e geraria a prolação de decisões contraditórias;
Se vier a ser a final julgada improcedente a ação de invalidação proposta nos termos do artigo 35.º do CPI, tal decisão teria de conviver com decisões individuais considerando a patente inválida;
A jurisprudência do Tribunal Constitucional vertida no Acórdão 251/2017, de 24 de maio, nos termos do qual foi julgada inconstitucional a norma interpretativamente extraível do artigo 2.º da Lei n.º 62/2011 e artigos 35.º, n.º 1, e 101.º, n.º 2, do CPI, ao estabelecer que, em sede de arbitragem necessária instaurada ao abrigo da Lei n.º 62/2011, a parte não se pode defender, por exceção, mediante invocação da invalidade de patente com meros efeitos inter partes assenta em premissas totalmente erradas e não tem força obrigatória geral;
A solução adotada pelo Tribunal Constitucional não é proporcional nem respeita o artigo 18.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (“CRP” ou “Constituição”), visto que pondera erradamente os interesses em confronto, não tomando em conta que o que é necessário é salvaguardar o conteúdo essencial do direito de patente, diretamente protegido pela CRP por força do artigo 42.º ou do artigo 62.º;
Uma interpretação dos artigos 35.º, n.º 1 do CPI e 2.º da Lei n.º 62/2011 segundo a qual é admissível a declaração de nulidade de um direito de propriedade industrial por um tribunal arbitral com efeitos inter partes importa a diminuição da extensão e do alcance do conteúdo essencial do direito fundamental de propriedade industrial das titulares de patentes de forma desproporcional, sendo materialmente inconstitucional por violação dos artigos 42.º, 62.º, e 18.º, n.ºs 2 e 3 da CRP, e representando uma solução em violação do artigo 13.º da Lei Fundamental.”

Concluiu, assim, a Requerente que “a Decisão Processual n.º 1, de 11 de julho de 2018, deve ser anulada na parte em que o Tribunal Arbitral decidiu que tinha competência para, com efeitos inter partes, decidir sobre a exceção de invalidade da EP’397 invocada pelas Demandadas.”

1.3.Citadas as Requeridas, vieram estas deduzir oposição ao pedido e juntar um documento, alegando, em síntese, o seguinte [[2]]:
“A questão de fundo da presente ação reside em saber se os tribunais arbitrais constituídos ao abrigo da Lei n.º 62/2011 tem competência material para apreciar e conhecer da validade dos direitos de propriedade industrial, quando a mesma seja suscitada a título de exceção, com efeito inter partes.

Como se verá em detalhe mais adiante, a questão é controversa tanto na doutrina como na jurisprudência quer dos tribunais arbitrais constituídos ao abrigo da Lei n.º 62/2011, quer dos tribunais estaduais que se têm debruçado sobre o tema.

A divergência de posições assenta na interpretação do regime das arbitragens necessárias previstas na Lei n.º 62/2011 em face da norma constante no artigo 35.º, n.º 1 do Código da Propriedade Industrial (“CPI”), segundo a qual a declaração de nulidade ou a anulação de direitos de propriedade industrial com efeitos erga omnes só podem resultar de decisão judicial.

Uma recente alteração legislativa veio dar um importante contributo para o fim dessa discussão, deixando claro que os tribunais arbitrais constituídos ao abrigo da Lei n.º 62/2011 para dirimir os litígios emergentes de direitos de propriedade industrial quando estejam em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos têm competência para apreciar e conhecer a invalidade das patentes com efeitos inter partes.

A Lei n.º 62/2011 foi alterada pelo artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 110/2018[[3]], de 10 de dezembro (“Decreto-Lei n.º 110/2018”), passando o respetivo artigo 3.º, n.º 3 a estatuir expressamente que no processo arbitral pode ser invocada e reconhecida a invalidade da patente com efeitos inter partes.

Ou seja,
Com a alteração da redação do artigo 3.º, n.º 3 o legislador pretendeu de forma cristalina pôr fim à discussão doutrinal e jurisprudencial, afirmando que os tribunais arbitrais constituídos ao abrigo da Lei n.º 62/2011 são efetivamente competentes para apreciar a invalidade dos direitos de propriedade industrial com efeitos inter partes, designadamente quando tal invalidade seja suscitada por via de exceção como sucedeu na ação arbitral iniciada pela G… contra as aqui Requeridas S…e P....

A clarificação da questão da competência dos tribunais arbitrais para apreciarem e reconhecerem a validade dos direitos de propriedade industrial deve ser vista à luz das demais alterações feitas à Lei n.º 62/2011.

A alteração maior à Lei n.º 62/2011 traduz-se na revogação do regime da arbitragem necessária criado com a aprovação daquela Lei, deixando ao critério das partes a decisão de recorrer a arbitragem [voluntária] ou ao tribunal judicial competente – o Tribunal da Propriedade Intelectual (“TPI”) – para dirimir os litígios supra identificados[[4]].

Ou seja, da nova redação da Lei n.º 62/2011 resulta que:
(i)- as empresas titulares de patentes e/ou certificados complementares de proteção já não são obrigadas a recorrer ao regime da arbitragem necessária criado pela Lei n.º 62/2011 quando queiram invocar os seus direitos contra titulares ou requerentes de Autorizações de Introdução no Mercado (“AIM”) de medicamentos genéricos;
(ii)- no processo arbitral iniciado ao abrigo da Lei n.º 62/2011 pode ser invocada e reconhecida a invalidade da patente com meros efeitos inter partes;
(iii)- os tribunais arbitrais constituídos ao abrigo da Lei n.º 62/2011 têm competência para apreciar a invalidade dos direitos de propriedade industrial invocados, com efeitos inter partes.
Ora, sendo reconhecida a competência para apreciar a invalidade das patentes e dos certificados complementares de proteção aos tribunais arbitrais voluntários constituídos ao abrigo da Lei n.º 62/2011, por maioria de razão deverá ser reconhecida tal competência a tribunais arbitrais necessários constituídos ao abrigo da mesma Lei.

Dito de outro modo: se os tribunais arbitrais voluntários aos quais as partes podem submeter a resolução do litígio são competentes para conhecer com mero efeito inter partes a invalidade dos direitos de propriedade industrial invocados, então os tribunais arbitrais necessários aos quais as partes eram obrigadas a recorrer [como é o presente caso] têm necessariamente de ter a mesma competência.

Qualquer interpretação diferente da exposta configura uma solução inconstitucional, violadora do direito ao processo equitativo e do princípio da proibição da indefesa, previstos no artigo 20.º da CRP, em conjugação com o seu artigo 18.º.

Face ao exposto, afigura-se evidente que a redação dada pelo Decreto-Lei n.º 110/2018 ao artigo 3.º, n.º 3 da Lei n.º 62/2011 traduz uma clarificação [e não uma alteração] do regime da competência dos tribunais arbitrais constituídos ao abrigo daquela Lei para apreciar e conhecer a (in)validade dos direitos invocados pelas entidades demandantes com mero efeito inter partes, independentemente de se tratarem de tribunais arbitrais necessários ou de tribunais arbitrais voluntários.

Por Acórdãos de 14 de dezembro de 2016 (o qual foi objeto de recurso de constitucionalidade) e de 22 de março de 20181[[5]], o Supremo Tribunal de Justiça decidiu pela incompetência dos tribunais arbitrais para apreciar da validade/nulidade de patente.

Em posição contrária à defendida pelo Supremo Tribunal de Justiça, o Tribunal Constitucional veio, por Acórdão de 24 de maio de 2017 (Acórdão n.º 251/2017), julgar inconstitucional a norma interpretativamente extraível do artigo 2.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro e artigos 35.º, n.º 1, e 101.º, n.º 2, do Código da Propriedade Industrial, ao estabelecer que, em sede de arbitragem necessária instaurada ao abrigo da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, a parte não se pode defender, por exceção, mediante invocação da invalidade de patente, com meros efeitos inter partes.

Por Decisão de 8 de março de 2018[[6]], o Tribunal Constitucional confirmou a posição expressa no Acórdão n.º 251/2017 concluindo, tal como no citado aresto, pela inconstitucionalidade da interpretação extraível da conjugação dos artigos 2.º da Lei 62/2011 e artigos 35.º, n.º 1 e 101.º, n.º 2 do CPI, conducente ao sentido de que, em sede de arbitragem necessária instaurada ao abrigo da Lei 62/2011 a parte não se pode defender, por exceção, mediante a invocação da invalidade da patente com meros efeitos inter partes, por violação do princípio da proibição da indefesa – Doc. n.º 1 aqui junto.

48. Para tanto, o Tribunal Constitucional considerou, como relevante, o seguinte:
a.-A criação da Lei n.º 62/2011 visou regular de modo expedito eventuais litígios quanto à introdução no mercado de medicamentos genéricos que possam contender com os interesses particulares dos detentores de patentes dos medicamentos de referência;
b.-A norma objeto de fiscalização [resultante da conjugação do artigo 2.º da Lei n.º 62/2011, e dos artigos 35.º, n.º 1, e 101.º, n.º 2, do CPI], ao não admitir a invocação, no processo que corre perante do tribunal arbitral necessário, da nulidade da patente a título de estrito meio de defesa, como mera exceção perentória, configura uma restrição ao direito fundamental de defesa em tribunal previsto no artigo 20.º da Constituição;
c.-De acordo com o princípio da proporcionalidade, as restrições de direitos fundamentais devem limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos – cf. o artigo 18.º, n.º 2 da CRP;
d.-A mera possibilidade de interposição de uma ação de declaração de nulidade ou anulação não se revela um meio alternativo eficaz para suprir a necessidade de defesa do requerente da AIM, podendo resultar numa ablação total do seu direito de defesa pela impossibilidade de invocação da nulidade da patente na ação arbitral, considerando que (i) a instauração da ação de nulidade dificilmente terá influência sobre a resolução do litígio pendente na arbitragem, (ii) a declaração de nulidade pelo Tribunal da Propriedade Intelectual tem efeitos ex tunc mas com ressalva dos efeitos jurídicos já produzidos em cumprimento de decisão transitada em julgado (cf. o artigo 36.º do CPI), o que, considerando a demora do pleito judicial[[7]], possibilita a condenação do requerente da AIM pela prática de uma infração de um direito nulo, vinculando-o relativamente a indemnizações ou sanções pecuniárias compulsórias fixadas pelos tribunais arbitrais;
e.-A obtenção da suspensão da instância arbitral por efeito do desencadear de uma ação de nulidade é incerta, considerando o interesse na celeridade da composição do litígio nas acções arbitrais instauradas ao abrigo da Lei n.º 62/2011;
f.-Na hipótese de o tribunal arbitral não determinar a suspensão, podem verificar-se consequências muito melindrosas e funestas para a requerente da AIM, mesmo que a invalidade do direito venha a ser mais tarde declarada, face ao artigo 36.º do CPI, que prevê que o transito em julgado da decisão arbitral inviabiliza os efeitos retroativos da decisão judicial;
g.-Pode não ser do interesse do requerente da AIM ver declarada a nulidade da patente com efeitos erga omnes, mas tão só defender-se da condenação que contra si é pedida na arbitragem; A anulação da patente erga omnes pode mesmo ser contrária aos seus interesses, uma vez que beneficia terceiros concorrentes com o titular da patente;
h.-Face ao exposto no ponto anterior, não é razoável impor ao requerente da AIM a prossecução de interesses de terceiros, o que representa um condicionamento da liberdade de iniciativa económica constitucionalmente tutelada.”
Termos em que as Requeridas consideram que a decisão interlocutória do Tribunal Arbitral aqui impugnada foi preferida em estrita conformidade com o alcance da competência que lhe é atribuída pela Lei n.º 62/2011 e requerem que o pedido de anulação formulado pela Requerente nos presentes autos seja indeferido.

