Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4882/17.9T8OER.L2-6
Relator: MARIA DE DEUS CORREIA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
CADUCIDADE
EFEITOS
EXCESSO DE PRONÚNCIA
NULIDADE DA DECISÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I-A responsabilização do Requerente de uma providência cautelar pelos danos que vier a causar ao Requerido da mesma por a ter deixado caducar, dependerá da alegação e prova por este, em acção subsequente a intentar contra aqueloutro, dos pressupostos integrantes da responsabilidade civil, aludidos no artigo 483º, nº1 do Código Civil, para onde nos remete a letra e o espírito do artigo 374º, nº1 do mesmo código.
II-É nula, nos termos do disposto no art.º 615.º n.º1 d) do CPC, a decisão do Tribunal que ordena a restituição de um veículo anteriormente apreendido, na sequência de incumprimento de contrato de leasing, com fundamento na caducidade da providência e seu levantamento.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


                                    

                        I-RELATÓRIO

L…, LDA com sede em (….) Porto Salvo propôs providência cautelar não especificada contra:
M….com última morada conhecida na Rua (….) Unhos.
A Requerente formulou pedido no sentido de “ser ordenada a apreensão imediata do veículo de marca Renault, modelo Clio Dynamique S DCI Break FL, com a matrícula 35-IR-16, bem como dos respectivos documentos que se encontram na posse da requerida (…)” e “ser a viatura entregue à sociedade L..; LDA, com sede em (…) Porto Salvo, que para o efeito deverá ser nomeada fiel depositária da mesma”.
Por despacho proferido, com referência ao requerimento de 29-03-2018, ref.ª citius 12054093, foi decidido “dispensar a citação prévia da requerida”, nos termos do disposto no art.º 366.º n.º4 do CPC.
E, seguidamente, foi proferida sentença, datada de 04-04-2018, que julgou a providência “procedente, por provada, ordenando, consequentemente, a imediata apreensão e entrega à Requerente, nomeando-a, desde já, fiel depositária do veículo automóvel de marca Renault, modelo Clio Dynamique S dCi Break FL, com a matrícula 35-IR-16, bem como dos respectivos documentos”. Mais se determinou que se solicitasse a apreensão às autoridades policiais.
Em 24-04-2019, foi proferido o seguinte despacho:
Processado subsequente a 4-9-2018:
Em face da inércia da requerente quanto à notificação pessoal/citação da requerida, após a efectivação da apreensão, e decorrido o prazo legal, ao abrigo do art.º 281.º, n.º 1 do CPC, julga-se deserta a instância.
       Ainda, e porque requerida a inversão do contencioso, no que dispensaria a propositura da acção principal, e atenta a previsão do art.º 373.º, n.º1 al.a) e b) do CPC, aplicáveis por analogia, em consequência, mais se declara a caducidade da providência e, concomitantemente, da apreensão realizada, ordenando, em consequência, a restituição pela requerente do veículo à entidade policial que logrou efectuar a apreensão na via pública e, após, abra vista ao Ministério Público, para os fins tidos por convenientes.”
Interposto recurso desta decisão, veio este Tribunal e secção a proferir acórdão, datado de 9 de Setembro de 2019, que julgou procedente o recurso e, por consequência, declarou nula a decisão que ordenou a restituição pela Requerente do veículo à Requerida.
Regressado o processo à primeira instância veio a ser proferido despacho datado de 12-11-2019declarando verificada a extinção do procedimento cautelar e a caducidade da providência, ordena o levantamento da mesma, com a restituição do veículo automóvel à requerida, mas atento o desconhecimento do seu paradeiro, provisoriamente entregue a fiel depositário, nomeando-se para tal a aqui requerente porquanto já se encontra na sua posse e apresenta condições para o parqueamento adequado do veículo.”
De novo, inconformada com esta decisão, vem a requerente interpor recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1-O presente recurso ocupa-se apenas da decisão recorrida no que tange à decisão de entrega do veículo à recorrida, não censurando a decisão quanto a extinção do procedimento cautelar e à caducidade da providência;
2 – Entende a recorrente que a caducidade da providência apenas se repercute no levantamento da medida cautelar, que, in casu, consubstanciava a entrega do veículo à recorrente;
3 – Ora, o levantamento dessa medida cautelar não significa a entrega do veículo à Recorrida que não pediu que o veículo lhe fosse entregue e que desde a rescisão do contrato celebrado com a Recorrente não tem qualquer título que a legitime a gozar o fruir do mesmo.
4-Entende a Recorrente que a solução preconizada pelo Tribunal a quo resulta do conhecimento deste de questões que as partes não suscitaram em juízo, sendo, por isso, a sentença nula nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil;
5 – A sentença recorrida apenas fundamenta o entendimento de que o veículo terá que ser entregue à recorrida, no n.º 3, do artigo 373.º do Código de Processo Civil;
6 – Entende a Recorrente que o preceito em questão, tendo aplicabilidade ao
caso sub judice no que concerne a necessidade de audiência prévia do requerido para extinção do procedimento cautelar, não fundamenta, seja de que forma for, o motivo de o veículo ter que ser entregue à recorrida.
