Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
25550/15.0T8LSB.L1-2
Relator: GABRIELA CUNHA RODRIGUES
Descritores: RESPONSABILIDADE MÉDICA
PROVA
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I - Para além do esforço das partes no sentido de identificarem uma efetiva necessidade de produção de prova suplementar suscetível de sanar dúvidas fundadas, objetivas e sérias que emergem da prova que foi realizada, importa que não se desvalorize o modo como exerceram os respetivos ónus de prova e de contraprova nos momentos processualmente apropriados, para que não se subvertam as boas regras processuais conexas com os princípios do dispositivo ou do contraditório.
II - Quando se trate de relatórios periciais, haverá que ponderar, em sede de avaliação objetiva, a necessidade ou pertinência de tal prova suplementar sugerida pelas partes e as iniciativas que foram ou deveriam ter sido adotadas oportunamente, antes de esses meios de prova serem sujeitos à apreciação livre por parte do tribunal de 1.ª instância.
III - A Apelante não poderia socorrer-se de uma resposta inconclusiva a um quesito em dois pareceres médicos para pretender a «reabertura da audiência e a produção de prova suplementar para correção dos vícios ou insuficiências supra descritos», procurando inquinar a prova produzida sem ter recorrido previamente aos mecanismos apropriados para o efeito, como os previstos nos artigos 485.º e 486.º do Código Civil, e com falta de razão, pois os relatórios periciais não padecem de qualquer deficiência, obscuridade ou contradição.
IV - Entre os comportamentos antijurídicos avulta o erro médico, o qual pode ser definido como a conduta profissional inadequada resultante da utilização de uma técnica médica ou terapêutica incorreta que se revela lesiva para a saúde ou vida do doente.
V - O erro pode ser cometido por imperícia, imprudência ou negligência.
VI - Não estando em causa a prestação de um resultado, não é suficiente alegar e demonstrar a não obtenção de um certo resultado ou a verificação de um resultado diferente do esperado para que exista incumprimento ou cumprimento defeituoso, pois que a violação da obrigação reside sempre na prática deficiente/defeituosa do ato ou na abstenção da prática de atos exigidos pela situação clínica do doente.
VII - Consequentemente, quando se invoque tratamento defeituoso para efeito de obrigação de indemnizar fundada em responsabilidade contratual é necessário provar a desconformidade objetiva entre os atos praticados e as leges artes, bem como o nexo de causalidade entre «defeito» e dano.
VIII - Feita essa prova, então sim, funciona a presunção de culpa, a impor ao réu, como condição de libertação da responsabilidade, que prove que a desconformidade (com os meios que deveriam ter sido usados) não se deveu a culpa sua (por ter utilizado as técnicas e regras de arte adequadas ou por não ter podido empregar os meios adequados).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I - Relatório
1. F… R… F… intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, no dia 20.9.2015, contra H… N…, Hospital …, S.A. e Companhia de Seguros …, S.A., pedindo a condenação destes, solidariamente, no pagamento à Autora da quantia de 1 035 849,39 €, pelos danos causados pelo Réu H… N… na prossecução da sua atividade médica desenvolvida nas instalações pertencentes ao Réu Hospital …, S.A..
Alegou, em suma, que:
- No dia 17.5.2012, F… F… foi sujeita a uma intervenção cirúrgica no estabelecimento do Réu Hospital …, S.A. em Lisboa, executada pelo Réu H… N…, concretamente uma histerectomia radical com vista tratamento ao cancro do colo do útero, que lhe havia sido diagnosticado;
- No decurso da referida cirurgia, por inobservância das suas leges artis, o Réu H… N… não removeu do corpo da Autora, na região objeto de intervenção, vários clips cirúrgicos, que deixou ficar esquecidos;
- Perante o mal-estar sentido por F… F…, com dores do lado esquerdo, o Réu H… N… decidiu submeter a mesma a nova cirurgia, tendo colocado um cateter no útero esquerdo;
- Aquando da realização da braquiterapia, os clips que permaneceram no organismo de F… F… causaram um estrangulamento do ureter esquerdo, que lhe causou dores e mal-estar generalizado;
- Em consequência disso, o cateter colocado aquando da 2.ª cirurgia saiu do lugar e F… F… teve que ser sujeita a nova intervenção cirúrgica para colocação de novo cateter, que voltou a ser expelido pela vagina, passados cinco dias, causando-lhe hemorragias várias;
- Recorreu novamente à consulta no estabelecimento do Réu Hospital …, S.A., com queixas, em 17.9.2012, onde realizou análises e exames, tendo sido observada por especialista de urologia, que lhe transmitiu que estava tudo bem e lhe marcou nova consulta para daí a uma semana;
- Como não se sentia melhor, no mesmo dia, F… F… tentou contactar sem sucesso o Réu H… N… e recorreu ao serviço de urgência do Réu Hospital …, S.A., onde recebeu tratamento e teve alta;
- Sentindo-se pior, F… F… decidiu obter uma segunda opinião médica e dirigiu-se ao Hospital dos …, no mesmo dia 17.9.2012, onde lhe foi diagnosticada inflamação dos rins e ureter esquerdo bloqueado por um clip, tendo sido determinada a realização de nova intervenção cirúrgica, que veio a ter lugar no dia 19.9.2012, no âmbito da qual lhe foi diagnosticada uma septicémia, na sequência do que ficou internada em isolamento;
- Em consequência da conduta do Réu H… N…, F… F… sofreu dores e mal-estar generalizado, dormiu mal, temeu perder pela vida, sofreu angústia constante, deixou de se relacionar com familiares e amigos, deixou de viajar e realizar as suas tarefas domésticas quotidianas, passou a ter limitações na sua capacidade de resistência física, passou a não suportar manter-se em pé, deixou de sentir capacidade para conduzir e realizar viagens demoradas e grandes;
- Após a intervenção cirúrgica realizada pelo Réu H… N…, entre maio de 2012 e abril de 2015, F… F… careceu de realizar diversas viagens entre Luanda e Lisboa a fim de realizar diversas consultas e receber tratamentos médicos, com o que despendeu em serviços de saúde e deslocações o valor de 35 849,00 €;
- O Réu H… N… transferiu a sua responsabilidade infrutífera casuística decorrente do exercício da sua atividade profissional, mediante contrato de seguro de responsabilidade civil titulado pela apólice n.º …, para a Companhia de Seguros …, S.A..
Concluiu peticionando a condenação solidaria dos Réus no pagamento de uma indemnização no valor de 1 035 849,39 €, sendo 1 000 000,00 € a título de danos não patrimoniais e 35 849,00 € a título de danos patrimoniais.
2. Os Réus contestaram separadamente a ação, impugnando os factos e as conclusões vertidas na petição inicial.
O Réu H… N… invocou a exceção da prescrição e requereu a intervenção principal provocada da … – Companhia de Seguros, S.A., alegando, para tanto, que celebrou com esta um contrato de seguro mediante o qual transferiu a responsabilidade civil pelo ressarcimento de quaisquer danos emergentes do exercício da sua atividade profissional.
3. Foi admitida a intervenção principal passiva provocada da … – Companhia de Seguros, S.A., anteriormente … – Companhia de Seguros, S.A., a qual apresentou contestação, em que impugnou a factualidade e invocou igualmente a exceção da prescrição.
4. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, em que o conhecimento da exceção da prescrição foi relegado para final, identificou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
5. Tendo falecido F… R… F… no dia 29.5.2016, ou seja, na pendência da ação, foram habilitados os seus filhos N… G…, R… G…, N… G… e E… G… para com eles prosseguir a ação no lugar da Autora, por sentença proferida no dia 24.1.2017.
6. Solicitaram-se pareceres aos Colégios de Especialidade de Urologia e de Ginecologia da Ordem dos Médicos, os quais foram juntos aos autos a fls. 557 a 559 e 561 a 565.
7. Realizou-se a audiência final em quatro sessões, após o que foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelos expostos fundamentos de facto e de direito, o Tribunal julga totalmente improcedente a presente ação e, em consequência, decide:
- absolver os réus H… N…, Hospital …, S.A., Companhia de Seguros …, S.A. e … - Companhia de Seguros, S.A. do pedido conta si deduzido;
- condenar os autores no pagamento das custas do processo, dispensando-se o pagamento do remanescente da taxa de justiça
8. Inconformada com o assim decidido, a Autora / Habilitada N… G… interpôs recurso de apelação da sentença, apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
«i. Salvo o devido respeito por opinião contrária, a douta sentença ora posta em crise, descerra grave erro de julgamento, porquanto:
ii. Socorre-se, de molde a fundamentar a decisão negativa, quanto a diversos factos que haviam sido alegados pela A. do teor e conteúdo formulado pelo Colégio da especialidade de Ginecologia/Obstetrícia da Ordem dos Médicos.
iii. Ora, tratando-se de um parecer médico, em nosso entendimento, impunha-se ao Tribunal a quo, ponderar sobre a credibilidade de tal parecer, socorrendo-se das quotidianas regras de experiência;
iv. O que o Tribunal a quo não fez, em claro prejuízo da descoberta da verdade material;
v. Mormente, em prejuízo da boa e sã prolação de decisão sobre a matéria de facto carreada aos autos.
vi. Mais sucede que, o Tribunal a quo servira-se, de molde a dar resposta negativa aos factos constantes das alíneas h), i), j), I), m), o), q), t), u) — factos não provados ínsitos na douta sentença, da resposta dada por aquele colégio ao quesito 10 que lhe havia sido formulado.
vii. Mal andou o douto Tribunal, senão vejamos:
viii. Tal colégio de especialidade concluiu pela insuficiência de elementos à sua disposição que pudessem fundamentar outra decisão.
ix. Ora, sendo insuficientes os meios que aquele Colégio de Especialidade dispunha para formular a sua resposta ao quesito, tal evidencia/circunstancia deveria impor maior prudência ou contenção na adesão ás suas conclusões;
x. Bem como deveria impor um maior exercício de produção de prova pelo Tribunal a quo de molde a suprir as insuficiências de prova então caracterizadas;
xi. O que, por si só, imporá o reenvio dos presentes autos à primeira instância para produção de novos meios de prova que permitam complementar as insuficiências de prova reportadas.
xii. De todo em todo, caso assim não se entenda, dado estarmos diante de factos sus-cetíveis de configurar a obrigação dos réus indemnizarem a titulo de responsabilidade civil contratual e decorrendo de tal instituto jurídico uma ostensiva inversão do ónus da prova com a vinculação dos Réus a provarem a ausência de qualquer violação da sua legis artis,
xiii. E consequentemente, face à absoluta ausência de prova, por banda dos Réus, que permita infirmar os factos oportunamente alegados pela A., deverão os factos por esta carreados aos autos julgados procedentes,
xiv. Tudo com a subsequente condenação dos Réus no pedido por esta formulado.
xv. Acresce que, do depoimento prestado pela testemunha Á… P…, minutos 17:46, 20:16, 26:30 e 30:38, cuja reapreciação aqui formalmente se requer, imporá a formulação de conclusões diversas das conclusões formuladas pelo Tribunal a quo, mormente imporá a prolação de mérito diversa da decisão ora posta em crise;
xvi. O que desde já se requer para os devidos e legais efeitos.
xvii. A douta sentença ora posta em crise, profere decisão errada quanto aos factos das alíneas h), i), j), I), m), o), q), t), u) dos factos não provados;
xviii. Devendo, quanto aos preditos factos ser proferida decisão que os julgue integral-mente procedentes.»
Propugna, por isso, a Apelante a revogação da sentença e a sua substituição por outra que julgue procedente, por provada, a ação ou, no mínimo, determine o reenvio dos autos ao Tribunal a quo para reabertura da audiência e a produção de prova suplementar para correção dos vícios ou insuficiências supra descritos.
9. As Rés Hospital …, S.A. e Seguradoras …, S.A. apresentaram alegações de resposta.  
10. O recurso de apelação foi admitido, com subida de imediato, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II - Âmbito do recurso de apelação
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões da Recorrente (artigos 635.º, n.º 4, 639.º, n.º 1, do CPC), ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma), a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões:
- Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, designadamente no que concerne aos pontos considerados não provados sob as alíneas h), i), j), l), m), o), q), t), u), devendo proferir-se decisão no sentido:
- da prova de tal factualidade, ou
- do envio dos autos ao Tribunal a quo para reabertura da audiência e a produção de prova suplementar.
- Da inversão do ónus da prova decorrente da responsabilidade contratual, com a vinculação dos Réus a provarem a ausência de qualquer violação da sua leges artis.
