Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
97/11.8TBPVC-G.L1-6
Relator: EDUARDO PETERSEN SILVA
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONTAGEM DO PRAZO DO PERIODO DE CEDÊNCIA DE RENDIMENTO DISPONÍVEL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.– Não tendo sido proferido despacho de encerramento do processo de insolvência, nem por ocasião do despacho que admitiu liminarmente a exoneração do passivo restante, nem, por inércia do tribunal, posteriormente, ainda que a liquidação dos bens apreendidos tivesse sido completada cinco anos antes, sobrevindo entretanto a norma do artigo 6º nº 6 da Lei 79/2017 - que determina que o termo inicial do período de cedência de rendimento disponível do devedor ao fiduciário se conta a partir da data de entrada em vigor da mesma lei - não pode entender-se que o mesmo termo inicial produz os seus efeitos à data em que a liquidação se completou, quando, na verdade, durante o tempo decorrido desde esta até ao presente, o devedor, independentemente de culpa sua, não cedeu quaisquer rendimentos ao fiduciário.

II.– Tal cedência afigura-se como pressuposto da ponderação de interesses que o legislador que instituiu a exoneração do passivo restante, tendo sobretudo em vista a liberação do devedor, reputou como mínimo essencial.

Sumário (a que se refere o artigo 663º nº 7 do CPC)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes que compõem este colectivo do Tribunal da Relação de Lisboa.


I.–Relatório:


Por sentença de 9.11.2011 foi declarada a insolvência de MM nos autos m.id, e por sentença de 10.02.2012 proferida no processo 13/12.0TBPVC foi declarada a insolvência de sua esposa MF.

Ambos vieram requerer a exoneração do passivo restante, pedidos que foram liminarmente admitidos em 12.11.2012 e em 14.12.2012. Nos respectivos despachos não foi expressamente declarado o encerramento do processo de insolvência. Foi nomeada fiduciária.

Procedeu-se à apreensão de um único bem – prédio urbano, sito na Rua M..., nº..., nos autos melhor identificado, e que era a casa de habitação de ambos os insolventes.

Em 28.6.2012 foi lavrado Título de Transmissão a favor do arrematante CE credor hipotecário, que havia apresentado proposta no valor de 70.000,00 euros e que foi dispensado de depósito do preço.

Por despacho de 29.9.2016 foram aprovadas as contas prestadas pelo Administrador de Insolvência.

Em 28.9.2017, a Srª Fiduciária veio requerer que fosse aclarado qual o valor a partir do qual os insolventes deveriam proceder à entrega de rendimentos susceptíveis de cessão, referindo que, por força do artigo 6º nº 6 do DL 79/2017, “nos casos em que não tenha sido declarado o encerramento do processo e tenha sido proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, considera-se iniciado o período de cessão do rendimento disponível na data de entrada em vigor do presente decreto-lei”, entrada que ocorreu em 1.7.2017, por força do artigo 8º do mesmo diploma. Assim, nesta data iniciar-se-iam as obrigações referidas no artigo 239º nº 3 do CIRE, sendo porém que os despachos de exoneração não esclareciam exactamente o valor de rendimento a partir do qual se produzia a obrigação de cessão de rendimento.

Tal requerimento da Srª Fiduciária não foi notificado aos insolventes.

Por despacho de 2.10.2017 o tribunal declarou concordar com a exposição feita pela Srª Fiduciária, referindo: “Antes de mais, concorda-se (com base no disposto nos artigos 230º, nº 1 al. e) e 233º nº 7, ambos do CIRE, e artigos 6º nº 6 e 8º, ambos do Decreto-Lei nº 79/2017, de 30.06) que, não obstante o anteriormente mencionado por decisões de 12.11.2012 (quanto ao insolvente MMcf. fls. 320 a 326 destes autos) e 14.12.2012 (quanto à insolvente MF, cf. fls. 215 a 220 do apenso C) (no sentido de que o período de cessão do rendimento disponível iniciar-se-ia somente após encerramento do processo) ambos os períodos de cessão se iniciaram no dia 01.07.2017”. Mais determinou a notificação dos insolventes para fornecerem elementos relativos à composição, rendimentos e despesas do seu agregado familiar.