1.4. No exercício do contraditório, a Requerente pronunciou-se sobre a junção, pelas Requeridas, da Decisão Sumária do Tribunal Constitucional, de 8 de Março de 2018, e acerca das excepções invocadas na Oposição, concluindo como no pedido de anulação da decisão interlocutória do Tribunal Arbitral.

Para tanto, contrapôs, em substância, os seguintes argumentos:
“O Decreto-Lei 110/2018, que quanto a este ponto entrou em vigor no dia 9 de janeiro de 2019, veio alterar a natureza das arbitragens a que estão sujeitos os litígios referidos no artigo 2.º da Lei 62/2011, as quais passaram de necessárias a voluntárias.
Sem prejuízo de tal preceito se aplicar apenas às arbitragens voluntárias que venham a ser iniciadas ao abrigo da Lei 62/2011, com a redação do Decreto-Lei 110/2018 (artigo 12.º do Código Civil).
…o que verdadeiramente releva é, evidentemente, a sua inconstitucionalidade.

Enquanto a discussão se centrava anteriormente na (in)constitucionalidade da interpretação segundo a qual os Tribunais Arbitrais teriam competência para conhecer da validade de um direito de propriedade industrial com meros efeitos inter partes, decorrente da conjugação dos artigos 35.º, n.º 1 e 101.º do Código da Propriedade Industrial (dimensão normativa sobre a qual o Tribunal Constitucional se debruçou nos Acórdãos referidos pela S…e pela P…), a tónica deverá agora ser colocada na própria (in)constitucionalidade do artigo 3.º, n.º 3, da Lei n.º 62/2011.

A nova discussão terá, pois, como base uma norma e já não uma determinada interpretação normativa.

Mas foi tão somente isto que se alterou.

E o facto de ser consagrada a nova disposição em apreço não altera o facto de qualquer declaração de invalidade de um direito de propriedade industrial com efeitos inter partes ser inconstitucional.

E isto seja qual for o tribunal que o faça – a inconstitucionalidade radica na eficácia inter partes de tal declaração.

Assim, contrariamente ao que a S… e a P… os advogam, não houve qualquer “clarificação” da questão da competência dos tribunais arbitrais, na medida em que nada havia para clarificar infraconstitucionalmente.

Também devem ser totalmente recusadas as considerações tecidas pela Sandoz e pela Pharos segundo as quais a tese sustentada pela Gilead a respeito da incompetência dos Tribunais Arbitrais para conhecer da validade de direitos de propriedade industrial com efeitos inter partes é contra legem, por estar alegadamente em contradição com o artigo 3.º, n.º 3 da Lei 62/2011 (cf. Ponto 88. da Oposição), visto que, como referido, a norma em causa é inválida, padecendo de inconstitucionalidade.

Não é pelo facto de o legislador ter positivado uma norma infraconstitucional que a questão de inconstitucionalidade fica solucionada – bem pelo contrário.

Mais se diga que, contrariamente ao que a S… e a P… referem, não é minimamente expectável que seja proferida uma decisão com força obrigatória geral a favor da não inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual é possível a prolação de uma decisão com meros efeitos inter partes, a respeito da validade de direitos de propriedade industrial (cf. Ponto 101. da Oposição) – também bem pelo contrário.

É que, a Decisão Sumária n.º 160/2018 junta pela S… e pela P… como Doc. n.º 1, que confirmou o entendimento vertido no Acórdão n.º 251/2017, foi revertida.

A G… reclamou dela para a Conferência, tendo esta deferido a sua reclamação (cf. Acórdão disponível emhttp://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20180539.html).
O que significa, só por si, que o Tribunal Constitucional aceitou rever a posição previamente expressa, estando esta questão longe de pacificação.

É evidente a inconstitucionalidade da solução segundo a qual os tribunais arbitrais, ou quaisquer outros, são competentes para decidir sobre a validade de direitos de propriedade industrial com efeitos inter partes (seja essa solução veiculada por via da conjugação dos artigos 35.º, n.º 1 e 101.º do CPI, seja por força do artigo 3.º, n.º 3 da atual redação da Lei 62/2011).”

II Saneamento
O Tribunal é competente, não se verificando quaisquer excepções dilatórias, nulidades ou questões prévias que importe decidir.
Não existe qualquer meio de prova a produzir.

III Objecto e delimitação do litígio
A questão posta à nossa decisão é a da competência do Tribunal Arbitral para apreciar e conhecer, a título incidental, por via da invocação de uma excepção, da validade de uma patente, no caso a EP ‘397, ainda que com eficácia inter partes.

IVFundamentação
A)Motivação de facto
Os factos com relevância para a decisão a proferir são os descritos no relatório que antecede [capitulo I] e, além desses, os seguintes, que decorrem dos autos:
1.- O Tribunal Arbitral foi instalado no dia 23 de Outubro de 2017, data em que foi aprovada a correspondente Acta de Instalação, e é composto pelos Ex.mos Senhores Professor Doutor Rui Pinto, Professor Doutor Dário Moura Vicente e Professor Dou­tor Pedro Romano Martinez (este último, enquanto Presidente) – conforme doc. 2 junto com o requerimento inicial.
2.- Sobre a sua competência para a apreciação da questão da invalidade da patente EP’397, o Tribunal Arbitral, em 11 de Julho de 2018, proferiu a seguinte decisão interlocutória:
“No processo arbitral movido pela G…INC., contra S…,Lda. e P…, Ltd., referente às substâncias activas designadas por “Tenofovir, Disoproxil”, “Emtricitabina; Tenofovir, Disoproxil” e “Efavirenz, Emtricitabina, Tenofovir, Disoproxil Fumarato”, relativas aos medicamentos de referência denominados “Viread”, “Truvada” e “Atripla”, na audiência preliminar, foram proferidos os seguintes despachos:
1)- Por acordo das Partes é a S…absolvida da instância;
2)- O Tribunal arbitral considera-se competente para apreciar a invocada invalidade da Patente 2682397 por falta de actividade inventiva;
2)- Com o acordo das Partes é prorrogado o prazo da arbitragem pelo prazo de seis meses a contar da data em que terminaria o inicial prazo de um ano, concretamente até 23 de Junho de 2019.

O primeiro e o terceiro despachos não carecem de outra justificação para além do facto de resultarem de acordo alcançado nas peças processuais ou de encontrar justificação na delonga processual inerente ao objecto do processo e de ter havido também acordo das Partes.

Mas o segundo despacho, a que a Demandante se opôs, carece de uma justificação pormenorizada.

A Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, não é clara quanto ao efeito da defesa por excepção no que respeita aos litígios em apreço, devendo conciliar-se a tutela propriedade industrial com os princípios do direito processual civil. Os tribunais arbitrais necessários podem, em razão da matéria (arbitrabilidade objectiva), apreciar e julgar litígios que respeitem a interesses de natureza patrimonial (art. 1.º, n.º 1, da Lei n.º 63/2011), mormente de propriedade intelectual. Ora, a arbitrabilidade de conflitos de direitos de patente relativos a medicamentos de referência e medicamentos genéricos não pode desligar-se da natureza jurídica das posições jurídicas subjectivas em causa: O direito de patente (e os demais direitos de propriedade industrial) goza de eficácia e oponibilidade erga omnes; assim tutelando o respectivo titular. Os titulares de patentes sobre medicamentos de referência podem reagir contra uma violação do direito tutelado e tais litígios são susceptíveis de serem dirimidos pela via arbitral, em especial arbitragem necessária. Mas os litígios que se refiram à apreciação da validade da patente com o efeito de fazer extinguir a correspondente tutela estão confinados aos tribunais judiciais; com efeito, o artigo 35.º, n.º 1, do CPI dispõe que a nulidade de uma patente só pode ser decretada por decisão judicial, excluindo a intervenção de um tribunal arbitral.

Como a declaração judicial de nulidade de uma patente com eficácia erga omnes só pode ser decidida pelo Tribunal da Propriedade Intelectual, estando sujeita ao averbamento no INPI, poder-se-ia discutir da legitimidade de intervenção do tribunal arbitral nesta sede. Como por via da Lei n.º 62/2011 foram conferidos poderes jurisdicionais aos tribunais arbitrais para apreciar questões emergentes de direito industrial relacionado com patentes, importa conjugar estes regimes com as regras processuais implicitamente aplicáveis.

A Demandada nestas arbitragens necessárias tem obviamente o direito de contestar, recorrendo a todas as vias processuais, em que se incluem as excepções peremptórias, como a de invalidade do direito invocado. Entre tais excepções pode incluir-se a caducidade da patente ou a sua invalidade. Não se está, por esta via a «cindir» a patente, mas a admitir o recurso às vias processuais comuns na apreciação de um pedido.

A questão é, como indicado, controversa e cabe atender a duas decisões judiciais especialmente relevantes.

No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2016 (Relator: Lopes do Rego), entendeu-se que ao Tribunal Arbitral está vedado pronunciar-se sobre a validade da patente, atenta a inoponibilidade erga omnes da sentença arbitral e, em especial, o regime restritivo estabelecido no citado Código da Propriedade Industrial. De modo diverso, no Acórdão n.9 251/2017 do Tribunal Constitucional, de 24 de Maio de 2017, julgou-se “inconstitucional a norma interpretativamente extraível do artigo 2.º  da Lei nº2 62/2011, de 12 de dezembro e artigos 35.º, nº 1, e 101.º, n.º 2, do Código da Propriedade Industrial, ao estabelecer que, em sede de arbitragem necessária instaurada ao abrigo da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, a parte não se pode defender, por exceção, mediante invocação da invalidade de patente, com meros efeitos inter partes” .

