Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
455/22.2T8PDL.L1-7
Relator: CARLOS OLIVEIRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CIRCULAÇÃO EM ROTUNDA
REPARTIÇÃO DE CULPAS
PRIVAÇÃO DE USO DE VEÍCULO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: 1. Circulando o veículo segurado pela Ré Seguradora sempre pela faixa da direita duma rotunda, apesar de apenas pretender sair na 3.ª saída, quando foi embatido pelo veículo conduzido pela Autora, que seguia na mesma rotunda, mas na faixa da esquerda, pretendendo sair na 2.ª saída, quando se dá o embate, conclui-se que ambos os condutores violaram o disposto no Art.º 14.º-A n.º 1 al. c) do Código da Estrada, tendo contribuído igualmente para o sinistro, respondendo em partes iguais pelos danos verificados, nos termos do Art.º 570.º n.º 1 do Código Civil.
2. O dano pela privação de uso de veículo é um dano autónomo, com repercussão na esfera patrimonial do lesado, que pode ser considerado independentemente de haver ou não perda total do veículo, contando que se prove que, durante determinado período de tempo, se verificaram situações relevantes de perda efetiva das utilidades próprias desse bem danificado, ou sejam demonstradas situações concretas em que se verificou uma falta de disponibilidade da viatura.
3. O valor desse dano deve ser determinado com recurso à equidade, dentro dos limites do que for provado, temperado pelas regras da razoabilidade e da experiência.
4. Tem sido recorrente o auxílio à fixação dessa indemnização com recurso ao valor locativo dum veículo de caraterísticas semelhantes.
5. Aceitamos que o valor da indemnização seja feito através da ponderação dum valor económico diário que tenha em conta a utilidade que decorre do uso normal do veículo, pois desse modo existe um critério objetivo e sindicável ao exercício pelo julgador da avaliação por equidade desse dano.
6. Mas, daí não resulta que o valor diário deva corresponder necessariamente ao valor locativo dum veículo com características semelhantes, tal como o dado por provado neste processo (no caso: €20,00 dia), porque na locação comercial de veículos automóveis entram em ponderação critérios empresariais que nada têm a ver com as utilidades diárias que a disponibilidade particular de um veículo pode proporcionar ao cidadão comum.
7. No caso concreto as desvantagens verificadas na esfera da Autora durante o período relevante de perda da possibilidade de uso do veículo justificavam apenas a fixação duma indemnização com base no valor diário de €10,00.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I- RELATÓRIO
A…, por si e em representação da sua filha menor de idade, B…, veio interpor a presente ação de condenação, em processo declarativo comum, contra a CSeguros, S.A., pedindo a condenação da R. pagar as quantias de:
a) €3.770,01, a título de danos patrimoniais, acrescida do custo da privação do uso da viatura até à entrega desta completa e integralmente reparada, o que liquidou nesse momento em €1.400,00;
b) €1.500,00, a título de danos não patrimoniais; e
c) €2.500,00 à A. B…, a título de danos patrimoniais.
Tudo acrescido de juros de mora até efetivo e integral pagamento.
Para tanto, alegou em síntese, a dinâmica de acidente de viação, cuja culpa imputou ao condutor do veículo segurado pela R., e os danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do mesmo.
Citada a R. veio contestar, defendendo-se por impugnação, alegando que o segurado não é o único responsável pelo embate ocorrido, imputando responsabilidade pelo mesmo à condutora do veículo interveniente e alegando que a indemnização reclamada pelas A.A., a título de dano de privação pela utilização do veículo sinistrado, é manifestamente excessiva. No final, pugnou pela improcedência da ação.
Findos os articulados foi realizada audiência prévia, onde foi proferido despacho saneador e foram fixados os temas de prova e o objeto do litígio.
Admitida a prova requerida, foi designada audiência final e, após a instrução e discussão da causa, veio a ser proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, por provada, condenando a R., C… Seguros, S.A., a pagar à A., A…, a quantia de €1.833,12, acrescida dos juros de mora, contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento; e a pagar-lhe a quantia de €300,00, por si e na qualidade de legal representante da sua filha menor, B…; e a quantia de €125,00, quantias estas a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros de mora contados desde a prolação da presente sentença até integral e efetivo pagamento; absolvendo a R. do demais pedido.
É dessa sentença que a A. A…, vem agora interpor recurso de apelação, apresentando no final das suas alegações as seguintes conclusões:
1 – Resulta quer das fotos juntas aos autos, quer do relatório dos danos, quer ainda do depoimento do perito da Ré e da testemunha ocular que foi a viatura da A. que foi embatida pela viatura segurada na Ré. (…)
2 – A A. não podia prever que o condutor do veículo segurado na Ré em vez de seguir em direção à cidade da Ribeira Grande como indiciava o seu sentido de marcha prosseguisse a marcha para entrar na 3.ª saída em direção ao estádio de S. Miguel/Fajã de Baixo.
3 – Ninguém está obrigado a prever o imprevisível. A A. não tinha como evitar ser embatida e empurrada para fora da faixa de rodagem em que pretendia entrar, no caso a 2.ª via de acesso à cidade da Ribeira Grande.
4 - Quando a viatura da A. é embatida e empurrada para a esquerda já está dentro da faixa que lhe permite o acesso à 2.ª via em direção à Ribeira Grande, sendo embatida por isso pelo lado esquerdo do Fiat no seu lado direito. Foi lado com lado e a A. empurrada em consequência para fora da faixa.
5 – Resulta do depoimento das testemunhas RS, AM e PF que a A. não dispunha de meios económicos que lhe permitissem custear a reparação. (…)
6 – Se juntarmos a estas declarações, o recibo de ordenado da A., as declarações de IRS juntas aos autos, e o comprovativo do deferimento do apoio judiciário que para efeitos de proteção jurídica é de 330,99 €, não se compreende como pode o Tribunal não dar como provado que a A. não dispunha de meios que lhe permitissem custear a reparação.
7 – O preço do aluguer diário de uma viatura como a da A. não é inferior a 26,00€ (…), pelo que o Tribunal devia dar como provado pelo menos o preço pedido pela A. de 20,00 €/dia, o que, aliás, é um facto notório, resultando da simples consulta a qualquer rent-a-car.
8 – À data de interposição da ação a viatura da A. não só não estava reparada, como o empréstimo não fora equacionado, fazendo como que a A. estivesse totalmente dependente de terceiros para se deslocar para o trabalho, para levar a filha à creche ou onde a sua presença se tornasse necessária, quer indo a pé, à boleia, de autocarro, táxi ou viatura emprestada,
9 – Tudo como é óbvio com sujeição a horários e disponibilidade de terceiros.
10 – (…)
11 – Da prova testemunhal, da prova pericial e da prova documental junta aos autos a resposta à matéria de facto impugnada pela A. devia ser a seguinte:
Ponto 8 dos factos provados
Após a passagem pela 1.ª saída, e quando se aprestava para seguir o caminho na direção da Ribeira Grande, a A. foi embatida pelo Fiat na lateral direita do Ford empurrando-o para fora da faixa da esquerda.
Ponto 31 – Eliminado ou Não provado.
2 – Da matéria dada como não provada e que devia ter sido dado como provada e face da prova testemunhal e documental junta aos autos.
b. A A. não dispunha de meios económicos que lhe permitissem custear a reparação.
c. A viatura da A. esteve parada até ser reparada e entregue a A. em 12 de Abril de 2022, não tendo o aluguer diário de uma viatura idêntica à da A. valor inferior a 20,00€.
d. e e. - Fazendo com que nesse período a A. tivesse que se deslocar de casa para o trabalho, para a escola … onde a filha estuda ou para onde quer que fosse necessária a sua presença a pé, à boleia, de táxi, de autocarro ou até de viatura emprestada, sempre dependente da vontade, disponibilidade e horários de terceiros.
g. h. e i. – A menor B… ficou em pânico e traumatizada, mesmo que os familiares e amigos evitem falar no acidente, recordando-o sempre que pensa estar iminente um novo embate.
12 – Não tendo a A. qualquer culpa na produção do acidente dos autos por não poder prever o imprevisível tem direito ao pagamento dos danos decorrentes do acidente, quer na vertente dos danos patrimoniais, quer na vertente dos danos não patrimoniais, no caso:
-3.258,01€ da reparação da viatura
-2.520,00€ de privação do uso da viatura desde a data do acidente, 6 de Dezembro de 2021 até 12 de Abril de 2022 a 20,00€ (126 dias x 20,00€).
-1.500,00€ a título de danos não patrimoniais à A. decorrentes da:
- preocupação da A. em diariamente ter que se deslocar da freguesia de Rabo de Peixe, no concelho da Ribeira Grande, para a cidade de Ponta Delgada, onde trabalha e a filha estuda, sem transporte próprio, sem autocarros a horas, sempre dependente da vontade de terceiros e da conjugação de horários e disponibilidade. Uma contínua preocupação e sem dinheiro para proceder à reparação e obviar a todos estes transtornos;
- às mazelas decorrentes do acidente
- o tempo gasto em oficinas, seguradora, advogado, tribunais 2.500,00€ ou o que vier a ser arbitrado a título de danos da A. A…
13 – Ao não o entender assim a sentença proferida violou, entre outros, o disposto nos art.ºs 483.º, 496.º.1 e 562.º todos do Código Civil.
Pede assim que o recurso seja julgado procedente por provado e por via dele substituir-se a sentença proferida por outra que condene a R. a pagar à A. as quantias referidas em 12 das conclusões.
A R. respondeu ao recurso pugnando pela sua improcedência, tendo ampliado o seu objeto, com vista à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, apresentando a propósito as seguintes conclusões:
1. Quanto aos factos provados descritos nos pontos 10 e 11 deverão ser eliminados por ser matéria conclusiva e, ainda por não ter havido qualquer prova documental e testemunhal acerca da existência de sinalização no local.
2. Quanto à matéria descrita no ponto 12 até da Ré que a mesma está manifestamente em contradição com a fundamentação constante na folha 7 da sentença nomeadamente, quanto à forma como é descrita, a circulação do veículo seguro na Ré, apelidando-a de temerária, quando é a própria fundamentação que, muito bem, descreve em que condições é que o condutor do veículo seguro da Ré fazia essa condução, dizendo claramente que não se podia extrair que a conduta do condutor era temerária.
