Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
3293/14.2T8FNC-F.L1-8
Relator: ANTONIO VALENTE
Descritores: ALIMENTOS A FILHO MAIOR
FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - O Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores , em face da Lei n.º 24/2017, de 24 de Maio, está obrigado ao pagamento de prestação de alimentos a jovem que já atingiu a maioridade e que reúne os pressupostos para a sua atribuição, uma vez provado que se encontra a frequentar o processo educativo ou um curso profissional, mesmo que não lhe tivesse pago quaisquer alimentos durante a menoridade.
– De resto, é irrelevante que a jovem tivesse atingido a maioridade antes da entrada em vigor (24/06/2017) da Lei nº 24/2017, que alterou a redacção do art. 1º nº 2 da Lei nº 75/98 de 19/11, uma vez que tal normativo dispõe directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem.
– É que, pretendeu-se com tal alteração legislativa proteger a situação dos jovens até aos 25 anos, envolvidos em processo de educação ou formação profissional, através da prestação do FGADM em substituição do progenitor incumpridor ou impossibilitado de efectuar tal prestação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

A e B vieram deduzir o presente incidente de incumprimento da prestação de alimentos contra C.
Alegaram, em síntese, que o requerido não efectua o pagamento da pensão de alimentos desde Abril de 2016.
Notificado para alegar o que tivesse por conveniente, o requerido nada disse.
O Ministério Público promoveu que seja declarado o incumprimento do requerido.
Foi dado como provado que:
A) B nasceu em 12 de Abril de 1998 e é filha de C e D.
B) Por decisão proferida em 20 de Novembro de 2014, foi homologado o acordo de alteração da regulação das responsabilidades parentais, tendo ficado o pai obrigado a pagar, a título de pensão de alimentos, o valor mensal de € 100,00 (cem euros), a pagar até ao dia 8 de cada mês.
Vindo a ser proferida decisão que fixou em € 100,00 a prestação mensal a pagar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores.
Recorre o Fundo, concluindo que:
- A Lei nº 75/98, de 19 de novembro, criou o FGADM, e o Decreto-Lei nº 164/99, de 13 de maio, veio regular a garantia dos alimentos devidos a menores previstos naquela Lei, com o objetivo de o Estado colmatar a falta de alimentos do progenitor judicialmente condenado a prestá-los, funcionando como uma via subsidiária para os alimentos serem garantidos ao menor.
- O nº 2 do artigo 1º da Lei nº 75/98, de 19 de novembro, na redação dada pela Lei nº 24/2017, de 24 de maio, com entrada em vigor a 23 de junho de 2017, veio permitir que o FGADM, em substituição do progenitor obrigado a alimentos, continue a assegurar o pagamento das prestações que hajam sido fixadas durante a menoridade, até que o jovem complete 25 anos de idade se e enquanto durar processo de educação ou de formação profissional (desde que, cumulativamente, se encontrem preenchidos os restantes requisitos legalmente exigidos - nº 1 do artigo 1º da Lei nº 75/98, de 19 de novembro, artigo 48.° do RGPTC, DL nº 164/99, de 13 de maio, e DL nº 70/2010, de 16 de junho).
- Todavia, a obrigação de continuidade do pagamento em causa a assegurar pelo Fundo, cessa se:
- O respetivo processo de educação ou formação profissional estiver concluído antes de atingida a maioridade;
- O processo de educação ou formação profissional tiver sido livremente interrompido;
- Se o obrigado à prestação de alimentos fizer prova da irrazoabilidade da sua exigência.
- No caso em apreço, foi fixada uma prestação de alimentos a cargo do FGADM no montante de € 100,00 (cem euros) para a jovem, ora maior, B, em substituição do progenitor incumpridor.
- Salvo o devido respeito, entende o Recorrente que não se encontram preenchidos todos  os pressupostos legais subjacentes à intervenção do FGADM.