Deste modo, conciliando estas duas perspectivas, principalmente para não coarctar a defesa processual da Demandada, o Tribunal arbitral entende que, para a composição de litígios emergentes de direitos de propriedade industrial quando estejam em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos, em que a declaração de invalidade dos direitos é apresentada na contestação, é competente para apreciar da patenteabilidade da invenção, sem que a declaração de nulidade ou confirmação da respectiva validade da patente tenha efeitos erga omnes. Deste modo, o Tribunal Arbitral verificará se existem causas de nulidade da patente em apreço, apreciando a excepção de invalidade invocada com eficácia meramente inter partes.

Tendo em conta que os objectivos de celeridade e utilidade, perspectivados pela Lei n.º 62/2011 para os procedimentos de arbitragem necessária, não subsistem à demora normal do julgamento da causa prejudicial (a ação judicial de declaração de nulidade da patente), o Tribunal Arbitral decide apreciar a exceção de invalidade do direito invocado, circunscrevendo a decisão que vier a ser tomada à relação processual subjacente.”

B)Motivação de direito
1.- Estamos em face da impugnação de uma decisão interlocutória, nos termos do n.º 9 do art.º 18 da LAV, aplicável por via do n.º 8 do art.º 3.º da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, na qual o Tribunal Arbitral (necessário) declarou ter competência para decidir incidentalmente as questões suscitadas por via de excepção pelas demandadas, aqui Requeridas S…, Lda. e P… Ltd., sobre a validade da EP ‘397.

Esta impugnação interlocutória tem plena justificação.

Como salientado por Menezes Cordeiro[[8]], a lei pretendeu evitar a continuação de um processo inútil: “Invocada uma incompetência não reconhecida pelo tribunal arbitral para quê aguardar pelo termo do processo para consumar, só então, o recurso ao foro estadual? A impugnação interlocutória visa clarificar a situação, oferecendo segurança”.

Nos termos do art.º 46.º, n.º 3, alínea a-iii) da LAV, para o qual remete o n.º 9 do citado art.º 18, a decisão arbitral pode ser anulada pelo tribunal estadual se demonstrado que ela se “pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou contém decisões que ultrapassam o âmbito desta”.

Ora, feitas as devidas adaptações, porque estamos em face de uma arbitragem necessária imposta pelo art.º 2.º da Lei 62/2011, de 12 de Dezembro, é nesse espaço que nos situamos: ponderação sobre se o Tribunal Arbitral quando decidiu ser competente para apreciação das questões suscitadas por via de excepção pelas demandadas S…, Lda. e P…, Ltd., sobre a validade da EP ‘397 se pronunciou sobre questões que ultrapassam aquelas que a lei impõe (e permite) que por ele sejam decididas e sobre as quais não se deveria pronunciar.

2.- Determina o art.º 2.º da Lei 62/2011, de 12 de Dezembro, na versão vigente à data do início do litígio/instalação do Tribunal Arbitral (necessário):
“Os litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial, incluindo os procedimentos cautelares, relacionados com medicamentos de referência, na acepção da alínea ii) do n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 176/2006, de 30 de Agosto, e medicamentos genéricos, independentemente de estarem em causa patentes de processo, de produto ou de utilização, ou de certificados complementares de protecção, ficam sujeitos a arbitragem necessária, institucionalizada ou não institucionalizada.”

Por sua vez, o citado normativo, na versão resultante da alteração introduzida pelo Dec.-Lei n.º 110/2018, de 10 de Dezembro, com início de vigência em 9 de Janeiro de 2019 [cf. art.º 16.º, n.º 1], estipula:

“Os litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial, incluindo os procedimentos cautelares, relacionados com medicamentos de referência, designadamente os medicamentos que são autorizados com base em documentação completa, incluindo resultados de ensaios farmacêuticos, pré-clínicos e clínicos, e medicamentos genéricos, independentemente de estarem em causa patentes de processo, de produto ou de utilização, ou de certificados complementares de protecção, podem ser sujeitos a arbitragem voluntária, institucionalizada ou não institucionalizada.”

Sucede que de acordo com o n.º 1 do art.º 35 do CPI, na redacção dada pelo Dec.-Lei n.º 143/29008, de 25 de Julho, a declaração de nulidade ou a anulação dos direitos de propriedade industrial “só podem resultar de decisão judicial”.

E, de acordo com o n.º 1 do art.º 34.º do CPI aprovado pelo Dec.-Lei n.º 110/2018, de 10 de Dezembro -  com início de vigência previsto para 1 de Julho de 2019 [art.º 16.º, n.º 3] -“A declaração de nulidade ou a anulação de patentes, de certificados complementares de protecção, de modelos de utilidade e de topografias de produtos semicondutores só podem resultar de decisão judicial.”

A propósito da inarbitrabilidade das questões relativas à validade dos direitos de propriedade industrial refere César Bessa Monteiro [[9]] que “as matérias que envolvam a titularidade ou validade de um direito de Propriedade Industrial não podem ser submetidas a arbitragem, nomeadamente porque nenhuma decisão arbitral poderia ser exequível erga omnes. Pode dizer-se que as matérias relativas à titularidade de um direito de propriedade industrial ou à sua validade não dizem respeito exclusivamente às partes interessadas, mas em muitos casos, estão também envolvidos terceiros e ainda interesses públicos, como é o caso, por exemplo, da protecção do consumidor. Além disso, o registo tem como finalidade alertar terceiros para a titularidade do direito e por isso mesmo qualquer decisão que implique a alteração do mesmo deveria, consequentemente, ser emitida somente por uma autoridade pública”.

Também Pedro Silva e Sousa [[10]] entende que a anulação ou declaração de invalidade «não pode ser conhecida a título meramente incidental ou por via de excepção processual, pois enquanto um DPI não se extinguir por efeito de uma decisão transitada em julgado, continuará a produzir plenamente os seus efeitos».

Escrevendo-se no “Código da Propriedade Industrial Anotado”[[11]], relativamente à arbitragem necessária respeitante a medicamentos: «Um dos pontos mais controvertidos é o de saber se o tribunal arbitral tem competência para apreciar a validade da patente por excepção, com eficácia inter-partes. O entendimento mais razoável é o de que tal não deve ser possível “de iure constituto”.

O artigo 35º, nº 1 do CPI estabelece que “a declaração de nulidade ou a anulação dos direitos de propriedade industrial só podem resultar de decisão judicial”.

A invalidade das situações registadas não se “verifica” nem se “constata” incidentalmente, tendo sempre de ser declarada judicialmente para produzir os seus efeitos.

Pelo exposto, entre outras razões, é de rejeitar a possibilidade de invocação da invalidade da patente por via de excepção, com meros efeitos inter partes, quer em acções que corram termos nos tribunais estaduais quer em tribunais arbitrais (…)

A razão pela qual o CPI remete para a competência exclusiva dos Tribunais judiciais a decisão sobre a invalidade funda-se no reconhecimento de que os direitos de propriedade industrial (direitos fundamentais) não se encontram na disponibilidade absoluta dos respectivos titulares.

Se, por disposição legal (art.º 35, n.º 1 do CPI), os tribunais arbitrais não têm competência para apreciar a validade, em razão da matéria, logicamente que não poderão apreciar tal questão por via de excepção. A incompetência dos tribunais arbitrais reveste natureza substantiva e não meramente processual. Quando a lei veda aos tribunais arbitrais o conhecimento da invalidade das patentes, a norma deve ser considerada como uma norma de ordem pública, compreensível pelo princípio da tipicidade e das garantias legais destes direitos.

Não é aceitável a declaração por tribunais arbitrais da invalidade relativa da patente que é um direito absoluto registado (…)».

Todavia, este entendimento não é, de forma alguma, uniforme, quer na doutrina, quer na jurisprudência.

A maioria das decisões desta Relação de Lisboa, por exemplo, vão no sentido de que o tribunal arbitral necessário carece de competência para apreciar, ainda que a título de mera excepção, a questão invocada da invalidade de patente [cfr. acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, de 13-02-2014 - Proc.º 1053/13.7YRLSB-2 (Desembargador Jorge Leal(; de 21-05-2015 - Proc.º 1465/14.9YRLSB-6, (Desembargador Tomé Ramião); de 04-02/2016 - Proc.º 138/15.0YRLSB.L1-8 (Desembargador Sacarrão Martins), disponíveis em www.dgsi.pt.].

Também se tem formado uma corrente de decisões arbitrais no mesmo sentido.

Na doutrina, existem posições divergentes – assim, por exemplo, Dário Moura Vicente [[12]], argumentando que «não seria aceitável que a competência dos tribunais arbitrais constituídos nos termos da lei n.º 62/2011 se cingisse à determinação da ocorrência da alegada violação de um direito de propriedade industrial e à eventual condenação dos demandados nas sanções a ela inerentes, excluindo-se a possibilidade de esses mesmos tribunais se pronunciarem sobre os meios de defesa aduzidos pelos demandados que contendam com a validade ou a vigência dos títulos de propriedade industrial em causa». E isto «pela flagrante injustiça que representaria a eventual condenação, por um tribunal arbitral necessário, do suposto infrator de um direito de propriedade industrial alheio cujo título fosse inválido»; pela incompatibilidade com o princípio do contraditório que constitui uma das traves mestras do processo justo ou equitativo que o art. 20.º, n.º 4, da Constituição garante; porque de outro modo «se teria introduzido na ordem jurídica portuguesa, pelo que respeita aos processos que correm perante os tribunais arbitrais necessários criados pela lei n.º 62/2011, uma injustificada derrogação ao princípio geral conforme o qual o tribunal competente para a ação é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa».

Esta divergência de posições, também encontra reflexos ao nível da jurisprudência, ainda que traduzindo uma tendência minoritária.

Esta Relação de Lisboa, embora continue a manter uma orientação maioritária no sentido da inadmissibilidade de os tribunais arbitrais conhecerem, a título incidental, das questões de invalidade da patente [ou do CCP], já proferiu decisões em sentido contrário, apoiando-se, essencialmente, num dos argumentos invocados pelas Requeridas: no respeito pelo princípio do contraditório, enquanto reconhecimento do direito à defesa, consagrado no art.º 20.º da Constituição da República Portuguesa [doravante CRP]. Esta corrente jurisprudencial minoritária, esgrimindo com o princípio pro actione, que enforma o direito processual, entende que se deverá admitir esse conhecimento quando tal seja necessário para assegurar o princípio constitucional do direito a um processo equitativo.

Assim, foi entendido por esta Relação, por exemplo, no seu acórdão de 13-01-2015, proferido no processo n.º 1356/13.OYRLSB.L1-7 (Desembargadora Rosa Ribeiro Coelho), disponível em www.dgsi.pt.

Ora, em Portugal, a Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, veio instituir um, regime especial e em certa medida original de arbitragem necessária para os litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial, incluindo os procedimentos cautelares relacionados com medicamentos de referência.