3. Na verdade, resultou da prova testemunhal, e aliás conforme descrito na sentença, que o condutor do veículo seguro que o condutor do veículo seguro na R. justificam que seguia naquela faixa de rodagem, mais à direita, porque no país vizinho do qual é oriundo e nas rotundas, os veículos automóveis podem circular em qualquer faixa independentemente da zona onde pretendem sair da rotunda.
4. Resulta ainda das fotografias juntas aos autos com o auto de ocorrência que o veículo seguro da R. foi embatido pelo veículo da Autora quando esta pretendia sair da rotunda, tomar uma via de saída, por que o veículo seguro da R. circulava na faixa de fora, ou seja, na faixa mais à direita.
5. Não existia qualquer prova de que os condutores do veículo seguro da R. estivessem desatentos distraídos ou até com uma condução temerária.
6. Apenas julgavam que conduziam de acordo com as regras estradais e que as mesmas seriam iguais à do seu país.
Pede assim que a matéria de facto seja alterada de acordo com o proposto e a decisão de direito deverá manter-se de acordo com as conclusões de direito apresentadas na sentença, por estarem de acordo com as regras estradais, atribuindo-se as culpas na proporção de metade para cada um dos condutores, uma vez que a A. mudou de faixa, do interior para o exterior, sem estar na presença de outros veículos e sem o fazer com a devida antecedência, apenas mesmo junto da saída da rotunda, violando o disposto no Art.º 14-A do Código da Estada, pois deveria ter tomado a via exterior, (do direita antes da saída), o que manifestamente não fez, pois de outro modo não haveria o embate e teria ficado na frente ou à retaguarda do veiculo seguro na R..
Não houve resposta à ampliação do objeto do recurso requerida pela R., que foi admitida, tal como a apelação da A..
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II- QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do C.P.C., as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (vide: Abrantes Geraldes in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2017, pág. 105 a 106). Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. Art.º 5º n.º 3 do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Vide: Abrantes Geraldes, Ob. Loc. Cit., pág. 107).
Assim, são questões a decidir:
a) A impugnação da matéria de facto;
b) A verificação dos pressupostos da responsabilidade civil e, muito em particular, os seguintes:
b1) A repartição de culpas pela ocorrência do acidente; e
b2) O valor da indemnização devida às A.A. em função dos concretos danos provados, nomeadamente quanto à reparação do veículo, à privação de uso do mesmo e aos danos não patrimoniais.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
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III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1. No dia 6 de dezembro de 2021, pelas 17:30 horas, na Rotunda do Peixe Assado, freguesia do Livramento, verificou-se um embate.
2. Foram intervenientes no embate a viatura Ford Fiesta, matrícula ..UZ.., propriedade da A. e conduzida por esta,
3. E a viatura Fiat Punto, matrícula ..UQ.., propriedade da Rent-a-Car Flor do Norte, conduzida por AG.
4. Ambas as viaturas circulavam no sentido Ponta Delgada/Ribeira Grande.
5. A via onde circulavam é composta por duas faixas de rodagem que desembocam na rotunda do Peixe Assado e continuam no sentido da Ribeira Grande.
6. Ao entrar na rotunda a A. circulava na faixa da esquerda e o Fiat na faixa da direita.
7. A via de saída para a Ribeira Grande é a 2.ª via da rotunda do sentido em que circulavam as viaturas.
8. Após a passagem pela 1.ª saída, e seguir caminho na direção Ribeira Grande, a A. embateu com o Fiat na frente lateral direita do Ford, empurrando-o para a faixa da esquerda.
9. Que em vez de virar à direita para entrar na via com destino à Ribeira Grande como indiciava, prosseguiu a marcha para entrar na 3.ª saída, com destino ao estádio de São Miguel/ Fajã de Baixo.
10. Quando pretendendo entrar na 3.ª via de saída o devia fazer pela faixa da esquerda e não da direita,
11. Sem prestar qualquer atenção à circulação e sinalização.
12. Circulando de forma distraída, desatenta e temerária, circulando na faixa mais à direita quando o devia fazer na via da esquerda uma vez que pretendia sair na 3.ª via de saída.
13. O piso é de asfalto, sem quaisquer irregularidades, covas ou obstáculos.
14. Não chovia, o piso não estava húmido ou com quaisquer substâncias que afetassem a aderência.
15. Do embate na viatura da A. resultaram para esta os seguintes danos:
totalizando o material o valor de 2.514,86€,
16. que o Relatório de Peritagem da R. quantificou no valor de 3.258,01€, incluindo mão de obra e pintura.
17. Porque a R., por meio de missiva, datada de 20.01.2022, remetida à A., A…, se recusou a assumir a responsabilidade do seu condutor na produção do acidente,
18. A R. nunca colocou ao dispor da A. viatura de substituição.
19. Em consequência do acidente a A., A…, foi comprimida pelo cinto de segurança nas zonas da cintura, peito e ombro esquerdo.
20. Devido à imobilização e dores no ombro esquerdo a A., A…, esteve de baixa médica de 7 a 14 de dezembro de 2021.
21. De onde resultou uma perda de salário e subsídio de refeição de €108,24.
22. Durante este período de tempo teve de trabalhar e de levar a filha, B…, de 6 anos à escola, tendo esta que ir de táxi no que gastou 300,00€ (nos dias 13,14, 15, 16, 17, 20, 21, 22, 23, 27, 28, 29 e 30 de dezembro de 2021) ou à boleia de pessoas amigas.
23. As A.A. residem na freguesia de Rabo de Peixe, no concelho da Ribeira Grande.
24. A A. A… trabalha no Hospital … e a filha, B…, estuda na Escola …, em Ponta Delgada.
25. A falta da viatura acidentada provocou alterações nas rotinas de deslocação com sujeição à disponibilidade e horários de transporte,
26. Provocando desgaste físico e psicológico na A.,
27. Para além do tempo gasto em oficina, seguros e agora advogado e tribunal.
28. Juntamente com a A. A… seguia no banco de trás a filha, B…, de 6 anos de idade.
29. Com o impacto provocado pelo embate a menor bateu, apesar do cinto de segurança instalado, com a face direita na parte lateral direita do banco de trás.
30. No momento do embate, o veículo matrícula ..UQ.. tinha o seguro de responsabilidade civil contra terceiros transferida para a Ré C…, através da apólice 00…, em vigor à data do embate e nos termos do documento junto a fls. 20 e 20 verso que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
Da contestação:
31. O veículo UZ, pertença da A., não aguardou a passagem do veículo UQ seguro na R. tendo indo embater com o canto direito do seu veículo na porta da frente e de trás do lado esquerdo do veículo seguro na R..
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O Tribunal julgou ainda por não provados os seguintes factos:
Da petição inicial:
a. Sem prestar qualquer atenção à A. que apitou desesperadamente quando se apercebeu que em vez de virar seguia em frente,
b. E a A. não dispunha de meios económicos que lhe permitam custear a reparação,
c. A viatura está parada e o aluguer diário de uma com idênticas características é de €20,00.
d. Fazendo com que, entretanto, a A. se tenha que deslocar de casa para o trabalho, para a escola … onde a filha estuda ou para onde quer que seja necessária a sua presença a pé, à boleia, de táxi, de autocarro ou até de viatura emprestada,
e. Tudo com sujeição a horários e disponibilidade de terceiros.
f. Facto que a deixou em pânico e traumatizada.
g. Sempre que vê um carro a aproximar-se grita: “mãe, pára, pára. O carro está muito perto, vai bater.”
h. Acrescentando: “a culpa não é da mãe. Quando é que o nosso carro fica pronto? A mãe ia direitinha.”
i. Diz que detesta os Fiat por o carro que bateu no carro da mãe ser um Fiat e a rotunda do Peixe Assado por nela se ter dado o acidente.
j. Por vezes acorda sobressaltada e a chorar do nada por causa do acidente.
k. Não lhe saindo da cabeça a imagem e o choque do acidente.
Da contestação
l. A condutora do veículo da A. quis descrever a Rotunda sempre a direito, dai que tenha passado para a faixa do interior, pois pretendia seguir na mesma direção que vinha, ou seja Ponta Delgada-Ribeira Grande.
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Tudo visto, cumpre apreciar.
IV- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Estabelecidas que estão as questões de que cumpre tomar conhecimento, iremos então apreciar as mesmas pela sua ordem de precedência lógica, começando pela impugnação da matéria de facto.
1. Da impugnação da matéria de facto.
Estabelece o Art.º 662º n.º 1 do C.P.C. que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Nos termos do Art.º 640º n.º 1 do C.P.C., quando seja impugnada a matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição, os concretos factos que considera incorretamente julgados; os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito concretiza-se que, quanto aos meios probatórios invocados incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso. Para o efeito poderá transcrever os excertos relevantes. Sendo que ao Recorrido caberá o ónus de designar os meios de prova que infirmem essas conclusões do recorrente, indicar as passagens da gravação em que se funda a sua defesa, podendo também transcrever os excertos que considere importantes, isto sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo um dos principais o de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida em primeira instância.
No caso, a Recorrente pretende pôr em causa o julgamento da matéria de facto provada nos pontos 8 e 31 da sentença recorrida, pretendendo dar redação diversa ao primeiro e que o segundo seja eliminado ou dado por não provado. Por outro lado, visa ainda que os factos dados por não provados nas alíneas b) a i) passem a contar dos factos não provados, sugerindo uma nova redação. Para tanto, indica a prova documental e testemunhal, cujos excertos da respetiva gravação pontualmente transcreve, os quais no seu entender deveriam conduzir a decisão diversa.
Por sua vez, a Recorrida, ampliando o objeto do recurso nessa parte, também pretende a eliminação de factos dados por provados nos pontos 10, 11 e 12, visando a eliminação do primeiro por ser conclusivo, o mesmo se passando com o segundo, embora invocando que sobre ele também não se fez prova, e quanto ao terceiro sugere uma nova redação, não só por ser em parte conclusivo, mas também por ser contraditório com a fundamentação em que a sentença recorrida assenta.