- Relativamente ao pagamento da prestação de alimentos à jovem maior em causa nos autos, recorde-se que a Lei nº 24/2017, de 24 de maio, que alterou o nº 2 do artigo 1º da Lei nº 75/98, de 19 de novembro, apenas entrou em vigor a 24 de junho de 2017, ou seja, em data posterior à data em que a jovem atingiu a maioridade (12.04.2016).
- Refira-se que não existiu qualquer obrigação do FGADM, durante a menoridade da jovem B, e, nos termos do nº 1 do artigo 12.° do Código Civil, a Lei só dispõe para o futuro.
- A nova redação legal pressupõe que o Fundo se encontra a pagar a prestação de alimentos no momento em que é atingida a maioridade, entendimento que resulta da letra da própria lei quando refere que "2-  O pagamento das prestações a que o Estado se encontra obrigado nos termos da presente lei, cessa no dia em que o menor atinja a idade de 18 anos. exceto nos casos e nas circunstâncias previstas no n. o 2 do artigo 1905º do Código Civil. " (itálico, negrito e sublinhado acrescentados).
-  Nestes termos, e tendo presente o pressuposto de continuidade que a lei confere à garantia daquele pagamento, não pode o ora recorrente, salvo o devido respeito, concordar com o entendimento explanado na douta decisão, na medida em que o FGADM não se encontrava obrigado ao pagamento da prestação de alimentos à jovem B, no momento em que a lei se toma aplicável no ordenamento jurídico, nem coincidente com a entrada em vigor da Lei nº 24/2017, de 24 de maio.
- Não há, portanto, prestação a manter.
-  A circunstância de o processo educativo ou de formação não se encontrar completo, no momento em que é atingida a maioridade, exceciona a cessação automática das prestações a que o FGADM se encontra a pagar, mas no caso em apreço o Fundo, não se encontrava a efetuar qualquer pagamento à jovem.
- Por conseguinte, e embora a 2a parte do nº 2 do artigo 1º da Lei nº 75/98, de 19 de novembro, remeta para o regime previsto no nº 2 do artigo 1905.° do CC, não podemos esquecer o âmbito em que o mesmo é aplicado, ou seja, ao "pagamento das prestações a que o Estado se encontra obrigado" - cfr. Artigo 1º, nº 2, da Lei nº 75/98, de 19 de novembro.
- Não pode assim, o recorrente concordar com a decisão recorrida, na medida em que o FGADM foi condenado a assegurar uma prestação de alimentos à jovem dos autos, mas da letra da lei resulta que o pagamento cessa com a maioridade, salvo nos casos e nas circunstâncias previstas no nº 2 do artigo 1905.° do Código Civil, ou seja, o Estado tem de  estar obrigado ao pagamento, no momento em que é atingida a maioridade, o que não se verificou in casu.
- Pelo que, no presente caso tratar-se-ia não de uma continuidade mas de pela primeira vez o FGADM ser chamado a intervir.
- É de referir que a obrigação de prestação de alimentos pelo FGADM é autónoma da prestação alimentícia decorrente do poder paternal e não decorre automaticamente da lei, sendo necessária uma decisão judicial que a imponha, ou seja, até essa decisão não existe qualquer obrigação.
- Todo o regime de garantia dos alimentos devidos a menores, estabelecido na Lei nº 75/98, de 19 de novembro, e regulamentado no DL nº 164/99, de 13 de maio, é construído com um objetivo e um sentido: o Estado assegurar um valor de alimentos ao menor, na sequência da verificação ou preenchimento dos requisitos legalmente previstos, entre eles o incumprimento por parte do progenitor que estava obrigado a prestar alimentos, por não se conseguir tomar efetiva essa obrigação pelos meios previstos no artigo 48º do RGPTC, bem como pela reunião de todos os requisitos previstos na Lei nº 75/98, de 19 de novembro [com a redação dada pela Lei nº 24/2017, de 24 de maio].
- Para efeitos do nº 2 do artigo 1905.° do CC, aplicável por força do disposto no nº 2 do artigo 1º da Lei nº 75/98, de 19 de novembro, é condição que o jovem se mantenha em processo de educação ou de formação profissional no ano letivo em curso, e que tal processo não se encontrava completo ou livremente interrompido aquando da maioridade, desconhecendo o FGADM esta última situação.