Um dos objectivos da lei consistiu em deslocar do TPI, criado pela Lei n.º 46/2011, de 24 de Junho, e dos tribunais administrativos, para a instância arbitral o vasto contencioso que se gerou em Portugal em torno de actos de autorização de introdução no mercado [AIM] de medicamentos genéricos, permitindo mais celeridade na sua resolução.

A lei passou a impor ao interessado que pretendesse invocar o seu direito de propriedade industrial que o fizesse junto do tribunal arbitral institucionalizado ou que efectuasse o pedido de submissão do litígio a arbitragem não institucionalizada, no prazo de trinta dias a contar da publicação dos pedidos de AIM, ou de registo [art.º 3.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, na redacção original].

Reconhecendo que o circunstancialismo que levou à aprovação da Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro, que criou um regime de composição dos litígios emergentes dos direitos de propriedade industrial quando estavam em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos foi ultrapassado, o legislador, através do Dec.-Lei n.º 110/2018, de 10 de Dezembro, já referido, optou por revogar o regime de arbitragem necessária então criado, deixando às partes a opção entre o recurso a arbitragem voluntária ou ao tribunal judicial competente – o TPI. Daí as alterações introduzidas à redacção dos artigos 2.º e 3.º da Lei n.º 62/20111, de 12 de Dezembro.

Esta alteração, com início de vigência em 9 de Janeiro de 2019, não se aplica ao caso em apreciação, mas apenas às arbitragens voluntárias que venham a ser iniciadas ao abrigo da Lei n.º 62/2011, com a redacção dada pelo Dec.-Lei n.º 110/2018 [art.º 12.º do Código Civil].

Ainda assim sempre se dirá, acompanhando aqui a Requerente, ora Impugnante, que as novas disposições [art.ºs 2.º e 3.º da Lei n.º 62/2011, na redacção actual] não alteram o facto de qualquer declaração de invalidade de um direito de propriedade industrial com meros efeitos inter partes ser inconstitucional.

Com bem refere a Requerente, “Enquanto a discussão se centrava anteriormente na (in)constitucionalidade da interpretação segundo a qual os Tribunais Arbitrais teriam competência para conhecer da validade de um direito de propriedade industrial com meros efeitos inter partes, decorrente da conjugação dos artigos 35.º, n.º 1 e 101.º do Código da Propriedade Industrial (dimensão normativa sobre a qual o Tribunal Constitucional se debruçou nos Acórdãos referidos pela S…e pela P…), a tónica deverá agora ser colocada na própria (in)constitucionalidade do artigo 3.º, n.º 3 da Lei n.º 62/2011.”

Sem embargo, a problemática com que estamos confrontados tem de ser perspectivada e decidida a luz do regime anteriormente vigente, sendo certo que no caso nem sequer existe acordo das partes quanto à sujeição do litígio que as opõe a um Tribunal Arbitral.

Aqui chegados, trazemos à colação, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-12-2016, proferido Proc. 1248/14.6YRLSB.S1, relatado pelo Conselheiro Lopes do Rego, disponível em www.dgsi.pt., referido na decisão Arbitral interlocutória impugnada, aresto a cuja argumentação exaustiva e convincente, aderimos.

No referido aresto, que seguiu a posição maioritária na jurisprudência, considerou-se:                                                                                                           
«6.-São dois os argumentos fundamentais que estão na base da tese ampliativa, que admite o conhecimento pelo tribunal arbitral da estrita excepção peremptória de invalidade da patente, com efeitos circunscritos ao processo:
- invoca-se, por um lado, no plano do direito infraconstitucional, a regra constante do art.º 91º do CPC, segundo a qual o tribunal competente para a acção é também competente para conhecer dos incidentes que nela se levantem e das questões que o réu suscite como meio de defesa;
- sustenta-se, por outro lado, num plano situado já na esfera do art.º 20º da Constituição, que a impossibilidade de suscitar e ver apreciada, no âmbito do referido processo e pelo tribunal arbitral necessário perante o qual ele decorre, a referida excepção de nulidade da patente ofenderia os princípios fundamentais do contraditório e a efectividade do direito de defesa do demandado.

Começando pelo primeiro aspecto, importa verificar se a regra afirmada pelo art.º 91º do CPC terá, porventura, carácter absoluto ou se, pelo contrário, será susceptível de excepções, identificadas no ordenamento jurídico, em função das quais, em determinadas acções ou situações processuais, estará o demandado impedido de trazer à colação factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do autor, suscitando e vendo incidentalmente decidida matéria ou questão integradora de determinada excepção peremptória.

Parece-nos, na verdade, que a dita regra ou princípio não tem natureza absoluta, sendo facilmente identificáveis situações em que – sem margem de dúvida relevante – a mesma cede, sendo consequentemente inviável ao réu suscitar e ver incidentalmente apreciada determinada matéria que, em regra, constituiria o substrato de certa excepção peremptória – sendo possível distinguir, desde logo, três tipos de situações, conforme a inviabilidade da suscitação da excepção se prende:
- com a peculiar natureza da relação material controvertida;
- com razões atinentes à competência material exclusiva do tribunal;
- com expressa opção legislativa que impõe que determinado facto, ainda que dotado de eficácia extintiva da pretensão, apenas possa ser invocado sob a capa da figura processual da reconvenção.
a)- Exemplo paradigmático da primeira situação, atrás elencada, é o que se verifica com a impugnabilidade dos factos definidores do estado civil das pessoas: na verdade, nos termos do art.º 3º do CRC, sob a epígrafe Valor probatório do registo:
1- A prova resultante do registo civil quanto aos factos que a ele estão obrigatoriamente sujeitos e ao estado civil correspondente não pode ser ilidida por qualquer outra, a não ser nas acções de estado e nas acções de registo.
2- Os factos registados não podem ser impugnados em juízo sem que seja pedido o cancelamento ou a rectificação dos registos correspondentes
Significa isto que a controvérsia acerca do estado civil das partes em determinada acção – ou sobre a validade do acto de registo que o publicita - apenas pode ter lugar se se tratar de acção de estado ou de registo: ou seja, não é possível, numa acção de conteúdo patrimonial, suscitar e ver decidida incidentalmente, quer como matéria de mera excepção, quer como objecto de um autónomo, embora conexo, pedido reconvencional, a existência ou validade de determinado facto constitutivo do estado civil de algum dos interessados ou de uma relação familiar ou conjugal, sujeito obrigatoriamente a registo e por ele plenamente demonstrado.

A, na qualidade de filho perfilhado do de cujus, intenta contra B, detentor dos bens da herança, acção de reivindicação de determinado imóvel nela compreendido: perante o referido regime legal, não é possível ao R. excepcionar a impugnação da perfilhação de que beneficia o A. e que naturalmente condiciona a procedência do seu invocado direito, demonstrando que, afinal, inexistiria a relação biológica com o perfilhante, que condiciona a validade da perfilhação efectuada, nos termos do art. 1859º do CC.

Demandados os cônjuges, em acção de cumprimento de dívida alegadamente comunicável, não é lícito suscitar, como meio de defesa, a questão da invalidade do casamento, já que tal matéria só pode ser abordada e decidida no campo das acções de estado, como thema decidendum da pertinente acção anulatória, nos termos do art. 1632º do CC.

Saliente-se que este fenómeno jurídico já era realçado por Castro Mendes (Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil, pag.170), ao assinalar um ponto que não tem sido suficientemente posto em foco pela doutrina: o de que há questões que, a serem deduzidas e decididas em termos de caso julgado, no processo, o têm de ser como objecto principal dele, como thema decidendum, não admitindo decisão em termos de verdadeiro caso julgado (mesmo relativo) como causa de pedir ou excepção – e apresentando precisamente como exemplos situações referentes ao divórcio, anulação do casamento e acções de filiação.

Por outro lado – e perante o disposto no n.º 2 do referido art. 3º- afigura-se que não será nunca admissível, nesta sede, a prolação de uma decisão meramente incidental sobre factos constitutivos do estado civil que se não repercuta ou projecte necessariamente no conteúdo do registo: não pode obviamente proferir-se decisão incidental sobre a impugnação da filiação ou acerca da validade do casamento que se não projecte imediatamente no conteúdo do respectivo registo civil; ou seja, no nosso entendimento, a lei afasta, clara e cabalmente, a possibilidade de haver qualquer contradição ou oposição entre o registo civil e o conteúdo de determinada decisão judicial que – embora com eficácia pretensamente circunscrita apenas ao processo - julgasse procedentemente impugnado certo facto sujeito obrigatoriamente a registo (por exemplo, decretando, sem eficácia erga omnes e sem que tal decisão se projectasse imediatamente no registo civil da filiação, que, afinal, o A. não era filho biológico de perfilhando, perspectivando-se esta questão como meramente prejudicial da pretensão de reivindicação dos bens da herança).

b)-Exemplo do segundo tipo de situações, atrás elencadas, em que a competência exclusiva de certo tribunal para apreciar determinada matéria preclude a possibilidade de a mesma ser suscitada, embora em termos meramente incidentais, em causa pendente perante outro tribunal, é-nos dada pela Acórdão de 13/7/06, proferido pelo TJ no P. C‑4/03, em que se decidiu que:
O artigo 16.°, n. 4, da Convenção de 27 de Setembro de 1968 relativa à competência judiciária e à execução de decisões em matéria civil e comercial, alterada, em último lugar, pela Convenção de 29 de Novembro de 1996 relativa à adesão da República da Áustria, da República da Finlândia e do Reino da Suécia, deve ser interpretado no sentido de que a regra de competência exclusiva que estabelece abrange todos os litígios relativos à inscrição ou à validade de uma patente, quer a questão seja suscitada por via de acção quer por via de excepção.