Face a tal despacho os insolventes vieram invocar a nulidade do mesmo por preterição do contraditório, e invocar que os efeitos do despacho de encerramento deverão produzir efeitos à data da liquidação, sendo não lhes era imputável o decurso de mais de cinco anos sobre a liquidação sem que tivesse sido proferido despacho de encerramento, quando nada a tanto obstava, e que portanto devia ser atribuído efeito retroactivo ao despacho de encerramento, de modo a não onerar os insolventes com obrigações por outros tantos cinco anos, ao que se opunha o espírito da lei. Mais forneceram os elementos e esclarecimentos pedidos.

Com a mesma data do requerimento referido no parágrafo antecedente, vieram os insolventes interpor recurso do mencionado despacho de 2.10.2017.

Pronunciando-se sobre o requerimento, em despacho de 20.10.2017, o tribunal não declarou a pretendida nulidade e indeferiu a requerida declaração de retroactividade, referindo que o despacho de encerramento não foi sequer proferido pois os autos se encontravam a aguardar a realização da conta e rateio final, a fim de ser declarado o encerramento nos termos do artigo 230º nº 1 al. a) do CIRE. No mesmo despacho fixou o valor do rendimento disponível.

Por despacho de 2.11.2017 o tribunal a quo admitiu o recurso.

Vêm formuladas no recurso as seguintes conclusões finais: 
a)– Os ora recorrentes não foram citados para exercer o direito ao contraditório, quanto ao despacho com a referência 2233126 apresentando pela Srª Fiduciária e dado provimento pelo Mmº Juiz.
b)– Assim, e ao abrigo do artigo 3º e 195º do CPC deverão ser anulados todos os termos subsequentes dos autos que correm termos no tribunal a quo.
Sem prejuízo, e à mera cautela sempre se dirá,
c)– Por sentença datada de 9 de Novembro de 2011 e 10 de Fevereiro de 2012 foi respectivamente o recorrente Marcelino declarado insolvente e a recorrente MF declarada insolvente.
d)– Por despacho de 12 de Novembro e 14 de Dezembro de 2012, quanto ao recorrente Marcelino, e quanto à recorrente MF respectivamente, foi determinada a exoneração do passivo restante, por não se verificar em quaisquer dos casos, uma das hipóteses previstas no artigo 238º do CIRE.
e)– O único bem apreendido para a massa foi um bem imóvel adjudicado, a 24 de Maio de 2012, ao credor hipotecário logo, dispensado do pagamento do preço.
f)– O título de transmissão foi emitido pela Secretaria do Tribunal Judicial de Povoação, no dia 28 de Junho de 2012.
g)– Desde o dia 28 de Junho de 2012 que houve a liquidação dos bens apreendidos para a massa insolvente.
h)– Andou mal o Tribunal a quo quando dá por encerrado o processo com base no disposto nos artigos 6º, nº 6 e 8º ambos do DL nº 79/2017, não obstante ter ocorrido mais de cinco anos sobre a liquidação dos bens, isto é, após todas as condições estarem reunidas para o encerramento do processo, nos termos do artigo 230º do CIRE,
i)– Por causa não imputável aos recorrentes, os autos não foram encerrados em devido tempo designadamente, no ano de 2012 e por conseguinte, não declararam quais eram os seus rendimentos disponíveis.
j)– Caso assim não se entenda, o presente despacho, susceptível de recurso, contraria o espírito do Código da Insolvência e da Recuperação das Empresas que é permitir um fresh start aos devedores pois, se é verdade que os credores querem ver-se ressarcidos também é verdade que os devedores querem retomar a sua vida, entrando no mercado livres de dívidas, reabilitados enquanto agentes económicos e sobretudo enquanto agentes dinamizadores e capazes de criarem riqueza.
k)– Pelo que se requer (…) seja determinada a retroactividade do referido despacho a 28 de Junho de 2012 e consequentemente, como já decorreu os cinco anos, que seja determinado o seu arquivamento.
l)– As presentes alegações de recurso têm suporte legal nos artigos 230º ex vi 182º, 235º do CIRE e em última instância no disposto no artigo 20º nº 4 da CRP.
Nestes termos (…) deve o recurso ser julgado procedente revogando o despacho proferido pelo tribunal a quo (…).