Tendo em atenção que, no essencial, a Recorrente cumpriu os ónus de impugnação constantes da lei processual aplicável, cumprirá então começar por apreciar o bem fundado da impugnação por si apresentada.
1.1 Da matéria de facto provada em 8 e 31.
A Recorrente põe em causa, em primeiro lugar, o julgamento da matéria de facto que ficou a constar dos pontos 8 e 31 dos factos provados na sentença recorrida, que se reportam à dinâmica do acidente, porquanto considera que as fotos do sinistro juntas aos autos, o depoimento do perito da R., PF, e, bem assim, o da testemunha RS, que disse que seguia atrás do veículo da A. e assistiu ao embate, levariam à conclusão de que foi o veículo segurado pela R. que embateu no veículo da A., e não o contrário. Ao que a Recorrida contrapõe que o depoimento da testemunha RS não é minimamente credível, não demonstrando conhecer pormenores relevantes do acidente, sendo de relevar o depoimento da testemunha AG, condutor do veículo por si segurado, o qual depôs com rigor, o que é confirmando também pelos dados referentes aos danos verificados nas viaturas sinistradas.
A sentença recorrida justificou a convicção a que o tribunal recorrido chegou de forma conjunta, nos seguintes termos:
«(…) quanto à dinâmica do embate, o tribunal valorou o aludido relatório pericial, com especial relevância para as fotografias àquele anexas, a fotografia junta com a petição inicial onde se visualiza em plano frontal a posição final dos veículos e os depoimentos do condutor do veículo matrícula ..UQ.. e passageiro, as testemunhas AG e FG, ambas bastante espontâneas, objetivas a relatar o acontecimento, e em sintonia, merecendo a credibilidade do tribunal, confirmando naturalmente que pretendiam sair na 3.ª saída da rotunda circulando pela faixa da direita – afirmando que em Espanha costumam seguir pela via de fora nas rotundas, revelando desatenção e distraída mas não se podendo extrair que se trata de conduta temerária, não se descurando que se trata de cidadão estrangeiro e de férias e do seu depoimento brotou à evidência que se tratou apenas de uma distração - quando foram violentamente embatidos do lado esquerdo, ou seja, do lado do condutor, da porta para diante, pela Autora que conduzia o veículo matrícula ..UZ... Do mesmo modo, o tribunal teve em conta a participação do acidente e o depoimento da testemunha PF, perito averiguador a desempenhar funções na companhia de seguros aqui Ré.
«Ora, da aludida prova, extraiu-se, à evidência que a Autora conduzia a sua viatura na faixa da esquerda, ou seja, interior da rotunda e virou repentinamente para a 2.ª saída, indo embater no veículo conduzido pela testemunha AG, arrastando esta viatura, como visível nas fotos. E, tal conclusão retira-se à luz das mais elementares regras da experiência comum, desde logo, pela extensão dos danos, os sentidos em que os veículos circulavam, saliente-se, erradamente na rotunda e a extensão dos danos. Com efeito, a alegação de que a Autora condutora da viatura matrícula ..UZ.. deu o pisca para sair da rotunda não se provou por ausência de prova e, mesmo que se tivesse provado, em nada alterava a factualidade assente, bastando atentar à extensão dos danos e sua localização, não sendo plausível nem tendo qualquer suporte de verosimilhança a viatura ..UQ.. embater no veículo conduzido pela Autora quando circulava na faixa da direita para sair na 3.ª saída em face da posição final das viaturas, sublinhe-se a da propriedade da Autora encontra-se quase na totalidade na faixa da direita, tendo arrastado a viatura matricula ..UQ.., e assim firmou-se o facto 31».
Não podemos ainda deixar de realçar que a sentença recorrida apreciou o depoimento da testemunha RS nos seguintes termos: «(…) no que respeita à testemunha RS o tribunal não valorou o seu depoimento em face das vincadas incoerências manifestadas ao longo do mesmo e, portanto, incredível. Com efeito, esta testemunha começou por afirmar que seguia atrás do Fiat conduzido pela Autora, que a viatura que seguia na faixa da direita deu uma guinada para o lado esquerdo e embateu no Fiat, afirmação, desde logo, afastada pela posição final das viaturas, pois, reitere-se caso o veículo segurado pela Ré tivesse abalroado a viatura conduzida pela Autora a posição final teria necessariamente de se situar na faixa da esquerda, emergindo das fotografias juntas com a petição inicial e os relatórios de peritagem o descabimento de tal versão, à luz das mais elementares regras da experiência comum. Do mesmo modo, foi evidente o nervosismo e desconhecimento desta testemunha que descreveu a dinâmica do embate em tais termos – descabidos -, ao mesmo tempo que, questionado sobre a outra viatura interveniente no sinistro de forma manifestamente evasiva afirmou desconhecer qualquer elemento identificativo porque apenas viu o embate e seguiu caminho, pois conhece a Autora de vista, não tratando, como seria normal, de parar e prestar auxílio».
Ouvida a toda a prova gravada, diremos que efetivamente o depoimento da testemunha RS nos oferece sinceras reservas, porque disse que seguia atrás do veículo da A. (A., que disse conhecer apenas “de vista” por serem da mesma freguesia), o qual seguia na rotunda pela “faixa do meio”, sendo que o veículo segurado pela R. seguia na mesma rotunda, mas pela faixa exterior, quando deu uma guinada para a faixa da direita (portanto, para a “faixa do meio”), por onde seguia o veículo da A., indo embater neste. Ora, esta descrição do acidente é completamente inverosímil, porque o condutor do veículo segurado pela R. não tinha motivo algum para dar uma guinada para a direita, pois o seu propósito era continuar a descrever a curva da rotunda, pela faixa exterior, mais à direita, com vista a sair apenas na 3.ª saída, como foi confirmado pela testemunha AG, seu condutor. A testemunha FG, que seguia como passageiro nela, também parece querer confirmar esse facto, embora não se recordasse com precisão sobre se pretendiam sair na 2.ª ou 3.ª saída da rotunda, acabando apenas por confirmar que foi o veículo da A. que veio embater no veículo segurado pela R., esclarecendo que aquele nunca esteve à frente do carro onde seguia como passageiro. Assim sendo, quem tinha razão para “guinar”, ou pelo menos para alterar o seu trajeto na curva da rotunda, seria apenas a A., que pretendia dela sair para entrar na 2.ª saída, momento em que se deu o embate.
Portanto, pela lógica das coisas, certamente que foi a A. quem deixou de fazer a curva à esquerda, no sentido de continuar a contornar a rotunda, e iniciou a manobra de virar o veículo por si conduzido para a sua direita, com o propósito de sair pela 2.ª saída, onde foi encontrar o veículo segurado pela R., que seguia na faixa exterior da rotunda em causa.
Quanto às fotografias juntas aos autos, algumas delas foram tiradas logo após o acidente e retratam que os veículos ficaram encostados “lado a lado”, já na faixa da direita (exterior) da rotunda, sendo o veículo preto, segurado pela R., tem a frente virada para a 2.ª saída dessa rotunda (que não era aquela por onde o seu condutor pretendia sair e, portanto, só pode ter sido empurrado para essa posição), enquanto que o veículo branco, pertença da A., encontra-se encostado ao primeiro, com a sua lateral direita na lateral esquerda daquele.
Mais importantes ainda são as fotografias relativas aos danos materiais verificados em cada uma das viaturas sinistradas. Dessas fotos resulta claro que o veículo da A. ficou danificado essencialmente na lateral direita, mas também apresenta danos no farol frontal dianteiro do lado direito. No contexto das fotos tiradas na data do acidente, até poderíamos admitir que fosse possível que esses danos frontais no farol da frente se pudessem ter dado por motivo do aperto lateral que o veículo levou, como foi explicado pelo perito da R., a testemunha PF (gravação aos minutos 1:41). Mas, considerando que o veículo seguro pela R. não apresenta qualquer dano no seu farol dianteiro do lado esquerdo, mas apenas na parte lateral, sendo até que a amolgadela mais acentuada que sofreu se mostra localizada entre a porta do condutor e a zona junto à roda esquerda da frente, tudo nos leva a crer que o embate só possa ter sido promovido pelo veículo da A., que virou o veículo à direita, para sair na 2.ª saída da rotunda, indo aí encontrar o veículo segurado pela R., que aí já se encontrava um pouco mais à frente (daí os danos no farol do veículo da A. e daí a amolgadela mais forte junto à porta esquerda do veículo segurado pela R.), apesar de no final, com a dinâmica do embate, os dois veículos terem ficado encostados e parados lado a lado.
Perante a objetividade dos danos, inverosímil se apresenta igualmente o que a testemunha PF, perito da R., veio afirmar em audiência de julgamento, considerando que foi o veículo segurado pela R. que foi embater no veículo da A. (gravação aos minutos 5:30 e 11:07). De facto, não tendo a mesma testemunha presenciado o acidente, chegar àquela conclusão, perante a evidência dos danos dos veículos, é verdadeiramente surpreendente, não se compreendendo como possa ser feita semelhante afirmação.
Diga-se ainda que esta mesma testemunha, perito da R., também temperou o seu depoimento com afirmações divergentes sobre essa conclusão inicial, dizendo que os veículos terão embatido “ao mesmo tempo” (aos minutos 6:13) ou que embateram “lateralmente” (aos minutos 7:41). O que, até poderia parecer ser possível, em face da posição final dos veículos, mas essa possibilidade é afastada pela constatação de que o veículo da A. tem danos frontais no farol do lado direito e a amolgadela mais profunda no veículo segurado pela R., onde certamente se terá dado o embate inicial, mais forte, situa-se junta à porta do lado do condutor, ou seja, na lateral esquerda desse veículo.
Em suma, julgamos que o Tribunal a quo fez uma apreciação da dinâmica do acidente que se mostra correta, em face da materialidade dos danos verificados em cada veículo, às condições do local do acidente, da localização dos veículos após o embate e a trajetória que cada um dos condutores pretendia seguir. Pelo que, a matéria dos pontos 8 e 31 deve permanecer provada nos mesmos termos, improcedendo a impugnação da Recorrente nesta parte.