Tal decisão assentou na seguinte linha argumentativa:
24No que respeita à posição que o artigo 16.° da Convenção ocupa no sistema da mesma, importa assinalar que as regras de competência previstas neste artigo estão dotadas de uma natureza exclusiva e imperativa que se impõe com uma força específica tanto aos particulares como ao juiz. As partes não as podem derrogar mediante um pacto atributivo de jurisdição (artigo 17.°, quarto parágrafo, da Convenção) nem mediante a comparência voluntária do requerido (artigo 18.° da Convenção). O juiz de um Estado contratante perante o qual tiver sido proposta, a título principal, uma acção relativamente à qual tenha competência um tribunal de outro Estado contratante por força do artigo 16.° da Convenção, declarar-se-á oficiosamente incompetente (artigo 19.° da Convenção). Qualquer decisão proferida em violação das disposições do artigo 16.° não beneficia do sistema de reconhecimento e de execução da Convenção (artigos 28.°, primeiro parágrafo, e 34.°, segundo parágrafo, da Convenção).
25Tendo em conta a posição que o artigo 16.°, n. 4, da Convenção ocupa no sistema desta última e a finalidade prosseguida, há que considerar que a competência exclusiva prevista por esta disposição deve ser aplicada qualquer que seja o quadro processual em que a questão da validade de uma patente é suscitada, ou seja, independentemente de esta questão ser suscitada por via de acção ou por via de excepção, no momento da propositura da acção ou numa fase mais avançada do processo.
26Em primeiro lugar, permitir ao juiz perante o qual tiver sido proposta uma acção fundada em contrafacção ou uma acção declarativa de não contrafacção declarar, a título incidental, a nulidade da patente em causa prejudicaria a natureza imperativa da regra de competência prevista no artigo 16.°, n. 4, da Convenção.
27Com efeito, apesar de o artigo 16.°, n.º 4, da Convenção não estar na disponibilidade das partes, o demandante conseguiria, através da simples formulação dos seus pedidos, contornar o carácter imperativo da regra de competência estabelecida neste artigo.
28Em segundo lugar, a possibilidade assim oferecida de contornar o artigo 16.°, n. 4, da Convenção conduziria a uma multiplicação dos foros competentes e seria susceptível de afectar a previsibilidade das regras de competência estabelecidas pela Convenção e, por conseguinte, o princípio da segurança jurídica enquanto fundamento dessa Convenção (v. acórdãos de 19 de Fevereiro de 2002, Besix, C-256/00, Colect., p. I-1699, n.os 24 a 26, de 1 de Março de 2005, Owusu, C-281/02, Colect., p. I-1383, n.° 41, e acórdão de hoje, Roche Nederland e o., C-539/03, Colect., p. I-0000, n.° 37).
29Em terceiro lugar, a admissão, no sistema da Convenção, de decisões em que órgãos jurisdicionais, que não os do Estado de concessão de uma patente, decidem a título incidental sobre a validade dessa patente multiplicaria igualmente o risco de decisões contraditórias que a Convenção visa precisamente evitar (v., neste sentido, acórdãos de 6 de Dezembro de 1994, Tatry, C-406/92, Colect., p. I-5439, n.° 52, e Besix, já referido, n.° 27).
30O argumento, avançado pela LuK e pelo Governo alemão, segundo o qual, de acordo com o direito alemão, os efeitos de uma decisão proferida a título incidental sobre a validade de uma patente se limitam às partes no processo, não constitui uma resposta adequada a esse risco. De facto, os efeitos associados a essa decisão são determinados pelo direito nacional. Ora, em vários Estados contratantes, a decisão que anula uma patente tem efeitos erga omnes. Para evitar o risco de decisões contraditórias, seria, portanto, necessário limitar a competência dos órgãos jurisdicionais de um Estado que não o da concessão para decidirem a título incidental sobre a validade de uma patente estrangeira aos casos em que o direito nacional aplicável confere à decisão a proferir apenas um efeito limitado às partes no processo. Tal limitação conduziria, contudo, a distorções, pondo assim em causa a igualdade e a uniformidade dos direitos e obrigações que decorrem da Convenção para os Estados contratantes e para as pessoas interessadas (acórdão Duijnstee, já referido, n.° 13).

Decorre, pois, claramente, da linha argumentativa adoptada pelo TJ que – ao menos em determinadas situações,- a atribuição de competência a certo tribunal é de tal modo exclusiva, face aos interesses em causa, que inibe em absoluto a possibilidade de qualquer outro tribunal se poder vir a pronunciar sobre a matéria reservada ao primeiro, ainda que a título puramente incidental e com efeitos circunscritos ao processo: e daqui decorre naturalmente que a parte que figurar como réu ou demandado na causa pendente perante o tribunal carecido de competência exclusiva fica privada da possibilidade de excepcionar quanto às matérias reservadas à apreciação exclusiva do único tribunal competente para as apreciar.
c)- Finalmente, existem casos em que a limitação à regra constante do referido preceito legal, contido no citado art. 91º, decorre de razões processuais ou adjectivas, particularmente da circunstância de o legislador ter estabelecido que certo facto impeditivo ou extintivo do direito do autor só pode ser deduzido por via reconvencional, impedindo em absoluto tal opção legislativa qualquer possibilidade de invocação dessa factualidade pela via incidental da excepção peremptória: ora, nos processos cuja tramitação, na fase dos articulados, não comporte a possibilidade de dedução de reconvenção, tal regime legal implica, em última análise, a impossibilidade de tal meio de defesa ser suscitado pelo réu e jurisdicionalmente apreciado.
O regime de invocabilidade da compensação, estabelecido no actual CPC, no art.º 266º, n.º 2, al. c) – ao prescrever que a reconvenção é o meio procedimental admissível quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor,- ilustra esta situação: na verdade, quem entenda que o regime em apreço não permite ao réu qualquer tipo de opção, isto é, que não se afigura possível ao réu optar entre a via reconvencional ou a mera invocação de um crédito sobre o autor por meio de excepção peremptória ( mesmo nos casos em que o contra crédito de que o réu fosse titular não excedesse o crédito invocado pelo autor), será naturalmente levado a concluir que não é possível operar a compensação nos processos cuja tramitação processual, na fase dos articulados, não comporte a possibilidade de reconvir, face à inexistência, na marcha do processo, de terceiro articulado, indispensável para responder ao pedido reconvencional.
Veja-se, por exemplo, em ilustração deste entendimento, o decidido no Ac. de 12/5/15, proferido pela Relação do Porto no P. 143043/14.5YIPRT.P1, em que se entendeu que :
I Face à redacção do art.º 266º, nº 2, al. c) do actual Cód. do Proc. Civil é de concluir que foi intenção do legislador estabelecer que a compensação de créditos terá sempre de ser operada por via da reconvenção, independentemente do valor dos créditos compensáveis.
II
Por esse motivo, no âmbito do processo especial previsto no Dec. Lei nº 269/98, no qual não é admissível reconvenção, não é possível operar a compensação de créditos por via de excepção quando o crédito invocado pelo réu é inferior ao do autor.
III Tal interpretação não é inconstitucional, porquanto não viola os princípios do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva contidos no art.º 20º da Constituição da República.
Pode, deste modo concluir-se que a situação discutida nos presentes autos – a entender-se que está efectivamente vedado ao requerido no procedimento arbitral consequente à AIM a invocação da excepção de nulidade da patente em causa – não origina seguramente o único caso em que, no ordenamento jurídico, está limitado ou restringido o princípio segundo o qual o tribunal da causa é sempre competente para apreciar incidentalmente todos os meios de defesa deduzidos pelo demandado, com efeitos circunscritos apenas ao próprio processo.

7.- Como é evidente, todas as excepções à regra constante do n.º 1 do art.º 91º do CPC implicam – ao inviabilizar a possibilidade de, em determinada acção, o réu ou requerido poder deduzir, ainda que a título meramente incidental, determinado meio de defesa – alguma compressão ou restrição à plenitude do contraditório e ao exercício do direito de defesa.

Não pode, porém, sem mais, concluir-se imediatamente que tal restrição ou limitação viola o direito de acesso aos tribunais, proclamado pelo art.º 20º da Constituição – sendo essencial apurar, perante cada grupo ou tipologia de situações, se essa restrição se configura como proporcional e adequada, ponderadas as razões e interesses determinantes da impossibilidade de dedução incidental do meio de defesa e valorados globalmente os meios procedimentais alternativos que permitam ainda, por outras vias, obter satisfatoriamente uma tutela jurisdicional efectiva dos direitos do demandado ou requerido.

Na verdade, não pode olvidar-se que as restrições à possibilidade de suscitação incidental de excepções peremptórias, em determinadas causas, têm na sua base razões perfeitamente diversas e legitimidades ou fundamentos materiais mais ou menos acentuados e intensos, sendo mais facilmente justificável tal compressão da plenitude do exercício de direito de defesa quando a restrição emerge da própria natureza da relação material controvertida ou assenta decisivamente no interesse fundamental de assegurar a competência - absolutamente imperativa e exclusiva - de determinado tribunal para apreciar a matéria ou tema subjacente à excepção peremptória – já podendo, pelo contrário, suscitar algumas dúvidas ou reservas a inviabilidade de dedução de um relevante meio de defesa ligado apenas ao tipo de tramitação processual adoptado pelo legislador.

Voltando aos exemplos atrás apresentados, supomos que não existirá fundamento minimamente convincente para questionar a conformidade ao art.º 20º da Lei Fundamental dos regimes que limitam às acções de estado e de registo a possibilidade de impugnação dos factos plenamente provados pelo registo civil, inviabilizando a suscitação incidental, como meros meios meio de defesa do demandado, no âmbito de acções patrimoniais; tal como não nos parece questionável, no plano do respeito pelas regras do processo equitativo, a solução jurisprudencial adoptada pelo TJ no acórdão, atrás referido, proferido no P. C-4/03, fundando-se a inviabilidade de arguição da excepção de nulidade da patente em relevantes interesses que justificam a atribuição, em termos perfeitamente imperativos, de competência material exclusiva a determinado tribunal; pelo contrário, já poderão suscitar dúvidas os casos em que a inviabilização da invocabilidade pelo réu de certo facto extintivo do direito do autor radique em meras questões ligadas à estruturação da fase dos articulados, como ocorre com o novo regime de dedução da compensação estabelecido no CPC de 2013 (veja-se, por exemplo, a abordagem desta questão no aresto atrás citado).

Ora, poderá considerar-se que a interpretação acolhida, no caso dos autos, pelo tribunal arbitral – ao inviabilizar ao demandado a dedução, por via de mera excepção (e obviamente sem que lhe fosse possível lançar mão do pedido de declaração incidental, previsto na parte final do nº 2 do art.º 91º do CPC), da nulidade da patente invocada pelo requerente – se revela adequada e proporcional, perante a fisionomia do litígio, a natureza do direito de patente e o carácter constitutivo do respectivo registo e a análise global das possibilidades de actuação processual, consentidas àquele sujeito?

Importa começar por realçar a – a nosso ver – indiscutível disfuncionalidade que decorre inelutavelmente da tese acolhida no acórdão recorrido, ao consentir na dedução incidental da excepção peremptória de nulidade da patente, permitindo que sobre tal matéria seja proferida decisão jurisdicional pelo tribunal arbitral, cujos efeitos permanecem circunscritos ao processo, não se repercutindo no registo da patente: na verdade, tal orientação permite que subsista intocado o registo constitutivo da patente, apesar da prolação de decisão jurisdicional que, no âmbito de tal processo, considerou nula a patente registada– conduzindo a que a dita patente passe a funcionar intermitentemente na ordem jurídica, sendo o direito ao uso exclusivo que essencialmente a caracteriza invocável contra a generalidade dos sujeitos, mas já não contra aquele ou aqueles que tivessem obtido procedência quanto à matéria da excepção peremptória de nulidade, incidentalmente suscitada e decidida sem eficácia erga omnes….