Não consta dos autos que tenham sido apresentadas contra-alegações.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir:

II.– Direito.
Delimitado o objecto do recurso pelas conclusões da alegação, a questão a decidir é a nulidade processual do despacho recorrido e saber se deve ser atribuído efeito retroactivo ao despacho de encerramento.

III.– Matéria de facto (relevante para a questão a decidir):
A constante do relatório que antecede.

IV.– Apreciação

Salvo o devido respeito, parece que os recorrentes se precipitaram ao apresentarem recurso no mesmo dia em que apresentaram requerimento com, no fundo, o mesmo teor. Significa isto que poderia entender-se que o despacho recorrido não era afinal recorrível, pois que nada determinava excepto consignar o entendimento do tribunal que seria, como veio a ser, validado e incorporado no despacho proferido sobre o requerimento com teor idêntico ao do recurso. Dito de outro modo, era mais simples esperar pelo despacho que, validando e incorporando entendimento anterior, determinou que os insolventes cedessem a parte disponível do seu rendimento pelo prazo iniciado na data entendida. Como se sabe, os recursos servem para impugnar decisões – artigo 627º do CPC – e não para obter do tribunal de recurso um entendimento sobre qualquer questão.

Porém, admitindo que o despacho recorrido encerra uma apreciação definitiva – tanto que foi respeitada no despacho posterior – sobre a questão central, que é a de saber se o despacho de encerramento deve ter eficácia retroactiva à data da liquidação, a partir desta se contando o prazo durante o qual os exonerados de passivo restante estão obrigados a ceder a parte do seu rendimento disponível, entendemos que é possível conhecer do recurso.

Quanto à nulidade por preterição do contraditório:

Como bem se nota do despacho que decidiu o requerimento com teor essencialmente idêntico ao do presente recurso, a posição expressa pela Srª Fiduciária no seu requerimento não é propriamente uma pretensão mas um aclaramento dum aspecto legal. A Srª Fiduciária não é parte nos autos nem mesmo quando assegura o recebimento de quantias que, além do mais, se destinam ao pagamento dos credores. Por outro lado, não veio ela requerer que o tribunal fixasse a data a partir da qual se iniciava o período de cedência, mas sim apenas requerer que o tribunal aclarasse qual era o rendimento disponível. No fundo, o que a Srª Fudiciária veio dizer foi que queria cumprir as suas obrigações, que resultava da lei que tinha de as cumprir a partir de certa data, e que não sabia exactamente que valor podia esperar ser-lhe disponibilizado. Não há portanto uma pretensão que deva merecer observância do contraditório, pois o artigo 3º do CPC refere-se à igualdade de pronúncia das partes na decisão de questões de direito ou de facto e não na consignação de entendimentos.

De resto, as nulidades processuais são invocáveis autonomamente perante o tribunal recorrido, como também o foram, e o que haveria a fazer era recorrer do despacho que indeferiu a nulidade, mas não pedir independentemente ao tribunal de recurso que deferisse tal nulidade, sem o tribunal de primeira instância ter tido oportunidade de se pronunciar.

Mas mais: não sendo lícito praticar actos inúteis no processo, por via do artigo 130º do CPC, a eventual nulidade em causa acaba por se encontrar sanada, na exacta medida em que pretendendo-se que os insolventes se pudessem pronunciar sobre a contagem do prazo de cedência, eles efectivamente já o fizeram junto do tribunal recorrido, e essa pronúncia foi considerada – ainda que não acolhida – pelo tribunal recorrido. Donde, a este tribunal de recurso, e na ausência de recurso específico do despacho que indeferiu a nulidade, nada cumpre fazer, sob pena de inutilidade.