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III - Fundamentação
Fundamentação de facto
São os seguintes os factos considerados provados na sentença recorrida:
1) O Réu H… N… é médico ginecologista/obstetra, com subespecialidade de ginecologia oncológica, inscrito na Ordem dos Médicos, sendo titular da cédula profissional n.º ….
2) No período compreendido entre maio de 2012 e outubro de 2012, o Réu H… N… exerceu a sua atividade profissional de médico, no estabelecimento hospitalar de que o Réu Hospital …, S.A. é proprietário, sito na avenida …, Lisboa.
3) O Réu H… N… transferiu o risco inerente à prática da sua atividade médica para a Ré/Chamada … - Companhia de Seguros, S.A., através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º …, contrato regido pelas condições gerais e especiais anexas à contestação da … Portugal, como documentos n.º 1, 2 e 3, constantes de fls. 270 a 305 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
4) Mediante contrato de seguro titulado pela apólice n.º …, o Hospital …, S.A. transferiu para a Companhia de Seguros …, S.A. a sua responsabilidade civil profissional e de exploração decorrente da sua atividade de prestação de serviços de saúde/hospital, responsabilidade limitada a um capital de 2 500.000,00 € por anuidade (limitado a 500 000,00 € por vítima em danos corporais para a componente hospitalar), conforme documentos n.º 1 e 2, anexos à contestação da Ré Companhia de Seguros …, constante de fls. 112 a 129 e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
5) A franquia contratualmente prevista no contrato de seguro suprarreferido (em 4) é de 10% do valor de cada sinistro indemnizável, no mínimo de 250,00 € para a responsabilidade civil exploração, e de 10% do valor de cada seguro indemnizável no mínimo de 1 000,00 € para a responsabilidade civil profissional (hospitais).
6) Em data que antecede o dia 17.5.2012, foi diagnosticado a F… F… um cancro do colo do útero em estádio IB, de grau I/II, associado a prolapso uterino.
7) A TAC abdomino-pélvica realizada por F… F… antes da 1.ª cirurgia, revelava um quadro de útero-hidronefrose bilateral (dilatação de ambos os ureteres, estruturas tubulares que conduzem a urina aos rins para a bexiga).
8) No dia 17.5.2012, o Réu H… N…, nas instalações do Hospital …, submeteu F… F… a intervenção cirúrgica, tendo-lhe realizado uma cirurgia de histerectomia radical classe III e linfadenectomia pélvica bilateral.
9) A referida intervenção cirúrgica foi realizada pelo Réu H… N… e pela ginecologista, Dra. I… R…, na qualidade de 1.ª ajudante.
10) A histerectomia realizada a F… F… implicou o isolamento da parte final dos ureteres esquerdo e direito (terço proximal da junção à bexiga).
11) Aquando da realização da predita cirurgia, o Réu H… N… utilizou vários clips cirúrgicos na região objeto da intervenção cirúrgica, qua não removeu do corpo da Autora.
12) Durante o internamento, F… F… queixou-se de dores na região lombo‑sagrada esquerda, pelo que lhe foi efetuada uma TAC abdomino-pélvica que revelou uretero-hidronefose esquerda, reconhecendo-se franca dilatação do excretor, até sensivelmente próximo do meato útero-vescical, onde reconhece imagens de clips da terapêutica de linfadenectomia realizada.
13) Os exames radiológicos realizados foram inconclusivos porque não esclareceram se algum dos clips cirúrgicos utilizados na cirurgia, e que foram identificados na TAC suprarreferida, estaria a afetar o uréter esquerdo, estrangulando-o, obstruindo-o ou prejudicando o seu funcionamento, ou se ainda algum ponto de sutura estaria a ter idêntico efeito.
14) O Réu H… N… remeteu o problema para avaliação pela especialidade competente de urologia, solicitando avaliação pelo médico J… R…, o qual considerou adequado realizar uma cistoscopia (exame urinário das vias urinárias baixas) para investigar a causa da uretero-hidronefrose e colocação de cateter (stent) no ureter.
15) O procedimento supra descrito foi inconclusivo porque não permitiu identificar o meato ureteral esquerdo e por isso, avançou-se para a laparotomia exploradora, com o mesmo propósito.
16) Na segunda cirurgia realizada a F… F…, em 24.5.2012, pelo Réu H… N… e pelo médico J… R… foi colocado um stent no ureter esquerdo para facilitar a drenagem da urina e solucionar a uretereo-hidronefrose.
17) Na cirurgia suprarreferida, foi isolada e minuciosamente analisada a metade do uréter esquerdo próxima da bexiga até ao meato uretero-vesical, não tendo sido encontrado qualquer laqueação, total ou parcial, do uréter por clip cirúrgico ou ponto de sutura.
18) Entre 17 e 28.5.2012, F… F… apresentou-se sempre com sinais vitais estáveis e a dor no pós-operatório imediato foi avaliada como moderada e depois ligeira.
19) Durante o internamento, F… F… apresentou-se habitualmente sem queixas álgicas (dores) e pontualmente com queixas que cediam à medicamentação normal pós‑operatória.
20) A atuação cirúrgica do Réu H… N… relativamente a F… F… terminou com a segunda intervenção cirúrgica, realizada em 24.5.2012, altura em que se verificou que as suas queixas já não tinham uma relação direta com a especialidade do Réu.
21) Após a realização da segunda intervenção, o Réu H… N…, após avaliação multidisciplinar, determinou a F… F… a realização de terapia por quimioterapia, radioterapia e braquiterapia.
22) A ecografia renal realizada no dia 22.8.2012 constava que o stent colocado em 25.5.2012, se encontrava normalmente posicionado e não revelava qualquer alteração com ele relacionado.
23) Em 4.9.2012, F… F… foi ao atendimento médico permanente da Ré Hospital …, S.A. por hemorragias com duração de uma semana e queixas álgicas com agravamento desde o dia anterior e foi observada pelo urologista J… V… que verificou que o stent uteral se tinha deslocado para a bexiga, não existindo registo de persistência da uretero-hidronefrose.
24) F… F… foi então sujeita a nova cistoscopia para extração do stent anterior e recolocação do novo stent, o que decorreu normalmente e sem registo de complicações e no internamento subsequente F… F… esteve hemodinamicamente estável, com sinais vitais normais e sem queixas significativas, pelo que teve alta no dia 5.9.2012.
25) Passados poucos dias após, o novo cateter veio a ser expulso espontaneamente, com o que F… F… sofreu um episódio de hematúria.
26) Nessa sequência, no dia 8.9.2012, F… F… voltou ao atendimento médico permanente, fez análises ao sangue, fez colheita de urina para análise e foi contactado o urologista de serviço o qual registou hematúria ligeira, dor na região suprapúbica sem lombalgia e, perante os resultados da urocultura, concluiu que a função renal estava normal.
27) O urologista suprarreferido removeu o stent exteriorizado, algaliou F… F… e decidiu mantê-la em vigilância ambulatória, tendo-lhe dado alta no mesmo dia, com prescrição de TAC abdomino-pélvica e consulta de urologia seis dias depois.
28) A TAC abdomino-pélvica, realizada no dia 10.9.2012, revelou moderada útero- hidronefrose bilateral, com aumento da espessura da bexiga e sem outras alterações «de novo» a destacar;
29) Na consulta seguinte, no dia 14.9.2012, o médico urologista, C… S…, constatou que F… F… estava clinicamente bem.
30) Em 17.9.2012, F… F… voltou à consulta com o urologista, C… S… que, constatando que os resultados das análises e da função renal tinham melhorado, decidiu desalgaliá-la e aguardar por nova avaliação.
31) No mesmo dia 17.9.2012, F… F… voltou ao Hospital …, desta vez ao AMP, por queixas de dor pélvica com evolução de apenas duas horas.
32) Nessa ocasião, F… F… urinava espontaneamente, sem qualquer limitação ou obstrução.
33) A médica M… L…, que recebeu F… F… no AMP, inteirou-se do seu historial clínico e examinou-a, tendo registado que os sinais vitais não evidenciavam alterações importantes: temperatura 37,3º C, apirética (i.e. sem febre), pressão arterial de 140-98, frequência cardíaca de 98 bpm.
34) No exame físico, F… F… apresentava abdómen doloroso apenas na região do hipogastro, mas livre (sem dor) nos restantes quadrantes e, aconselhando-se com o médico urologista que a estava a seguir (Dr. C… S…), a mesma médica medicou F… para alívio da sintomatologia apresentada, com ciprofloxacina, urispas e diclofenac em sos, após o que lhe deu alta clinica.
35) No mesmo dia, F… F… decidiu obter um segundo parecer clínico, tendo para tando acorrido ao Hospital dos ….
36) Após entrada naquela unidade hospitalar, F… F… foi submetida a realização de diversos exames clínicos, designadamente TAC, ressonância magnética e análises clinicas e foi consultada pelo médico urologista J… R….
37) Nessa data foi-lhe diagnosticada uma uretero-hidronefrose à esquerda.
38) Nessa sequência foi determinada a realização de nova cirurgia a qual veio a realizar-se no predito dia 19.9.2012, tendo sido diagnosticado a F… F…, no decurso da predita cirurgia, uma septicemia, facto que determinou o seu internamento na unidade de cuidados intensivos, seguido de internamento até 29.9.2012.
39) Na referida cirurgia, realizada pelo urologista J… R…, foi colocado um novo cateter – duplo J.
40) Subsequentemente, a primitiva Autora foi ainda submetida a uma intervenção cirúrgica para dilatação do ureter, mas sem sucesso, tendo sido em março de 2013 realizada uma derivação urinária.
41) F… F… foi considerada recuperada da sua função urinária pelo urologista J… R… após a cirurgia de março de 2013.
42) Todas as suprarreferidas intervenções realizadas no Hospital … foram informadas e consentidas por F… F….
43) Até ao dia 17.9.2012, quer os sinais objetivos, quer os resultados das análises realizados no Hospital … não revelavam sinais de septicemia.
44) A primitiva Autora, à data dos factos, tinha residência habitual em Luanda.
45) Após outubro de 2012, F… F… teve que realizar diversa viagens entre Luanda e Lisboa, a fim de realizar consultas e receber tratamentos médicos.
46) O Réu H… N… trabalhou para o Réu Hospital …, S.A., entre novembro de 2006 e abril de 2013, inclusive, tendo posteriormente deixado de prestar serviços para o indicado Réu por ter aceite o convite da Fundação Champalimaud, onde passou a trabalhar desde maio de 2013 até ao presente.
47) O Réu H… N… atendia os doentes sob marcação dos serviços do réu Hospital …, S.A. e efetuava as intervenções cirúrgicas que lhe eram marcadas pelos mesmos serviços, após parecer sobre a necessidade ou a conveniência da sua realização.
48) Todos os aspetos contratuais, incluindo os financeiros, eram estabelecidos diretamente entre os doentes e o Réu Hospital …, S.A..
49) O Réu H… N... era remunerado pelo Réu Hospital …, S.A. nos termos acordados entre ambos.
50) O Réu H… N… gozava de autonomia técnica e independência no exercício da sua atividade.
51) F… F… não celebrou qualquer acordo sobre o serviço a prestar com o Réu H… N…, tendo sido referenciada para o Réu H… N… por outro médico prestador de serviços no Hospital …, após o diagnóstico do cancro do colo do útero.
52) Na primeira das cirurgias foram utilizados os materiais cirúrgicos indicados para intervenções desta natureza.
53) Os clips deixados no organismo de F… F… durante a cirurgia realizada em 17.5.2012, constituem um material usado em intervenções cirúrgicas para evitar hemorragias e que devem ser deixados no organismo após as mesmas, são em titânio, absolutamente neutros e inertes, com cerca de 11 mm de comprimento e cerca de 1mm de espessura, e em cada intervenção cirúrgica podem ser deixados no organismo dos doentes algumas dezenas deles, aí ficando definitivamente.
54) Os clips são materiais que permitem reduzir o tempo da cirurgia com total vantagem para o doente em termos de evitar complicações intra e pós-operatórias, visando a hemóstase de vasos sanguíneos e linfáticos.
55) Os clips são materiais utilizados de forma universal, por diferentes especialidades cirúrgica, em Portugal e em todo o mundo, e não existe indicação para a sua remoção posterior do organismo do doente.
56) A permanência e risco dos clips é equiparável à do fio de sutura ou de uma prótese ou ortótese que igualmente se destinam a permanecer dentro do corpo humano após a cirurgia.
57) Em função dos factos referidos em 17), os clips foram todos eles mantidos e deixados no organismo de F… F…, na segunda cirurgia realizada.
58) O estado de saúde de F… F…, após a histerectomia e os tratamentos (quimioterapia, radioterapia e braquiterapia), melhorou e, no que ao cancro respeitava, ficou sanada.
59) A doença diagnosticada a F… F… é altamente letal.