1.2. Dos factos não provados nas alíneas b) a i).
De seguida, a Recorrente põe em causa o julgamento dos factos não provados nas alíneas b) a i), sustentada na prova testemunhal produzida pelas testemunhas RS, AM e PF e ainda na declaração de IRS, nomeadamente no que se refere à falta de meios financeiros para proceder à reparação do veículo por sua iniciativa. Ao que a Recorrida contrapõe que as testemunhas PF e RS terão também confirmado que a A. logrou que lhe fosse concedido crédito e que a oficina facultou um veículo de substituição à A..
A sentença recorrida sustentou a sua convicção quanto a estes factos nos seguintes termos:
«(…) importa salientar, no que tange aos danos alegados, que, para além do recibo de viagens de táxi e declaração de IRS, a prova cingiu-se aos depoimentos das testemunhas RS, AM, irmã da Autora e PF, amiga da Autora. (…)
«(…) dos restantes depoimentos [excluído então a relevância do depoimento de RS] derivou que a Autora, como expectável e normal neste tipo de evento ficou nervosa, assim como a sua filha, necessitando do apoio de amigos e familiares e o recurso a táxi para circular, em concreto deslocar-se ao seu trabalho em Ponta Delgada e levar a filha à escola. Todavia, se é certa a ansiedade e nervosismo usuais neste tipo de evento, os depoimentos afiguram-se tendenciosos, espelhando uma manifesta tentativa de hiperbolizar as consequências para as Autoras. Em primeiro lugar, nenhuma das testemunhas vive com as Autoras, em segundo lugar, a informação clinica do Hospital … reflete antes uma ausência de qualquer consequência corporal, inclusivamente, é claro ao relatar que a menina seguia na cadeira, com cinto de segurança, “está bem”, “não tem queixas”, “marcha normal”, “bem disposta”, “diz que quer comer”, apresentando uma pequena lesão derivada de ter “trincado o lábio”, sem sangramento.
«No mesmo sentido, caso a B… padece-se dos traumas alegados e com a intensidade aduzida, certamente, teria de ser acompanhada medicamente, em concreto na área da psicologia. Em síntese, os depoimentos limitaram-se a relatos sem qualquer consistência e prova da veracidade dos mesmos, como devido, derivando antes, uma prévia concertação em responder positivamente, sem qualquer base sustentada, às questões, diga-se, efetuadas de forma condicionada pelo ilustre mandatário, desembocando em incoerências.
«Aliás, a própria alegação revela tais incoerências bastando atentar por exemplo ao facto invocado na petição inicial “Durante este período de tempo esteve impossibilitada de trabalhar e de levar a filha B de 6 anos à escola”, bastando colocar a simples questão: Se as Autores se deslocavam de táxi e por meio de boleia, como é que estavam impedidas de trabalhar e de se deslocar à escola?
«Dito de outro modo, a formulação é reveladora da contradição, porquanto não foi sequer alegado nem provado que a Autora A… estivesse impedida de conduzir, e, com particular importância o recibo de táxi que poderia ter sido utilizado para a atividade escolar está datado do dia 13 de dezembro em diante. E, daí ter-se também restringido o facto 22, dando-se por assente, todavia, que, efetivamente as Autoras recorreram ao serviço de táxi com base no respetivo recibo emitido e que atesta o valor despendido em viagens, e, bem assim, pese embora as incongruências apontadas quanto à prova testemunhal os depoimentos das referidas testemunhas RO, AM e PC foram consentâneos no que respeita à paragem da viatura para o respetivo arranjo e a necessidade de recorrer a boleias. Não descuramos também que a Ré Seguradora apenas por missiva datada de 20.01.2022 imputou a responsabilidade pelo embate, recusando-se, portanto, a suportar no âmbito da apólice os danos decorrentes do embate.
«E, sempre diremos, e ressalvamos, que, com o devido respeito a alegação em si própria é insidiosa, bastando atentar que não foi alegado, como devido, a concreta data em que a Autora reparou a viatura e passou a utilizá-la, facto afirmado pela testemunha RS, trabalhador da oficina, nem se compreende que as testemunhas, irmã e amiga da Autora, afirmem que aquela recorreu a um crédito e não se tenha comprovado documentalmente como devido, o concreto mútuo contraído e, bem assim a composição do agregado familiar das Autoras, os respetivos rendimentos e despesas mensais.
«Pelo que, a prova dos danos cingiu-se aos factos 20 a 29, dando-se como não provados os factos elencados em b. a k..
«Volvendo, por fim, aos factos não provados impõe-se dizer, ainda, que o facto inserto em a. derivou de ausência de prova, assim como o facto incluído em l., não se levando à factualidade apurada a velocidade exigida no local por não estar em causa na situação em análise».
Ouvida a prova, parece-nos evidente que este sinistro, felizmente, não teve gravidade alguma, pois tratou-se dum mero encosto de carros, a baixa velocidade e sem grandes consequências físicas para condutores e passageiros de um e do outro carro. Nessa medida, os depoimentos das testemunhas pretendidos relevar pela Recorrente, sobre a reação da criança ou da própria A., só podem por nós ser entendidos como de depoimentos de favor, manifestamente exagerados para o que se verificou de facto e desproporcionados à realidade. Nessa medida, não nos oferecem credibilidade alguma, nessa parte, devendo manter-se por não provados os factos das alíneas f), g), h) e i), subscrevendo-se tudo o que a propósito a sentença recorrida deixou consignado e que deixámos reproduzido.
Quanto ao facto de a A. não dispor de meios económicos para custear a reparação (facto não provado na al. b), temos de reconhecer que a prova produzida em audiência e a prova documental junta aos autos, permite concluir que a A. não dispunha de rendimentos próprios para tanto.
Em primeiro lugar, a título meramente indiciário, mas não decisivo, recordamos que a A. beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa total de pagamento de taxas de justiça e encargos com o processo (doc. n.º 1 junto com o Requerimento de 1/6/2022 (Ref.ª n.º 4674904 - p.e.).
Em segundo lugar, a declaração de IRS, que se mostra junta aos autos com o Requerimento de 8/7/2022 (Ref.ª n.º 4726911 - p.e.), consta que o seu agregado familiar, para efeitos fiscais, é composto por si e pela sua filha, tendo a primeira rendimentos anuais de trabalho dependente no valor de €10.279,35, a que acrescem mais €279,38, recebidos pela filha (talvez a título de pensão de alimentos ou qualquer outro subsídio que não se apurou), tendo ainda encargos com habitação no valor de €2.572,56.
Em terceiro lugar, tendo de ser relevada a prova testemunhal, não podemos deixar de notar alguma incoerência na vida económica da A. em função dos depoimentos prestados em audiência final.
Assim, AM, irmã da A., disse que esta última trabalhava no hospital, auferindo €700,00 por mês e pagando €350,00 de renda de casa (gravação aos minutos 2:14), falando depois ainda em despesas com água, luz e infantário da filha, que não soube quantificar (aos minutos 2:41).
PF, amiga da A., também disse que a A. é administrativa na unidade de cuidados paliativos do Hospital …, auferindo €700,00 por mês (gravação aos minutos 4:30); paga €350,00 de renda de casa (aos minutos 4:58); ameaçando a senhoria aumentar a renda em mais €50,00 (gravação aos minutos 5:16); sendo que também paga €200,00 de prestação do carro (gravação aos minutos 5:48).
Ambas estas testemunhas, em conjunto com RS, funcionário da oficina onde o veículo da A. foi reparado, também referem que a A., a certa altura, conseguiu um empréstimo para fazer a reparação do veículo, com recurso à fiança duma amiga, fazendo-se menção a que estará a pagar encargos de €200,00 por mês com ele.
A ser assim, há uma conclusão a tirar: ou a matemática não está certa, ou a A. conta com ajudas que não foram explicitadas no processo.
A A. só pode estar a viver em situação de indigência, pois não tem como comer ou dar de comer à sua filha. Não tem dinheiro para suportar despesas domésticas com eletricidade, gás e água. Não tem como suportar as despesas com a educação da sua filha. E, no entanto, pagou €300,00 em deslocações de táxi durante o período em que o seu veículo estava na oficina à espera de reparação e logrou ainda assim obter um empréstimo para fazer essa reparação, que custou €3.258,00, de acordo com fatura e transferência juntas com o requerimento de 8/7/2022 (Ref.ª n.º 4726911 – p.e.), ainda que o empréstimo só tenha sido concedido após obter uma garantia pessoal adicional, através de fiança duma amiga…
Não temos dúvidas que muito ficou por explicar, quanto ao modo como a A. consegue sobreviver nestas condições. O que não invalida a prova produzida de estarmos perante uma mãe solteira (cfr. assento de nascimento junto com o Requerimento de 1/6/2022), com um rendimento mensal muito baixo e com encargos fixos difíceis de suportar só com o seu vencimento. Nessa medida, o aparecimento duma despesa imediata de €3.258,00, relativos à reparação do veículo sinistrado, teve certamente um grande impacto na sua vida económica, não vendo nós como se possa afastar a conclusão de que se fez prova de que a A. não dispunha de meios financeiros próprios para proceder à reparação do seu veículo, sendo que também se provou que no final conseguiu mandar arranjar essa viatura, porque conseguiu um empréstimo para esse efeito, graças ao facto de ter conseguido que uma sua amiga tenha aceitado prestar fiança pessoal a esse crédito, mesmo sendo certo que não exista prova documental desse empréstimo, nem ele figure entre os prejuízos visados ressarcir nesta ação.
Quanto à alínea c) dos factos não provados, o que resultou do depoimento da testemunha RS, que trabalha na oficina onde o veículo da A. ficou depositado a aguardar reparação, é que esse veículo não podia circular nas condições em que ficou, porque ficou com o para-choques, os para-lamas e o farol danificados. O que também é visível nas fotografias desse veículo juntas aos autos. Logo, provou-se que o veículo ficou parado e a A. não podia circular com ele, nessas condições, sem fazer as reparações necessárias.