Da contagem do prazo ou do efeito retroactivo pretendido:
Como igualmente bem se nota no despacho que posteriormente se pronunciou sobre tal pretensão, não foi proferido qualquer despacho expresso de encerramento do processo de insolvência – questão diversa é se deveria tê-lo sido – e portanto a pretensão de atribuição de efeito retroactivo ao mesmo é uma pretensão dirigida a uma actuação futura do tribunal recorrido, cuja decisão por este tribunal apenas significaria uma prévia e antecipada indicação obrigatória de sentido de decisão, efeito que não se quadra ao mecanismo recursivo, que não é constitutivo mas sim reparador.

Em todo o caso, vejamos:
Esgrimem os recorrentes, no fundo, que não podem ser penalizados pela inércia do tribunal durante cinco anos, sendo que tendo havido liquidação estariam reunidas todas as condições para o encerramento do processo e para, a partir dele, se contar o prazo pelo qual ficariam obrigados a ceder os seus rendimentos disponíveis a favor dos credores, prazo esse cujo decurso os libertaria das dívidas e lhes permitiria reassumirem a sua vida económica, incluída naturalmente a sua capacidade de criação de riqueza. Ora, transcorreram já cinco anos e o entendimento do tribunal recorrido acaba por obrigar e condicionar a vida dos recorrentes por mais cinco anos, o que de todo não pode ser o espírito da lei quando instituiu o mecanismo da exoneração do passivo restante.

Com efeito, refere-se no preâmbulo do DL 53/2004 que:
45 - O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da ‘exoneração do passivo restante’.
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos - designado período da cessão - ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda .
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica
”.

Reconhecem os recorrentes que em tal mecanismo se trata também de privilegiar o interesse dos credores mas essencialmente o instituto privilegiaria a recuperação do devedor. Isso parece, após a leitura do preâmbulo, manifesto. Isto é, sem dúvida que o fim último é a reabilitação do devedor, a qual porém, na insuficiência de bens liquidáveis, se condiciona a uma cedência de parte de rendimento que vier a ser gerado, durante determinado período, a favor, em última análise, dos credores, ou melhor, duma, as mais das vezes, réstia dos respectivos créditos.

Ora, resulta claro dos autos e da inércia do tribunal, que a satisfação condicionada dos interesses dos credores ainda não ocorreu, ou seja, que os recorrentes não se podem queixar duma extensão do prazo de satisfação dos credores, com se tivessem sido obrigados a ceder rendimentos durante 10 anos – e em verdade não é essa queixa que apresentam – e resulta ainda claro que os credores não foram nunca satisfeitos, além do bem liquidado, por via da cedência de rendimento disponível, no período até ao despacho recorrido em apreço.

Portanto isto leva-nos a perguntar se o espírito do legislador foi apenas o de condicionar a disponibilidade do insolvente quanto aos seus rendimentos por um determinado período, findo o qual, independentemente da disponibilização de rendimento, o insolvente ficaria livre para reentrar no mercado, se esta espécie de cinco subsequentes anos de castigo, de menorização, de limitação de poderes de disposição, foi vista pelo legislador como o essencial da medida que queria implementar, e se, cumprido o prazo, o devedor estaria reabilitado.

Ora, salvo o devido respeito, parece-nos que o interesse dos credores, claramente subalternizado no instituto, não deixou de ser protegido, pois ele é o constituinte originário ou o pressuposto de funcionamento da própria exoneração do passivo restante: - esta ocorre quando, além dos bens liquidados, tiverem os credores tido acesso a, ao menos, obter também uma parte dos rendimentos do devedor. Repare-se, entre o despacho liminar de exoneração e a concessão final da exoneração, medeia o tempo de cedência com o necessário cumprimento das obrigações a que se refere o artigo 239º do CIRE.
Ou seja, não é possível pensar que seja o mero decurso do tempo que cumpra o intento legislativo. Em rigor, se tudo funcionasse bem, uma coisa coincidia com a outra: os credores eram privilegiados durante os cinco anos subsequentes, auferiam parte do rendimento disponível, o devedor, cumprida essa restrição na sua vida económica, ficava livre. Bem pode pensar-se que o encerramento do processo de insolvência não depende, após a introdução da alínea e) do nº 2 do artigo 230º do CIRE dada pela Lei 16/2012 de 20.4 – que entrou em vigor 30 dias após esta data e portanto já estava em vigor à data em que foram prolatados os despachos liminares de exoneração – do rateio final por ocasião da conta, subsequente à liquidação, nos termos dos artigos 182º e 230º nº 1 al. a), ambos do CIRE, mas que deva independentemente disso ser declarado no despacho liminar de admissão do pedido de exoneração, nos termos da referida alínea e) do nº 1 do artigo 230º do CIRE.