Teríamos, pois, uma inelutável relativização de um direito absoluto, levando, em termos que não podem deixar de gerar fundada perplexidade, a que a patente, objecto de intocado registo constitutivo - lavrado por entidade pública qualificada que apreciou previamente à sua feitura o escrupuloso cumprimento dos requisitos legais para a atribuição do direito privativo industrial – fosse incidentalmente inválida apenas em relação a um possível infractor próximo, permanecendo válida e operante em relação a todos os demais interessados.

Evaristo Mendes (ob. Cit.) enuncia, de forma certeira e exaustiva, as razões, no plano da satisfação adequada dos interesses contrapostos e da congruência das soluções jurídicas, que o levam a considerar pender a balança para a afirmação da incompetência do tribunal arbitral, afirmando nomeadamente:
Com efeito, no nosso ponto de vista, a melhor interpretação do direito vigente - tendo em conta aquele art. 35.º, n.º 1, do CPI, o teor dos arts. 2º e 3º da Lei nº 62/2011, bem como os valores e interesses envolvidos - é a de considerar que a matéria da nulidade é da competência exclusiva do TPI e que o vício só pode ser invocado perante este, mediante ação destinada a declará-lo com eficácia geral. Por conseguinte, quem pede uma AIM - sabendo que fica sujeito, por esse facto, a uma provável ação arbitral -, se quiser fazer valer tal meio de defesa, deverá propor a competente ação no TPI e, vindo a ser envolvido em subsequente arbitragem, requerer uma «suspensão» do processo até o TPI se pronunciar. O TA deferirá a pretensão se - excecionalmente, dados os termos em que o exclusivo é concedido e a circunstância de se tratar de patentes em fim de vida, via de regra já escrutinadas a nível mundial - houver fortes indícios capazes de vencer a presunção de validade de que a patente goza.

Uma vez que os pertinentes argumentos a favor da competência dos tribunais arbitrais podem encontrar-se nos escritos de Remédio Marques, identifica-se a seguir um conjunto de razões no sentido contrário, que completam a fundamentação do Acórdão em análise. São elas: (i) a nulidade respeita a um ato público de atribuição do direito, sendo tal direito de caráter absoluto, isto é, oponível erga omnes; a patente, ao atribuir ao titular o exclusivo temporário da exploração económica da invenção, impede a concorrência de se desenvolver livremente, pelo que, se o ato atributivo é nulo, no todo ou em parte, máxime por falta de novidade ou nível inventivo, importa favorecer a sua destruição, através de uma competente ação de declaração de nulidade, com eficácia erga omnes; ou seja, a nulidade das patentes é uma questão de interesse público económico (concorrencial), importando favorecer a sua declaração com eficácia geral; o meio apropriado para isso é uma ação de declaração de nulidade assim concebida; (ii) o art. 35.º, nº 1, do CPI confirma-o; o ato público de atribuição dodireito, em questão, é dotado de especiais garantias de legalidade, com vista, por um lado, a evitar restrições injustificadas à concorrência e, por outro lado, a assegurar o máximo de segurança e clareza jurídicas, importantes para o sistema de patentes cumprir a função de orientação e qualificação da concorrência, promovendo a inovação e a competição pela inovação - culminando um processo de exame, publicidade e/ou oportunidade de oposição, com possível recurso para os tribunais (incluindo, se for o caso, arbitrais); nessa medida, sendo também incomum (excecional, hoc sensu) a sua invalidade, mormente por falta dos requisitos materiais da novidade ou da atividade inventiva; (iii) a oponibilidade do direito erga omnes - e a correspondente eventual invalidade do ato que o concede - é fundamental para a igualdade concorrencial; admitir uma defesa por exceção, se esta for aceite pelo TA, significa colocar em vantagem quem o faz; além disso, a admissão da defesa por exceção, perante o TA, favorece conluios, entre o titular da patente e o requerente da AIM para produto genérico, mais uma vez contrários à igualdade concorrencial; (iv) dado o modo como a arbitragem necessária em apreço está concebida, a defesa por exceção, a admitir-se como princípio, poderá ocorrer numa multiplicidade de processos, sendo contrária à economia processual; um sistema de «ação de nulidade única» apresenta maior racionalidade económica e processual; (v) em suma, a defesa por exceção não é a melhor forma de defender o interesse público na eliminação de exclusivos/monopólios injustificados; a ação de nulidade - com possível «legitimidade aberta» e intervenção de todos os interessados, incluindo o MP e a entidade cujo ato é contestado (no caso, o INPI), e com decisão eficaz erga omnes - é, pois, a via preferível; a defesa por exceção cria um risco de decisões contraditórias, no caso um risco enorme de ocorrência de múltiplas decisões contraditórias; o que constitui um fator de desorganização da concorrência; o facto de haver recurso para o TRL limita, mas não elimina o alcance do risco; (vi) a defesa por exceção nos processos arbitrais em apreço - que, repete-se, podem ser vários apesar de a patente ser a mesma - é, ainda, contra o sentido fundamental de concentrar o contencioso da propriedade industrial no TPI, favorecendo a especialização/competência e evitando decisões contraditórias; os TA necessários são mera solução limitada e de recurso para resolver a atual insuficiência da via judicial; (vii) a arbitragem necessária respeita a patentes em fim de vida - sobejamente escrutinadas, a nível mundial; o legislador seguramente teve isso presente; e o texto da Lei - máxime, em conjugação com o art. 35.º, n.º1, do CPI - parece confirmá-lo, uma vez que a arbitragem se destina a permitir aos titulares das patentes a sua invocação contra quem requer uma AIM, não a discussão da sua validade/existência (art. 2º); o processo especial regulado no art.º 3.º pode ser desencadeado pelo mero pedido de AIM e está limitado, nos termos aí definidos; se - excecionalmente (com o processo existente e o «escrutínio universal», as invalidades são a exceção) - o ato atributivo da patente for inválido, a ação de nulidade pode ser facilmente proposta quando se requer a AIM; (viii) a solução da arbitragem necessária representa uma considerável limitação ao exercício dos direitos de patente, no setor em causa, colocando problemas de constitucionalidade que devem ser minorados, evitando interpretações da Lei que tornam inviável, nos exclusivos em fim de vida, que são a regra, a conclusão atempada dos processos, pondo em causa o princípio da justiça efetiva; sendo neste contexto que se situa a questão de saber se é excessivo ou não exigir aos demandados que queiram contestar a validade o recurso ao TPI; (ix) se o TA se considerasse competente, a eventual não invocação por um demandado da exceção de nulidade significaria, ao menos para alguns autores, a impossibilidade de o fazer também no futuro, mesmo não estando em causa o uso da AIM em questão, pelo que a solução também não é necessariamente a solução mais favorável aos demandados; (x) é certo que a solução preconizada, tendo a decisão valia geral, pode favorecer comportamentos oportunistas, levando alguns possíveis contestantes da validade a esperar que alguém proponha a competente ação no TPI; mas o oportunismo existe igualmente por parte de quem opta por não o fazer, preferindo opor-se à validade por via de exceção quando até tinha à sua disposição a via judicial; (xi) a questão é distinta das relativas ao âmbito da patente, à sua eventual caducidade e a uma possível inoponibilidade; não devendo as soluções defensáveis para estas estender-se a ela[xii].

É certo que Remédio Marques (ob. Cit., pag. 216 e segs.) procura atenuar a estranheza da solução que decorre da inelutável relativização de um direito absoluto, cujo conteúdo essencial se traduz na faculdade de uso exclusivo do resultado de determinada actividade inventiva, susceptível de aplicação industrial acentuando que mesmo nos direitos reais sobre coisas corpóreas (oponíveis erga omnes), a presunção de validade derivada do registo pode ser posta em causa por terceiros demandados pelo titular, aí onde este titular pode deixar de opor o seu direito real ao concreto réu, mas, em momento posterior lhe é lícito e possível opô-lo a outro (ou outros).

Pensamos, porém, que é necessária alguma cautela com o estabelecimento de analogia entre situações ocorridas no campo dos direitos reais e respectivo registo (que funciona como mera condição de oponibilidade a terceiros dos factos registados) e casos verificados no perímetro dos direitos de propriedade industrial em que – como é sabido – o registo assume natureza constitutiva; e, por isso, a ser possível alguma analogia, ela há-de verificar-se por comparação com os casos em que o registo predial assume excepcionalmente natureza constitutiva, como ocorre, de forma paradigmática, com o registo da hipoteca.

Ora, será admissível, por exemplo, que – na acção de cumprimento, pendente entre credor hipotecário e devedor, este possa limitar-se a invocar, com efeitos circunscritos a esse processo, a nulidade do negócio constitutivo da hipoteca, fazendo valer esse meio de defesa como pura excepção peremptória, não tendo a decisão judicial que julgue procedente a excepção qualquer eficácia fora do processo e subsistindo, assim, intocado o registo da hipoteca cujo acto constitutivo foi incidentalmente julgado nulo – podendo consequentemente a hipoteca (cujo registo constitutivo permaneceria intocado) ser feita valer, noutras acções de dívida, contra quaisquer outros credores comuns do mesmo devedor?

Seria tal situação juridicamente congruente e, muito em particular, compatível com a norma constante actualmente do art.8º doCRPredial, segundo a qual (em claro reforço de um princípio de inquisitoriedade) - e abandonando a tradicional necessidade de formulação de um pedido, acessório e consequencial, visando projectar os efeitos da decisão judicial no registo - a impugnação judicial de factos registados faz presumir o pedido de cancelamento do respetivo registo?

Para além desta objecção (a que naturalmente não cabe dar resposta cabal no presente acórdão) sempre se notará que, no plano das acções reais, a disfuncionalidade e incongruência da solução que permitisse a intermitência do direito real (cujo facto constitutivo seria incidentalmente invalidado apenas internamente num processo, subsistindo intocado o registo e a presunção nele contida, invocável, nos termos gerais, contra quaisquer outros sujeitos jurídicos) sempre seria imputável a uma deficiente estratégia da parte, que – podendo obviamente fazê-lo, já que a tal não obstavam as regras de competência absoluta do tribunal – não lançou mão do pedido de declaração incidental, previsto na parte final do nº 2 do art 91º do CPC – por esta via obtendo a extensão dos efeitos do julgado à matéria da própria excepção deduzida.

Pelo contrário, no caso que agora nos ocupa, a circunstância de – por relevantes interesses de ordem pública e de uniformidade de critérios na administração da justiça – a competência para a apreciação da validade das patentes estar concentrada, em exclusivo, no TPI e de, no art.º 35º do CPI, se prever que as declarações judiciais de nulidade ou anulação dos títulos de propriedade industrial pressupõem o amplo contraditório de potenciais contra interessados, inviabiliza naturalmente o exercício de tal faculdade pelas partes, levando a concluir que a referida disfuncionalidade seria imputável, em última análise, à própria estruturação do sistema por que se rege legalmente esta matéria….

