Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2933/14.8YYLSB-A.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: PENHORA
PESSOA COLETIVA DE UTILIDADE PÚBLICA
PROSSECUÇÃO DE SERVIÇOS DE UTILIDADE PÚLICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. –São penhoráveis os saldos das contas bancárias da executada, mesmo sendo esta uma pessoa colectiva de utilidade pública (associação de bombeiros).

II. –Só assim não será se a executada alegar e demonstrar que diversas verbas depositadas se destinam directa e exclusivamente a cobrir encargos que viabilizem actividades compreendidas no escopo da utilidade pública. Tal será, por exemplo, o caso de uma verba destinada a pagar a reparação de uma ambulância sem a qual a mesma não poderá circular.

III. –É à executada que incumbe a alegação e prova de que diversas verbas compreendidas em tais saldos bancários estão adstritos ao pagamento de dívidas indispensáveis para assegurar a prossecução de serviços de utilidade pública, concretamente indicados.

IV. –Não bastando para tal que a executada alegue que as contas bancárias visam o pagamento de salários, pagamentos aos fornecedores – sendo, de resto, o exequente um desses fornecedores – e em geral a sua actividade de utilidade pública.

SUMÁRIO: (elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:



Arquivandus, Desenv. Rep. Com. de Software, Lda. intentou contra Associação dos Bombeiros Voluntários dos Estoris, acção executiva para pagamento da quantia de € 23.804,57, oferecendo como título executivo uma sentença de condenação.

Citada, a executada deduziu a presente oposição à execução mediante embargos de executado e oposição à penhora, invocando, em síntese, que possui um contracrédito sobre a exequente que pretende compensar com a quantia exequenda. E, bem assim, invoca a impenhorabilidade dos saldos bancários que lhe foram penhorados e, ainda, o excesso de penhora.

Mais requer a condenação da exequente no pagamento de indemnização por danos culposamente causados à executada.
Notificada, a exequente contestou, pugnando pela improcedência da oposição.

Atenta a posição das partes assumidas nos articulados e os documentos juntos, são estes os factos indisputados com interesse para a decisão da causa:
1)–A exequente intentou contra a executada em 11.03.2014 a acção executiva a que os presentes embargos estão apensos para pagamento da quantia de € 23.804,57, apresentando como título executivo uma sentença transitada em julgado, proferida no processo nº 156729/10.4YIPRT (fls. 7 a 19 da execução).
2)–Na acção declarativa que correu termos com o nº 156729/10.4YIPRT no 7° Juízo Cível de Lisboa foi proferida em 11.10.2012 sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a embargante a pagar à exequente:
a)- quantia de € 17.451,17 a título de capital em divida respeitante à factura nº 42/2009, acrescida de juros de mora comerciais vencidos e vincendos contados desde 14.05.2010 até efectivo e integral pagamento;
b)- a quantia de € 720,00 a título de capital em divida respeitante à factura nº 168/2009, acrescida de juros de mora comerciais vencidos e vincendos contados desde 16.04.2009 até efectivo e integral pagamento; e
c)- a quantia de € 60,00 a título de capital em divida respeitante à factura nº 463/2009, acrescida de juros de mora comerciais vencidos e vincendos contados desde 18.10.2009 até efectivo e integral pagamento;
                                                                                                   
3)–Em 03.06.2014 foram penhorados os saldos bancários da titularidade da executada na Caixa Geral de Depósitos, S.A. no valor de € 26.185,03 e no Millennium BCP no valor de  €1.476,72 (fls. 40 e 41 da execução).

Foi proferida decisão que julgou os embargos de executado mediante oposição à execução improcedentes, por não provados e, consequentemente, determinou o prosseguimento da execução apensa intentada por Arquivandus, Desenv. Rep. Com. de Software, Lda. contra Associação dos Bombeiros Voluntários dos Estoris.

Foi julgada, ainda, a oposição à penhora parcialmente procedente e determinado o levantamento da penhora sobre o saldo bancário da executada no Millenium BCP no valor de € 1.476,72.

Mais se determinando a manutenção da penhora sobre o saldo bancário da executada na Caixa Geral de Depósitos, S.A. no valor de € 26.185,03.