Seja como for, o despacho declarando o encerramento do processo de insolvência não foi produzido no âmbito do despacho de admissão do pedido de exoneração nem posteriormente.

O elemento de estranheza ou distorção que então aqui se apresenta, é introduzido fora da lei, por um facto naturalmente não previsto pelo legislador que enunciou, no nº 2 do artigo 239º do CIRE que “O despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, (…)”: que o tribunal possa demorar cinco anos, completada que foi a liquidação, sem proferir o despacho de encerramento.

Mas, para este factor de estranheza ou distorção – e evidentemente reconhecemos o peso da incerteza que sobre os recorrentes pairou durante cinco anos – o remédio jurídico previsto não é a interpretação da lei, mas o accionamento dos mecanismos preventivos ou reparadores, isto é, a participação ao Conselho Superior da Magistratura ou o accionamento do Estado por violação do direito à justiça com base nos prejuízos que tal inércia tenha causado, entre os quais se poderão contar precisamente as oportunidades de progressão económica que os recorrentes agora teriam, nos próximos cinco anos, em virtude do quadro económico mais favorável que eventualmente lhe venha a ser contemporâneo, e do qual não possam beneficiar ou participar em função do condicionamento do seu rendimento disponível. O direito constitucional a uma decisão em prazo razoável – artigo 20º nº 4 da CRP – não se processa nos autos de recurso duma decisão tardia e menos utilizando-o como argumento de interpretação dum normativo legal em que a decisão se apoiou.

Finalmente, por todo o exposto, e com este quadro fáctico – de que não foi proferido despacho de encerramento na data de entrada em vigor da Lei nº 79/2017 de 30.6 e nos termos do respectivo artigo 6º nº 6, o período de cedência haverá de começar a contar-se a partir da referida entrada em vigor.

Dizer por fim que a pretensão recursiva de atribuição de efeito retroactivo a despacho de encerramento à data da liquidação teria o efeito peticionado de arquivamento e por isso de total liberação dos devedores, a operar sobre o pano de fundo factual dos credores nada terem recebido dos rendimentos disponíveis dos devedores, sem embargo de a estes não poder ser assacada qualquer culpa no não cumprimento das obrigações previstas no artigo 239º do CIRE. Esta consequência não se coaduna, a nosso ver e salvo melhor opinião, com o pressuposto de balanço de interesses – mesmo desequilibrado a favor do devedor singular – que o legislador considerou como concessão ao anterior espírito de liquidação universal de património face às melhores ou renovadas perspectivas sobre a protecção do devedor singular.

Nestes termos, improcede o recurso, confirmando-se a fixação do termo inicial de contagem do período de cedência constante da decisão recorrida. 

Tendo decaído no recurso, são os recorrentes responsáveis pelas custas – artigo 527º nº 1 e 2 do CPC – sem embargo do diferimento da obrigação do seu pagamento nos termos do artigo 248º nº 1 do CIRE.

V.–Decisão
Nos termos supra expostos, acordam negar provimento ao recurso interposto e em consequência confirmam a fixação do termo inicial de contagem do período de cedência constante da decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes sem embargo do diferimento da obrigação do seu pagamento nos termos do artigo 248º nº 1 do CIRE.
Registe e notifique.



Lisboa, 25.01.2018



Eduardo Petersen Silva
Cristina Neves
Manuel Rodrigues