Esta testemunha também referiu que a viatura veio depois a ser efetivamente reparada nessa oficina e entregue à A., já em 7 de abril de 2022 (gravação aos minutos 8:52), porquanto a A. teria conseguido um empréstimo (gravação aos minutos 7:10), tendo também referido que na semana anterior lograram entregar à A. uma viatura de substituição, sem encargos para aquela (gravação aos minutos 7:30 e 7:40). Ora, estes factos não podem deixar de se julgar por provados em função da prova produzida.
No que se refere ao valor de aluguer de um veículo com as mesmas caraterísticas, a mesma testemunha, RS, disse que os preços que praticavam na sua oficina, eram de €23,60 por dia. Não se tendo produzido qualquer outra prova sobre este facto, não vemos motivos para deixar de admitir como possível que, pelo menos, o aluguer de um veículo com características semelhantes às do da A., naquela ilha dos Açores, importasse em pelo menos €20,00 dia, como alegado.
Finalmente, quanto à alínea d) dos factos não provados, todas as testemunhas que a ele se referiam, seja RS, seja AM, seja PF, confirmaram situações de empréstimo de veículos, de boleias e uso de táxi. O que, aliás, já está dado por provado nos pontos 22 (quanto ao táxi e às boleias) e 25 (quanto à alteração de rotinas e sujeição às disponibilidades e horários de transportes). Pelo que, existindo uma contradição entre esses factos provados e o não provado na alínea d), parece-nos evidente que a solução, em função da prova produzida e da convicção a que o tribunal chegou, só pode passar pela eliminação da alínea d), na medida em que se provou efetivamente foi o que ficou a constar dos pontos 22 e 25 dos factos provados.
Em suma, nesta parte procede parcialmente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto não provada, devendo ser eliminada, pura e simplesmente, a matéria alínea d), na medida em que se provou o que consta dos pontos 22 e 25, sendo ainda eliminadas dos factos não provados as alíneas b) e c) e aditados aos factos provados três novos pontos, com os números 32, 33 e 34 e com a seguinte redação:
32. A A. não dispunha de meios económicos próprios que lhe permitissem custear a reparação do seu veículo, tendo tido para o efeito de recorrer a um empréstimo, com ajuda duma amiga, que se disponibilizou a servir de sua fiadora.
33. A viatura esteve parada e impossibilitada de circular desde o sinistro, ocorrido em 6 de dezembro de 2021, até 7 de abril de 2022, altura em que a mesma veio a ser entregue à A., devidamente reparada, sendo certo que foi facultada à A., pela oficina, uma viatura de substituição, sem encargos, durante a semana anterior a essa entrega.
34. O aluguer diário de uma viatura, com características semelhantes às da viatura da A., na Ilha de S. Miguel nos Açores, é de pelo menos €20,00.
1.3. Dos factos provados nos pontos 10, 11 e 12.
Passando agora para a impugnação da decisão sobre a matéria de facto feita pela Recorrida em sede de ampliação do objeto do recurso, em causa estão os factos constantes dos pontos 10, 11 e 12.
Quanto ao primeiro (ponto 10), a Recorrente põe-no em causa, por ser uma conclusão e não um facto.
Efetivamente, o que aí consta é que: «Quando pretendendo entrar na 3.ª via de saída o devia fazer pela faixa da esquerda e não da direita». Trata-se duma afirmação de “dever - ser” e não dum facto. Logo, por ser manifestamente conclusivo, deve ser eliminado dos factos provados, por esse ponto 10 não conter facto algum.
Quanto ao ponto 11, sustenta a Recorrida que o mesmo é conclusivo e que sobre ele não se fez qualquer prova, seja quanto à atenção do condutor, seja quanto à sinalização existente no local.
Está aí provado que, por referência ao condutor do veículo segurado pela R., que o mesmo conduzia «sem prestar qualquer atenção à circulação e sinalização».
No caso, é apenas certo que, no local, existia sinalização vertical e no pavimento. Na verdade, a prova testemunhal nada disse a esse respeito, tal como a Recorrida sustentou nas suas contra-alegações, mas das fotos do local do acidente, nomeadamente da participação policial, que foi junta pela R. com a sua contestação, consta que, à entrada da rotunda existia um sinal vertical de cedência de prioridade (sinal com forma de triângulo invertido), que era replicado a tinta branca no pavimento, e ainda um outro sinal vertical indicativo do sentido de circulação obrigatória em rotunda (sinal circular de cor azul com setas em branco a indicar o sentido de marcha nessa rotunda).
No entanto, a verdade é que a prova testemunhal não permite concluir, sem mais, que o condutor do veículo segurado pela R. não prestou atenção à circulação ou à sinalização. A única coisa que resulta da prova testemunhal foi que esse condutor seguia na faixa da direita e pretendia contornar a rotunda sempre por essa faixa, apesar de pretender sair apenas na 3.ª saída. Mais, o condutor do veículo segurado, AG, disse que procedeu assim, porque em Espanha, donde é originário, se circula nas rotundas indiferentemente em qualquer das faixas de rodagem (gravação aos minutos 7:45). Mas, a ser assim, daqui só se pode concluir que não respeitou o Código da Estrada (português, como é evidente), mas não que “não prestou atenção à circulação” ou à “sinalização” existente no local. O que se indicia é que o condutor foi surpreendido por uma manobra da A., com a qual muito provavelmente não estaria a contar, sem que daí decorra que não estivesse atento à circulação ou que não tenha visto a sinalização vertical ou no pavimento existente no local, sobre a observância da qual tinha uma interpretação muito própria.
Consequentemente, não havendo outra prova relevante para o julgamento desta matéria, o facto 11 deve ser eliminado e ser aditado aos factos não provados uma alínea j) com a seguinte redação:
«j) Que o condutor do veículo segurado pela R. conduzia sem ter atenção à circulação e à sinalização existente no local».
Finalmente, quanto ao ponto 12, a Recorrida também sustenta que o mesmo é conclusivo e, em consequência, só poderia ficar provado que: “O condutor do veículo matrícula ..UQ.., circulava na faixa mais à direita, quando pretendia sair na terceira via de saída”
Efetivamente existe um conjunto de afirmações, no princípio da redação do ponto 12, que se afiguram algo conclusivas, nomeadamente quando aí se diz que o condutor do veículo segurado pela R. circulava “de forma distraída, desatenta e temerária”. É evidente que qualificar a condução como “temerária” é uma conclusão e não um facto, sendo que quanto ao restante, na verdade essa matéria, na parte fáctica relevante, já se mostra refletida na alínea j) dos factos não provado atrás por nós visada aditar. Pelo que, por coerência, deve ser eliminada a primeira parte da redação do ponto 12.
Quanto à segunda parte, do mesmo ponto 12, parece que não existe a mínima dúvida. Esse facto foi confirmado pela testemunha AG e, portanto, deve subsistir provado.
Assim, o ponto 12 dos factos provados deve passar a ter a seguinte redação:
«12. O condutor do veículo segurado pela R., com matrícula ..UQ.., circulava na faixa mais à direita, quando pretendia sair na terceira via de saída».
1.4. Da conclusão sobre o resulta das impugnações.
Tendo todo o exposto em consideração, são produzidas as seguintes alterações à matéria de facto:
1- São eliminados dos factos provados os pontos 10 e 11;
2- O facto provado constante do ponto 12 passa a ter a seguinte redação:
«12. O condutor do veículo segurado pela R., com matrícula ..UQ.., circulava na faixa mais à direita, quando pretendia sair na terceira via de saída».
3- São aditados aos factos provados os pontos 32, 33 e 34 com a seguinte redação:
«32. A A. não dispunha de meios económicos próprios que lhe permitissem custear a reparação do seu veículo, tendo tido para o efeito de recorrer a um empréstimo, com ajuda duma amiga, que se disponibilizou a servir de sua fiadora.
«33. A viatura esteve parada e impossibilitada de circular desde o sinistro, ocorrido em 6 de dezembro de 2021, até 7 de abril de 2022, altura em que a mesma veio a ser entregue à A., devidamente reparada, sendo certo que foi facultada à A., pela oficina, uma viatura de substituição, sem encargos, durante a semana anterior a essa entrega.
«34. O aluguer diário de uma viatura, com características semelhantes às da viatura da A., na Ilha de S. Miguel nos Açores, é de pelo menos €20,00.
4- É aditado aos factos não provados uma alínea j) com a seguinte redação:
«j) Que o condutor do veículo segurado pela R. conduzia sem ter atenção à circulação e à sinalização existente no local».
No mais, subsiste a factualidade provada e não provada da sentença recorrida.
2. Dos pressupostos da responsabilidade civil.
A A. veio intentar a presente ação com o fim de realizar a garantia, que decorre da existência de contrato de seguro do ramo automóvel, de cumprimento da obrigação de indemnizar que incumbe ao titular do veículo segurado que, nos termos da lei civil, é responsável por acidente de viação e, por isso, está obrigado a reparar os danos a que deu causa. Pretendia assim a A. obter a condenação da R. no pagamento duma indemnização num valor total de €7.270,01, acrescidos de juros de mora a contar da citação.
Para tanto, a A. identificou o veículo que causou o acidente dos autos como sendo aquele que tinha a matrícula ..UQ.., cuja responsabilidade civil contra terceiros se encontrava ao tempo transferida para a R.-Seguradora, através da apólice 00… (cfr. doc. de fls. 20 e 20 verso – facto provado 30).
Ora, nos termos dos Art.ºs 4.º, 6.º, 10.º a 12.º e 15.º do Dec.Lei n.º 291/2007 de 21 de agosto, a Companhia Seguros R. estará obrigada a indemnizar os lesados até ao montante do capital obrigatoriamente seguro, na medida em que o seu segurado, ou o legítimo detentor ou condutor do veículo, estivesse obrigado a indemnizar nos termos da lei civil.
Inequivocamente que, em face dos termos em como a ação foi proposta pela A., em causa estava apenas a responsabilidade civil por factos ilícitos culposos, tal como a mesma é regulada nos Art.s 483.º e ss. do C.C..
Resulta da lei civil que, nos termos do Art.º 483º do C.C.: «Aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito doutrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
São assim pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, conforme realçava o Prof. Antunes Varela (in “Das Obrigações em Geral” - Vol. I, 10.ª ed., pág. 526): 1) o facto voluntário do lesante; 2) a ilicitude; 3) a imputação do facto ao lesante; 4) o dano; e 5) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Por facto voluntário do lesante deverá entender-se todo o comportamento voluntário ou forma de conduta humana. Assim, não há dúvida que o domínio de um veículo automóvel por parte de quem o conduz se traduz num facto voluntário, pelo que se verificou o primeiro dos referidos pressupostos da responsabilidade civil.