A exequente foi absolvida do pedido de condenação em indemnização prevista no artigo 858° do Código de Processo Civil.
Inconformada recorre a executada, concluindo que:
–A apelante alegou e invocou a impenhorabilidade dos saldos bancários, o excesso de penhora realizada e os danos causados.
–A apelante é uma associação de bombeiros sendo notória que é considerada pessoa coletiva de utilidade pública.
–A penhora das contas bancárias teve como consequência invocada o não pagamento de salários dos seus funcionários e paralisação parcial dos seus serviços, onde se inclui o socorro a vítimas de acidente, transporte de acidentados e doentes e combate a incêndios ou seja o normal funcionamento do corpo de bombeiros, por falta de fundos para funcionamento e manutenção, impedindo a prossecução dos fins de utilidade pública para que está direcionada.
–A penhora efetuada pela apelada violou o disposto nos art. 737 e 784 do CPC é manifestamente ilegal, sendo que o facto da apelante ser uma pessoa coletiva de utilidade pública é um fato notório a que não se pode aquela alegar desconhecimento.
–Tendo a apelada procedido a penhora com violação do disposto no nº 1 do art. 737 do CPC e com tal conduta tenha causados prejuízos e incómodos sérios à executada e porque tendo previsto tal situação, conformou-se com a sua conduta, deverá indemnizar a apelante pelos prejuízos e incómodos causados.

–A não audição das testemunhas arroladas pela apelante, constitui ilegalidade que afeta a decisão de mérito, devendo os autos baixar à primeira instância para sua audição que se requer.
–A douta sentença recorrida ao não considerar a impenhorabilidade dos saldos bancários, o excesso de penhora bem como não condenando a apelada pelos danos causados nos termos do art. 858º do CPC, fez incorreta interpretação e errada aplicação do Direito pelo que deve ser revogada,
–Termos em que e nos mais de Direito deverá ser deferido o presente recurso e revogada a douta decisão, com as devidas consequências legais.

A exequente contra-alegou sustentando a bondade da decisão recorrida.

Cumpre apreciar.

As questões em apreço neste recurso são a não condenação da exequente em indemnização, nos termos do art. 858º do CPC, a impenhorabilidade dos saldos bancários, o excesso da penhora e a não audição das testemunhas arroladas pela embargante.

Começaremos a nossa apreciação exactamente por este último ponto, uma vez que, a proceder, condiciona a apreciação dos demais.
 
No seu requerimento inicial, a embargante alegou, além do mais, que estão em curso profundas obras de alteração e construção do quartel de bombeiros, com obrigações contratuais em curso designadamente pagamento da empreitada e a fornecedores, tendo igualmente adquirido um veículo plataforma que se encontra em fase de entrega e pagamento.

Alegou ainda que é nas contas penhoradas que são creditados os apoios e subsídios das entidades públicas, nomeadamente do QREN – Quadro de Referência Estratégica Nacional.

Mais relevante, alegou que a penhora das contas levou à paralisação parcial dos seus serviços, como sejam o socorro a vítimas de acidente, transporte de acidentados e doentes e combate a incêndios.

No art. 34º do seu articulado inicial a embargante afirma que “sem os fundos das contas bancárias penhoradas, a embargante está impossibilitada de prosseguir o seu escopo sendo certo que tais contas estão afectadas a esse fim de utilidade pública, não podendo a executada concretizá-lo sem a respectiva disponibilidade”.

Na sentença recorrida, entende-se que no âmbito do nº 1 do art. 737º do CPC, a isenção só seria de considerar “se estivesse penhorado o próprio quartel dos bombeiros, os seus veículos de combate a incêndios, ambulâncias ou quaisquer instrumentos de apoio aos doentes ou às situações de emergência.”
E prosseguindo, afirma-se que:
“Mas já não se pode considerar afecto à realização de fins de utilidade pública o dinheiro com que a associação de bombeiros pretende fazer face ao pagamento das obras de renovação do quartel, ao pagamento de salários e de fornecedores”.

Nos termos do art. 737º nº 1 do CPC estão isentos de penhora os bens das pessoas colectivas de utilidade pública, que se encontrem especialmente afectados à realização de fins de utilidade pública.

Quando a lei se refere  a bens especialmente afectados está a referir-se a bens directamente utilizados por uma pessoa colectiva de utilidade pública no exercício da sua actividade.

Como refere o Mº juiz a quo é esse o caso do quartel de bombeiros, das ambulâncias, veículos e outros meios visando a realização do fim de utilidade pública a que a pessoa colectiva está adstrita.

As contas bancárias, enquanto importâncias monetárias, só indirectamente têm a ver com a actividade da pessoa colectiva – ver acórdão da Relação do Porto de 26/02/1996, sumariado no BMJ nº 454, pág. 799.

Não são bens especificamente afectados à prossecução do fim de utilidade pública do executado.