60) Em reunião com o Diretor Clínico da Ré Hospital …, S.A., no final de 2012, F… F… manifestou desagrado quanto aos cuidados que lhe tinham sido prestados no Hospital …, por falta de resolução do seu problema urológico da forma adequada e atempada que esperava, e por ter sido submetida a dois cateterismos que não surtiram efeito, o que motivou a sua ida para o Hospital dos ….
61) A Ré Hospital …, S.A. e a sua Direção Clínica ponderaram as razões apresentadas por F… F…, e aceitou comparticipar, através da sua seguradora e ora ré, os custos dos tratamentos necessários para resolver a uretero-hidronefrose de que a primitiva Autora sofria, a realizar pelo médico urologista J… R…, no Hospital dos ….
62) Nessa sequência, foi pedido ao médico urologista J… R… um relatório médico sobre o plano terapêutico proposto, o qual foi elaborado em 24.1.2013, e do qual constava a colocação de um cateter duplo J, já realizada em setembro de 2012, a dilatação endoscópica do uréter agendada para 30.1.2013 que, caso não resolvesse o problema, propunha em alternativa uma derivação urinária interna por laparotomia.
63) Considerando o plano terapêutico proposto adequado, a Ré Hospital …, S.A. contactou a entidade HPP – Hospital dos …, comunicando-lhe a intenção de pagar os serviços que fossem prestados a F… F… no contexto do tratamento proposto e executado pelo médico urologista J… R….
64) Foi feita a participação à Ré T…, S.A., e a indicação para pagamento dos serviços prestados a F… F… pelo Dr. J… R… no Hospital dos ……
65) A Ré T…, S.A. satisfez a solicitação do Hospital …, S.A. e pagou, em março de 2015, ao Hospital dos … o montante global de 45 839,49 €, referentes ao tratamento médico realizado à primitiva Autora, concretamente, 1 704,18 € relativamente a serviços de medicina nuclear, consultas médicas, ecografias, radiologia convencional, análises clínicas, anatomia patológica e enfermagem, 21 481,07 € relativamente a serviços de diárias de quarto particular (e acompanhante) e de cuidados intermédicos, equipa cirúrgica, cirurgia, anestesia, bloco operatório, ressonância magnética, análises clínicas, farmácia, consumos e transfusões de sangue (preparação e reserva), 2 887,79 € relativamente a consumos, 5 669,53 € relativamente a diárias, equipa cirúrgica, cirurgia, anestesia, bloco operatório, radiologia convencional, farmácia e consumos, 14 096,92 € relativamente aos serviços de diárias de unidade de cuidados intensivos e de quarto particular (e acompanhante), equipa cirúrgica, cirurgia, anestesia, bloco operatório, consultas médicas, serviços cardiovasculares, serviços de endoscopia, radiologia convencional, TAC, análises clínicas, farmácia, consumos e transfusões de sangue (preparação e reserva).
São os seguintes os factos considerados não provados na sentença recorrida:
a) O Réu H… N… exercia a sua atividade médica seguindo a orientação e disciplina do Réu Hospital …, S.A..
b) O Réu H… N… transferiu a responsabilidade emergente da sua atividade profissional para a Ré Companhia de Seguros …, S.A., por via da apólice n.º ….
c) A indicação do problema urológico ocorrido após a 1.ª cirurgia partiu de alterações significativas nos resultados analíticos (hemograma) no 1.º dia de pós‑operatório, às 8h35mn da manhã, que o Réu H… N… considerou merecedoras de atenção pelo que pediu a repetição do hemograma.
d) No dia seguinte, o hemograma revelava maiores alterações, embora F... F... continuasse sem queixas, pelo que o Réu H... N… prescreveu ecografia renal e TAC abdomino-pélvica.
e) Aquando da realização da cirurgia datada de 24.5.2012, o Réu H… N… aplicou à Autora um cateter no útero esquerdo.
f) No âmbito da intervenção realizada em 24.5.2012, o stent ureteral foi colocado no ureter por cistoscopia.
g) A partir de 17.9.2012, o Réu H… N…. não estabeleceu qualquer contacto com a Autora e tampouco cuidou de saber qual o estado de saúde ou qual a evolução do seu estado clinico.
h) Em 17.9.2012, F… F… queixava-se de um cheiro forte e da existência de secreções de cor branca na sua urina, tendo isso sido submetida a diversas análises e exames clínicos.
i) No dia 17.9.2012, no Hospital dos … foi diagnosticado a F… F… que o ureter esquerdo estava bloqueado por um clips.
j) Foram os clips cirúrgicos deixados no corpo da primitiva Autora, na região objeto da primeira intervenção cirúrgica, que causaram a F… F… um estrangulamento do uréter esquerdo.
k) Os clips cirúrgicos, aquando da realização da braquiterapia, causaram a F… F… um estrangulamento do uréter esquerdo, o que lhe causou dores e mal-estar generalizado.
l) Em consequência dos atos praticados pelo Réu H… N…, F… F… sofreu dores, um mal-estar generalizado, dormiu mal, temeu perder a sua vida, sofreu angústias constantes, deixou de se relacionar com a sua família e amigos, deixou de viajar ou de realizar as suas tarefas domésticas quotidianas.
m) F… F… passou a sentir limitações na sua capacidade de resistência física, passou a não suportar manter-se em pé, deixou de sentir capacidade para conduzir ou realizar viagens demoradas ou que impliquem grandes deslocações.
n) A uretero-hidronefrose à esquerda (dilatação do ureter) partiu da uretero‑hidronefose bilateral pré-existente à cirurgia ginecológica e que foi a razão de ser dos episódios subsequentes.
o) Aquando da realização das 1.ª e 2.ª cirurgias, o Réu H… N… ocultou a F… F… que se havia esquecido dos clips cirúrgicos no corpo daquela.
p) F… F… tomou conhecimento em 25.5.2012 que tinha clips no organismo e que fora operada nessa data para verificar se algum deles estava a prejudicar o funcionamento do ureter esquerdo.
q) F… F… teve conhecimento da existência de clips que lhe bloquearam o ureter esquerdo, após o fim do seu internamento na unidade de cuidados intensivos da unidade hospitalar denominada Hospital dos ….
r) Na reunião referida em 60) dos factos provados, F… F… lamentou ao Diretor Clínico que não tinha condições económicas para pagar o tratamento do seu problema urológico e que, por sua vontade, preferiu recorrer ao Hospital dos … para aí ser tratada pelo médico urologista J… R….
s) Nessa data, F… F… tomou conhecimento que o Réu H… N… havia apresentado a sua demissão, após ser informado pelo médico J… R… do erro médico perpetuado.
t) Foi igualmente informada de que a Ré Hospital …, S.A. assumiria a responsabilidade pela conduta dolosa perpetrada pelo Réu H… N….
u) Nessa sequência, F… F… iniciou conversações com a Ré T…, S.A., a fim de ser ressarcida dos prejuízos e danos que lhe haviam sido infligidos pelos Réus H… N… e Hospital …, S.A..
v) A Autora despendeu a quantia de 35 849,39 € com viagens e encargos, concretamente:
a) No Hospital …, e a título de «Adiantamento de Serviços Hospitalares»:
-  1 155.00 €, com Bloco operatório - sala de operações -histerectomia radical com linfadenectomia pélvica bilateral (tipo Wertheim-Meigs);
- 3 100,00 € com honorários médicos/equipa médica (cirurgião, 1.º ajudante, anestesista, instrumentista e técnicos);
- 4 579.50 € com «Consumos» (materiais, medicamentos e meios complementares de diagnóstico) e 1 965,00 € com «diárias» (recobro, dias de internamento 7) (fatura NHF12-0259395);
- 3 000,00 €, a título de «Adiantamento de serviços hospitalares» (fatura n.º NHF12-0279642);
- 1 707,63 €, com internamento, consumos de farmácia e armazém (fatura n.º NHF12-0283987);
- 100,00 €, com consulta de radioterapia 1.ª (fatura n.º NHF12-0313315);
- 100,00 €, com consulta de oncologia média 1.ª (fatura n.º NHF12-0314284);
- 2,00 €, com análises clínicas (creatinina, hemograma c/plaquetas) (fatura n.º NHF12-0319239);
- 1 400,00 €, com tomografia por emissão de positrões (PET -TAC)-Corpo Inteiro 18 F-FDG (fatura n.º NHF12-0319249);
- 80,00 €, com ecografia renal (fatura n.º NHF12-0425253);
- 18,00 €, com análises clínicas (Urina II, Urocultura) (fatura n.º NHF12-0425204);
- 355,00 €, com TC abdómen, TC contraste oral, TC pélvico (fatura n.º NHF12-0437900);
- 53,00 €, com análises clínicas (ureia, creatinina, hemograma, etc.) (fatura n.º NHF12-0437811);
- 90,00 €, com atendimento médico permanente-geral - Diurno (fatura n.º NHF12-0445167);
- 3 176,53 €, com extração de corpos estranhos do ureter/citoscópio, colocação endoscópica retrógrada de ureteral, etc. (fatura n.º NHF12-0447600);
- 335,97 €, com sala de cuidados de observação, A.M.P- Cons. Urologia fim de semana, análises clínicas (fatura n.º NHF12-0453098);
- 95,00 €, em atendimento médico permanente geral - fim de semana (fatura n.º NHF12-0453000);
- 225,00 €, em TC Contraste Oral + TC Urografia (fatura n.º NHF12-0454843);
- 90,00 €, em consulta de urologia 1.ª (fatura n.º NHF12-0465101);
- 54,08 €, com análises clínicas, consumos de farmácia e armazém (fatura n.º NHF12-0469282);
- 90,00 €, atendimento médico permanente – diurno (fatura n.º NHF12-0468416);
- 21,00 €, com análises clínicas (fatura n.º NHF12-0466769);
- 7,79 €, com remover algália + consumos de armazém (fatura n.º NHF12-0467045);
b) No Hospital dos …:
- 425,00 €, com TAC abdómen + TAC pélvico + consulta de atendimento urgente (fatura n.º 2012/239186);
- 360,00 €, com radiologia convencional + tomografia axial computorizada (fatura n.º FR13/18762);
- 149,59 €, com análises clínicas (fatura n.º FR13/18499);
- 30,00 €, com serv. cardio vasculares (fatura n.º FR13/30176);
- 90,00 €, com 1.ª consulta anestesiologia (fatura n.º FR13/30149);
- 80,00 €, consulta subsequente (fatura n.º FR13/255414);
- 35,00 €, consulta de urologia (subsequente) (fatura n.º VFR14L/110965);
- 35,00 €, consulta de urologia (subsequente) (fatura n.º FR14L/119573);
- 112,87 €, análises clínicas (fatura n.º V FR14L/11636);
- 115,60 €, renograma DPTA c/prova farmacológica (fatura n.º V FR14L/14251);
- 204,00 €, ecografia abdominal + ecografia renal e suprarrenal + ecografia vesical (suprapúbica) (fatura n.º V FR14L/16687);
- 595,00 €, com ressonância magnética do abdómen e da pelve (fatura n.º V FR14L/18348);
- 35,00 €, consulta de urologia (subsequente) (fatura n.º VFR14L/110965);
- 204,00 €, ecografia abdominal + ecografia renal e suprarrenal + ecografia vesical (suprapúbica) (fatura n.º V FR14L/116627);
- 35,00 €, consulta de urologia (fatura n.º V FR14/292532);
- 100,00 €, consulta de urologia (fatura n.º FR15L/40936);
- 132,82 €, análises clínicas (fatura n.º V FR15L/41444);
- 700,00 €, ressonância magnética do abdómen + ressonância magnética da pelve (fatura n.º VFR15L/45393);
- 40,00 €, radiologia convencional (tórax, pulmão e coração) (fatura n.º VFR15L/46292);
- 30,00 €, eletrocardiograma (fatura n.º VFR15L/46434);
- 80,00 €, consulta de anestesiologia (fatura n.º VFR15/51302);
- 2 000,00 €, adiantamento (para cirurgia) (fatura n.º A AD15L2064);
- 3 000,00 €, adiantamento (para cirurgia) (fatura n.º A AD15L2065);
- 60,00 €, consulta / exame médico (fatura n.º VFR15L/98091);
- 62,03 €, análises clínicas (fatura n.º VFR15L/133609);
c) Em viagens:
- 1 047,00 €, no percurso 1: Lisboa - Luanda a 16 de novembro de 2012 e no percurso 2: Luanda - Lisboa 15 janeiro;
- 495,46 €, no percurso: Lisboa - Luanda 2 de março de 2013;
- 980,70 €, no Percurso 1: Luanda - Lisboa 8 de Setembro de 2013 e no percurso 2: Lisboa - Luanda 21 de setembro de 2013;
- 914,59 €, no percurso 1: Luanda - Lisboa 11 de Janeiro de 2014 e no percurso 2: Lisboa - Luanda 27 de janeiro de 2014;
- 916,20 €, no percurso Percurso1: Luanda - Lisboa 26 de Março de 2014 e no percurso 2: Lisboa - Luanda 17 de abril de 2014;
- 969,54 €, no percurso 1: Luanda - Lisboa 29 de Janeiro de 2015 e no percurso 2: Lisboa - Luanda 28 de fevereiro de 2015.