Quanto ao segundo pressuposto, a ilicitude, de acordo com o disposto no Art.º 483º n.º 1 do C.C., ela poderá resultar, ou da violação dos direitos doutrem, ou de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios. Na primeira forma de ilicitude descrita a doutrina compreende basicamente a tutela dos direitos absolutos (vide: Antunes Varela, in Ob. Cit., pág. 533).
Resulta da matéria provada que a A. sofreu, desde logo, danos no seu património, o que constitui uma lesão do direito de propriedade, cuja tutela “erga omnes” resulta dos Art.ºs 1302.º e ss. do C.C.. O mesmo se devendo dizer das lesões físicas que sofreu no corpo, cuja tutela, como direito absoluto, decorre do Art.º 70.º n.º 1 do C.C..
Mas, para uma conduta ser ilícita, a lesão desses direitos de tutela “erga omnes” deve resultar de factos voluntários contrários ao direito.
Diga-se que a sentença recorrida identificou bem esse ilícito, considerando que o condutor do veículo segurado pela R. violou o disposto no Art.º 14-A do Código da Estrada.
Dispõe esse preceito que:
«1 - Nas rotundas, o condutor deve adotar o seguinte comportamento:
«a) Entrar na rotunda após ceder a passagem aos veículos que nela circulam, qualquer que seja a via por onde o façam;
«b) Se pretender sair da rotunda na primeira via de saída, deve ocupar a via da direita;
«c) Se pretender sair da rotunda por qualquer das outras vias de saída, só deve ocupar a via de trânsito mais à direita após passar a via de saída imediatamente anterior àquela por onde pretende sair, aproximando-se progressivamente desta e mudando de via depois de tomadas as devidas precauções;
«d) Sem prejuízo do disposto nas alíneas anteriores, os condutores devem utilizar a via de trânsito mais conveniente ao seu destino.
«2 - Os condutores de veículos de tração animal ou de animais, de velocípedes e de automóveis pesados, podem ocupar a via de trânsito mais à direita, sem prejuízo do dever de facultar a saída aos condutores que circulem nos termos da alínea c) do n.º 1.
«3 – Quem infringir o disposto nas alíneas b), c) e d) do n.º 1 e no n.º 2 é sancionado com coima de €60 e €300».
Efetivamente, em face da factualidade provada, o condutor do veículo segurado na R. violou claramente o Art.º 14.º-A n.º 1 al. c) do Código da Estrada, porquanto, apesar de pretender sair apenas na 3.ª saída da rotunda, circulou nela sempre pela faixa da direita, conduta a que corresponde uma contraordenação punível com coima.
A violação das normas estradais não conferem ao lesado qualquer reparação pelos danos que dela resultem, mas sendo essas condutas descritas como contraordenações, são simultaneamente ilícitos civis, na medida em que levem à violação de um direito absoluto, atento a que a ilicitude deve ser aferida em função do ordenamento jurídico considerado na sua totalidade. Nessa estrita medida tais factos constituem fontes de responsabilidade civil para os autores das violações desses normativos.
Deste modo fica demonstrada a ilicitude do comportamento do condutor do veículo segurado pela R., por ter violado os direitos doutrem agindo de forma desconforme ao que era objetivamente exigido pelo direito, não tendo existido qualquer causa justificativa da ilicitude, nem se podendo dizer que agiu no exercício regular de um direito ou no cumprimento de um dever (Vide: Almeida Costa, in “Direitos das Obrigações”, 365).
No que se refere à culpa, ou imputação subjetiva dos factos ao condutor do veículo segurado, não existem dúvidas sobre a autoria dos atos em causa. Resulta da matéria de facto que o condutor do veículo segurado agiu como autor material dos factos relativos à condução desse veículo, que culminaram no acidente (Art.º 490º do C.C.).
Por outro lado, não existindo elementos de facto que nos permitam deixar de concluir que o mesmo agiu com discernimento e liberdade de determinação suficientes na sua conduta (Art.º 488º do C.C.), o seu comportamento pode ser objeto de um juízo de censura.
Ora, em face da descrição do seu comportamento ao conduzir naqueles termos numa rotunda, é evidente que o condutor do veículo segurado revelou alguma imprevidência, descuido e ligeireza por não ter tomado as providências necessárias que estava obrigado a observar na condução do veículo, sendo evidente que se seguisse na faixa da esquerda, como era devido, já que só pretendia sair na 3.ª saída, este acidente nunca teria ocorrido.
A diligência de um “bom pai de família” determinaria que esse condutor respeitasse as regras de trânsito e previsse a possibilidade de acidente no caso de desrespeito a essas mesmas regras (Art.º 487º n.º 2 do C.C.), pelo que poderemos com segurança dizer que o condutor do veículo segurado pela R. agiu com culpa.
Em todo o caso, importa ainda, em sede culpa, apreciar a eventual responsabilidade subjetiva do próprio lesado pela ocorrência do acidente, tendo em atenção o disposto no Art.º 570º n.º 1 do C.C..
Ora, a sentença recorrida fez notar, muito corretamente, que a A. não aguardou a passagem do veículo segurado na R., tendo ido embater com o canto direito do seu veículo na porta da frente e de trás do lado esquerdo do veículo segurado na R., sendo que sobre si também recaia a obrigação de se aproximar progressivamente da saída da rotunda que pretendia tomar e mudar faixa para a via da direita, depois de tomadas as devidas precauções. Pelo que, também a A. violou o Art.º 14.º-A n.º 1 al. c) do Código da Estrada.
Em suma, ambos os condutores haviam posicionado os veículos que conduziam na faixa errada da rotunda, em face da saída que pretendiam tomar, sendo evidente que o facto de o condutor do veículo segurado pela R. seguir indevidamente na faixa exterior, não permitiria à A. abalroar aquele, por forma a poder sair na rotunda para a saída por si pretendida tomar.
Portanto, o comportamento da A. é igualmente ilícito e suscetível de censura, tendo ambos os condutores agido de forma, pelo menos, negligente, contribuindo de forma igual para o acidente e para os consequentes danos. Nessa medida, não existe qualquer motivo para alterar essa apreciação feita pela sentença recorrida, neste contexto.
Passando agora ao pressuposto da responsabilidade civil relativo aos danos, cumpre reafirmar o princípio básico de que a obrigação de indemnização depende necessariamente da existência de danos ou prejuízos decorrentes do facto ilícito culposo.
Os danos constituem a perda “in natura” que o lesado sofreu nos seus interesses materiais, espirituais ou morais em consequência do facto lesante e que o direito tutela.
A ressarcibilidade do dano deve estar, apenas e só, sujeita à regra geral do Art.º 562º do C.C., que consagra a teoria da diferença. Ou seja, a indemnização deverá reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
No caso vertente, a A. reclamou uma indemnização por danos de natureza patrimonial e não patrimonial.
Quanto aos patrimoniais, reclamou uma indemnização de €3.770,01, a que acresceria a privação de uso de veículo, que computou em €1.400,00 à data da propositura da ação.
No entanto, indicou que os danos materiais na viatura foram contabilizados em €2.514,86 (artigo 23.º da petição inicial), sendo certo que a R. contabilizou a reparação do seu veículo em €3.258,01 (artigo 24.º da petição inicial). Por outro lado, apesar de erradamente inseridos na petição inicial na parte relativa aos danos não patrimoniais, a A. ainda reclamou o reembolso de €300,00 de gastos em deslocações em táxi (artigo 37.º da petição inicial) e €212,00 de perdas salariais (artigo 36.º da petição inicial).
Portanto, os €3.770,01 de danos patrimoniais correspondem à soma de €3.258,01 da reparação do veículo, tal como decorreu da perícia realizada pela R. (cfr. artigo 24.º da petição), com os €300,00 de despesas com deslocações em táxi (cfr. artigo 37.º da petição) e os €212,00 de perdas salariais (cfr. artigo 36.º da petição inicial).
Ficou provado que o material danificado no veículo tinha o valor de €2.514,86 (facto provado 15) e a sua reparação foi quantificada, no Relatório de Peritagem da R., no valor de €3.258,01, que incluía mão de obra e pintura (facto provado 16). Acresce que, como já vimos, a A. juntou prova documental em como pagou precisamente este último valor pela reparação da sua viatura.
Também ficaram provadas as deslocações em táxi, no valor de €300,00 (cfr. facto provado 22), sendo que também se provou que a A. esteve de baixa médica de 7 a 14 de dezembro de 2021, devido a dores no ombro esquerdo, com perda de salário e subsídio de refeição, mas apenas no valor de €108,24 (cfr. factos provados 20 e 21).
Em consequência, os danos patrimoniais foram quantificados em €3.666,25. O que foi reconhecido pela sentença recorrida, só que, ao abrigo do Art.º 570.º do C.C., no final, reduziu a indemnização para metade (€1.833,12(5)), em função da proporção das culpas dos condutores. O que está correto, embora o arredondamento devesse ter sido feito para €1.833,13.
Quanto aos danos não patrimoniais, a A. invocou que, na sequência do embate, foi comprimida pelo cinto de segurança (artigo 34.º da petição inicial), que ficou imobilizada e com dores no ombro esquerdo, que motivaram a baixa médica de 7 a 14 de dezembro de 2021 (artigo 35.º da petição inicial) e teve grave desgosto físico e psicológico (artigo 41.º da petição inicial), pedindo €1.500,00 pelas lesões sofridas, dores imobilização e stress, pelas alterações nas rotinas diárias com a privação do veículo e pelo tempo gasto em oficinas, com a seguradora e tribunal (artigo 43.º da petição inicial).