7-Pelo contrário, o n.º 1, do artigo 374.º do Código de Processo Civil, dispõe
expressamente as responsabilidades resultantes para o requerente que lhe seja imputável o caducar da providencia cautelar.
8 – Nos termos do artigo em questão, cabe ao requerente culposo responder este pelos danos causados na esfera jurídica do requerido.
9 – Responsabilidades e prejuízos esses, que terão que ser devidamente demonstrados numa ação judicial autónoma.
10 – Pelo que, a única forma de a recorrida poder vir ser ressarcida por eventuais danos decorrentes da execução da providencia cautelar teria que ser através de uma indeminização civil.
11-E nunca, salvo o devido respeito, através da entrega de um veículo de que a recorrida não é proprietária e do qual não tem qualquer título que possa legitimar a sua entrega.
12 – Posto isto, entende a recorrente que da extinção do procedimento cautelar e da caducidade da providência, devia decorrer apenas o levantamento da medida cautelar nunca podendo o veículo sem entregue à recorrida.
Nos termos expostos deverá proceder o presente recurso, com o que se fará
Inteira J U S T I Ç A
Não foram apresentadas contra - alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:
II-OS FACTOS
Os elementos relevantes para a decisão são os que constam do relatório supra, destacando-se, para melhor esclarecimento, o teor do despacho recorrido:   
«Por despacho de 4.4.2019 foi julgada deserta a instância, nos termos do artº 281º, nº 1, do CPC.
Foi ora notificada a requerente a fim de se pronunciar sobre o levantamento da providência, nos termos do artº 373º, nº3, do CPC. Notificada, veio a mesma dizer que:
“A requerente já apresentou contra a requerida uma ação declarativa onde peticionou o seguinte: “a) Ser considerada válida e legítima a resolução do “Contrato-Quadro de aluguer operacional de automóveis sem condutor nº 261509”e as respetivas Condições Particulares relativo ao veículo marca Renault, modelo Clio Dynamique S dCi Break FL, com a matrícula 35-IR-16”
e “b) Ser condenada a Ré a reconhecer o direito de propriedade da Autora sobre o veículo marca Renault, modelo Clio Dynamique S dCi Break FL, com a matrícula 35-IR-16”.
4. A referida ação corre trâmites no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Local Cível de Loures, Juiz 3, sob o número de processo 5236/19.8T8LRS.
 5. A ação foi apresentada em 22 de maio de 2019 e encontra-se em fase de citação porquanto ainda não se mostrou possível citar a requerida, ré na referida ação.
6. Sendo reconhecida e declarada a caducidade da providência e, em consequência, ordenado o seu levantamento
7. A caducidade reporta-se à providência cautelar (medida cautelar decretada) e apenas a esta.
8. A sua extinção não pode implicar a ordem de entrega do veículo objeto da medida cautelar decretada a terceiros ou à própria requerida, devendo esta, como resulta do atrás alegado, recorrer aos meios comuns para salvaguarda dos seus interesses, não cabendo ao Tribunal substituir-se à parte e muito menos uma iniciativa processual encapotada.
9. Acresce que, a possibilidade de resolução e tomada de posse do veículo por parte da requerente está profusamente desenvolvida na petição inicial que conduziu ao decretamento da medida cautelar e que a iniciativa de entrega do veículo à requerida ou terceiros claramente violaria.”
Apreciando.
Em primeiro lugar, cumpre assinalar que a apresentação de acção a 22.5.2019 o foi já depois de julgada deserta a presente instância cautelar.
Em segundo lugar, impõe-se concluir atenta a inércia da requerente nos presentes autos que levou à sua deserção, pela extinção do procedimento e caducidade da providência, nos termos do artº 373º, nº 1, a), do CPC.
Com efeito, preceitua o artº 373º, do CPC:
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 369.º, o procedimento cautelar extingue-se e, quando decretada, a providência caduca:
a) Se o requerente não propuser a ação da qual a providência depende dentro de 30 dias contados da data em que lhe tiver sido notificado o trânsito em julgado da decisão que a haja ordenado;
b) Se, proposta a ação, o processo estiver parado mais de 30 dias, por negligência do requerente;
c) Se a ação vier a ser julgada improcedente, por decisão transitada em julgado;
d) Se o réu for absolvido da instância e o requerente não propuser nova ação em tempo de aproveitar os efeitos da proposição da anterior;e) Se o direito que o requerente pretende acautelar se tiver extinguido.
2 - Quando a providência cautelar tenha sido substituída por caução, fica esta sem efeito nos mesmos termos em que o ficaria a providência substituída, ordenando-se o levantamento daquela.
3 - A extinção do procedimento ou o levantamento da providência são determinados pelo juiz, com prévia audiência do requerente, logo que se mostre demonstrada nos autos a ocorrência do facto extintivo.
No caso, para além da extinção do procedimento, temos a caducidade da providência, porque decretada. Mas, esta caducidade da providência decretada, conduz inevitavelmente ao seu levantamento, conforme o indica o nº 3, do artº 373º, porquanto no caso a mesma foi materializada com a apreensão e entrega do veículo à requerente.