Apreciação do recurso
Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Os poderes do Tribunal da Relação relativos à modificabilidade da decisão de facto estão consagrados no artigo 662.º do CPC.
Nos termos do artigo 640.º do CPC, incumbe ao recorrente que impugne a referida decisão, sob pena de rejeição do recurso, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados [n.º 1, alínea a)], os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida [n.º 1, alínea b)] e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas [n.º 1, alínea c)].
Acresce que, nos termos da alínea b) do n.º 2 do citado artigo 640.º, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso nessa parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
A Apelante observou devidamente estes requisitos da impugnação, indicando as alíneas dos factos considerados não provados que considera demonstrados pela prova produzida e indicando passagens transcritas da gravação, bem como a restante prova documental e pericial, que conduz, em seu entendimento, a tal prova.
Passamos a analisar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, indagando se a convicção criada no espírito do Tribunal a quo é ou não merecedora de reparos.
Factos não provados - alíneas h), i), j), l), m), o), q), t) e u)
A Apelante sustenta que o Tribunal recorrido fundou a decisão quanto a estes factos na resposta dada pelo Colégio da especialidade de Ginecologia/Obstetrícia da Ordem dos Médicos, o qual concluíra pela insuficiência de elementos à sua disposição que pudessem fundamentar outra decisão.
Considera que, sendo insuficientes os meios que aquele Colégio de Especialidade dispunha para formular a sua resposta ao quesito, tal evidência/circunstância deveria impor maior prudência ou contenção na adesão às suas conclusões, bem como um maior exercício de produção de prova pelo Tribunal a quo de molde a suprir as insuficiências de prova então caracterizadas.
Argui que, por si só, tal circunstancialismo imporia o reenvio dos presentes autos à primeira instância para produção de novos meios de prova que permitam complementar as insuficiências de prova reportadas.
Argumenta que estamos perante um caso de responsabilidade médica contratual, o que implica a inversão do ónus da prova com a vinculação dos Réus a provarem a ausência de qualquer violação da sua leges artis.
Acrescenta que o depoimento prestado pela testemunha Á… P…, cujo depoimento transcreve parcialmente, impõe decisão diversa das conclusões formuladas pelo Tribunal a quo.
Em sede de alegação de resposta, as Apeladas Hospital …, S.A. e Seguradoras …, S.A. sustentam a total falsidade do facto ilícito e causal configurado na petição inicial – que, no decorrer da cirurgia a que F… F… foi sujeita a 17.5.2012 no Hospital …, o Dr. H… N… teria deixado clips cirúrgicos no seu organismo e que, em consequência, tais clips teriam sido a causa de uretero-hidronefrose que a Autora apresentava no pós-cirúrgico uma vez que teriam obstruído o ureter esquerdo.
Alegam que os dois pareceres médicos juntos aos autos são largamente coincidentes nas respostas às questões que foram chamados a elucidar e, sobretudo, absolutamente coincidentes com a prova produzida em juízo, mediante a audição de médicos especialistas, como o Réu H… N… e as testemunhas arroladas pelos Réus, I… R… e J… R….
Apreciando:
A. Antes de mais, há que enquadrar a intervenção cirúrgica a que a falecida F… F… foi submetida.
Ficou provado, e não é colocado em crise, que:
- Em data que antecede o dia 17.5.2012, foi diagnosticado a F… F… um cancro do colo do útero em estádio IB, de grau I/II, associado a prolapso uterino (ponto 6);
- No dia 17.5.2012, o Réu H… N…, nas instalações do Hospital …, submeteu F… F… a intervenção cirúrgica, tendo-lhe realizado uma cirurgia de histerectomia radical classe III e linfadenectomia pélvica bilateral (ponto 8);
- A histerectomia realizada a F… F… implicou o isolamento da parte final dos ureteres esquerdo e direito (terço proximal da junção à bexiga) (ponto 9);
- Aquando da realização da predita cirurgia, o Réu H… N… utilizou vários clips cirúrgicos na região objeto da intervenção cirúrgica, qua não removeu do corpo da Autora (ponto 11);
- Durante o internamento, F… F… queixou-se de dores na região lombo sagrada esquerda, pelo que lhe foi efetuada uma TAC abdomino-pélvica que revelou uretero-hidronefose esquerda, reconhecendo-se franca dilatação do excretor, até sensivelmente próximo do meato útero-vescical, onde reconhece imagens de clips da terapêutica de linfadenectomia realizada (ponto 12);
- Os exames radiológicos realizados foram inconclusivos porque não esclareceram se algum dos clips cirúrgicos utilizados na cirurgia, e que foram identificados na TAC suprarreferida, estaria a afetar o uréter esquerdo, estrangulando-o, obstruindo-o ou prejudicando o seu funcionamento, ou se ainda algum ponto de sutura estaria a ter idêntico efeito (ponto 13);
- O Réu H… N… remeteu o problema para avaliação pela especialidade competente de urologia, solicitando avaliação pelo médico J… R…, o qual considerou adequado realizar uma cistoscopia (exame urinário das vias urinárias baixas) para investigar a causa da uretero-hidronefrose e colocação de cateter (stent) no ureter (ponto 14);
- O procedimento supra descrito foi inconclusivo porque não permitiu identificar o meato ureteral esquerdo e, por isso, avançou-se para a laparotomia exploradora, com o mesmo propósito (ponto 15);
- Na segunda cirurgia realizada a F… F…, em 24 de maio de 2012, pelo Réu H… N… e pelo médico J… R…, foi colocado um stent no ureter esquerdo para facilitar a drenagem da urina e solucionar a uretereo-hidronefrose (ponto 16);
- Na cirurgia suprarreferida, foi isolada e minuciosamente analisada a metade do uréter esquerdo próxima da bexiga até ao meato uretero-vesical, não tendo sido encontrado qualquer laqueação, total ou parcial, do uréter por clip cirúrgico ou ponto de sutura (ponto 17);
- A atuação cirúrgica do Réu H… N… relativamente a F… F… terminou com a segunda intervenção realizada em 24.5.2012, altura em que se verificou que as suas queixas já não tinham uma relação direta com a especialidade do Réu (ponto 20);
- Após a realização da segunda intervenção, o Réu H… N…, após avaliação multidisciplinar, determinou a F… F… a realização de terapia por quimioterapia, radioterapia e braquiterapia (ponto 21);
- A ecografia renal realizada no dia 22.8.2012 constava que o stent colocado em 25.5.2012, se encontrava normalmente posicionado e não revelava qualquer alteração com ele relacionado (ponto 22);
- Em 4.9.2012, F… F… foi ao atendimento médico permanente da Ré Hospital …, S.A. por hemorragias com duração de uma semana e queixas álgicas com agravamento desde o dia anterior e foi observada pelo urologista J… V… que verificou que o stent uteral se tinha deslocado para a bexiga, não existindo registo de persistência da uretero-hidronefrose (ponto 23);
- F… F… foi então sujeita a nova cistoscopia para extração do stent anterior e recolocação do novo stent, o que decorreu normalmente e sem registo de complicações e no internamento subsequente F… F… esteve hemodinamicamente estável, com sinais vitais normais e sem queixas significativas, pelo que teve alta no dia 5.9.2012 (ponto 24);
- Na primeira das cirurgias foram utilizados os materiais cirúrgicos indicados para intervenções desta natureza (ponto 52);
- Os clips deixados no organismo de F… F… durante a cirurgia realizada em 17.5.2012 constituem um material usado em intervenções cirúrgicas para evitar hemorragias e que devem ser deixados no organismo após as mesmas, são em titânio, absolutamente neutros e inertes, com cerca de 11 mm de comprimento e cerca de 1mm de espessura, e em cada intervenção cirúrgica podem ser deixados no organismo dos doentes algumas dezenas deles, aí ficando definitivamente (ponto 53);
- Os clips são materiais que permitem reduzir o tempo da cirurgia com total vantagem para o doente em termos de evitar complicações intra e pós-operatórias, visando a hemóstase de vasos sanguíneos e linfáticos (ponto 54);
- Os clips são materiais utilizados de forma universal, por diferentes especialidades cirúrgicas, em Portugal e em todo o mundo, e não existe indicação para a sua remoção posterior do organismo do doente (ponto 55);
- A permanência e risco dos clips é equiparável à do fio de sutura ou de uma prótese ou ortótese que igualmente se destinam a permanecer dentro do corpo humano após a cirurgia (ponto 56);
- Em função dos factos referidos em 17), os clips foram todos eles mantidos e deixados no organismo de F… F…, na segunda cirurgia realizada (ponto 57);
- O estado de saúde de F… F…, após a histerectomia e os tratamentos (quimioterapia, radioterapia e braquiterapia) melhorou e no que ao cancro respeitava, ficou sanada (ponto 58);
- A doença diagnosticada de F… F… é altamente letal (ponto 59).
A prova pericial relevante para o objeto do recurso consiste em dois pareceres médicos subscritos por dois especialistas indicados pelo Colégio da Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia e pelo Colégio da Especialidade de Urologia da Ordem dos Médicos.
O parecer junto a fls. 557 a 559 foi subscrito por J… S… D… – médico urologista e membro da Direção do Colégio de Urologia da Ordem dos Médicos.
O parecer junto a fls. 561 a 565 foi subscrito pelo médico ginecologista oncologista C… A… A… L….
Notificada dos dois pareceres, a Autora/Apelante não apresentou qualquer reclamação nem requereu que os peritos prestassem esclarecimentos em audiência.
O que poderia ter ocorrido, à luz do artigo 485.º, n.º 2, do CPC, segundo o qual «Se as partes entenderem que há qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial, ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas, podem formular as suas reclamações», bem como nos termos do artigo 486.º, n.º 1, do mesmo diploma, que preceitua que «Quando alguma das partes o requeira ou o juiz o ordene, os peritos comparecem na audiência final, a fim de prestarem, sob juramento, os esclarecimentos que lhes sejam pedidos
Ocorre deficiência do laudo pericial quando o mesmo não considera todos os pontos que devia ou não os considera tão completamente como devia; ocorre obscuridade quando não se vislumbra o sentido de alguma passagem ou esta pode ter mais de um sentido; ocorre contradição quando há colisão entre os vários pontos focados ou entre as posições tomadas pelos peritos, sendo a perícia colegial (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, p. 339).
A força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal, ao abrigo do artigo 389.º do Código Civil,
Decorre da motivação da sentença em análise que os dois relatórios periciais foram devidamente confrontados com as declarações de médicos de ambas as especialidades de ginecologia e de urologia, como flui em especial das declarações de parte do Réu H… N… (médico ginecologista com subespecialidade em ginecologia oncológica) e dos depoimentos das testemunhas arroladas pelos Réus, designadamente I… R… (ginecologista com subespecialização em oncologia e mama) e J… R... (urologista).
B. Analisemos, então, a factualidade vertida nas várias alíneas impugnadas.
h) Em 17.9.2012, F… F… queixava-se de um cheiro forte e da existência de secreções de cor branca na sua urina, tendo isso sido submetida a diversas análises e exames clínicos.
O Tribunal a quo estribou o decidido na imprecisão e vaguidade dos depoimentos das testemunhas A… F… e E… C…, bem como nas declarações de parte da Autora/Apelante, «em alguns pontos claramente parciais e afastadas da realidade dos factos», tendo-se apoiado também no facto da documentação clínica não confirmar «a verificação de tal sintomatologia».
Assim, neste particular, consta da motivação da decisão recorrida que:
«(…) No que respeita à factualidade vertida no ponto h) os elementos probatórios produzidos não permitiram confirmar que tais queixas existiram na data em causa, pois muito embora N… S… F… do A… G… – agora autora enquanto habilitação no lugar de sua mãe F… F…, e as testemunhas A… F… e E… C… – já identificadas –, tenham referido que F… F… se queixou do odor da urina e da presença de secreções brancas, os seus depoimentos foram vagos e imprecisos e até mesmo em alguns pontos claramente parciais e afastados da realidade dos factos, além de que os registos clínicos não confirmam a verificação de tal sintomatologia (cf. registo da consulta de AMP de 17/09/2012, junto a fls. 486 e o registo de triagem AMP de 17/09/2012, junto a fls. 758).»