Ficou provado que, em consequência do acidente, a A., A…, foi comprimida pelo cinto de segurança nas zonas da cintura, peito e ombro esquerdo (facto provado 19) e que, devido à imobilização e dores no ombro esquerdo, esteve de baixa médica de 7 a 14 de dezembro de 2021 (facto provado 20), sendo que a falta da viatura acidentada provocou alterações nas rotinas de deslocação, com sujeição à disponibilidade e horários de transporte, provocando desgaste físico e psicológico na A., para além do tempo gasto em oficina, seguros e agora advogado e tribunal (factos provados 25, 26 e 27).
Visto isto, há que dizer que existe sempre um grau de dificuldade maior na consideração dos danos de natureza não patrimonial, precisamente porque estes se caracterizam pelo facto de não serem suscetíveis de avaliação pecuniária, na medida em que atingem bens que não integram o património do lesado. Assim, o lesado apenas pode ser compensado pelo estabelecimento duma obrigação pecuniária imposta ao lesante, que corresponde mais uma satisfação do que propriamente uma indemnização em sentido próprio (Antunes Varela - Ob. cit. - Vol. I, pág. 561).
Nos termos do Art.º 496º n.º 1 do C.C. na fixação dessa indemnização deve atender-se somente aos danos que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, sendo que para efeitos da fixação do montante da indemnização, o Art.º 496º n.º 3 do C.C. estabelece que se deve atender à equidade, ao grau de culpabilidade do agente, à sua situação económica e do lesado e demais circunstâncias que o justifiquem.
No caso, a sentença recorrida fixou essa indemnização, no que se refere à A. A…, no valor de €600,00, o que se nos afigura perfeitamente adequado aos danos efetivamente dados por provados.
Quanto aos danos não patrimoniais sofridos pela filha da A., que seguia no banco de trás, como passageira no veículo por si conduzido, a A. pedia uma indemnização de €2.500,00, por danos que na sua maioria ficaram a constar dos factos não provados (alíneas f) a i) da sentença recorrida), tendo a sentença recorrida decidido fixar a indemnização devida à mesma em €250,00, considerando apenas o impacto do embate e o susto natural daí decorrente. O que também se nos afigura perfeitamente razoável.
Até aqui, não vemos qualquer motivo para alterar a sentença recorrida, sendo certo que, para último, deixámos ficar o dano referente à privação do uso do veículo, relativamente ao qual a sentença recorrida não reconheceu qualquer direito a indemnização. Situação que pode ser alterada em função do resultado da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, pois agora ficaram dados por provados factos que podem bem alterar essa parte da decisão.
A A. pretendia uma reparação pela privação do uso do veículo pelo valor do aluguer dum veículo de substituição de características semelhantes, o que compatibilizou em €1.400,00 (€20,00 x 70 dias) (cfr. artigos 30.º a 33.º da petição inicial). Recordando-se aqui que a petição inicial havia dado entrada em juízo em 17 de fevereiro de 2022 e, portanto, numa altura em que a reparação do veículo da A. ainda não tinha ocorrido.
Consta agora da matéria de facto que, na sequência do acidente dos autos, a viatura da A. esteve parada e impossibilitada de circular, desde 6 de dezembro de 2021 (data do sinistro) até 7 de abril de 2022 (data da sua reparação), sendo certo que a oficina veio a facultar-lhe uma viatura de substituição, sem encargos, durante a semana anterior à entrega do veículo devidamente reparado (facto provado 33).
Portanto, a A. esteve efetivamente privada de viatura entre 7 de dezembro de 2021 e 31 de março de 2022, num total de 115 dias, sem prejuízo de ter recorrido a táxis, boleias e transportes públicos.
A partir daqui, seguimos muito de perto o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 26 de setembro de 2017, no qual o relator do presente foi ali também relator, no âmbito do processo n.º 10421/14.T2SNT.L1 (disponível em www.dgsi.pt.).
Diremos assim que a jurisprudência nacional tem vindo a admitir que a privação de uso de veículo é suscetível de acarretar dano de natureza não patrimonial, devendo o seu ressarcimento ser inserido nesse quadro normativo. Sem prejuízo, vem-se reconhecendo o direito de indemnização com fundamento na simples privação do uso normal do bem, apesar de não se provarem factos relativamente às perdas concretamente verificadas em consequência do não uso (vide, por ex: Ac. STJ de 9/5/1996, in BMJ 457º, pág. 325).
Conforme sustenta Abrantes Geraldes (in “Indemnização do Dano da Privação do Uso”, Almedina, pág.s 50 e ss.) numa situação de privação de uso de um bem, não sendo viável a reconstituição natural, deve relevar-se que o lesado ficou privado das utilidades que o referido bem lhe poderia proporcionar. Assim, pressupondo que a privação do uso do veículo representa sempre uma falha na esfera patrimonial do lesado, por regra reconhece-se aí um prejuízo material que pode ser avaliado e compensado de acordo com a gravidade das repercussões negativas e o destino que, em concreto, era dado ao bem. Essa compensação pode variar de acordo com o circunstancialismo do caso, tendo em consideração a disponibilidade de outro veículo com idêntica função ou o grau de utilização que efetivamente lhe seria dado durante o período da privação. Em princípio, a privação deverá ser compensada com a atribuição de um quantitativo correspondente ao desvalor emergente da ação, defendendo-se uma solução que realce a verificação de uma situação patrimonial menos valiosa do que a que existiria se não fosse a privação, ficando aberta a possibilidade de se proceder ao apuramento do seu quantitativo, em última análise, seguindo as regras da equidade propiciadoras de uma solução justa. Esclarecendo, escreve o mesmo autor que: «Naturalmente, é inatingível a determinação com rigor matemático do valor dos prejuízos, nem tal se pede ao Tribunal quando, nestes e noutros casos, tem de se pronunciar (…) deve, então, orientar-se pelos traços largos da equidade, ponderando as circunstâncias que o processo ou as regras da experiência revelem (…) tomando, por exemplo, como ponto de referência a quantia necessária para o aluguer de um bem de características semelhantes».
A este propósito, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/5/2013 (Proc. n.º 3036/04.9TBVLG.P1.S1 – Relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, disponível em http://dgsi.pt) escreveu-se o seguinte: «Entende-se que a privação do uso de um veículo é, em si mesma, um dano indemnizável, desde logo, por impedir o proprietário (…) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito (assim, por exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 5 de Julho de 2007, www.dgsi.pt, proc., nº 07B1849, ou de 10 de Setembro de 2009, já citado); e que o cálculo da correspondente indemnização, tal como se decidiu no acórdão recorrido, há-de ser efetuado com base na equidade, por não ser possível avaliar o valor exato dos danos (nº 3 do artigo 566º do Código Civil)».
No Acórdão da Relação de Lisboa de 10-3-2016, acessível no mesmo lugar, escreveu-se o seguinte: «A utilização dos bens faz parte dos interesses patrimoniais inerentes ao próprio bem sendo que a simples possibilidade de utilização ou de não utilização constitui uma vantagem patrimonial que, uma vez afetada, deve ser ressarcida. Dessa forma, haverá lugar à fixação de indemnização por privação de uso de veículo mesmo sem a prova de quaisquer perdas concretas, pois que o que está em causa no âmbito deste dano é a própria indisponibilidade da viatura. / Nas situações em que não seja possível determinar o montante exato dos prejuízos, o tribunal deve socorrer-se de um juízo de equidade e fixar tal montante dentro dos limites que tiver por provados».
No Acórdão da Relação do Porto de 8/10/2015, acessível no mesmo lugar, decidiu-se sobre o assunto que: «Salvo se se provar o contrário, a falta por um certo período de tempo de um veículo que se adquiriu para usar e se estava a usar, traduz-se num dano de privação do seu uso, que deve ser reparado pelas seguradoras com a colocação à disposição do lesado de um veículo de substituição (de características semelhantes) ou, caso essa obrigação não seja cumprida, pela atribuição, pelo menos tendencialmente, de um valor que parta do custo de aluguer diário desse veículo».
Por sua vez, no Acórdão da Relação de Coimbra de 6/3/2012, também acessível no mesmo lugar, é dito: «Para o proprietário ter direito a indemnização pela privação do uso do veículo, nos termos do n.º 1 do artigo 483.º e 562.º e seguinte do Código Civil, não basta a verificação em abstrato da privação, sendo ainda necessário que a privação do veículo cause uma diminuição ao nível da satisfação das necessidades do proprietário consideradas na sua globalidade. / Concluindo-se pelo dano e não sendo possível quantificá-lo em valores certos face aos factos provados, o tribunal deverá recorrer à equidade para fixar a indemnização, nos termos previstos no artigo 566.º, n.º 3, do Código Civil. / A quantia de €10,00 diários é adequada a título de indemnização pela paralisação diária de um veículo que satisfazia as necessidades básicas de deslocação do lesado e de um seu irmão que também o utilizava por empréstimo».
No acórdão da Relação de Lisboa de 13/10/2016 (ainda e sempre disponível no mesmo lugar), decidiu-se que: «Provando-se que o automóvel em causa não era uma viatura de “fim-de-semana”, usando-a a A., nomeadamente, em deslocações de trabalho, e emprestando-a à filha; provando-se que, tendo a seguradora manifestado a sua recusa em assumir o encargo de reparação da viatura em janeiro de 2014, a A. logo demandou judicialmente a R. em abril de 2014, reclamando o pagamento da reparação e indemnização pela imobilização do veículo; provando-se que o preço da reparação da viatura era avultado (€6.889,74 euros) e não se provando que a A. era pessoa de recursos económicos folgados, que lhe permitissem, sem sacrifício relevante, adiantar o preço da reparação; julga-se adequado, tomando em consideração os valores praticados pela jurisprudência, o valor diário fixado pelo tribunal de primeira instância e peticionado pela A., de €20,00 diários por cada dia de privação da viatura».