Com efeito, declarar-se a extinção do procedimento e a caducidade da providência, com o consequente ordenar do seu levantamento, implica a restituição do veículo a quem o detinha, aquando da sua apreensão. Sustentar o contrário, com o devido respeito, não contém qualquer lógica, e seria fazer “letra morta” do contido no nº 3, do artº 373º, do CPC.
Pelo supra exposto, declarando verificada a extinção do procedimento cautelar e a caducidade da providência, ora se ordena o levantamento da mesma, com a restituição do veículo automóvel à requerida, mas atento o desconhecimento do seu paradeiro, provisoriamente entregue a fiel depositário, nomeando-se para tal a aqui requerente, porquanto já se encontra na sua posse e apresenta condições para o parqueamento adequado do veículo.
Notifique.
Oeiras, 12.11.2019.»
III-O DIREITO
Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas, que delimitam o respectivo âmbito de cognição deste Tribunal, a questão que cumpre apreciar consiste em saber se a caducidade da providência cautelar anteriormente decretada- apreensão do veículo automóvel – e seu levantamento, conduz “inevitavelmente” à devolução do veículo à requerida e ora recorrida.
Como resulta da decisão recorrida, a mesma fundamentou-se no disposto no art.º 373.º n.º3 do CPC, argumentando-se que “esta caducidade da providência decretada, conduz inevitavelmente ao seu levantamento, conforme o indica o nº 3, do artº 373º, porquanto no caso a mesma foi materializada com a apreensão e entrega do veículo à requerente”.
Na verdade, estabelece aquele preceito o seguinte:

A extinção do procedimento ou o levantamento da providência são determinados pelo juiz, com prévia audiência do requerente, logo que se mostre demonstrada nos autos a ocorrência do facto extintivo.”
Quererá isto dizer que uma vez levantada a providência, em consequência da respectiva caducidade, implica in casu, a restituição do veículo automóvel, à Requerida?
Afigura-se-nos que não, adiantando, desde já, que se afiguram pertinentes e procedentes as conclusões da Apelante.
Na verdade, importa considerar o disposto no art.º 374.º n.º 1 do CPC que estabelece o seguinte:
Se a providência for considerada injustificada ou vier a caducar por facto imputável ao requerente, responde este pelos danos culposamente causados ao requerido, quando não tenha agido com a prudência normal. “
Ora, demonstra este preceito que a intenção do legislador é atribuir ao requerido na providência cautelar que vier a caducar por facto imputável ao requerente, o ónus de alegar e provar os danos que para si tenham advindo em consequência do decretamento da providência. Não compete ao Tribunal adiantar-se ao requerido e, oficiosamente, por sua iniciativa, reparar o requerido e colocá-lo no “statuo quo ante
Tal como decidiu o nosso mais alto Tribunal[1]: “A responsabilização do Requerente de uma providência cautelar dos danos que vier a causar ao Requerido da mesma por a ter deixado caducar, dependerá da alegação e prova por este, em acção subsequente a intentar contra aqueloutro, dos pressupostos integrantes da responsabilidade civil, aludidos no artigo 483º, nº1 do CCivil, para onde nos remete a letra e o espírito do artigo 374º, nº1 do CPCivil. O princípio geral que rege a matéria da responsabilidade civil é o consignado no artigo 483° do Código Civil segundo o qual «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação», incumbindo ao lesado provar a culpa do autor da lesão, de acordo com o disposto no artigo 487º, nº1, do mesmo diploma legal. Constituem pressupostos do dever de reparação resultante da responsabilidade civil por factos ilícitos: a existência de um facto voluntário do agente e não de um facto natural causador de danos; a ilicitude desse facto; a existência de um nexo de imputação do facto ao lesante; que da violação do direito subjectivo ou da lei resulte um dano; que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima de forma a poder concluir-se que este resulta daquela. Igualmente resulta, neste conspectu, do apuramento das responsabilidades que «É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.».Inexistindo aqui qualquer presunção legal de culpa adveniente da mera constatação fáctica de que o Recorrido deixe caducar a providência (…)”
Nestas condições, tendo o Tribunal a quo declarado a caducidade da providência e o seu consequente levantamento, apenas isso lhe competia declarar, nos termos do disposto no art.º 373.º do CPC, competindo à Requerida, a iniciativa de dirigir ao Tribunal o pedido que na sequência de tal caducidade, entendesse ter direito.
Como se referiu supra, tendo o Tribunal tomado a iniciativa de se substituir à parte, decidindo questão que não lhe foi apresentada para decidir, o Tribunal a quo conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento, pelo que a decisão ora em apreço enferma de nulidade, face ao disposto no art.º 615.º n.º1 d) do Código de Processo Civil.
Procedem, pois, as conclusões da Apelante.
IV-DECISÃO
Face ao exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso e, por consequência, declarar nula a decisão que ordenou a restituição pela Requerente do veículo à Requerida.
Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 9 de Janeiro de 2020
Maria de Deus Correia
Maria Teresa Pardal
Anabela Cesariny Calafate
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[1] Vide Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26-02-2019, Processo 618/12.9TVPRT.P.S2, disponível em www.dgsi.pt