Não se concebe a razão da discordância da Apelante, sendo certo que esta fundamentação não tem acolhimento na prova pericial.
Acresce que não se vislumbra das transcrições do depoimento da testemunha Á… P…, sobrinho de F… F… e sociólogo de profissão, cuja reapreciação é objeto do presente recurso, qualquer pertinência nesta matéria.
i) No dia 17.9.2012, no Hospital dos …, foi diagnosticado a F… F… que o ureter esquerdo estava bloqueado por um clips.
j) Foram os clips cirúrgicos deixados no corpo da primitiva Autora, na região objeto da primeira intervenção cirúrgica, que causaram a F… F… um estrangulamento do uréter esquerdo.
l) Em consequência dos atos praticados pelo Réu H… N…, F… F… sofreu dores, um mal-estar generalizado, dormiu mal, temeu perder a sua vida, sofreu angústias constantes, deixou de se relacionar com a sua família e amigos, deixou de viajar ou de realizar as suas tarefas domésticas quotidianas.
m) F… F… passou a sentir limitações na sua capacidade de resistência física, passou a não suportar manter-se em pé, deixou de sentir capacidade para conduzir ou realizar viagens demoradas ou que impliquem grandes deslocações.
Lê-se na decisão recorrida que:
«A decisão do Tribunal sobre a matéria enunciados nos pontos i) a m) ficou igualmente a dever-se à insuficiência da prova produzida sobre tal factualidade. Com efeito, foram ponderadas as declarações do réu e os vários depoimentos dos médicos intervenientes nos atos médicos a que F… F… foi submetida (I… R…, J… R… e J… R…, e foram analisados os vários relatórios de exames, os relatórios médicos e os registos clínicos do Hospital … e do Hospital dos … e os pareceres médicos emitidos pelos especialistas indicados pelo Colégio da Especialidade de Ginecologia/Obstetrícia (cf. pareceres juntos a fls. 557 a 559 e 561 a 565 – já supra mencionados. Todavia, dessa ponderação global não se logrou concluir que que os factos ocorreram como alegado pela primitiva autora. Na verdade, nenhum dos relatórios de exame – ressonâncias magnéticas, ecografias e tomografias computorizadas – menciona/identifica a existência do alegado bloqueio do ureter esquerdo por qualquer clips, ainda que mencionem uma “transição abrupta do calibre da ectasia do ureter adjacente aos clips metálicos” e “um aspeto de afilamento abrupto adjacente aos clips”. Porém, tais aspetos revelaram-se inconclusivas aos olhos dos vários profissionais que realizaram os exames e consultaram F… F…, tendo sido igualmente essa a opinião dos peritos médicos que no âmbito da presente ação emitiram parecer sobre tais factos, cf. fls. 557/559 e 561/565 – resposta ao quesito n.º 10.
Acresce que, quer a testemunha I… R… garantiu que, aquando da primeira intervenção, fizeram o isolamento dos ureteres de acordo com as práticas médicas conhecidas e recomendadas, tendo a cirurgia decorrido sem quaisquer intercorrências; quer a testemunha J… R… confirmou que na laparotomia realizada no dia 24/05/2012, foi verificada a integralidade do ureter, no qual não foi verificado qualquer bloqueio total ou parcial do mesmo por clips ou ponto de sutura, e que colocaram no interior do ureter o cateter, em conformidade com as práticas médicas conhecidas e recomendadas pela especialidade de urologia, tendo ainda afirmado que caso o ureter estivesse realmente obstruído não teria sido possível fazer passar pelo interior do mesmo o cateter/stent. Sendo de salientar que aquando da realização da segunda cirurgia já havia registo da presença de clips cirúrgicas na zona da dilatação e que foi nesse quadro clínico que o réu H… N… e o urologista J… R… realizaram uma cistoscopia e uma laparotomia com vista a apurar precisamente se a origem da patologia em causa estava em alguma obstrução causada por clips ou ponto de sutura, não sendo verosímil que nessas circunstâncias os dois profissionais não tivessem logrado identificar o eventual bloqueio e procedido à sua desobstrução, já que depois disso a hidronefrose persistiu.
Do mesmo modo, a circunstância de terem sido colocado mais dois cateteres (um em 04/09/2012 e outro em 19/09/2012), através de cistoscopia, mais dúvidas nos suscitam quanto à plausibilidade desse agrafamento, ainda que parcial, pelo clips cirúrgico, na medida em que, como foi explicado pelos urologistas ouvidos em julgamento, a utilização de tal procedimento implicou que o stent tenha sido colocado sem o ureter ter sido aberto, mas sim através do seu interior desde a bexiga até ao rim. Tendo resultado inclusive do depoimento da testemunha J… R… e dos pareceres dos médicos especialistas – cf. fls. 557/559 e 561/565, quesito n.º 18 – que a existência de uma obstrução externa por agrafamento/ponto de sutura impossibilitaria a passagem do stent.
De referir, ainda, que também não deixou de se nos afigurar relevante na ponderação feita, que a patologia que a primitiva autora indica como sendo consequência da conduta do réu H… N… – uretero-hidronefrose – na verdade constitui uma obstrução do trato urinário, no caso na zona dos ureteres, que pode ter por causa múltiplos factores e que a primitiva autora antes da realização da cirurgia já apresentada, provavelmente associada ao tumor diagnosticado. Sendo que dos depoimentos dos médicos ouvidos em julgamento, bem como do parecer dos médicos especialistas, que integraram o Colégio da Especialidade, resultou que a uretero-hidronefrose poderá ser decorrente da reação do organismo da doente – que é incerta – consequente da alteração anatómica brutal decorrente da cirurgia, podendo a estenose do ureter ser uma consequência da cirurgia. Sendo que também o Conselho Disciplinar da Ordem dos Médicos, entendeu, em decisão de arquivamento proferida, a qual não se ignora que foi revogada por insuficiência da instrução do processo, que, no que a este aspeto concerne, a lesão dos ureteres é uma das mais frequentes associadas ao tipo de cirurgia – conferir documento junto a fls. 613 a 695.
Importa, também, referir que, muito embora tenha ficado demonstrado que F… F… sofreu dores e mau estar generalizado, o que foi revelado pelo depoimento das testemunhas A… F…, E… C… e Á… P…, dores essas que se revelaram mais intensas aquando da realização do tratamento por braquiterapia, a prova também evidenciou que tal sintomatologia se encontra necessariamente associada à agressividade da cirurgia realizada e dos tratamentos a eu F… F… foi sujeita.
Cumpre referir, por outro lado, que na análise feita não deixou de se ponderar o teor do documento subscrito pelo urologista J… R…, junto a fls. 798/799, onde o mesmo referiu que “Após estabilização de … (ininteligível) hidronefrose foi colocado um duplo J que passou apesar do clips que obstruía o uretero.”. O documento em causa constituiu um relatório redigido numa folha do seu consultório e ter-se-á destinado a informar o Hospital …, S.A., do tratamento a que F… F… foi e iria ser submetida. Diga-se, a propósito de tal declaração escrita, que o próprio urologista J… R… em audiência de julgamento afirmou que quando tratou a primitiva autora equacionou essa hipótese e, tentando justificar o que terá dito e escreveu e face às dúvidas colocadas sobre a efetiva possibilidade de passagem do stent mediante a obstrução por agrafamento, afirmou que eventualmente poderia ser uma obstrução meramente parcial. No entanto, a mesma testemunha também explicou e esclareceu que essa foi uma hipótese equacionada, mas que nunca não foi por si diretamente constatado, porquanto quando realizou a laparotomia, subsequente à cistoscopia e à tentativa de dilatação do ureter para realização da ureteroureterostomia, em março de 2013, não logrou aceder à zona da dilatação e onde se registava a existência de clips cirúrgicos, devido à existência de uma massa fibrose densa, que não lhe permitiu analisar o ureter na sua extensão. A testemunha admitiu, ainda, depois de ter tomado conhecimento dos procedimentos realizados, mormente da cirurgia exploratória levada a cabo em 24/05/2012, a possibilidade de a uretero-hidronefrose registada poder ser decorrente da cirurgia e da reação própria do organismo da primitiva autora.
Acresce referir que em momento algum o referido médico urologista fez consignar nos registos por si efetuados no âmbito do processo clínico existente junto do Hospital dos … tal facto, como seria de esperar se tal tivesse constatado diretamente ou se tal fosse uma evidência medicamente comprovada pelos exames realizados.
Também não deixou de se ponderar a postura da ré Hospital …, S.A. ao decidir proceder ao pagamento dos tratamentos realizados à primitiva autora no Hospital dos …. Todavia, sobre tal decisão quer a testemunha J… R…, quer a testemunha A… P… S… – já identificadas – explicaram que tal decisão se baseou exclusivamente em motivos de política comercial, tendo testemunha A… P… S…, de forma circunstanciada e credível, que todo o procedimento se destinou e limitou a uma averiguação sobre os pagamentos efetuados ao Hospital dos …, que não visou a atribuição de qualquer indemnização à primitiva autora e foi processado nas condições referidos porque a ré Hospital …, S.A. à data dos factos fazia parte do mesmo grupo empresarial que a ré T…, S.A.. Acresce que, pese embora não seja habitual esta postura tão informal e facilitadora no tratamento de questões desta natureza, da decisão da ré Hospital …, S.A., da decisão da ré não se pode inferir a verificação do alegado erro médico imputável ao réu H… N…, considerando sobretudo que aquilo que a prova evidenciou, de facto, foi que F… F… ficou desagradada com o conjunto das ocorrências verificadas e perdeu a confiança nos serviços médicos prestados pela ré Hospital …, S.A., tendo decidido abandonar o Hospital … para passar a ser tratada no Hospital dos ….»
Nesta análise da factualidade não provada vertida nas alíneas i) a m), o Tribunal a quo destacou os relatórios periciais para infirmar a existência de clips cirúrgicos a bloquear/lacerar o ureter esquerdo de F… F… e que estes constituíam a origem da uretero-hidronefrose.
O que se retira da decisão recorrida é que «Os exames radiológicos realizados foram inconclusivos porque não esclareceram se algum dos clips cirúrgicos utilizados na cirurgia, e que foram identificados na TAC suprarreferida, estaria a afetar o uréter esquerdo, estrangulando-o, obstruindo-o ou prejudicando o seu funcionamento, ou se ainda algum ponto de sutura estaria a ter idêntico efeito» (ponto 13).
Ou seja, não foi confirmado em nenhum dos exames realizados e, em particular, nos exames radiológicos efetuados entre a data da primeira cirurgia (17.5.2012) e a data da segunda cirurgia (24.5.2012), e daí essa alusão aos relatórios periciais, em resposta ao quesito 10.
Ora, não se pode confundir o carácter inconclusivo dos referidos exames radiológicos com uma insuficiência na fundamentação dos relatórios periciais quanto à resposta dada ao quesito 10.
Na verdade, os relatórios periciais juntos aos autos cumpriram os passos metodológicos certos (factos judicialmente aceites, metodologia e conclusões logicamente enquadradas), sendo aceites como juízos científicos válidos.
Porém, o Tribunal a quo não se quedou pela prova pericial e avançou com a análise da prova testemunhal e da prova por declarações de parte, mesmo na parte julgada inconclusiva pela análise dos exames radiológicos.
Sem dúvida que o juiz não é um recetor passivo da opinião do perito, assistindo-lhe o poder/dever de valorar autonomamente tal prova.
A análise crítica que o juiz faz do relatório pericial servirá para adquirir um convencimento sobre o seu resultado, acolhendo ou não as suas conclusões, das quais extrairá as máximas da experiência necessárias para a apreciação dos factos relevantes.
O juiz valora as máximas de experiência especializadas trazidas pelo perito aplicando máximas de experiência comuns para o que não são necessários conhecimentos especializados, mas apenas capacidade crítica de entendimento e apreciação (cf. artigo 389.º do Código Civil).
Ora, quando é determinada a realização de uma perícia e o seu resultado é inconclusivo (como no caso da resposta ao quesito 10), tal situação não conduz necessariamente a uma dúvida insanável.
Antes se devolve plenamente ao tribunal a decisão sobre a matéria de facto de modo a superar, se possível, aquela dúvida.
Foi o que sucedeu na situação sub judice quanto ao referido quesito.
O Tribunal a quo avançou para a análise da prova por declarações de parte e testemunhal, concluindo das declarações do Réu e dos depoimentos dos médicos I… R… –primeira ajudante do Réu na primeira cirurgia, realizada em 17.5.2012 – e de J… R… – urologista que participou com o Réu na segunda cirurgia, realizada no dia 24.5.2012 –, que não existiu qualquer laceração/obstrução do ureter esquerdo por clip cirúrgico.