Poderão, contudo, sê-lo se o executado alegar e comprovar que determinado saldo bancário está, pela sua natureza e origem, afecto à satisfação de determinadas despesas, indissociáveis da realização dos fins de utilidade pública. Será o caso, por exemplo, de uma verba destinada a reparar diversos veículos ou utensílios indispensáveis à actividade da executada. Se uma ambulância está avariada e a carecer de reparação, a verba necessária para a mesma reparação integra o escopo da pessoa colectiva, porque sem ele um dos fins de utilidade pública não poderá ser concretizado.

Mas para isso, terá a executada de alegar em concreto quais as verbas que estão directamente relacionadas com a possibilidade de exercer a actividade que constitui o seu escopo.

A referência à dificuldade de pagar as retribuições ou de pagar aos fornecedores é uma alegação genérica, que por isso não caracteriza um dado saldo bancário, no todo ou em parte, como especialmente afectado a fins de utilidade pública.

E o certo é que a executada não fez menção a circunstâncias concretas que conferissem às verbas integrantes dos saldos bancários, uma relação directa e indissociável com a prossecução dos seus fins.
 
Mesmo em relação às obras de reparação (ou construção?) do quartel ou à aquisição de um veículo, nada mais é dito em termos concretos, explicitando o quantitativo das verbas afectas a umas e outras, prazos e condições de pagamento, se o quartel não estará operacional sem tais obras, qual o preço e condições de aquisição do veículo, enfim situações em que determinadas verbas depositadas na conta bancária terão, ou não, uma relação directa de causa e efeito na prossecução das actividades de utilidade pública.

Ficamos assim perante uma situação em que estão em causa bens de uma instituição de utilidade pública mas cuja utilização é meramente instrumental da aplicação de outros bens a fins de utilidade pública, situação essa que não determina a impenhorabilidade (ver acórdão da Relação de Coimbra de 19/10/1993, CJ 1993, T. IV pág. 147 e seguintes.

Nestes termos, não se vislumbra a utilidade da audição das testemunhas uma vez que não foram alegados factos concretos que permitissem, a provarem-se, uma inversão da decisão proferida.

Atentas as conclusões que, como é sabido, balizam o âmbito do recurso, pretende a recorrente a condenação da exequente em indemnização pelos prejuízos que lhe causou ao proceder à penhora com violação do art. 737º nº 1 do CPC.

Ora, não existiu violação do aludido preceito, como acabámos de ver, pelo que não faz sentido, nem existe causa de pedir, relativamente a tal pedido de indemnização.

Como consta da sentença recorrida, o valor dos saldos bancários penhorados era de € 27.661,75. Na dita sentença considera-se que este montante era excessivo, cancelando-se a penhora no saldo de € 1.476,72, e mantendo-se a penhora no saldo de € 26.185,03.

Não existe uma discrepância muito pronunciada entre o valor penhorado a requerimento do exequente (€ 27.661,75) e o valor ajustado na sentença para € 26.185,03.

A quantia exequenda é a que resulta da sentença condenatória, dada como título à execução. A única modificação desse valor teria a ver com os juros de mora que se fossem vencendo desde a propositura da acção. À data da sentença ora recorrida, tais juros somavam € 342,02.

Daqui se retira que a exequente adoptou uma posição que não merece censura. Certamente que não foi o montante considerado em excesso que causou os prejuízos invocados pela executada, sobretudo quando se confronta tal montante excessivo, € 1.476,72 com o total agora penhorado, € 26.185,03.

Acresce que a alegação da recorrente  - veja-se o art. 41º do requerimento da oposição – insiste como causa da obrigação de indemnizar por parte da exequente a realização de penhora com violação do nº 1 do art. 737º do CPC, a qual, repete-se, não se verificou.

Conclui-se assim que:
– São penhoráveis os saldos das contas bancárias da executada, mesmo sendo esta uma pessoa colectiva de utilidade pública (associação de bombeiros).
– Só assim não será se a executada alegar e demonstrar que diversas verbas depositadas se destinam directa e exclusivamente a cobrir encargos que viabilizem actividades compreendidas no escopo da utilidade pública. Tal será, por exemplo, o caso de uma verba destinada a pagar a reparação de uma ambulância sem a qual a mesma não poderá circular.
– É à executada que incumbe a alegação e prova de que diversas verbas compreendidas em tais saldos bancários estão adstritos ao pagamento de dívidas indispensáveis para assegurar a prossecução de serviços de utilidade pública, concretamente indicados.
– Não bastando para tal que a executada alegue que as contas bancárias visam o pagamento de salários, pagamentos aos fornecedores – sendo, de resto, o exequente um desses fornecedores – e em geral a sua actividade de utilidade pública.

Termos em que se julga a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.



LISBOA, 12-04-2018



António Valente
Ilídio Sacarrão Martins
Teresa Prazeres Pais