- Pelo que, se entende, salvo o devido respeito, que a douta decisão judicial em apreço, enferma de falta de fundamentação legal para justificar a intervenção do FGADM nos presentes autos, à jovem maior.
Cumpre apreciar.
A questão que se coloca é a de saber se, tendo a jovem alimentanda atingido a maioridade, o FGADM está obrigado a pagar as prestações de alimentos, que o requerido deixou de pagar, quando, durante a menoridade o FGADM não foi chamado a efectuar qualquer prestação.
Com efeito, os argumentos do FGADM partem do seguinte raciocínio:
A jovem B atingiu a maioridade em 12 de Abril de 2016, antes da entrada em vigor da Lei nº 24/2017 de 24/05, que alterou o nº 2 do art. 1º da Lei nº 75/98 de 19/11.
O FGADM não estava obrigado ao pagamento de qualquer prestação de alimentos, por incumprimento do progenitor, até à data de tal maioridade.
E a nova redacção legal introduzida pela Lei nº 24/2017 pressupõe que a responsabilidade do FGADM prossegue após a maioridade e até aos 25 anos, verificados os respectivos pressupostos, quando surja na continuidade de uma responsabilidade ainda na menoridade.
Dispõe o art. 12º do Código Civil:
1. A Lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.
Perante isto, coloca-se a questão não só de interpretar a focada Lei 24/2017 que alterou o nº. 2º do art. 1º da Lei nº 75/98 de 19/11 mas a aplicação da mesma tendo em atenção as citadas regras de aplicação das leis no tempo.
Esta questão foi já abordada em diversos acórdãos, nomeadamente no acórdão da Relação de Évora de 25/01/2018 e no acórdão da Relação de Guimarães 22/02/2018, disponíveis no endereço da dgsi, e de que passamos a citar o seguinte excerto, ao qual aderimos inteiramente:
“A este propósito, refere Baptista Machado (in "Sobre a aplicação no tempo do novo Código Civil", Almedina, páginas 29 e 18 e 19): "no nº 2 do art. 12° do nosso Código estabelece-se a seguinte disjuntiva: a lei nova, ou regula a validade de certos factos ou os seus efeitos, e neste caso só se aplica a factos novos, ou define o conteúdo (os efeitos) de certa relação jurídica independentemente dos factos que a essa relação jurídica deram origem, e então é de aplicação imediata (quer dizer, aplica-se, de futuro, às relações jurídicas anteriormente constituídas e subsistentes à data da sua entrada em vigor)”.
“Por outro lado, segundo Oliveira Ascensão (in O Direito, Introdução e Teoria Geral, Uma Perspectiva Luso-Brasileira", 10.a edição revista, Almedina, Coimbra, 1997, pág. 489) (...).
“Posto isto, entendemos que a mencionada Lei dispõe directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, pelo que sempre seria de aplicar ao caso dos autos, dado que o que se pretende salvaguardar é que, nas situações dos jovens até aos 25 anos, o FGADM assegure no lugar do progenitor impossibilitado uma prestação, desde que o jovem ainda não tenha autonomia económica e esteja em formação.

“E isso é independente do momento em que atinge a maioridade (se antes ou depois da entrada em vigor da lei), o que interessa é que, a partir do momento em que esta entrou em vigor, os jovens naquela situação podem socorrer-se da mesma.
Logo, salvo o devido respeito por opinião em contrário, o factor que fundamenta o direito ao benefício de recebimento das pensões em causa não é o momento da maioridade mas sim o facto de beneficiar, após a vigência da lei, desses pressupostos de aplicação.
De resto, em conformidade com o defendido, sempre a Lei Nova será de aplicar aos factos ocorridos após o início da sua vigência que se encontram retroconectados com factos passados, uma vez que se trata de uma lei sobre o modo de exercício desse direito.