Assim, o Réu H… N… relatou que: «percorremos o ureter todo, que já tinha sido isolado e agora foi só identificar, e fomos perceber se havia alguma coisa, não se encontrou nada nem pontos nem clips. Na TAC, na realidade, os clips estão próximos, mas estão só próximos, os exames de imagem são apenas exames indirectos (…) não tem clips nem pontos. Se estivessem eu tinha retirado mas não estavam (…) não se identificou nada
I… R… explicou que a cirurgia decorreu sem incidentes e que é «mandatório isolar os ureteres e quase todas as estruturas à volta», não sendo possível a colocação de um stent caso o ureter esteja laqueado.
Também J… R… confirmou esta realidade, explicitando que: «fomos pela incisão que tinha sido feita anteriormente examinar o local para ver se tinha alguma retração do ureter, se havia algum dos clips que pudesse estar em posição para fazer retração do ureter e estivesse a provocar aquela hidronefrose. Não encontrámos nada. A expressão que nós temos é “esqueletizámos o ureter” (…) e ainda assim não encontrámos nada. A obstrução era funcional».
No âmbito da prova pericial, não se pode olvidar ainda a resposta dos peritos ao quesito 18.
Perguntava-se:
«Se houvesse qualquer clip ou ponto de sutura a laquear o ureter esquerdo, a colocação do stent ao longo e pelo interior do ureter teria sido impossível?».
No relatório pericial do médico J… S… D… a resposta foi «Sim, teria».
No relatório pericial do médico C… A… A… L… a resposta foi «Se houvesse laqueação do ureter esquerdo seria inviável a colocação de um Stent por cistoscopia, ou seja, por via ascendente».
Acresce que os excertos do depoimento da testemunha Á… P… são omissos relativamente a alínea m) e pouco credíveis quanto às alíneas i), j) e l), pretendendo-se passar a ideia de que teria sido diagnosticado no Hospital dos … um bloqueio do ureter esquerdo por clip cirúrgico, na pessoa do médico J… R….
Na verdade, não se pode escamotear a realidade de que o depoimento de J… R…, urologista, testemunha arrolada pela Autora, aponta no sentido da inexistência de qualquer laceração do ureter, afirmando, a título de exemplo, que «Não houve laqueação (…) senão tinha sido impossível existir cateterismos anteriores e posteriores (…) se se conseguiu alguma vez passar é porque não estava totalmente ocluído», e da confirmação de fibrose em resultado da terapia oncológica realizada.
Não se pode também iludir a realidade, com apelo a uma alegada informação de um médico que nunca foi arrolado como testemunha e que terá, supostamente, ficado perplexo com a solução terapêutica de raiz.
Regressando à prova pericial, o quesito 7 sobre o qual os peritos foram chamados a pronunciar tem a seguinte redação:
«A melhor conduta terapêutica, como em todos os casos similares, seria a cirurgia com histerectomia radical classe III de Piver-Rutldege Smith e Linfadenectomia pélvica bilateral?»
No relatório pericial do médico J… S… D…, a resposta foi «Sim».
No relatório pericial do médico C… A… A… L…, a resposta foi «Os protocolos de actuação de Oncologia Ginecológica da Sociedade Portuguesa de Ginecologia estabelecem que Cancro do colo, Estadio IB, até determinado volume tumoral e sem contraindicações clínicas da paciente, deve ser Histerectomia Radical, Piver III, com linfadenectomia bilateral».
Também as testemunhas L… M… V… P…, médico ginecologista, e Isabel Riscado, ginecologista com subespecialização em oncologia, confirmaram que a realização da histerectomia radical era, e continua a ser, a melhor indicação terapêutica para remoção do cancro do colo do útero.
Conclui-se, assim, que a decisão sobre a matéria de facto proferida sob as alíneas i), j), l) e m) não merece qualquer reparo, estando motivada de forma coerente e exaustiva, de acordo com a prova produzida.
o) Aquando da realização das 1.ª e 2.ª cirurgias, o Réu H… N… ocultou a F… F… que se havia esquecido dos clips cirúrgicos no corpo daquela.
q) F… F… teve conhecimento da existência de clips que lhe bloquearam o ureter esquerdo, após o fim do seu internamento na unidade de cuidados intensivos da unidade hospitalar denominada Hospital dos ….
Escreveu-se na motivação da decisão recorrida que:
«Sobre os pontos o), p) e q), a prova produzida mostrou-se imprecisa, pois pese embora o réu H… N… tenha afirmado que sempre informou a primitiva autora sobre todos os aspetos dos atos médicos levados a cabo, a verdade é que o Tribunal não ficou convencido que tenha sido expressa e concretamente transmitido a F… F…, em 25/05/2012, que a mesma tinha clips no organismo e que a segundo cirurgia visou averiguar se a causa da obstrução era precisamente verificar se os clips estavam a prejudicar o funcionamento do ureter. Pois, não se nos afigura que a informação tenha sido precisa até esse pormenor, considerando que o réu antes da intervenção desconhecia a natureza da obstrução e depois da intervenção ficou convencido que nenhuma lesão provocada pelos clips existia. Pelas razões mencionadas, também se julgou como não provado que o réu tenha ocultado - entendendo-se a ocultação imputada como um ato deliberado –, a presença de clips no organismo
Neste particular, para além de a fundamentação do Tribunal a quo não se reportar à prova pericial, não se vislumbra que o depoimento de Á… P… tenha pertinência quanto à factualidade vertida na alínea o), sendo que, quanto à alínea q), resulta da factualidade provada que o Réu H… N… não ocultou, em ato deliberado, a existência de clips cirúrgicos no organismo da primitiva Autora.
Com efeito, ficou provado que os clips deixados no organismo de F…, durante a cirurgia realizada em 17.5.2012, constituem um material usado em intervenções cirúrgicas para evitar hemorragias e que devem ser deixados no organismo após as mesmas; são em titânio, absolutamente neutros e inertes, com cerca de 11 mm de comprimento e cerca de 1 mm de espessura, e em cada intervenção cirúrgica podem ser deixados no organismo dos doentes algumas dezenas deles, aí ficando definitivamente (ponto 53).
Trata-se de materiais que permitem reduzir o tempo da cirurgia com total vantagem para o doente em termos de evitar complicações intra e pós-operatórias, visando a hemóstase de vasos sanguíneos e linfáticos (ponto 54), e que são utilizados de forma universal por diferentes especialidades cirúrgicas, em Portugal e em todo o mundo, não existindo indicação para a sua remoção posterior do organismo do doente (ponto 55).
A permanência e risco dos clips é equiparável à do fio de sutura ou de uma prótese ou ortótese que igualmente se destinam a permanecer dentro do corpo humano após a cirurgia (ponto 56),
Termos em que improcede também esta argumentação da Apelante.
t) Foi igualmente informada de que a Ré Hospital …, S.A. assumiria a responsabilidade pela conduta dolosa perpetrada pelo Réu H… N….
u) Nessa sequência, F… F… iniciou conversações com a Ré T…, S.A., a fim de ser ressarcida dos prejuízos e danos que lhe haviam sido infligidos pelos Réus H… N… e Hospital …, S.A...
Resulta da motivação da decisão recorrida que:
«Relativamente à matéria enunciada nos pontos s), t) e u), apenas as testemunhas A… F… e Á… P… mencionaram que ouviram dizer que o réu H… N… se tinha demitido, sem, contudo, lograrem precisar quando e em que circunstâncias lhes adveio tal informação. Por outro lado, a prova demostrou de forma credível que o réu H… N… saiu do Hospital … para ir trabalhar para a prestigiada Fundação Champalimaud e a testemunha J… R…, que representou a ré Hospital …, S.A. na reunião negou perentoriamente que tenha, em circunstância alguma, comunicado tal facto à primitiva autora.
Também sobre a alegada assunção da responsabilidade e proposta de indemnização, as declarações da autora N… G… e o depoimento das testemunhas A… F… e Á… P… se revelaram manifestamente vagos e inconsistentes em face da demais prova produzida, considerando, desde logo, que a autora N… G… e a testemunha A… F… não estiveram presentes na reunião em causa. Por outro lado, a testemunha Á… P…, tendo referido que a seguradora propôs uma indemnização, que não foi aceite, revelou um depoimento de um modo geral isento, mas confuso e, em concreto, pouco claro e preciso quanto aos termos em que a ré Hospital …, S.A. aceitou fazer tais pagamentos. Sendo certo que, quanto à alegada circunstância de ter sido proposta uma indemnização à primitiva autora, a testemunha A… P… S…, foi inequívoca em afirmar que a indicação para pagamento recebida pela ré Hospital …, S.A. abrangia somente as despesas médicas incorridas no Hospital dos … e que qualquer contacto estabelecido pelo averiguador da ré T…, S.A. com a primitiva autora foi estabelecido no sentido de ressarcir a mesma por despesas que lhe tenham sido diretamente cobradas pelo Hospital dos … inicialmente. (…).
Concluindo, todos os meios de prova foram entrecruzados e confrontados entre si e da sua ponderação global se retiraram – sempre que se julgou próprio – as inerentes e pertinentes presunções judiciais, não tendo restado quaisquer dúvidas em decidir nos termos consignados
A Recorrente apela à reapreciação do depoimento da testemunha Á… P….
Nos excertos do depoimento que transcreve, constata-se que a testemunha refere reuniões que terá tido com a seguradora T…, mais concretamente com uma pessoa de nome J… F…, que terá «ido a casa de duas tias negociar».
Relatou que a T… terá feito até uma proposta duns milhares de euros, não conseguindo precisar de quanto.
Todo este discurso da testemunha é muito vago e impreciso, o que ressalta à evidência dos próprios excertos transcritos pela Recorrente.
Ademais, os depoimentos das testemunhas arroladas pelo Hospital … – J… R… – e pela Seguradoras …, S.A. – A… P… S… – foram bastante claros sobre o âmbito e o limite do pagamento efetuado por aquela seguradora, tendo aludido a interesses económicos relacionados com um momento de proximidade negocial com Angola, o que terá levado ao pagamento das despesas suportadas por F… F… no Hospital dos ….
Urge, pois, concluir pelo acerto do decidido também nestes dois pontos do elenco da factualidade não provada.
C. A Apelante requer, subsidiariamente, o reenvio dos autos ao Tribunal a quo para reabertura da audiência e a produção de prova suplementar.
Considera que, sendo insuficientes os meios que o «Colégio de Especialidade» dispunha para formular a sua resposta ao quesito 10, tal evidência/circunstância deveria impor maior prudência ou contenção na adesão às suas conclusões, pelo que deveria impor um maior exercício de produção de prova pelo Tribunal a quo de molde a suprir as insuficiências de prova então caracterizadas.
Apreciando:
Preceitua o artigo 662.º do CPC, sob a epígrafe «Modificabilidade da decisão de facto», que:
«(…) 2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.
3 - Nas situações previstas no número anterior, procede-se da seguinte forma:
a) Se for ordenada a renovação ou a produção de nova prova, observa-se, com as necessárias adaptações, o preceituado quanto à instrução, discussão e julgamento na 1.ª instância;
b) Se a decisão for anulada e for inviável obter a sua fundamentação pelo mesmo juiz, procede-se à repetição da prova na parte que esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições;
c) Se for determinada a ampliação da matéria de facto, a repetição do julgamento não abrange a parte da decisão que não esteja viciada, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, com o fim de evitar contradições;
d) Se não for possível obter a fundamentação pelo mesmo juiz ou repetir a produção de prova, o juiz da causa limitar-se-á a justificar a razão da impossibilidade. (…)».
O julgamento da matéria de facto constitui um momento crucial da ação declarativa, pois dele depende o resultado da ação, assim se compreendendo a evolução do sistema, com vista a assegurar um efetivo segundo grau de jurisdição.
Até à reforma do processo civil de 1995/96, vigorou a regra da inalterabilidade das respostas do tribunal coletivo pela Relação, tendo sucedido um regime em que se proclamava que «a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação (…)», prescrevendo-se agora que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto (…)».
Através das alíneas a) e b) dos n.ºs 1 e 2 do artigo 662.º do CPC ficou claro que a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia, poderes que foram bem evidenciados no acórdão do STJ de 24.9.2013, p. 1965/04, www.dgsi.pt, publicado e comentado por Teixeira de Sousa, em «Prova, poderes da Relação e convicção: a lição de epistemologia», Cadernos de Direito Privado, Cejur, n.º 44, pp. 29 e ss.