Saliente-se, quanto a este ponto, que a conclusão de que o tribunal arbitral necessário carece de competência material para apreciar incidentalmente, com efeitos exclusivamente internos ao processo, a questão da nulidade da patente, invocada no procedimento consequencial à AIM, não envolve qualquer desgraduação da categoria dos tribunais arbitrais, tendo exclusivamente que ver com a natureza peculiar da relação controvertida , com o carácter constitutivo do registo em sede de propriedade industrial e com a atribuição de competência exclusiva ao TPI: na verdade, o tribunal arbitral necessário carece de competência para decretar incidentalmente a nulidade de patentes exactamente nos mesmos termos em que carecerá de competência material quanto a esse tema qualquer tribunal estadual que não seja o TPI; ou seja, se numa qualquer acção, pendente em qualquer tribunal estadual diverso do TPI, se suscitar incidentalmente a questão da nulidade de uma patente, as razões substanciais que nos levam a concluir que, no caso dos autos, o tribunal arbitral é desprovido de competência para a apreciar levarão identicamente ao entendimento de que qualquer tribunal estadual de competência genérica carecerá igualmente de competência para apreciar incidentalmente a matéria da pretensa nulidade da patente, com efeitos restringidos a esse processo.

Remédio Marques (ob. Cit., pag. 250) sustenta que o sentido da suscitação da excepção peremptória da nulidade da patente não seria o de habilitar o tribunal arbitral a emitir um julgamento de nulidade da patente, embora incidental e restrito ao próprio processo, mas apenas o de fundamentar e obter uma absolvição do pedido de condenação na abstenção de introdução do genérico no mercado, em função de uma actividade de mero acertamento acerca, por exemplo, da falta de novidade, de actividade inventiva ou de industrialidade da patente, configuradas como meras circunstâncias impeditivas do efeito jurídico pretendido pelo autor; ou seja, seria, nesta óptica, possível dissociar a questão da nulidade da patente (que se reconhece estar subtraída ao tribunal arbitral) da mera declaração ou acertamento acerca de determinada situação factual condicionadora do direito patenteado, por exemplo, a falta de actividade inventiva da solução técnica objecto da patente – pelo que, ao dar razão ao requerido, não estaria, afinal, o tribunal arbitral sequer a pronunciar-se – embora apenas incidentalmente – acerca do tema da nulidade da patente registada, mas apenas a apreciar uma circunstância factual impeditiva do jus prohibendi invocadopelo autor, enquanto titular de um título de propriedade industrial devidamente reconhecido e registado:
Se a questão da falta de novidade ou de actividade inventiva da solução técnica patenteada (ou protegida por certificado complementar de protecção) for invocada como excepção peremptópria, o conhecimento dessa nulidade impede que o tribunal emita uma declaração de nulidade do direito e do título que o sustenta.

Nestes casos, se a excepção for julgada procedente, o tribunal está apenas autorizado a rejeitar o pedido do autor, absolvendo o réu desse pedido e tornando, no caso concreto, a patente não oponível ao réu. E essa decisão goza apenas de eficácia inter partes. O tribunal – saliente-se – não declara a nulidade da patente, pois ele não extravasa o objecto processual definido pelo autor na petição inicial; limita-se, isso sim, a apreciar uma circunstância impeditiva, no caso concreto, do jus prohibendi invocado pelo autor enquanto titular de uma patente (ou CCP) – por ex. a falta de actividade inventiva da solução técnica objecto da patente – pelo que a afirmação dessa circunstância impeditiva consome-se no caso concreto….

Não nos parece, com o devido respeito, que esta dissociação entre declaração (embora puramente incidental) de nulidade da patente e mera actividade de acertamento dos requisitos essenciais de patenteabilidade possa ter lugar num sistema em que é constitutivo o ato administrativo de reconhecimento dos títulos de propriedade industrial – levando necessariamente a que a desconsideração, em qualquer processo e sob que forma for, da titularidade de uma patente devidamente reconhecida tenha de envolver um juízo acerca da própria validade desta.

Ou seja: a sentença que desconsidera o reconhecimento - constitutivo - de certo direito de propriedade industrial, considerando ilidida a presunção de que o direito pertence ao titular inscrito e que estão cumpridos todos os requisitos para a atribuição do direito privativo industrial, acaba por produzir necessariamente, ela própria, um efeito constitutivo, projectado num juízo acerca da validade do título constitutivo invocado, que ultrapassa inevitavelmente o plano de um mero acertamento factual acerca dos pressupostos substantivos da patenteabilidade.

Como refere Oehen Mendes (ob. Cit., pag. 935), a invalidade das situações registadas não se verifica nem se constara incidentalmente, tendo sempre de ser afirmada judicialmente, para produzir os seus efeitos, quer inter partes, quer erga omnes. Este regime resulta das exigências de segurança e certeza jurídicas, que as situações registadas visam precisamente assegurar, isto é, que são a verdadeira razão de ser do instituto do registo. Sobretudo quando estão em causa, por via de excepção, registos constitutivos do direito atribuído, como é o caso das patentes (que não existem sem acto administrativo de concessão: única forma de adquirir originariamente o direito de patente).

Deste modo, passando necessariamente a desconsideração de certo título constitutivo do direito patenteado, impugnado pelo requerido no processo arbitral, por uma verificação judicial acerca da nulidade da patente, objecto de reconhecimento constitutivo pela competente entidade administrativa, não pode o tribunal arbitral onde pende o procedimento consequente ao pedido de AIM, pronunciar-se, ainda que a título puramente incidental, sobre tal matéria, já que a mesma pressupõe necessariamente o exercício da competência exclusiva que, no nosso sistema jurídico, está reservada ao TPI.

E, assim sendo, a inviabilidade de o R. suscitar incidentalmente, naquele processo, a excepção peremptória de nulidade do direito patenteado configura-se como proporcional e adequada, radicando, em última análise, na natureza da relação controvertida, no carácter constitutivo do acto de reconhecimento dos direitos de propriedade industrial e nas razões de interesse público e de congruência do sistema que levaram a reservar o conhecimento de tais vícios apenas ao TPI – não implicando, consequentemente, o desvio à regra constante do nº1 do art. 91º do CPC qualquer violação do direito de defesa, da regra do contraditório ou do princípio do processo equitativo.

8.- Importa, por fim, avaliar se – ponderadas todas as possibilidades de iniciativa processual de que dispõe o demandado neste processo arbitral – a inviabilidade de suscitação incidental do meio de defesa da nulidade da patente não poderá ser suprido por outra via, cuja utilização se não revele desproporcionadamente onerosa ou insuficientemente eficaz para assegurar a tutela efectiva do seu direito.

Na verdade, deve acentuar-se que , na génese do processo arbitral – em que a empresa interessada na comercialização de determinado medicamento genérico, agora na veste de demandada, pretende questionar a validade da patente reconhecida, em termos constitutivos, ao A., que a pretende ver afirmada – esteve afinal uma iniciativa originária da própria demandada, que pediu a AIM.

Assim, na especificidade do presente contencioso, perspectivado em termos abrangentes e globais, a posição de demandada é consequência de uma sua anterior iniciativa procedimental, despoletando o pedido de AIM e devendo razoavelmente contar com a possibilidade de lhe vir a ser ulteriormente oposto o direito emergente do reconhecimento e registo da patente: daí que se possa perfeitamente sustentar que – como refere Evaristo Mendes (ob. e loc. cit.) – quem pede uma AIM – sabendo que fica sujeito, por esse facto, a uma provável acção arbitral – se quiser valer esse meio de defesa, deverá propor a competente acção no TPI e, vindo a ser envolvido em subsequente arbitragem, requerer uma suspensão do processo até o TPI se pronunciar. O TA deferirá a pretensão se – excepcionalmente, dados os termos em que o exclusivo é concedido e a circunstância de se tratar de patentes em fim de vida, via de regra já escrutinadas a nível mundial – houver fortes indícios capazes de vencer a presunção de validade de que a patente goza.

Não pode, pois, afirmar-se que o demandado está impossibilitado de questionar a validade da patente pela circunstância de lhe não ser possível deduzir incidentalmente, perante o tribunal arbitral, a excepção de nulidade; na verdade, é no momento inicial, em que opta pela via procedimental traduzida em requerer a AIM, que lhe cumpre definir adequadamente a sua estratégia processual: ou não tem interesse, sério e efectivo, em questionar a validade da patente e desencadeia então o pedido de AIM, sabendo que, na eventual e ulterior acção arbitral, não poderá suscitar e ver decidida, com eficácia apenas inter partes, a excepção de nulidade; ou, pelo contrário, interessando-lhe efectivamente controverter a validade da patente, terá o ónus de o fazer na acção própria e perante o tribunal materialmente competente e com intervenção de todos os interessados nessa lide – não se vendo que o desencadear de tal acção possa representar a imposição de um ónus excessivo ou desproporcionado….

Como escrevemos no artigo elaborado para inclusão nos Estudos Em Memória do Conselheiro Luís Nunes de Almeida, (2007, pag.835), convém salientar, todavia, que a jurisprudência constitucional só vem julgando violadores do disposto no n.º 1 do art.º 20º da Constituição os regimes processuais que se traduzem numa privação absoluta de meios processuais idóneos para fazer valer em juízo o direito ou interesse da parte: já não implicam violação de tal princípio constitucional os casos em que a lei de processo, ao delimitar o âmbito de aplicação dos vários meios ou instrumentos adjectivos que prevê, estabelecer que, em certa situação, a parte terá de utilizar um determinado instituto e não outro, desde que aquele para que a parte é direccionada seja idóneo para, no essencial, garantir a tutela efectiva (embora, porventura, de forma menos intensa ou completa do que a que decorreria do uso do meio procedimental, no caso, proscrito).

Em aplicação deste entendimento, o acórdão nº 63/03 entendeu que não é inconstitucional o regime extraído dos arts. 351º, nº1, e 359, nº 1, do (velho) CPC, de que decorre a não admissão dos embargos de terceiro com natureza preventiva no âmbito do processo especial de recuperação da empresa e de falência – atenta a possibilidade de o credor obter tutela minimamente adequada do seu direito mediante a dedução de reclamação, com vista à restituição e separação de bens, nos termos do CPEREF.