Aliás, o art. 9.°, nº 1 do DL nº 164/99, de 13.05 (diploma que instituiu o FGADM e veio regular a garantia de alimentos devidos a menores prevista naquela Lei), diz que "o montante fixado pelo tribunal mantém-se enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão e até que cesse a obrigação a que o devedor está obrigado".
Daí que se entenda padecer o recorrente de razão quando afirma que a continuidade do pagamento da prestação a assegurar pelo FGADM pressupõe que o Fundo se encontre a pagar a prestação de alimentos no momento em que é atingida a maioridade.
Pois, como se insiste, a situação relevante, de continuidade, é sempre a da medida em que se justifica a prestação do progenitor e, só, por arrastamento, a do FGADM.”
Podemos pois concluir que mesmo que atingida a maioridade antes da entrada em vigor da Lei 24/2017, a qual se verificou a 24/06/2017, o beneficiário dos alimentos pode socorrer-se do novo regime, desde que o reunidos os diversos pressupostos do nº 1 do art. 1º da Lei nº 75/98 de 19/11 e o incumprimento do progenitor obrigado à prestação de tais alimentos. Sendo irrelevante que o Fundo já viesse prestando os alimentos desde a menoridade ou não.
Não entendemos, contrariamente ao recorrente, que a nova redacção do nº 2 do art. 1º da Lei nº 75/98, pressuponha uma continuidade nas prestações do Fundo, antes e depois de atingida a maioridade.
O que o legislador pretendeu, em nosso entender, foi estender ao FGADM a responsabilidade, que já existia quanto ao progenitor, no pagamento de prestação de alimentos a jovens uma vez atingida a maioridade e enquanto durar o processo de educação ou formação profissional. Ou seja, a responsabilidade do Fundo também existe relativamente a jovens maiores (com menos de 25 anos) que se encontrem na aludida situação.
Mas nada no texto legal indica que essa obrigação tenha como requisito que o pagamento de alimentos pelo Fundo se tivesse iniciado antes de atingida a maioridade.
O fundamento da prestação de alimentos após os 18 anos é o de o jovem prosseguir o processo de educação ou formação profissional. Seria injusto e desprovido de sentido que um jovem nessas circunstâncias tivesse a haver alimentos do Fundo porque já os recebia antes dos 18 anos e outro, a quem o progenitor deixou de pagar os alimentos desde que o jovem completou os 18 anos, já não beneficiasse de tal prestação pelo Fundo por este nunca lhe ter prestado alimentos antes dos 18 anos.
Entendemos pois que os alimentos são devidos, à luz da actual redacção do artº 1º nº 2 da Lei 75/98.
Alega ainda o recorrente desconhecer se o processo educativo ou de formação profissional da menor B se mantém em curso ou se já se encontrava completo ou livremente interrompido aquando da maioridade.
Contudo, está provado que no ano lectivo 2016/2017 a jovem B frequentou a Fase Única do Curso de Formação Complementar de técnico de vendas e que no ano lectivo de 2017/2018 frequenta a Fase 1 do Curso de Técnico de Vendas, conforme certidão de frequência junta a fls. 7.
Conclui-se assim que:
    O Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores está obrigado ao pagamento de prestação de alimentos a jovem que já atingiu a maioridade e que reúne os pressupostos para a sua atribuição, uma vez provado que se encontra a frequentar o processo educativo ou um curso profissional, mesmo que não lhe tivesse pago quaisquer alimentos durante a menoridade.
    Sendo igualmente irrelevante que a jovem tivesse atingido a maioridade antes da entrada em vigor (24/06/2017) da Lei nº 24/2017, que alterou a redacção do art. 1º nº 2 da Lei nº 75/98 de 19/11, uma vez que tal normativo dispõe directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem.
   Pretendendo-se com tal alteração legislativa proteger a situação dos jovens até aos 25 anos, envolvidos em processo de educação ou formação profissional, através da prestação do FGADM em substituição do progenitor incumpridor ou impossibilitado de efectuar tal prestação.
Termos em que se julga a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Sem custas.

LISBOA, 22/11/2018

António Valente
Teresa Prazeres Pais
Isoleta Almeida Costa