Consta do sumário que «ao afirmar que a Relação aprecia as provas, atendendo a quaisquer elementos probatórios, o legislador pretende que a Relação faça novo julgamento da matéria de facto impugnada, vá à procura da sua própria convicção, assim se assegurando o duplo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto em crise».
No comentário a tal aresto é referido, além do mais, que «o atual art. 662.º aumenta os poderes da Relação sobre o julgamento da matéria de facto, pelo que o standard que o Supremo Tribunal de Justiça passará a dever utilizar para controlar esse julgamento é o da aplicação pela Relação de todos os poderes que agora lhe são legalmente concedidos».
Por um lado, é consagrada a possibilidade de renovação da produção de certos meios de prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade de algum depoente ou sobre o sentido do depoimento que não sejam ultrapassadas por outras vias.
Admite-se ainda a produção de novos meios de prova em casos de dúvida fundada sobre a prova realizada em 1.ª instância, medida que, sem custos excessivos, pode servir para firmar a convicção mais segura sobre determinado facto controvertido, designadamente quando para tal baste a apreciação de algum documento cuja junção pudesse ser oficiosamente decretada ou a realização de alguma perícia.
Tudo isto não pode significar «a abertura da possibilidade de realização de um novo julgamento pela Relação, objetivo que jamais esteve no horizonte das sucessivas modificações legais, antes uma medida paliativa destinada a resolver situações patológicas que emergem simplesmente de uma nebulosa que envolva a prova que foi produzida e que não foi convenientemente resolvida segundo o juízo crítico da Relação» (Abrantes Geraldes, in «Recursos no Novo Código de Processo Civil», 6.ª ed., Coimbra: Almedina, 2020, p. 342).
Para além do esforço das partes no sentido de identificarem uma efetiva necessidade de produção de prova suplementar suscetível de sanar dúvidas fundadas, objetivas, sérias, que emergem da prova que foi realizada, importa que não se desconsidere também o modo como exerceram os respetivos ónus de prova e de contraprova nos momentos processualmente apropriados, para que não se subvertam as regras processuais conexas com os princípios do dispositivo ou do contraditório.
Sobretudo relativamente a meios de prova como os relatórios periciais, «importará ainda que se pondere, em sede de avaliação objetiva, a necessidade ou pertinência de alguma diligência complementar sugerida pelas partes e as iniciativas que foram ou deveriam ter sido adotadas oportunamente, antes de esses meios de prova serem sujeitos à apreciação livre por parte do tribunal de 1.ª instância» (Abrantes Geraldes, obra citada, p. 343).
E – continua o Autor –, «mais do que atender mecanicamente aos apelos, por vezes a destempo ou mesmo destemperados das partes, parece mais conveniente que também a respeito da “produção de novos meios de prova”, a Relação se confronte com a prova que foi ou deveria ter sido produzida, orientando-se por um critério objetivo que, atentas as circunstâncias, revele a imprescindibilidade, ou não, de realização de uma tal diligência complementar destinada a superar dúvidas fundadas sobre o alcance da prova já realizada.» (ibidem).
Ora, toda a prova produzida nos autos, quer de natureza pericial quer documental e testemunhal, sustenta à saciedade a factualidade considerada provada e afasta totalmente as alegações da Apelante no sentido de uma realidade clínica que não se comprovou minimamente.
A Apelante procurou socorrer-se de uma resposta inconclusiva a um quesito em dois pareceres médicos juntos aos autos para pretender que os autos voltem à primeira instância com a «reabertura da audiência e a produção de prova suplementar para correção dos vícios ou insuficiências supra descritos», procurando assim inquinar toda a prova produzida sem ter recorrido previamente aos mecanismos apropriados para o efeito, como os previstos nos artigos 485.º e 486.º do Código Civil, e com falta de razão, pois os relatórios periciais não padecem de qualquer deficiência, obscuridade ou contradição.
Não estão minimamente preenchidos os requisitos do artigo 662.º, n.ºs, 1 e 2, alínea c), do CPC, no sentido da «anulação da decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta».
Muito menos se verifica qualquer motivo para a intervenção oficiosa da Relação no sentido de «Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento» (alínea b) do n.º 2 do citado artigo 662.º) ou «Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova» (alínea b) do n.º 2 do citado artigo 662.º).
Termos em que improcede também esta alegação da Apelante.
D. A Autora/Apelante argui que, em face da inversão do ónus da prova decorrente da responsabilidade contratual dos Réus, incumbia-lhes provarem a ausência de qualquer violação da sua leges artis, o que não sucedeu.
Neste particular, lê-se na fundamentação de Direito da sentença que:
«Impõe-se, pois, aferir se e com que fundamento tem a autora direito às quantias peticionadas.
Em face da matéria apurada resulta inequívoco que estamos perante um ato médico.
No que toca à responsabilidade civil médica não prevê a nossa lei casos de responsabilidade objetiva ou de responsabilidade por factos lícitos danosos, tão só admite a responsabilidade contratual e a extracontratual ou aquiliana.
Na verdade, estas duas espécies de responsabilidade civil podem coexistir, pois que o mesmo facto pode constituir, a um tempo, uma violação do contrato e um facto ilícito. Existe um único dano, produzido por único facto, só que este, além de constituir violação de uma obrigação contratual, é também lesivo do direito absoluto à vida ou à integridade física.
Miguel Teixeira de Sousa escreve que a responsabilidade civil médica “é contratual quando existe um contrato, para cuja celebração não é, aliás, necessária qualquer forma especial, entre o paciente e o médico ou uma instituição hospitalar e quando, portanto, a violação dos deveres médicos gerais representa simultaneamente um incumprimento dos deveres contratuais (…). Em contrapartida, aquela responsabilidade é extracontratual quando não existe qualquer contrato entre o médico e o paciente e, por isso, quando não se pode falar de qualquer incumprimento contratual, mas apenas, como se refere no art. 483º, nº 1, do Código Civil, da violação de direitos ou interesses alheios (como são o direito à vida e à saúde)” - in “Sobre o Ónus da Prova nas Acções de Responsabilidade Civil Médica”, Direito da Saúde e Bioética, Lisboa, 1996, edição da AAFDUL, p. 127.
Inexiste na lei portuguesa um regime unitário no que respeita à responsabilidade dos médicos quando os serviços são por si prestados em ambiente institucional privado, pois que depende do que forem os factos de cada caso concreto, sendo diferentes as modalidades contratuais em “função de combinações entre as diferentes qualificações das partes no contrato e das suas relações, diretas ou indiretas, com a participação em atos médicos”.
Assim, no âmbito mais complexo das variadas prestações de serviços de saúde, no domínio do sector privado, a doutrina mais recente tem vindo a avançar com a seguinte tipologia:
i) – a modalidade de contrato total, traduzido num misto (combinado) que engloba um contrato de prestação de serviços médicos, a que se junta um contrato de internamento (prestação de serviço médico e paramédico), bem como um contrato de locação e eventualmente de compra e venda (fornecimento de medicamentos) e ainda de empreitada (confeção de alimentos);
ii) – a variante de contrato total com escolha de médico (contrato médico adicional), consistente num contrato total mas com a especificidade de haver um contrato médico adicional (relativo a determinadas prestações);
iii) – a modalidade de contrato dividido, nos termos do qual a clínica apenas assume as obrigações decorrentes do internamento (hospedagem, cuidados paramédicos, etc.), enquanto que o serviço médico é direta e autonomamente celebrado por um médico (atos médicos). – ver André Gonçalo Dias Pereira, in Direitos dos Pacientes e Responsabilidade Médica, p. 684, no desenvolvimento da proposta de Carlos Ferreira de Almeida, in Os Contratos Civis de Prestação de Serviço Médico, in Direito de Saúde e da Bioética, AAFDL, Lisboa, 1996, p 75 e ss.
Em face do exposto, a primeira questão que se nos coloca é precisamente saber se estamos perante uma situação de responsabilidade civil extracontratual ou uma situação de responsabilidade civil emergente de contrato e se é aplicável o médico e à instituição hospitalar o mesmo regime.
O interesse na destrinça das duas espécies de responsabilidade reside essencialmente no facto de a tutela contratual ser a que, em regra, mais favorece o lesado na sua pretensão indemnizatória face às regras legais em matéria de ónus da prova da culpa (art. 799.º, n.º 1, e 487.º, n.º 1), o que será objeto mais adiante.
Em face deste acervo factual, embora sejam escassos os factos sobre o acordado entre F… F… e a ré Hospital …, S.A. sobre o seu atendimento na unidade hospitalar Hospital …,, é de concluir que os serviços médico-cirúrgicos prestados pelo réu H… N… à primitiva autora ocorreram no âmbito de uma relação contratual, de natureza privatística, firmada entre a mesma e a referida ré.
E, ainda que escassa, a factualidade apurada permite concluir pela existência de uma relação contratual direta qualificável como de “contrato total, nos termos da qual o réu H… N… interveio como médico obstetra enquanto “auxiliar” no cumprimento da obrigação, em regime de prestação liberal, ao serviço da ré Hospital …, S.A.. Desse acervo não se divisa, porém, qualquer elemento que permita configurar uma réstia de vinculação contratual entre F… F… e o réu H… N… a título de escolha de médico nem muito menos de contrato dividido, tanto mais que a paciente foi remetida para o réu por outra médica que diagnosticou a doença.
Assim, o que se constata é que o réu H… N… interveio dentro da sua esfera de autonomia e direção técnico-profissional, no quadro das funções que lhe estavam atribuídas pela ré Hospital …, S.A., cujo desempenho esta disponibilizou, por via contratual, à primitiva autora. Estamos, pois, perante um contrato de prestação de serviços de saúde total, que integrava os serviços médicos de assistência e de cirurgia e os serviços de internamento conexos, mediante o correspetivo pagamento pela primitiva autora à ré Hospital …, S.A..
Nessa conformidade, a ré Hospital …, S.A. é responsável perante os autores, nos termos do artigo 800.º, n.º 1, do C.C., pelos atos do réu H… N… na execução das prestações médicas convencionadas, como se tais atos fossem praticados por aquela devedora – no mesmo sentido em situação similar vide acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.03.2017, proc n.º 296/07.7TBMCN.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
Assim sendo, a responsabilidade da 2.ª R. por esses atos deve ser aferida em função dos ditames que ao réu H… N… cumpria observar na realização da prestação médica à A. ao serviço daquela R..
Já quanto ao réu H… N..., visto que a matéria alegada e a prova produzida não permite concluir pela existência de qualquer vínculo contratual estabelecido entre si e a primitiva a autora, a sua eventual responsabilidade apenas poderá ser aferida no quadro da responsabilidade civil extracontratual
Concordamos com o facto de a natureza da responsabilidade médica não ser unitária.
Ao lado de um quadro contratual que constitui a regra, deparamos com situações múltiplas, em que a natureza delitual da responsabilidade é absolutamente indiscutível.
É para nós insofismável que, na prática do ato médico, tenha ele natureza contratual ou extracontratual, há um denominador comum – a exigência de atuação que observe os deveres gerais de cuidado.
No caso em apreço, podemos perspetivar, tal como na sentença recorrida, a responsabilidade contratual e a responsabilidade aquiliana, dependendo do pretenso devedor, o hospital privado, por um lado, e o médico que atuou como auxiliar do hospital, nos termos do artigo 800.º, n.º 1, do Código Civil.
Tradicionalmente, denotava-se alguma relutância por parte da doutrina em admitir esta natureza da responsabilidade médica, a qual foi ultrapassada com a distinção entre «obrigações de meios» e «obrigações de resultados».
No âmbito, sobretudo, do direito francês, a dita distinção releva quanto ao ónus de prova relativo à culpa, pois enquanto na primeira situação, caberá ao credor fazer a demonstração em juízo de que a conduta do devedor não foi conforme com as regras de atuação que, em abstrato, viriam a propiciar a produção de um determinado resultado, na segunda, a simples constatação de que certa finalidade não foi alcançada (prova do incumprimento) faz presumir a censurabilidade ético - jurídica da conduta do devedor, podendo este todavia provar o contrário - cf. Demogue, «Traité des Obligations en General», Paris, A. Rosseau, 1925, pp. 536 e ss, citado no acórdão do TRC de 5.7.2005, Col. Jur., ano XXX, Tomo IV, pp. 7 a 12.
No direito português, parte da doutrina e da jurisprudência resistiu a admitir a presunção de culpa do «devedor» (artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil) no domínio da responsabilidade médica, uma vez que, na maioria dos casos, não recai sobre o médico qualquer obrigação de resultado. Concluiu-se que o ónus da prova da culpa é determinado exclusivamente pelo regime da responsabilidade extracontratual, mas com apelo ao lançar mão de mecanismos que, atentas as dificuldades no domínio da prova, salvaguardem a posição dos lesados, permitindo-se uma «apreciação da prova produzida pelo paciente com ponderação dessas mesmas dificuldades», como destacou Miguel Teixeira de Sousa (cf. obra citada no trecho da sentença supra transcrito, p. 140), que defendeu que fazer incidir sobre o médico a prova de que não atuou com culpa significaria que este teria de provar uma «afirmação negativa indefinida».