E, no acórdão nº 271/03, entendeu o TC, seguindo idêntica linha argumentativa, que as normas do DL nº30 689 que estabelecem a liquidação administrativa de estabelecimentos bancários obsta à instauração ou prosseguimento de acções executivas não colidem com o direito de acesso à justiça por parte do credor, já que tal regime não implica qualquer perda do direito a executar, apenas alterando a forma e os termos em que a sua satisfação pode ter lugar – canalizando o credor para uma execução que passa a ser colectiva e em que tem necessariamente de ser assegurada a regra da par conditio creditorium.

Transpondo estas considerações para o caso dos autos, entende-se que a necessidade de desencadear, pelo interessado que despoletou o pedido de AIM do medicamento genérico, da pertinente acção de nulidade da patente que obsta à pretendida introdução no mercado, conjugada com a possibilidade de requerer e obter a suspensão da instância arbitral até que tal acção seja julgada, constituem meios procedimentais - alternativos à dedução perante o tribunal arbitral da excepção de nulidade da dita patente – que não envolvem onerosidade excessiva para o interessado e permitem satisfazer, em termos adequados, o seu direito a questionar a validade da patente que obsta à comercialização por ele pretendida – o que naturalmente afasta a violação do preceituado no art. 20º da Lei Fundamental.» [Fim de citação].

3.-Aderimos ao entendimento adoptado no douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-12-2016[[13]], parcialmente transcrito, em detrimento do entendimento perfilhado no acórdão do Tribunal Constitucional 251/2017, de 24 de Maio, nos termos do qual julgou-se “inconstitucional a norma interpretativamente extraível do artigo 2.º  da Lei nº 62/2011, de 12 de dezembro e artigos 35.º, nº 1, e 101.º, n.º 2, do Código da Propriedade Industrial, ao estabelecer que, em sede de arbitragem necessária instaurada ao abrigo da Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro, a parte não se pode defender, por exceção, mediante invocação da invalidade de patente, com meros efeitos inter partes” .

No essencial considerou o Tribunal Constitucional neste acórdão, diferentemente do que havia sucedido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-12-2016, que a norma em causa “revela-se excessiva porquanto prejudica de modo desproporcionado o direito à defesa do requerente de AIM”, pelo que “deve ser julgada inconstitucional por violação do princípio da proibição de indefesa (artigo 20.º da Constituição em conjugação com o seu 18.º, n.º 2).

Todavia, a argumentação constante do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-12-2016[[14]], e dos acórdãos desta Relação de Lisboa, de 13-2-2014, 21-5-2015 e 4-2-2016, tal como a manifestada nas posições doutrinais acima transcritas e que vão no mesmo sentido, afiguram-se-nos mais convincentes, sobrepondo-se às de sentido oposto – e que foi adoptada na decisão interlocutória cuja anulação é pretendida.

Estamos mesmo em crer que a posição adoptada é aquela que se harmoniza com a intenção do legislador.

Veja-se que já depois da prolação do acórdão do TC n.º 251/2017, de 24 de Maio, foram introduzidas alterações à Lei n.º 62/2011, de 12 de Dezembro [1.ª alteração] e aprovado o Novo Código da Propriedade Industrial, pelo Dec.-Lei n.º 110/2018, de 10 de Dezembro.

Nessa senda reformista, de significativo, no que para aqui releva, ou seja, em matéria de litígios emergentes dos direitos de propriedade industrial quando estejam em causa medicamentos de referência e medicamentos genéricos, as alterações introduzidas consistiram: (i) na revogação do regime da arbitragem necessária, deixando às partes a opção entre o recurso a arbitragem voluntária ou ao tribunal judicial competente [art.º 2.º da Lei n.º 62/2011, na redacção actual] ii) e, ao arrepio dos pareceres emitidos e opiniões expendidas pelos representantes das associações interessados, incluindo o da Associação Portuguesa de Direito Intelectual [APDI] na atribuição de competência exclusiva ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial [INPI] – salvo quando resulte de um pedido reconvencional deduzido no âmbito de uma acção que corra termos no TPI - para apreciar e julgar pedidos de declaração de nulidade ou de anulação de registos de desenhos ou modelos, de marcas, de logótipos, de denominações de origem, de indicações geográficas e de recompensas [n.º 2 do art.º 34.º do Novo CPI].

No n.º 1 do artigo 34.º do Novo CPI, com início de vigência aprazado para 1 de Julho de 2019, sob a epígrafe «Processos de declaração de nulidade e de anulação, o legislador manteve a “opção” que já resultava do anterior do artigo 35.º, n.º 1, de que “a declaração de nulidade ou a anulação de patentes, de certificados complementares de protecção, de modelos de utilidade e de topografias de produtos semicondutores só podem resultar de decisão judicial”.

A Associação Portuguesa de Direito Intelectual [APDI], com os contributos dos Professores Dário Moura Vicente, João Paulo Remédio Marques, Alberto Ribeiro de Almeida e Maria Miguel Carvalho e da Mestra Ana Pereira da Silva, emitiu Parecer sobre a Proposta de Revisão do Código da Propriedade Industrial e, a propósito da referida norma – que na proposta correspondia ao artigo 35.º, pronunciou-se nos seguintes termos:
“Afigura-se estranho que uma autoridade administrativa possa decidir sobre a nulidade e anulação de alguns (mas não de todos) os registos de direitos de propriedade industrial, sendo o registo constitutivo e não declarativo. Deveria por isso ser mantida a competência judicial para este efeito. De todo o modo, à luz de princípios como a transparência e a isenção, não parece adequada a previsão de um processo de declaração de nulidade e de anulação de registo de marcas (declarações que implicam a extinção de direitos) cuja tramitação corra na mesma estrutura administrativa que procede ao estudo e decisão sobre os pedidos de registo […][15]

Temos, assim, também face ao Novo CPI que as partes, por um lado, têm que discutir perante o tribunal arbitral necessário o litígio relativo a substância protegida por patente ou certificado complementar de protecção (CCP); por outro, está vedado à parte demandada discutir a validade do direito invocado pela demandante [relativo a patentes, certificados complementares de protecção, modelos de utilidade ou topografias de produtos semicondutores], porquanto a competência para a respectiva declaração está atribuída com carácter exclusivo ao TPI.

O direito de patente constitui-se com o registo, que assume, assim, eficácia constitutiva. Diferentemente do que sucede com o registo predial, o registo de patente promovido no INPI não funda apenas uma presunção de titularidade do direito; ele funda igualmente uma presunção de validade da sua atribuição, o que bem se compreende, pois, neste caso, o registo é o culminar de um processo administrativo que oferece maiores garantias aos interessados em que a decisão final cabe ao INPI.

4.- Concluímos, pois, que o Tribunal Arbitral [Necessário] não tem competência para apreciar a matéria de excepção invocada pelas Demandadas S…, Lda. e P…, Ltd., sobre a validade da EP ‘397.

V–Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar procedente a presente impugnação/apelação e, em consequência, em anular a decisão interlocutória do Tribunal Arbitral proferida em 11 de Julho de 2018, na parte em que decidiu “apreciar a excepção de invalidade do direito invocado, circunscrevendo a decisão que vier a ser tomada à relação processual subjacente”.
*
Custas da apelação pelas Requeridas/Recorridas S…, Lda. e P…, Ltd. - artigo 527.º do CPC.
*
Registe e notifique.
*


Lisboa, 2 de Maio de 2019



Manuel Rodrigues
Ana Paula A. A. Carvalho     
Gabriela de Fátima Marques



[1]As notas de rodapé transcritas são as citadas pela Requerente, nos lugares próprios, mas com outra numeração.
[2]As notas de rodapé transcritas são as citadas pelas Requeridas, nos lugares próprios, embora com diversa numeração.
[3]O Decreto-Lei n.º 110/2018 aprova o novo Código da Propriedade Industrial, transpondo a Diretiva (UE) 2015/2436 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 16 de dezembro de 2015, que aproxima as legislações dos Estados-Membros em matéria de marcas e a Diretiva (UE) 2016/943 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 8 de junho de 2016, relativa à proteção de know-how e de informações comerciais confidenciais (segredos comerciais) contra a sua aquisição, utilização e divulgação ilegais, e altera a Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto que aprova a Lei da Organização do Sistema Judiciário e a Lei n.º 62/2011, de 12 de dezembro.
[4]Cf. a nova redacção do artigo 2.º da Lei n.º 62/2011: Os litígios emergentes da invocação de direitos de propriedade industrial, incluindo os procedimentos cautelares, relacionados com medicamentos de referência, designadamente os medicamentos que são autorizados com base em documentação completa, incluindo resultados de ensaios farmacêuticos, pré-clínicos e clínicos, e medicamentos genéricos, independentemente de estarem em causa patentes de processo, de produto ou de utilização, ou de certificados complementares de proteção, podem ser sujeitos a arbitragem voluntária, institucionalizada ou não institucionalizada.
[5]Processo n.º 1248/14.6YRLSB.S1 (relator: LOPES DO REGO) e Processo 1053/16.5YRLSB.S1.S1 (relatora: FERNANDA ISABEL PEREIRA), respetivamente.
[6]Decisão Sumária n.º 160/2018; processo 1284/17, 2.ª Secção; Relator: CATARINA SARMENTO E CASTRO.
[7]Neste ponto, cumpre salientar, ainda que não abordado pelo Tribunal Constitucional, que a decisão de declaração de nulidade do TPI é recorrível para o Tribunal da Relação de Lisboa, facto que pode levar a que decorram vários anos entre o depósito de uma ação de nulidade no TPI e a efetiva declaração de nulidade do direito por decisão transitada em julgado.
[8]Em Tratado da Arbitragem, Almedina, 2015, pág. 211.
[9]Em Arbitrabilidade. Propriedade Industrial e Direitos de Autor, citado em Código da Propriedade Industrial Anotado, coordenação de António Campinos e Luís Couto Gonçalves, Almedina, 2ª edição, pags. 161-162.
[10]Em Direito Industrial, Coimbra Editora, 2011, pag. 448.
[11]Citado na nota 2, págs. 162-163.
[12]Em O Regime Especial de Resolução de Conflitos em Matéria de Patentes ( Lei Nº 62/2011), em ROA, Out.-Dez., 2012, pags. 981-982.
[13]Para melhor compreensão dos fundamentos do aresto, ver comentários de LUÍS COUTO GONÇALVES  -  “A QUESTÃO DA COMPETÊNIA DO TRIBUNAL ARBITRAL PARA APRECIAR A INVALIDADE DA PATENTE COM EFICÁCIA INTER PARTES - ANOTAÇÃO AO ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE 14 DE DEZEMBRO DE 2016”, em Revisto do Direito Intelectual, n.º 1, 2017, Almedina.
[14]Não se trata de um acórdão de uniformização de jurisprudência, mas neste aresto refere-se expressamente que cumpre “fixar jurisprudência sobre esta relevante matéria controvertida.
[15]Revista de Direito Intelectual, n.º 2-2018 - Almedina, págs. 225 a 242.