Ainda no acórdão da Relação de Lisboa, datado de 7/5/2015 (também disponível em www.dgsi.pt) é dito: «Julgar equitativamente não pode aqui implicar, sem mais, que o tribunal julgue tendo por base o custo do aluguer de uma viatura de idênticas características, porquanto isso seria pressupor que o requerente teria tido danos emergentes, como se tivesse procedido ao aluguer de uma viatura de idênticas características, o que não foi o caso, além de que no custo de aluguer de uma viatura existem variáveis como a margem de lucro da empresa de aluguer e o IVA suportado, variáveis que não seria equitativo colocar a cargo da requerida, como se o requerente as tivesse suportado. / Naquele juízo equitativo importa ponderar o valor médio do aluguer de uma viatura, como um referencial máximo, por corresponder ao valor que, em termos correntes, alguém teria que despender para lograr obter pelo menos o gozo e fruição de uma viatura média e ainda o tipo de utilização que o requerente fazia da viatura (mais ou menos intensa) de utilidade (para fins laborais ou familiares) ou de lazer e o período de privação do uso, aqui se devendo considerar que durante todo este período a seguradora não ressarciu o lesado e que apenas o veio a fazer na sequência de execução instaurada, facto que não deve deixar de se censurar também pela via indemnizatória, pois esta indemnização corresponde ao ressarcimento de um ato ilícito, com base na responsabilidade civil extracontratual».
Por nós, como já sustentámos no acórdão de 26 de setembro de 2017, no Proc. n.º 10421/14.T2SNT (do mesmo relator), não podemos deixar de manifestar a nossa concordância absoluta com a posição que defende que o dano pela privação de uso de veículo é um dano autónomo, com repercussão na esfera patrimonial do lesado, que pode ser considerado independentemente de haver ou não perda total do veículo, nomeadamente quando se prove que, durante determinado período de tempo, se verificaram situações relevantes de perda efetiva das utilidades próprias desse bem danificado, ou sejam demonstradas situações concretas em que se verificou uma falta de disponibilidade da viatura.
O Supremo Tribunal de Justiça já tem mesmo defendido que essas situações também podem resultar de mera presunção natural de que o seu proprietário usaria normalmente esse veículo (Vide: Ac.s do S.T.J. de 3/5/2011 (relator Nuno Cameira – Revista n.º 2618/06), de 15/11/2011 (relator Moreira Alves – Revista n.º 6472/06) e de 9/3/2010 (relator Alves Velho – Revista n.º 1247/07).
Neste contexto citamos uma vez mais, a este propósito e com a nossa inteira concordância, o sumário do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27/10/2015 (relatora Maria Adelaide Domingos – Revista n.º 5119/12.2TBALM.l1-1), onde se refere:
«I- A indemnização por privação do uso de veículo é um dano indemnizável autonomamente e não depende da prova concreta de gastos acrescidos por parte do lesado, bastando que esteja demonstrada a perda das utilidades que o veículo proporciona.
«II- A respetiva avaliação, se outro critério não puder ser seguido, será determinada pela equidade, dentro dos limites do que for provado, temperado pelas regras da razoabilidade e da experiência».
Ora, a demora na resposta da seguradora, que inicialmente aceitou a responsabilidade pelo sinistro (em 29 dezembro de 2021 – cfr. doc. 1, junto com a petição), mas depois, já em 20 de janeiro de 2022 (cfr. doc. 2, junto com a petição), optou por recusar a reparação do veículo, agravada pelas dificuldades financeiras da A., que demorou a encontrar financiamento para essa reparação, devido aos seus limitados rendimentos, o que só logrou superar com o recurso à fiança duma pessoa amiga, justificaram no caso concreto o prolongar no tempo de toda esta situação de privação do veículo.
Por outro lado, a matéria de facto provada também reflete situações em que a A. se sentiu na necessidade de usar o seu veículo, mas teve de recorrer a outras soluções, como boleias, táxi ou transportes, que lhe criaram constrangimentos efetivos, que não teria se tivesse o seu veículo à sua disposição.
Portanto, o dano por privação de uso do veículo foi real e é merecedor de tutela indemnizatória.
No que se refere à ponderação do montante da indemnização devida por este dano, tem sido recorrente o auxílio ao valor locativo dum veículo de caraterísticas semelhantes como critério valorativo. No entanto, esta solução de recurso tem sido muito criticada (vide, a propósito: Maria Graça Trigo in “Responsabilidade Civil – temas especiais, págs. 63 e ss.).
Por nós, temos aceitado que o valor da indemnização seja feito através da ponderação dum valor económico diário que tenha em conta a utilidade que decorre do uso normal do veículo, fornecendo assim um critério objetivo e sindicável ao exercício pelo julgador da avaliação por equidade desse dano. Daí não resulta que o valor diário deva corresponder necessariamente ao valor locativo dum veículo com características semelhantes, tal como o dado por provado no ponto 34 (cfr. aditamento feito no ponto 1.4 do presente acórdão), porque na locação comercial de veículos automóveis entram em ponderação critérios empresariais que nada têm a ver com as utilidades diárias que a disponibilidade particular de um veículo pode proporcionar ao cidadão comum.
Dito isto, a prova feita sobre as desvantagens verificadas na esfera da A. durante o período relevante de perda de uso do veículo não são de molde a justificar o valor diário de €20,00, tal como peticionado. Julgamos que o valor de €10,00 se afigura mais adequado à situação concreta.
Em conformidade, o valor da indemnização relativa ao dano da privação de uso do veículo deverá ser igual a €1.150,00 (€10,00 x 115 dias).
Temos assim que os danos patrimoniais relativos à reparação do veículo ascendem a €3.666,25.
Os danos não patrimoniais da A., A…, ascendem a €600,00, e os da A., B…, menor de idade, merecem reparação por €250,00.
Ao que acresce, finalmente, o dano pela privação de uso do veículo, no valor de €1.150,00.
Todos eles, por razão da aplicação do Art.º 570.º n.º 1 do C.C., deverão ser reduzidos a metade, em função da repartição de culpas imputável ao condutor do veículo segurado pela R. e à própria A..
Deste modo, porque a indemnização deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o dano que obriga à reparação (Art.º 562º do C.C.), embora esta deva ser reduzida em função da repartição de culpas, computamos o valor da indemnização devida às A.A. em €2.833,13, sendo €1.833,13 por danos patrimoniais (€3.666,25 : 2); €575,00 pela privação de uso do veículo (€1.150,00 : 2); €300,00 por danos não patrimoniais da A. A… (€600,00 : 2); e €125,00 por danos não patrimoniais da A. B… (€250,00 : 2).
Quanto ao pressuposto do nexo de causalidade, sobre ele não oferecem os autos quaisquer dúvidas. Decorre claramente do processo que os factos imputados ao condutor do veículo segurado pela R. foram causa direta e necessária dos danos descritos e considerados relevantes (Art.º 563º do C.C.), sendo certo que qualquer pessoa colocada no lugar do lesante poderia prever como consequência normal e possível dessa conduta os danos decorrentes deste acidente.
Assim, estão preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos culposo prevista no Art.º 483º n.º 1 do C.C..
O condutor do veículo segurado pela R. está obrigado a indemnizar os lesados, nos termos dos Art.º 483º n.º 1 do C.C., sendo que a responsabilidade civil decorrente da circulação desse veículo foi transferida para a R.. Assim, por força do Art.º 64º n.º 1 al. a), conjugado com os Art.ºs 4º a 6º, 10º, 11º n.º 1 al. a) e 12º, todo do Dec.Lei n.º 291/2007 de 21 de Agosto, a Companhia Seguros, aqui R., estará obrigada a indemnizar os lesados até ao montante do capital obrigatoriamente seguro, na medida em que o seu segurado esteja obrigado a indemnizar nos termos da lei civil, atento ao facto de os danos terem resultado de acidente de viação.
Tendo sido computados os danos num total de €2.833,13, deverá arbitrar-se às A.A. uma indemnização de igual valor, sendo a responsabilidade pelo seu pagamento por parte da R..
Quanto aos juros, eles são devidos desde a data da citação, no que se refere aos danos de natureza patrimonial (Art.º 804º, 805º n.º 1 e Art.º 806º do C.C.).
No que se refere aos danos de natureza não patrimonial, cujo valor fixado logo na decisão recorrida, que os considerou atualizados à data dessa sentença, nos termos do acórdão de uniformização de jurisprudência de 9 de Maio de 2002 (publicado no D.R., 1ª Série, n.º 146º-A de 27/6/2002), os juros de mora são apenas devidos desde a prolação da sentença, tal como aí decidido.
A taxa de juro a pagar é a de 4%, emergente da Portaria n.º 291/2003, de 8 de abril, aprovada nos termos do Art.º 559.º do C.C..
Em conformidade, a sentença recorrida só deverá ser alterada em função do ora exposto, no que se refere ao dano relativo à privação de uso do veículo, que ali foi desconsiderado, mantendo-se o demais decidido, concordando-se com as conclusões apresentadas pela Recorrente apenas na estrita medida do supra considerado.
As custas, nos termos do Art.º 527.º do C.P.C., devem ser na proporção do respetivo decaimento, arrastando a decisão proferida neste acórdão a alteração correspondente na condenação em custas pela sentença recorrida, tudo sem prejuízo, evidentemente, do benefício de apoio judiciário concedido à aqui Apelante.
V- DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente por provada, determinando-se as alterações à matéria de facto provada e não provada, tal como consignado no ponto 1.4. do presente acórdão, e alterando-se a sentença recorrida na sua parte dispositiva, substituindo-a pela seguinte decisão:
1) Julgar a ação parcialmente procedente e, em consequência, condena-se a R., C…, a pagar à A., A…:
a) A quantia de €1.833,13 (mil oitocentos e trinta e três euros e treze cêntimos), a título de danos patrimoniais relativos à reparação do veículo, mais a quantia de €575,00 (quinhentos e setenta e cinco euros), pelo dano de privação de uso do veículo, ambas acrescidas de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação da R. e até efetivo e integral pagamento;
b) A quantia de €300,00 (trezentos euros), a título de danos não patrimoniais devidos à A. A…, mais a quantia de €125,00 (cento e vinte cinco eros), devidos à filha menor da A., B…, aqui representada por sua mãe, também a título de danos não patrimoniais, ambas acrescidas de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a prolação da sentença até integral e efetivo pagamento.
2) Mais se decide absolver a R. do demais peticionado.
- Custas pela Apelante e pela Apelada, na proporção do respetivo decaimento (cfr. Art.º 527º n.º 1 e n.º 2 do C.P.C.), sem prejuízo, quanto à primeira, do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido.

Lisboa, 2 de maio de 2023
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
Ana Rodrigues da Silva