Em sentido contrário, Sinde Monteiro entende que, estabelecendo-se entre médico e o paciente um contrato, sobre este recai, por força da aplicação do regime da responsabilidade contratual, em caso de incumprimento, a presunção de culpa que o artigo 799.º, n.º 1, do Código Civil prevê (Rev. Leg. Jur. 132, p. 93, nota 156). Também Álvaro Gomes Rodrigues parece perfilhar este entendimento, afirmando que, «no domínio da responsabilidade contratual não militam quaisquer razões de peso específicas da responsabilidade médica, que abram uma brecha na presunção de culpa do devedor consagrada no nº 1 do art. 799º do C. Civil» (in Reflexões em torno da responsabilidade civil dos médicos, Revista de Direito e Justiça, 2000, XIV, 3, pp. 182, 183 e 209).
Já Vaz Serra afirmava, em relação ao direito nacional, que a referida distinção não tem grande importância: mesmo nas chamadas obrigações de meios (v.g. médico, advogado) sempre o devedor está em melhores condições do que o credor para provar se usou ou não a diligência devida e, no caso negativo, se foi impedido por algum facto que lhe não seja imputável. E acrescentava: «cabe, pois, ao credor provar que diligência devia ter usado o devedor em face da obrigação que assumiu (ou seja, a prova do conteúdo da obrigação) e ao devedor provar que usou dessa diligência (e, portanto, se foi impedido de a usar por algum facto a si não imputável, demonstrá-lo), isto é, que cumpriu a obrigação» («Culpa do Devedor ou do Agente», BMJ n.º 68, Julho de 1957, pp. 82 e 83).
Propugnamos pelo acolhimento desta última posição.
Quer se entenda que a obrigação contratual do médico é uma obrigação de meios, quer se considere que é uma obrigação de resultado, o ónus da prova da diligência recairá sobre o médico, caso o lesado faça prova da existência do vínculo contratual e dos factos demonstrativos do seu incumprimento ou cumprimento defeituoso.
Com isto em nada se está a agravar a posição processual do médico, que disporá dos meios de prova adequados no seu arquivo, na ficha clínica, no processo individual do doente, além do seu acervo de conhecimentos técnicos.
A inexecução da prestação contratual, como violação do contrato, é um ato ilícito, elemento integrante da responsabilidade contratual.
No domínio desta responsabilidade, presume-se, como se disse, a culpa, mas, na falta de norma que o permita, o mesmo não acontece relativamente aos restantes requisitos da responsabilidade civil.
Assim, há de ser sobre quem invoca a prestação inexata da outra parte como fonte da responsabilidade que há de recair o ónus de demonstrar os factos que integram esse incumprimento (facto ilícito), os nexos de imputação e de causalidade, bem como os prejuízos dele decorrentes (danos), ou seja os pressupostos da obrigação de indemnizar, com exceção da culpa, cuja demonstração de inexistência impende sobre o demandado – artigo 342º, nº 1, e 344.º do Código Civil.
A execução defeituosa, ou ilicitude, objetivamente considerada, consiste numa omissão do comportamento devido, consubstanciado na prática de atos diferentes daqueles a que se estava obrigado.
À ilicitude, enquanto negação de valores tutelados pela ordem jurídica, considerada objetivamente, acresce a culpa, considerando os aspetos circunstanciais que interessam à censurabilidade da conduta, culpa que se refere ao ato ilícito e não ao dano, sendo que uma coisa é o aspeto da conduta irregular do agente, outra a da sua conduta faltosa (Antunes Varela, «Das Obrigações em Geral», 9.ª ed., Coimbra: Almedina, pp.  607 e 608). Esta, em sede de culpa, presume-se, aquela, no plano da ilicitude, não.
Convocando agora as especificidades do caso, vem sendo entendimento corrente que a obrigação a que o médico se vincula perante o paciente – ressalvados, naturalmente, os casos em que garante a obtenção de determinado resultado -, consiste em lhe proporcionar os melhores e mais adequados cuidados ao seu alcance, de acordo com a sua aptidão profissional e em conformidade com as leges artes e os conhecimentos científicos atualizados e comprovados ao tempo da prestação.
Entre os comportamentos antijurídicos avulta o erro médico, o qual pode ser definido como a conduta profissional inadequada resultante da utilização de uma técnica médica ou terapêutica incorretas que se revelam lesivas para a saúde ou vida do doente.
O erro pode ser cometido por imperícia, imprudência ou negligência.
A imperícia resulta de uma preparação inadequada e consiste em fazer mal o que deveria, de harmonia com as leges artis, ser bem feito, não devendo o médico ultrapassar os limites das suas qualificações e competências - artigo 36.º, n.º 1, do Código Deontológico dos Médicos (Regulamento n.º 14/2009, de 13.1).
A imprudência é fazer o que não devia ser feito - artigo 35.º, n.º 1, do Código Deontológico dos Médicos: «O médico deve abster-se de quaisquer actos que não estejam de acordo com as leges artis».
A negligência é deixar de fazer o que as leges artis impunham que se fizesse - artigo 31.º do Código Deontológico dos Médicos: «O médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo sempre com correcção e delicadeza, no exclusivo intuito de promover ou restituir a saúde, conservar a vida e a sua qualidade, suavizar os sofrimentos, nomeadamente nos doentes sem esperança de cura ou em fase terminal, no pleno respeito pela dignidade do ser humano
O ponto de partida para qualquer ação de responsabilidade médica será, assim, o da desconformidade da concreta atuação do agente no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes na mesma data.
Não estando em causa a prestação de um resultado, não será, pois, suficiente alegar e demonstrar a não obtenção de um certo resultado ou a verificação de um resultado diferente do esperado para que exista incumprimento ou cumprimento defeituoso, pois que a violação da obrigação reside sempre na prática deficiente/defeituosa do ato ou na abstenção da prática de atos exigidos pela situação clínica do doente.
Consequentemente, quando se invoque tratamento defeituoso para efeito de obrigação de indemnizar fundada em responsabilidade contratual é necessário provar «a desconformidade (objectiva) entre os atos praticados e as leges artes, bem como o nexo de causalidade entre defeito e dano» (Carlos Ferreira de Almeida, obra citada, p. 117).
Feita essa prova, então sim, funciona a presunção de culpa, a impor ao réu, como condição de libertação da responsabilidade, que prove que a desconformidade (com os meios que deveriam ter sido usados) não se deveu a culpa sua (por ter utilizado as técnicas e regras de arte adequadas ou por não ter podido empregar os meios adequados), mas já não, por exemplo, que o evento danoso se produziu por causa estranha à sua atuação e/ou qual tenha sido essa causa.
Numa frase, presume-se a culpa do cumprimento defeituoso, mas não o cumprimento defeituoso, ele mesmo.
Descendo ao caso concreto, à luz das considerações expendidas, não se pode deixar de concluir que os Autores/Habilitados não lograram demonstrar a prática de um ato ilícito causador de danos à primitiva Autora, como lhes incumbia, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.
Respigamos da sentença recorrida a análise deste ponto, com o qual concordamos inteiramente:
«Assim, no caso, caberia à demandante, quanto à responsabilidade que imputa à ré Hospital …, S.A. alegar e provar a objetiva desconformidade entre os atos praticados e as leges artis, assim como o nexo de causalidade entre esses atos e os danos – para além desses mesmos danos, presumindo-se a culpa na execução defeituosa da prestação.
No que respeita aos pressupostos da responsabilidade extracontratual médica, no essencial, incumbia à demandante alegar e provar a direito de outrem em virtude do incumprimento das leges artis, a atuação culposa, que cause danos ao paciente, verificando-se um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
(…) Regressando ao caso que nos ocupa, estamos perante um médico ginecologista/obstetra, intervindo num quadro de doença oncológica, pelo que não estamos, seguramente, perante uma obrigação de resultado cura, mas sim de um dever de desenvolver todos os procedimentos médicos à sua disposição e em conformidade com as leges artis conhecidas.
Todavia, não é exatamente disso que se trata, porquanto apurou-se que a primitiva autora foi eficientemente tratada quanto à doença diagnosticada.
Trata-se, antes, de uma lesão colateral do aparelho urinário, com a obstrução do ureter.
Ora, resulta da matéria assente que o réu realizou uma histerectomia radical e uma linfadenectomia pélvica bilateral.
Mais se provou que após a cirurgia a primitiva autora apresentou um quadro de uretero-hidronefrose e sentiu dores. Provou-se, ainda, que teve que ser sujeita a nova cirurgia, por laparotomia, para colocação de stent.
De resto nada mais ficou demostrado, mormente que o réu H… N… agrafou/pinçou o ureter com os clips utilizados na cirurgia e que se tenha esquecido de retirar do organismo da primitiva autora os referidos clips.
Acresce que não ficou demostrada a prática pelo mesmo de qualquer outro ato ou omissão desadequado ou impróprio à realização da histerectomia, tendo ficado demostrado à saciedade que o facto de serem deixados clips no organismo do paciente é compatível com a leges artis, sendo uma prática consensual na medicina e muito habitual, na medida em que traz vantagens diversas. Sendo que ficou igualmente provado que a primitiva autora apresentava previamente à cirurgia levada a cabo pelo réu H… N… um quadro de uretero-hidronefrose e a prova também evidenciou que que a obstrução em causa pode ter origem na própria cirurgia.
Assim, em face da matéria apurada, concluímos que ficou por demostrar a prática pelo réu H… N… de qualquer do facto ilícito (ilicitude essa que não se presume), e, por conseguinte, ficando por provar este pressuposto necessariamente improcede a pretensão prosseguida pelos autores.
Igual conclusão se extrai relativamente à responsabilidade imputada à ré Hospital …, S.A., na medida em que tal responsabilidade lhe é imputada exclusivamente com base na conduta ilícita do réu H… N….
O mesmo relativamente às rés T…, S.A. e …, S.A. cuja obrigação de indemnizar assenta nesta ação na responsabilidade dos seus tomadores de seguro, que não se veio a demonstrar.»
Decorre do exposto, que a pretensão da Autora habilitada / Apelada não merece qualquer acolhimento, nem sequer do prisma da inversão do ónus da prova, pois não ficou demonstrada a prática de um ato ilícito perpetrado pelo Réu médico causador dos danos sofridos pela falecida F… F… e, como vimos, a ilicitude e o nexo de causalidade não se presumem.
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Do sentido do recurso, da responsabilidade quanto a custas e da taxa de justiça remanescente
Perante as considerações de facto e de direito expendidas, o recurso interposto pela Autora/Apelante deve improceder na sua totalidade.
Tendo ficado vencida, a Autora/Apelante é responsável pelo pagamento das custas do recurso – cf. artigos 527.º, 529.º e 607.º, n.º 6, do CPC.
De acordo com o disposto no artigo 6.º, n.º 7, do Regulamento das Custas Processuais, nas causas de valor superior a 275 000,00 €, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, a menos que o juiz tenha dispensado o respetivo pagamento, considerando a especificidade da situação, a complexidade da causa e a conduta processual das partes.
Com o referido aditamento, o tribunal pode corrigir, a final, os montantes de taxa de justiça quando os valores devidos pelas partes se mostrem excessivos e desadequados à natureza e complexidade da causa.
No caso em apreço, a taxa de justiça remanescente devida foi fixada por referência a uma base tributável resultante do pedido – 1 035 849,39 €.
A dificuldade das questões jurídicas suscitadas não se situa acima do expectável.
O comportamento processual das partes pautou-se pela normalidade e as alegações não padecem de prolixidade.
Todo o circunstancialismo que caracteriza o processo em causa é revelador de não ter exigido um trabalho excessivo ou desmesurado.
É, pois, clara a desproporção e excesso, em contraponto com as características do serviço público de justiça que foi prestado em sede de recurso de apelação.
Tudo ponderado, afigura-se-nos adequado e justificado dispensar as partes do pagamento da taxa de justiça remanescente.
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IV - Decisão
Nestes termos, decide-se julgar o recurso de apelação interposto pela Autora/Habilitada improcedente e, em consequência,
a) Confirma-se a sentença recorrida.
b) Condena-se a Autora/Habilitada no pagamento das custas do recurso.
As partes estão dispensadas do pagamento da taxa de justiça remanescente.
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Lisboa, 13 de maio de 2021
Gabriela Cunha Rodrigues
Arlindo Crua
António Moreira